7. «Folares» e ovos de páscoa em Portugal1
p. 85-96
Texte intégral
1A Páscoa é, em Portugal, uma época característica de presentes cerimoniais, nomeadamente de natureza alimentar, e os presentes de Páscoa levam o nome genérico de «folares»2. A palavra, porém, numa acepção restrita e mais precisa, designa um certo tipo de bola, específica do ciclo pascal, que, conforme os casos, é ou pode não ser o objecto desses presentes; veremos que a sua generalização a todos os presentes cerimoniais desta festividade, seja qual for a sua natureza, deve ter tido lugar a partir da sua significação alimentar.
2Como bola de Páscoa, existem, em Portugal, diferentes espécies de «folares»; o mais corrente e difundido é o de um bolo em massa seca, doce, e ligada, feito com farinha triga, ovos, leite, azeite, banha ou pingue, açúcar e fermento, e condimentado com canela e ervas aromáticas – uma espécie de regueifa ou fogaça –. encimado, conforme o seu tamanho, por um ou vários ovos cozidos inteiros e em certos lugares tingidos, meio incrustados e visíveis sob as tiras de massa que os recobrem. Este tipo de «folares» constitui a regra quase sem excepções em todo o Sul do País, no Algarve e no Alentejo, e é corrente na Estremadura e nos arredores de Lisboa; no Centro do País, é ainda frequente nas três províncias beiroas, especialmente na Beira Baixa; e encontra-se também mais acima, na região do rio Douro que delimita as províncias nortenhas, aparecendo mesmo excepcionalmente no distrito do Porto3.
3Conforme as regiões e localidades, estes «folares» podem apresentar algumas variações e particularidades, no que respeita às suas formas e bem assim a certas práticas que lhe estão associadas; no Sul, eles são redondos, espessos e maciços, e comem-se no domingo de Páscoa, ou, em certos sítios, na Sexta-Feira Santa, na segunda-feira a seguir à Páscoa, ou mesmo, no final do ciclo, em domingo de Pascoela; nos arredores de Lisboa, eles têm uma forma ovalada; em Aveiro, a de um coração; etc. Em certas áreas do Alentejo, porém, como por exemplo na região de Eivas, os «folares» tomam aspectos zoomórficos, lagartos, pintos, borregos, pombos, etc., conforme são destinados aos rapazes ou às raparigas; D. Sebastião Pessanha4 fala também nos «folares» de Castelo de Vide, também no Alentejo, em forma de «duplo coração, recamado de ovos e belamente decorado com motivos feitos da mesma massa, certamente presente simbólico entre namorados»; e também de «um grande lagarto, com coleira de seda encarnada e lacinho igual na cauda» (fig. 5). O mesmo autor menciona ainda os «folares» de U1, no concelho de Oliveira de Azeméis, que mostram, sob um bolo oval, com saliências ou pegas nos dois topos, uma ou mais galinhas de massa aninhadas em cima de um ovo cozido com a casca tingida de vermelho, ou de diversas frutas – uma noz. figos, etc., notáveis pela estranheza do seu aspecto e fantasia de decoração (fig. 6) ; do mesmo modo, em Olivença, o «folar» do padre no «Compasso» pascal é um bolo que contém um ovo ou se apresenta com a forma de um pintainho – o Pintainho da Festa –5. Dentro do mesmo estilo, encontramos também em Caíde, na região do Porto, a Pitinha da Páscoa, que o padeiro distribui a cada uma das crianças da freguesia, na manhã do Sábado de Aleluia, e que consta de uma galinha em massa de pão, rodeada de pintainhos, em cima, feitos do mesmo material, e, sob ela. embutido, um ovo cozido6.
4Á parte essas raras excepções que mencionamos, o rio Douro marca o limite da difusão geral de tal tipo de «folar». No Nordeste montanhoso e planáltico de Trás-os-Montes, o «folar» doce, aromatizado e encimado por ovos cozidos desaparece: o bolo de Páscoa, embora leve o mesmo nome de «folar», é aí uma bola redonda, em massa dura, feita com farinha, ovos, leite, manteiga e azeite, que encerra bocados de carne de toda a espécie – vitela, frango, coelho, e sobretudo porco, presunto e rodelas de salpicão –. cozidos dentro da massa, que junto deles fica mais tenra com a gordura que deles se desprende. Por seu turno, estes «folares», podem ser. segundo as regiões, grandes e altos, em massa fresca (Bragança), ou achatados e pequenos, em massa seca (Freixo de Espada à Cinta). Cozem-se geralmente em grande número, e continua-se a comê-los mesmo passada a Páscoa, sendo especialmente próprios para levar de merenda.
5Estas duas categorias de «folares», tanto os doces como os gordos, são. nas aldeias como muitas vezes nos centros urbanos, feitos em casa, no forno onde normalmente se coze o pão; as padarias locais podem fazê-lo também, mas por encomenda ou em vista dos seus fregueses habituais, mais do que como objecto de um comércio impessoal.
6No Noroeste atlântico7. na província do Minho e na região do Porto, estes diversos tipos de «folares» são desconhecidos, e o bolo da Páscoa muda inteiramente de género e de nome: ele é aí o pão-de-ló, palavra de etimologia duvidosa8. que se apresenta sob a forma de um grande bolo redondo, aberto no centro, duma massa leve e fofa de um amarelo vivo, composta exclusivamente de gemas de ovos e açúcar, às quais a farinha não serve senão para dar a consistência necessária. Nas aldeias o pão-de-ló faz-se igualmente em cada casa, para a sobremesa do domingo de Páscoa: mas ele tomou-se a especialidade de alguns centros regionais bem conhecidos – Margaride. Ovar. Arouca. etc. –. que. nessa ocasião, inundam o País com os seus produtos: vêem-se então por toda a parte desses bolos, de todos os tamanhos, muito altos e por vezes com perto de oitenta centímetros de diâmetro, a crosta bem tostada pela cozedura, aderentes ao papel branco em que foram ao forno. Esta industrialização fez do pão-de-ló um produto corrente de pastelaria, que. embora com muito menor frequência, se encontra à venda todo o ano. O pão-de-ló, caseiro ou industrial, é um manjar típico de todas as refeições festivas portuguesas, e. muitas vezes, mesmo de certas refeições cerimoniais: é difícil dizer-se com segurança se foi o seu carácter festivo geral que fez dele, na respectiva área, o bolo cerimonial da Páscoa, ou se. pelo contrário, foi esta qualidade específica que se ampliou a todas as ocasiões festivas alimentares.
7É digno de nota o facto de que alguns daqueles centros produtores se situam nas províncias compreendidas na área dos «folares» doces, que levam em cima os ovos cozidos: o seu carácter cerimonial, como bolos de Páscoa, é ai um pouco atenuado, sobretudo perante o dos «folares» característicos; mas parece-nos que eles se devem considerar relacionados com os seus congéneres do Noroeste, tanto mais que guardam sempre um direito obscuro a figurar em todas as refeições festivas.
8Os presentes cerimoniais de Páscoa, que obedecem a regras bem determinadas. são também chamados, como dissemos, « folares », sejam de que espécie forem: nesta segunda acepção, mais lata, encontramos várias categorias fundamentais de «folares», correspondendo a outras tantas situações sociais independentes:
91) Os presentes obrigatórios que os padrinhos dão na Páscoa aos seus afilhados:
102) O óbulo que se oferece ao padre, em casa, quando da visita pascal, ou «compasso»;
11e menos comummente
123) As ofertas determinadas que têm lugar na Páscoa entre pessoas ligadas por laços de parentesco genérico ou cerimonial, precário ou de validade atenuada. ocasional e temporária:
13e. enfim, referidos a outras ocasiões especificadas:
144) As ofertas que se enviam aos noivos no dia do casamento9; e ainda
155) – muito raramente –. os mimos que se oferecem no Natal10.
1) O « folar do padrinho
16No primeiro caso, dado que muitas vezes os bolos que levam esse mesmo nome de «folares», e que atrás descrevemos, são precisamente o objecto específico dos presentes – e. sobretudo, que, outrora. tal devia certamente ser a regra geral –. pode-se supor que quando se chama «folar» a outras espécies de prendas. a designação representa a ampliação do sentido primitivo da palavra, mais restrito, baseada na função do bolo. Contudo, notamos que a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira regista ainda para a palavra «folar» o significado de direito paroquial de receber o presente dos paroquianos (isto é. o «folar») – o que inverteria os termos da hipótese explicativa; e Pedro de Azevedo aventa que o uso facultativo modemo de pedir hoas-festas e dar boas-festas pelo Natal e pela Páscoa... «não é mais do que o cumprimento voluntário de rendas ou foros que têm de se satisfazer em dias notáveis, determinados em contratos antigos»11.
17A oferta do «folar» por parte do padrinho, isto é, o presente que o padrinho deve dar ao seu afilhado no dia de Páscoa, constitui, de um modo geral, a única obrigação regular normal que a sua qualidade lhe impõe, que porém é da maior importância12; muitas vezes, ele consiste num «folar» no sentido restrito da palavra. ou então, no Noroeste, que corresponde à área do pão-de-ló, onde os « folares » não existem , num pão-de-ló ou. entre gente mais modesta, num outro género de pão. simples ou doce, em forma de anel maior ou mais pequeno, que leva o nome comum de «rosca» ou «regueifa», mas especial para a ocasião, com ornatos de entrançados, estrelas, figurações zoomórficas ou mais concretamente ornitológicas, em massa, que os afilhados vão buscar a casa dos padrinhos, e que levam em seguida, de regresso a casa, enfiadas no braço. Esses pães cozem-se tanto nas padarias como nas casas particulares, e, dado o carácter especial do parentesco cerimonial em Portugal13. acontece que nas casas ricas do campo coze-se um avultado número de tais pães, destinados a outros tantos afilhados.
18Em algumas localidades, o «folar» do padrinho deve ser precedido, por parte do afilhado, da oferta de um ramo de flores, no domingo de Ramos, e, noutros casos, seguido da oferta das amêndoas. Nas cidades e, de um modo geral, nos meios onde o costume existe igualmente mas onde a cultura tradicional tem menor imperativo, o «folar» do padrinho, significando do mesmo modo o seu presente de Páscoa, é aí também sempre a sua obrigação normal, mas, na maioria das vezes, não apresenta já nenhum carácter alimentar, nem mesmo qualquer definição qualitativa precisa. Pode então consistir em amêndoas, dinheiro – por vezes uma moeda de ouro – numa peça de vestuário, ou qualquer outra coisa, conforme as circunstâncias.
19Em Castelo (Sertã), por exemplo, o «folar» dos padrinhos compõe-se de bolos de Páscoa (folar doce de farinha triga, açúcar e canela, com ovos tintos em cima), amêndoas, e qualquer coisa mais, roupas ou outros objectos.
20Esta obrigação dos padrinhos – que marca a relação especial e estreita que existe entre as celebrações da Páscoa e as regras cerimoniais do parentesco cerimonial – acaba, pelo lado dos padrinhos, em datas estabelecidas pelo costume e mais ou menos definidas, variáveis de um caso para outro; correntemente, ela cessa com a maioridade efectiva do afilhado; seria com efeito impróprio oferecer-se uma «regueifa» de pão doce a um afilhado já adulto. Por vezes, ela acaba com o seu casamento: mas, em certos casos, este final é assinalado por um rito específico: no dia seguinte ao da boda, os afilhados devem levar aos padrinhos a «fatia», que é uma fatia de um bolo qualquer, pão-de-ló ou outro; e o costume completo, que se encontra raramente, exige que o padrinho ofereça uma última vez. na Páscoa a seguir, o «folar» habitual.
2) O «folar» do padre
21Em todo o Norte do País, até mesmo na cidade do Porto, que conserva influências provinciais muito sensíveis, e também no Centro, que é uma zona geograficamente e, sob muitos aspectos, culturalmente híbrida, no domingo de Páscoa – e por vezes, quando a paróquia é grande, também no dia ou dias seguintes – o padre, de sobrepeliz e estola. precedido dos membros da confraria, de opa. e levando o crucifixo, a campainha e a caldeirinha, corre a freguesia a levar aos seus paroquianos a Boa Nova e a bênção pascal, e a tirar o «folar» (fig. 7). Diante de cada casa, a rua está juncada de flores e ervas aromáticas, mentastros e alecrim, e por vezes mesmo com arcos e verduras. As fachadas foram reparadas e pintadas, o interior lavado, esfregado, refrescado, embelezado por todas as maneiras, as camas com as cobertas mais ricas, a sala decorada com esmero. O padre entra em todas as casas assim floridas, e. com a saudação tradicional14, dá a cruz a beijar a todos os familiares e vizinhos que seguem o «compasso» e que se reúnem e ajoelham na sala principal15. em redor da melhor mesa da casa, que está coberta com uma toalha de linho rendada, muitas vezes destinada apenas a esse fim e mostrando bordados com motivos religiosos, ao lado do crucifixo, dos castiçais, de jarras floridas, e de um pires ou de uma taça com o «folar». Este consta de uma moeda, em regra de prata, as mais das vezes cravada numa laranja ou maçã – e. se a casa é mais abastada, mais outras coisas: um bolo, uma rosca ou um pão-de-ló, uma galinha, uma meada de linho, açúcar, um queijo, etc., e sobretudo, além dessas espécies, ofertas brancas, ou seja, ovos – meia dúzia, uma dúzia, ou mais. conforme as possibilidades de cada um –. que se dispõem com maior ou menor gosto16. Numa sala ao lado ou numa outra mesa, está servida uma colação de doces, biscoitos e vinho – em geral do Porto –. que se oferece ao padre e aos seus acompanhantes. No final, o padre recebe o óbolo que lhe é oferecido, e esses acompanhantes arrecadam-no seja em cestos decorados, seja em qualquer espécie de mochila ou saco, que trazem consigo. Por vezes o padre deve dar alguns desses ovos aos seus acompanhantes, e não raro ele distribui voluntariamente alguns às crianças que o seguem; e o que sobeja é que constitui a sua parte. Em S. Julião de Passos, perto de Braga, terminado o Compasso organizava-se com o pároco uma procissão que ia à igreja, onde se depositavam as oferendas, e a que se dava o nome de «Procissão dos Ovos»17.
22Segundo o «Livro de Visitações» da paróquia de Gulpilhares. de 159818. «no dia de Páscoa das Flores... é obrigado o Juiz da Igreja a acompanhar o Abade ou o seu coadjutor com a cruz processional da mesma no Compasso, e a dar-lhe de jantar e aos que o acompanham, e o Abade dá-lhe de almoçar e merendar»...
23É à prática do «folar» no Compasso que o costume dos ovos tingidos, conservando embora aspectos primordiais que são autónomos, parece poder relacionar-se. Em toda a área onde ele existe – que se limita ao Noroeste atlântico, à província do Minho na sua quase totalidade, e à região do Porto19 – os ovos, tingidos ou decorados de qualquer outra maneira, fazem a ornamentação da mesa onde se encontra o «folar» do padre, componha-se este de ovos crus ou de outras coisas. Em alguns casos, eles podem também constituir, além desses, o próprio «folar»; mas na realidade eles competem, de preferência, às crianças20; por vezes, eles são o objecto de prendas entre namorados; mais raramente, usam-se como presente para oferecer a pessoas amigas.
24O tipo mais corrente de decoração, que se encontra por toda a área, é o tinto monocrómico e unido, sem qualquer desenho21. Como tintos usa-se sobretudo a casca de cebola, que dá um tom tostado mais ou menos concentrado; em menor escala, usa-se também uma infusão à base de flores de lírio para o roxo, beterraba para o púrpura, flores de tojo para o amarelo, folhas de mentastro. trevo ou erva-moleirinha e hera para o verde, segundo receitas de tinturaria caseira ou artesanal. que pouco a pouco se vão perdendo; muito correntes também são os tintos obtidos com papéis de cor que se põem na água a destingir; e, ultimamente, as anilinas industriais. Para os tintos por processos tradicionais, põem-se a recozer os ovos longamente na decocção onde se preparou a cor. que se deixa arrefecer em seguida, escorrendo-se a água sem lhes tocar; se se empregaram tintas industriais, cozem-se os ovos primeiro, e mergulham-se depois simplesmente no líquido colorante. Em alguns locais, nomeadamente nos arredores do Porto, aplicam-se sobre os ovos, tingidos por estes diversos processos, desenhos ou palavras, utilizando qualquer espécie de estilete que se molha em água-forte (ácido nítrico comercial); as inscrições podem dizer respeito à celebração em causa, contendo as Boas Festas de Páscoa, a Aleluia, etc., nomes de lugares ou de pessoas, datas, ou ainda, para os presentes de namorados, dedicatórias apropriadas, corações, ou outros símbolos22. Noutros lugares ainda, encontram-se ovos tingidos, com desenhos que se obtêm pela protecção de certas zonas que ficam em branco entre o fundo tingido do ovo23. Neste grupo incluem-se os ovos que levam em branco o decalque de folhas de ervas muito recortadas, ou riscos entrecruzados; os primeiros obtêm-se colocando sobre o ovo cozido e fervente a folha, que o calor faz aderir à casca, e mergulhando seguidamente aquele no tinto, que deve ser muito forte: os últimos, obtêm-se passando em volta do ovo elásticos ou cordas muito apertados, e mergulhando-o seguidamente na decocção em que se cozem. Às vezes também se embrulha o ovo em rendas, mas o desenho fica então muito ténue e indistinto.
25Encontra-se finalmente – e nomeadamente na própria cidade do Porto – numerosos casos de invenção pessoal, que aos processos técnicos tradicionais sobrepõem elementos novos e arbitrários, tais como pinturas directas sobre a casca, que não é tingida, flores naturais, conchas, etc., coladas, e outras fantasias ainda, que transformam esses ovos em objectos de gosto e de decoração requintada, podendo servir de presentes escolhidos24. Contudo, mesmo sob essa forma, o costume permanece estritamente doméstico e não comercial, e constitui simplesmente uma versão urbana e burguesa do costume popular regional.
26Pode pois dizer-se que as celebrações alimentares da Páscoa em Portugal25 representam a consagração do ovo «símbolo de fecundidade e abundância», nomeadamente no que se refere aos «folares», dos afilhados e do padre, como espécie própria da época em que se verifica a nidificação: no Sul do País, e também no Centro – isto é. na área dos «folares» doces –, vêmo-lo incrustado inteiro, como elemento fundamental desses bolos cerimoniais característicos; no Norte, e igualmente no Centro encontrámo-lo como objecto do presente cerimonial oferecido ao padre no Compasso; e no Noroeste atlântico, além disto, no pão-de-ló, que nos aparece como uma forma elaborada de o apresentar, de tal modo é notável a densidade em que ele intervém.
27Finalmente, marcando mais uma vez ainda o carácter especial, festivo e cerimonial que o ovo assume na Páscoa, em Portugal, encontramos o costume dos ovos tingidos, com incidência decisiva no Noroeste atlântico, mas também de certo modo no Sul. com o ovo tingido que faz a especialidade do «folar» característico desta zona26.
28Resumindo, portanto, eis o quadro geral da distribuição dos costumes alimentares da Páscoa em Portugal: no Noroeste atlântico, área das roscas de pão de trigo, ornamentadas, do pão-de-ló, dos ovos para o presente do padre (área do Compasso), dos ovos tingidos; no Nordeste transmontano, área dos folares gordos, e, também aí, dos presentes de ovos para o padre (área do Compasso); no Sul – zona mediterrânea –. área dos «folares» doces, com ovos cozidos incrustados inteiros, por vezes tingidos; no Centro, formas híbridas.
29Já noutro lugar falámos de alguns exemplos de parentesco cerimonial precário e ocasional, que determina relações especiais entre certas pessoas, e caracteristicamente entre rapazes e raparigas, e que se actualizam na ocasião da Páscoa, e mormente através da instituição dos «Compadres» e «Comadres» festivos do Carnaval. Em Oliveirinha (Aveiro), faz-se. a meio da Quaresma, um sorteio de «Compadres» e «Comadres», que assim ficam até à quarta-feira de Cinzas do ano seguinte, em que as «Comadres» oferecem aos seus respectivos «Compadres» figos passados, que eles retribuem com amêndoas, em sábado de Aleluia; em Olivença. o jogo dos «Compadres» e das «Comadres» (que ali é uma rifa de nomes masculinos e femininos, que tem lugar nas vésperas do Carnaval, e que visa ligar por esse parentesco pessoas que já o estão pelo sentimento) termina em quinta-feira de Endoenças, em que os rapazes presenteiam as raparigas com amêndoas ou lenços bordados, que elas retribuem com o «folar» da Páscoa27. Noutras partes, o parentesco cerimonial precário estabelecendo entre certas pessoas relações que se articulam nas celebrações da Páscoa, é de diferente e vária natureza. Assim, em Castelo (Sertã), os namorados, na Páscoa, oferecem às suas namoradas amêndoas, que elas retribuem com bolos próprios da ocasião28 ; e semelhantemente, em Afife, as raparigas oferecem ovos aos rapazes, pedindo-lhes em troca amêndoas29.
30Por seu turno, em Freixo de Numão (Vila Nova de Foz Côa) essas relações criam-se através do jogo pascal de mandar rezar: durante a Quaresma, um rapaz e uma rapariga engancham (os dedos mínimos das mãos direitas) dizendo: «Enganchar. enganchar, até ao dia de Páscoa, para que quando te vir. te mandar rezar.» Depois deste facto, evitam encontrar-se; mas quando isso sucede, o primeiro que vê o outro, diz : « Reza », e vence dessa vez; mas a batalha final é no domingo de Páscoa: cada um dos enganchados esforça-se por sair vencedor, ainda que com batota, recebendo então do vencido o «folar», constituído por um bolo de farinha fina com ovos e açúcar, próprio da quadra, ou amêndoas de Páscoa (amêndoas cobertas, que são uma especialidade de Moncorvo)30: na Figueira da Foz, quem, durante a Quaresma até ao domingo de Ramos, for o primeiro a pedir amêndoas ou a chamar «padrinho» àquele que encontrar, tem direito a recebê-las no dia de Páscoa31; etc.
31Finalmente, numa categoria à parte e mais difusamente caracterizada, poderemos considerar as ofertas pascais que também geralmente com o nome de «folar» se fazem aos servidores, e a pessoas de prestígio ou a quem se devem favores ou obrigações, ou, mais correntemente, se trocam entre proprietários e rendeiros ou caseiros (que por vezes assumem aspectos paracontratuais), parentes e amigos, ou que se recebem de fornecedores habituais, etc., muitas vezes de espécies alimentares ou fixadas tradicionalmente, e variáveis conforme as regiões, mas não raro constituídas porventura, além de outras, pelos «folares» locais.
Notes de bas de page
1 Este estudo é a tradução e ampliação de um trabalho do autor intitulado « Folares » et oeufs de Pãcques au Portugal, publicado no « Schweizerisches Archiv für Volkskunde ». Ano 53, Cad. 2/3, Basileia, 1957.
2 A maioria dos dicionaristas coloca a origem da palavra «folar» no latim « tloralis ». Moraes, além desse, sugere o étimo germânico “fiado», que significa «bolo de mel”. Encontra-se assim, sob as hipóteses etimológicas, o equívoco fundamental sobre a dupla significação do vocábulo. Faria, pelo seu lado, e com ele Lacerda, assinalam-lhe como origem a palavra francesa «poularde». pondo-o em relação com a forma que consideram mais comum do bolo. Estes dois autores, com efeito, em apoio da sua hipótese etimológica, definem o «folar» como sendo um bolo em forma de pinta pousada sobre um ovo. ou com um ovo em cima.
Se. na época, essa forma representava o tipo mais geral dos «folares», que correspondia à sua definição, o caso hoje mudou inteiramente, sendo raros em Portugal os «folares» que incluem a galinha. Mencionaremos os de Elvas, Olivença. UI e Caíde, e cremos que poucos mais haverá. Robert Wildhaber. em 1000 Ostereier and Ostergebäcke aus ganz Europa, fala no bolo de Páscoa de Veneza, em forma de pomba. com ovos cozidos no interior, a que chamam «Colombina coll uovo».
3 Cfr. Bertino Daciano R.S. Guimarães. Cinfães (Porsto 1954). pág. 142. assinala com efeito, nessa vila, como « folar » de Páscoa, uma rosca de pão de trigo com ovos pintados.
4 Cfr. D. Sebastião Pessanha, Doçaria Popular Portuguesa (Lisboa. 1957), págs. 53-55, e fots. 56 e 57.
5 Cfr. Matos Sequeira e Rocha Júnior. Olivença (Lisboa. 1924). pág. 245.
6 Cfr. Benjamim Enes Pereira. Notas Etnográficas de Caíde, in « Douro Litoral ». Nona Série. Vol. III. Porto. 1959.
7 Para as divisões naturais de Portugal, o Noroeste atlântico, o Nordeste transmontano, e o Sul mediterrâneo, cfr. Orlando Ribeiro. Portugal, O Mediterrâneo e o Atlântico, Coimbra. 1945.
8 Conforme os diversos autores, o francês antigo « lo » significando « elevação »; o inglês «loaf»; o sueco «lof»; etc.
9 Enciclopédia Portuguesa, de Maximiano de Lemos: Diccionário Illustrado da Língua Portuguesa. Lisboa. 1898.
10 Diccionário Prosódico de Portugal e Brasil, de A. de Carvalho e João de Deus; Diccionário Português, de Fr. Domingos Vieira: Diccionário Enciclopédico, de Lacerda ; Diccionário da Língua Portuguesa, de Morais e Silva: Novo Diccionário da Língua Portuguesa, de Eduardo de Faria, etc.
11 Pedro A. d’Azevedo. Presentes pelas festas. « Revista Lusitana». IX. 1906, pág. 177.
12 Os pescadores da Póvoa de Varzim chegam a empenhar-se para não deixarem de oferecer o folar aos afilhados.
13 A instituição do parentesco cerimonial, entre padrinhos e afilhados, tem ainda, em Portugal, muitas vezes, aspectos patriarcais, que fazem com que a família senhorial ou rica tenha geralmente muitos afilhados, aos quais é suposta estender a sua protecção.
14 «Aqui vem Nosso Senhor dar as Boas-Festas da Sua Sagrada Ressurreição. Aleluia! Aleluia! » (Parada. Alfândega da Fé).
15 Na casa popular portuguesa, a sala tem um carácter cerimonial muito nítido. Ela reserva-se geralmente para as festas e solenidades, e em especial para a visita pascal e a velada fúnebre. Na Murtosa (Aveiro), onde esta natureza é indicada expressamente, ela leva mesmo o nome significativo de «Sala do Senhor». Cfr. Ernesto Veiga de Oliveira e Fernando Galhano. Casas da Murtosa. «Trabalhos de Antropologia e Etnologia». Vol. XV, Fase. 3-4, pág. 275, Porto. 1957.
16 No «Livro de Visitações da Parochial Igreja de N.a S.a de Gulpilhares, 1598 anno » (mandado redigir pelo respectivo pároco em 1764, «ouvidas todas as pessoas velhas seus parochianos»), para a visita pascal os fregueses são obrigados a ter a porta aberta, casa varrida, e a ofertarem o que bem lhes parecer segundo a sua generosidade: porém os lavradores honrados sempre ofertam um pão leve, um prato cheio de ovos, uma regueifa de pão de Valongo, e uma galinha»... ap. Bertino Daciano, Alguns usos e costumes da freguesia de Santa Maria de Gupilhares. « Douro Litoral». 5.a série. III-IV. Porto. 1953. pág. 98.
17 Cfr. Tenente Afonso do Paço. Usos e costumes, contos, crendices e medicina popular. «Revista Lusitana », vol. 28, págs. 246, Lisboa. 1930.
18 Ver nota 15. O povo sublinha ironicamente o costume das ofertas de ovos ao padre, quando da visita pascal, com esta forma parodial de canto:
« Aleluia! aleluia!
Deita os ovos à bacia!»
(Vila do Conde)
19 No Sul. encontram-se ovos tingidos, geralmente com cascas de cebola, mas apenas para a sua inclusão no «folar» regional. De modo perfeitamente excepcional – e de resto com a indicação de «costume muito pouco divulgado» – viam-se ovos tingidos em Olhão, no Algarve, de azul ou amarelo, monocrómicos, que as mulheres andavam a vender, juntamente com as amêndoas e amendoins, à porta da igreja, na Páscoa. Luís Chaves. Os Ovos de Páscoa (Nos domínios da Etnografia e do Folclore). «Ocidente». Vol. IV. n.° 24. pág. 132. Lisboa. 1940, diz. sem justificação teórica, que o costume dos ovos tingidos nos veio da França, da Alemanha e da Suíça.
20 Actualmente. sem dúvida sob a pressão de influências cosmopolitas, vê-se em alguns casos burgueses e urbanos divulgar-se a prática de se esconderem ovos pintados nos jardins, para que as crianças da casa aí os procurem.
21 Adoptamos a classificação de Robert Wildhaber. Vom Osrerei und der Tecknik des Eierfärbens. « 1000 Ostereier und Ostergebãcke aus ganz Europa ». Trata-se aqui do n.° 1 desta classificação.
22 Ibid. n.° III. ib).
23 Ibid. n.° III. 2-a) e b).
24 Ihid. n.° II e IV. Temos ainda a indicação de ovos decorados com missangas coladas com goma, que se podem incluir nesta última categoria : as missangas constituem efectivamente um elemento decorativo muito corrente na doçaria popular nortenha. mas a despeito disso nunca as víramos nos ovos, como costume popular definido.
25 Arnold van Gennep. Manuel de Folklore Français Contemporain. Tome Premier, III, Paris. 1947. pág. 1141.
26 Não fazemos, neste estudo, a análise detalhada de um outro elmento alimentar característico da Páscoa – as amêndoas –. que são também objecto de presentes cerimoniais desta ocasião, entre. afilhados e padrinhos, entre namorados, etc., sujeitos a regras especiais, e que parecem igualmente representar, pela sua forma e decoração, uma nova figuração e consagração do ovo. nesta quadra.
27 Matos Sequeira e Mota Júnior, Olivença. Lisboa. 1924, págs. 244-245. Ver também Ernesto Veiga de Oliveira. « Compadres » e « Comadres » do Carnaval.
28 Jaime Lopes Dias. Etnografia da Beira. VII Lisboa. 1948. pág. 127.
29 Avelino Ramos Meira. Afife. Porto. 1945. pág. 149.
30 J. A. Pinto Ferreira, Freixo de Numão. Porto. 1954, pág. 86.
31 M. Cardoso Martha e Augusto Pinto. Folclore da Figueira da Foz, Esposende, 1912, pág. 100
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João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000