5. O domingo de ramos em Portugal1
p. 69-73
Texte intégral
1A par das cerimónias litúrgicas com que é comemorada simbolicamente a entrada triunfal de Jesus Cristo em Jerusalém, segundo o relato evangélico, o domingo de Ramos, que faz como que uma introdução aos mistérios da Semana Santa, assinala-se sob o aspecto etnográfico por diversas práticas e crendices populares, que ora se sobrepõem aos actos religiosos próprios do dia. que lhes servem de apoio e aos quais conferem o seu matiz próprio, ora se apresentam como factos autónomos, possíveis resíduos de anteriores crenças de fundo mágico. referidas a uma data calendária cuja religiosidade específica acentua marcadamente o seu carácter excepcional. Assim é que. articulados na cerimónia geral da bênção dos ramos, que é comum a todos os povos católicos, encontramos uma grande variedade de costumes particulares, próprios das diversas regiões. Em certos locais são os próprios fiéis quem leva à igreja, por vezes de véspera, os «palmitos» – raminhos de alecrim, oliveira, loureiro, palmeira, não raro ornamentados com fitas de cores, algumas com as folhas esfiapadas e enroladas a capricho formando espirais e outros motivos – que o padre benzerá, antes da missa. Em Carreço (Viana do Castelo), a ordenação da cerimónia fica a cargo da Mordomia da Cruz: são os Mordomos do ano. que acompanharão o padre no Compasso pascal, quem decora a igreja, distribui os «palmitos» benzidos, e oferece ao padre o seu próprio ramo, maior e mais bonito do que os demais: no final da cerimónia, à saída da igreja, as raparigas dão as folhas trabalhadas do seu ramo aos rapazes, que as ostentam na lapela. Em Lousada (Penafiel). além dos ramos individuais, que cada pessoa leva, há também, no meio da igreja, um grande ramo de oliveira, muito enfeitado com flores e fitas, que o padre abençoa ao mesmo tempo que os demais. Em Quintanilha (Bragança), cada pessoa leva o seu ramo, de rosmaninho e mimosa; mas o sacristão, pelo seu lado, arranja também um grande ramo de oliveira, que. desfeito em pequenos raminhos, deve chegar para todos os fiéis: e as Mordomas da Senhora oferecem ao padre ainda um terceiro ramo, também de oliveira, mas especial, decorado com um laço de seda: o padre benze o ramo grande e o raminho de cada pessoa, e. empunhando na mão o ramo ofertado pelas Mordomas. vai distribuindo por todos o ramo grande: as pessoas cortam um galhinho da parte que lhes coube, e vão-no desfolhando à volta da igreja, rezando um padre-nosso e uma ave-maria a cada folhinha: o padre, entretanto, depois de ter dado a todos a galha do ramo grande, vai depor no altar da Senhora o ramo que as Mordomas lhe haviam dado, e que levara na mão enquanto distribuía o raminho de cada um; as pessoas, por seu turno, guardam o resto do seu ramo bento, e. na ocasião da visita pascal, colocam-no na sala. Em Escalos (Castelo Branco), ao mesmo tempo que os ramos, as pessoas levam também por vezes um pão. que o padre benze igualmente. e que fica «pão bento» e com virtude durante todo o ano.
2No cerimonial cristão, as palmas e ramos bentos deste dia. que eram da Igreja, guardam-se na sacristia até à Quarta-Feira de Cinzas do ano seguinte, queimando-se então, para com as suas cinzas ser imposto o sinal da cruz na fronte dos fiéis que comparecem à missa das Cinzas. Em Guimarães, essa queima tem lugar na Terça-Feira de Entrudo2. De modo semelhante, os «palmitos» do domingo de Ramos conservam-se cuidadosamente todo o ano, umas vezes pendurados na cozinha, outras à cabeceira da cama, outras ainda no oratório ou junto de qualquer imagem religiosa. Mas a crença fundamental e mais corrente em todo o País, com eles relacionada, é a da sua virtude profiláctica contra as trovoadas: nessas ocasiões, para abrandar os elementos e conjurar o perigo, queimam-se umas folhinhas secas do ramo bento, de modo a fazer-se muito fumo: em Odesseixe. no Algarve, os «ramos» são de palma, e. para aquele fim. abre-se uma folha ao meio, e põem-se as duas metades em cruz sobre o lume. Em Escalos, idêntica virtude é atribuída ao «pão bento» a que nos referimos, de que. de modo paralelo, se come ou se dá a comer ao gado um bocadinho quando troveja. No Alentejo, além da parte que se conserva em casa, uns galhos do ramo bento são postos nos campos, montados geralmente em canas dispostas em cruz, que emerge acima das searas: e é evidente aqui também a intenção purificadora profiláctica do costume. Em Quintanilha a virtude do ramo bento é mais ampla, porque, além do seu valor específico contra as trovoadas, entende-se que ele protege a casa, de modo geral, contra todos os «maus ares».
3Quase todas as cerimónias cíclicas ou calendárias têm as suas tradições alimentares. sob a forma de refeições ou manjares cerimoniais, compreendendo por vezes crenças e práticas especiais, que acentuam o valor superalimentar de certas espécies consagradas, nessas ocasiões, e mostram a importância do alimento na formação dos mitos. Assim, o manjar cerimonial do domingo de Ramos. em muitas regiões do País, e mais especialmente no Norte, é a castanha, sob a forma de caldo de castanhas piladas, feito geralmente com feijão branco. Registamo-lo no Porto, em Lousada (Penafiel), Mindelo. Paços de Ferreira, Cinfães, Fafe, Areias (Santo Tirso), Caldeias (Braga), etc. Em muitos lugares, o costume comporta um elemento negativo que aparentemente o justifica, e que se explica por razões de natureza mágica: nesse dia come-se caldo de castanhas, porque não se pode ir às hortas nem apanhar ou comer hortaliça, sob pena de «aparecerem bichos na sopa ou entrar azar na horta» (Cinfães). ou de «irem os lagartos todo o ano à horta» (Fafe). ou de «as couves ganharem piolho» (Areias), ou ainda de «a horta se encher de piolho» (Caldelas). Noutros lugares, a proibição alimentar da hortaliça em domingo de Ramos aparece isolada da prescrição do caldo de castanhas, mas igualmente acompanhada da sanção mágica do mesmo teor que indicamos: é o caso de Vila Real de Trás-os-Montes e Freixo de Numão, por exemplo, onde se diz que «comer hortaliças nos Ramos é comer lagartos todo o ano» (Vila Real), ou é fazer «crescer bichos na barriga» (Freixo de Numão). Pode parecer que o costume fundamental tem aqui forma negativa, e que o caldo de castanhas se usa apenas porque não se pode comer hortaliça; o certo porém é que a simples proibição não explica a prática positiva do caldo de castanhas, que nos parece obrigatório de per si: ela existe muitas vezes isolada da outra, devendo por isso admitir-se que se tenha dado o encadeamento dos dois elementos do costume. De resto, em certos casos (Caldelas e Areias, por exemplo), a proibição expressa incide menos sobre comer hortaliça do que sobre ir à horta nesse dia: e em Caldeias, as couves para o porco apanham-se mesmo de véspera.
4Nas Beiras, o costume é também conhecido, e em alguns lugares dá-se ao caldo de castanhas, que se faz com leite, açúcar e canela, o nome de «cáldulo». Em Mangualde e em Oliveira do Hospital, onde os velhos cozinhados de castanha desapareceram, substituídos pelos de batata à medida que foram morrendo os castanheiros outrora ali muito abundantes, aquele fruto reserva-se para o domingo de Ramos e Sexta-Feira Santa, em que o povo não come hortaliça; isto mostra que a castanha deve ter sido nessa área um alimento fundamental e tão representativo que se revestia de carácter sagrado; e esse carácter, à semelhança do que sucede com outras espécies – e até técnicas – ancestrais, subsiste apenas como tradição cerimonial. Em Escalos, o costume indica somente a proibição de se ir às fazendas e se comerem couves, explicando-a significativamente pelo facto de que «Nosso Senhor se escondeu num couvel». o que constitui uma manifestação daquilo a que van Gennep chama «um processo de pascalização normal, por meio de uma lenda localmente inventada», de que existem entre nós numerosos exemplos.
5Em Odivelas (Alentejo), notamos ainda um costume especial que parece sugerir a ideia de um desses «reinados» anuais, como o da «fava do Natal», que tantos problemas suscita: ali. todos os anos, uma pessoa oferecia a farinha para cinco grandes pães que iam a lanço no dia de Ramos: e quem os arrematava, tinha de dar a farinha no ano seguinte.
6Falamos na ligação que há entre o domingo de Ramos e a Páscoa, e já vimos que. por vezes, o ramo bento se coloca na sala para a visita pascal; por isso, a relação fundamental que existe entre a Páscoa e o parentesco cerimonial – constituindo a oferta do «folar» pelos padrinhos a verdadeira obrigação normal que a sua qualidade impõe –. engloba também, em certos casos e aspectos. o domingo de Ramos. Assim, em alguns pontos, a oferta do «folar» dos padrinhos é precedida e condicionada pela oferta, por parte do afilhado, de amêndoas ou flores, no domingo de Ramos: em S. Mamede do Tua. nesse dia. as crianças levam, fixos em paus, ramos de alecrim donde pendem laranjas e doces, que são benzidos e oferecidos depois às suas madrinhas, para delas receberem o «folar» no domingo de Páscoa. E no parentesco cerimonial entre namorados. também se nota esta relação: em Paços de Ferreira, por exemplo, os rapazes ofereciam às suas namoradas uma rosca de pão leve em domingo de Ramos, a que elas respondiam com um pequeno «folar» no domingo de Páscoa; e em Santo Tirso, de modo semelhante, na noite do sábado que precede o dia de Ramos, os rapazes punham à porta das raparigas flores e uma rosca de pão-de-ló para delas receberem também um «folar» na Páscoa.
7Enfim, num caso único e muito concreto, vemos uma prática claramente mágica associada ao domingo de Ramos: identificam-se as bruxas untando com toucinho, que tivesse ficado do Entrudo, nesse dia, a porta da igreja, enquanto a procissão anda fora, para que ninguém se aperceba da «untura»; quando a procissão recolhe, elas não dão pelos objectos que trazem, e perguntam por eles: e assim se denunciam.
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