2. O entrudo
p. 47-50
Texte intégral
A «Queima do Galheiro» no concelho de Vila do Conde1
1No ano de 1952 foi-nos dado assistir, na povoação de Vilarinho, pertencente à freguesia de Macieira da Maia, do concelho de Vila do Conde, à cerimónia que ali se realiza à meia-noite da Terça-Feira de Entrudo, e que, sob o aspecto actual dum acontecimento puramente lúdico, leva o nome de «Queima do Galheiro». E o nosso informador, natural dessa povoação, que na sua infância muitas vezes foi um dos realizadores da festa, descreve-nos como ela é levada a efeito, informando-nos além disso que tal costume é igualmente praticado nas povoações vizinhas de Macieira de Cima, Macieira de Baixo, Azevedo, Sabariz, etc., da mesma freguesia, assim como em diversos lugares das freguesias próximas de Árvore, Vairão, Fornelo, Fajozes, Gião, Tougues, etc., daquele concelho. E, de facto, desta vez, pudemos contemplar, além do de Vilarinho, os «Galheiros» preparados para o sacrifício, que se erguiam em Sabariz e em Macieira de Cima.
2Com maior ou menor antecedência, a rapaziada nova, aproveitando horas vagas, vai pedindo aos vizinhos do povoado e aos forasteiros que passam donativos para o «fogo», que ajuntam; e com um «carro de mão», cedido por alguém da localidade, trazem dos matos o «gatenho», que armazenam para o fim que se verá. Este «gatenho» é um mato mais fino que o tojo, que, segundo me explicam, é escolhido de preferência a este por arder melhor e com mais zunido.
3Em seguida, e poucos dias antes da data, juntos todos os realizadores, voltam às bouças para escolher e cortar o pinheiro que será o «galheiro», e que é aquele que tem mais galhos, ou os tem mais escalados no jeito requerido, ou ainda, quando nenhum satisfaça, aquele que melhor se preste a que lhos cravem artificialmente.
4O «galheiro» é geralmente roubado, embora essa forma de aquisição não seja, pelo menos actualmente, obrigatória. O dono da árvore, sabedor do fim a que ela se destina, não se importa de resto com o latrocínio; e, as mais das vezes, o pinheiro é mesmo «roubado» com consentimento prévio.
5Trazido pois o «galheiro», é guardado até à véspera do dia da celebração em casa dum dos rapazes mais crescidos; e, finalmente, no próprio dia da queima, transportam-no de tarde para o local onde esta se fará, geralmente um logradoiro mais ou menos espaçoso, e aí o aprestam devidamente: envolvem tronco e galhos (estes reduzidos a ramos sem agulhas) com o «gatenho» à mistura com outros matos, e colocam-lhe no topo um ramo de loureiro ornado com flores, fitas, bandeiras ou outros adornos significativos; erguem-no depois numa cova previamente feita, seguram-no bem e reforçam-lhe a base com «gatenho», para melhor arder no momento próprio.
6Está então o «galheiro» pronto para o sacrifício ritual. A festa agora é da rapaziada miúda, mas, para lá da sua forma actual, a solenidade dramática e a importância do acto são visíveis. O «galheiro» é realmente avultado; a vida da povoação, nesse dia, é insensivelmente atraída para o local onde está aquele tronco que vai ser queimado; e as serpentinas que lhe jogam de vez em quando mostram que é a ele que o dia é consagrado.
7Entretanto, caiu a noite, e, aos poucos, todo o povo se foi reunindo à volta do «galheiro». Os organizadores distribuem entre si o fogo comprado com o dinheiro dos donativos; os mais velhos ficam com os foguetes que deitarão mais tarde, dando aos mais pequenos as « sarganitas » (bichas-de-rabear), que, com silvos coruscantes, serpeiam a arder por entre as moças alvoroçadas; chegam o rapaz do acordeão e os tocadores; rompem os descantes, com versos por vezes alusivos ao «galheiro», as cantigas ao desafio, se aparece quem se aguente:
Desafio, desafio,
Desafio uma navalha;
Eu não quero cantar mais
Com semelhante canalha.
8Dança-se e baila-se, à luz de fogueiras acesas com o «gatenho» que sobrou; em Macieira de Cima, desde muito cedo, um alto-falante atroava os ares com sambas e tangos, que punham a gente nova em movimento. Passam «entruidos» – figuras mascaradas e burlescas – no meio da multidão; e todos brincam, perseguindo-se, enfarruscando-se ou jogando farinha, entre ditos, conversas e gracejos.
9À meia-noite em ponto, no meio da folgança geral, um dos moços chega o fogo ao gatenho, que se incendeia com fragor: a chama sibila nas folhas de loureiro do topo, e num momento o «galheiro» e a sua significação transformam-se numa imensa fogueira, ao mesmo tempo que os foguetes estralejam no ar, celebrando o acontecimento.
10E quando, no final de tudo, em Vilarinho, o «galheiro» já era só um tronco negro e despido a consumir-se, espetado num largo brasido crepitante, a destacar-se de uma nuvem luminosa de fumo cintilante de faúlhas, um rapazito novo, sozinho em frente da cena, cantando e dançando como que em êxtase, repetia – «O galheiro! O galheiro! »...
11Os «galheiros», que, como dissemos, nos foi possível ver desta vez, em Vilarinho, em Sabariz e em Macieira de Cima, erguiam-se todos três em locais desafogados, que permitissem a festa – o de Vilarinho, nomeadamente, a um canto do amplo largo donde irradiam as múltiplas estradas que ali se cruzam –, e eram constituídos por pinheiros com uns dez metros de altura, completamente revestidos de «gatenho» com a espessura de dois a três metros de diâmetro na base, e de um pouco menos de um metro pelo tronco acima, donde mal emergiam os galhos despidos, tendo a rematá-los o ramo de loureiro, encimado por uma bandeira verde-rubra de papel. O de Sabariz. que avultava no recato modesto do seu pequeno e rústico largo, ostentava, além destes, outros elementos: atravessado horizontalmente no ramo de loureiro terminal, figurava um pau, donde pendiam dois «entruidos» – toscos bonecos de lã e trapo, vestidos do mesmo material –, com uma laranja dependurada sobre as suas cabeças, que nos esclareceram serem o Entrudo e a Quaresma, aguardando a hora do cumprimento do rito para arderem também. E uma senhora de idade, presente à festa, em Vilarinho, diz-nos que no seu tempo costumavam sempre pendurar do ramo de loureiro um ou dois grandes bonecos de palha, vestidos grotescamente, que representavam igualmente o Entrudo e a Quaresma.
Notes de fin
1 «Douro Litoral», Quarta Série, IX, Porto, 1952, pp. 41-46.
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