1. Subsídios para o estudo do entrudo em Portugal o «enterro do João»1
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Texte intégral
1Numa região limítrofe do Porto, situada a norte da Areosa e compreendida nas antigas Terras da Maia, que abrange, entre outros, os lugares de Triana, Carreiros e Forno, da freguesia de Rio Tinto e concelho de Gondomar1. tem lugar, na noite de Terça-Feira Gorda, a queima cerimonial, precedida de uma larga deambulação, sob a forma de enterro, de um manequim a que dão ali o nome de «João»2.
2Assim o vimos desta vez3. levado através das ruas e quelhas de Triana, no seu caixão, sem tampa e de tábuas forradas a papel vermelho, que dois garotos transportavam sobre uma padiola de ripas, numa noctuma paródia de funeral. O boneco, de palha enfardada em trapos, e em tamanho natural, envergava um fato velho e botas de água, de cano alto4; a face era uma máscara carnavalesca rubicunda, cercada de cabelos e barbas de sisal: e, no lugar próprio, exibia um enorme veretrum de pano, forrado a papel de cores e cheio de serrim, de feitura sugestiva e realista5.
3Á sua frente, abrindo o préstito, um oficiante caracterizado a rigor imitava o gesto de ler responsos, ladeado por dois auxiliares à paisana, que tangiam campainhas6; adiante e atrás, alumiando com luz incerta a cena e o caminho, dois populares alçavam, em paus, candeeiros de acetilene, um dos quais protegido com o fundo de uma canastra esfrangalhada7. Rodeando estes figurantes principais, seguia o acompanhamento, composto quase exclusivamente por rapazes novos, um dos quais representava a «Viúva» do «João», que, a cada passo, erguiam «choradeiras»8 ao «defunto», dirigindo-se-lhe em voz lamentosa: – «Ó João...», «Adeus. João...». «Ai, João, que já estou farto de carregar contigo...», etc.
4O boneco fora preparado em Triana, de tarde, e o cortejo saíra dali por volta das nove horas da noite, agregando a assistência que o esperava; alongara-se em seguida pelas localidades vizinhas, parando amiudadas vezes e, atravessando Giesta, regressava então a Triana, onde deveria correr «todas as ruas»9. Homens e mulheres que o cruzavam interpelavam o «João», com claras alusões ao seu aspecto10, e estas demonstrações provocavam redobrados clamores por parte dos acompanhantes11. Cerca da meia-noite, o enterro encaminhou-se para umas saibreiras elevadas e sem casas, situadas na orla da localidade, onde todos os anos se costuma desenrolar a cena final do drama carnavalesco12: a padiola é pousada no chão, procede-se, em voz alta, à leitura dos «responsos» e do «testamento» do «João», enumerando as «deixas» obscenas e chistosas, que, com mais ou menos espirituoso cabimento, são atribuídas a cada um dos vizinhos presentes ou conhecidos; finda essa leitura, o manequim é regado com petróleo, e um dos circunstantes pega-lhe fogo, no meio do alarido das despedidas finais, exacerbado pela jocosidade das deixas13; as chamas sobem, iluminando a assistência, e a cerimónia, que encerra o Carnaval, termina com o estoiro das bombas que o «João» leva na cabeça14. reduzindo-o a um brasido que se extingue lentamente15.
5Em casa de um entusiasta promotor de festas passadas16, foi-nos presente um livro de grande formato, encadernado e de riscado comercial, onde se escreviam. e donde, na noite da queima, eram lidos, como de um missal, os sucessivos «testamentos do João», em cuja redacção colaboravam os elementos mais espirituosos da vizinhança, que, nas chufas, não se poupavam a si próprios. Figuram nele apenas seis testamentos, que devem corresponder aos Entrudos de 1938 e 194317, e todos eles repetem a mesma norma, de tal modo que. em relação aos últimos, se dispensou a sua redacção completa.
6Encabeçados pela palavra «Atenção», e precedidos de um arrazoado sem sentido, que faz figura de qualquer frase hermética sacramental, ou pretende imitar latinório de responsos18, estes «testamentos», que eram lidos no fim da deambulação e no local da queima, começam por um proémio. em tom de discurso fúnebre, onde se narra e comenta a morte do «João», entremeando lugares-comuns e facécias cruas que definem o conceito da personagem nos seus grotescos exageros e que se ia desfiando e repetindo nas paragens que o cortejo fazia durante o percurso, de modo a permitir as «choradeiras». Vem depois o «testamento» propriamente dito, e que abre com uma pretensa fórmula notarial, encimada pela palavra «Testamento», ou «Tabalião» 19, à qual se segue a menção de uma primeira categoria de legados, sem titulares especificados, e às vezes expressos em dinheiro, destinados quase sempre a melhoramentos públicos, sendo dessa forma a expressão humorística de aspirações colectivas, que todos os anos se formulam e ficam perenemente insatisfeitas: arruamentos, caminhos, um fontenário, um coberto no rio para as lavadeiras poderem «sarrotar à vontade, enterrando os vivos e desenterrando os mortos», etc.; nos últimos testamentos, a terminar esta parte, e misturando considerações edificantes com obscenidades, figura uma exortação aos «lavradores», cuja «política» e «igoismo» são a causa de «o povo ser sacrificado». E após um «Como tabelião – Verifiquei», seguem-se as «deixas», que constituem o motivo principal de atracção, pelas alusões directas e pessoais que as constituem.
7Cada testamento menciona cerca de vinte e cinco legatários, entre rapazes e raparigas, com ligeiro predomínio dos primeiros, e que são sempre e apenas gente solteira20, e vêm indicados pelo nome por que são familiarmente conhecidos, que é o próprio ou a alcunha21. Rapazes e raparigas são mencionados em dois grupos separados22, sem ordem certa de precedência, e a cada legatário compete quase sempre um único legado.
8Os legados, que em grande parte se repetem de ano para ano, têm carácter acentuadamente obsceno e escatológico, e consistem, em geral, na indicação de um objecto – muitas vezes condicionado pela rima –, com a menção do fim galhofeiro e satírico a que, em relação ao legatário, o mesmo se destina: – «Deixo à menina X... três dentes da minha burra para completar a dentadura»; «Deixo ao menino Y... a minha jimenta para desenvolvimento dos seus negócios », etc. ; às vezes eles encerram uma incumbência de que o legatário fica encarregado; outras, referem-se a bens alheios: – «Deixo à menina A... as vacas do Porrecas para ela fornecer o leite aos seus fregueses»; outras ainda, esquecendo a lógica testamentária, o autor do texto fala em seu nome, e os legados referem-se ao «João» na terceira pessoa: – «Deixo à menina B... o nariz do ‘João’ para fazer um assobio», etc. E desta sorte seguem os «testamentos» até final, terminando com a última deixa, sem mais remate.
9O «Enterro do João» é assim, como vemos, a representação de um pequeno drama cerimonial, próprio de Terça-Feira Gorda, que se desenrola em tomo de uma personagem fortemente caracterizada – o «João» – e que consta de uma longa deambulação sob a forma evidente de um enterro parodial, no decurso do qual se realizam diversas manifestações, e a que se segue a sua queima, precedida da leitura do seu testamento.
10O «João» parece sem dúvida ser a forma que, na região que delimitamos, toma a ideia da personalização do Entrudo, ou de qualquer dos seus períodos, de que tantos outros exemplos existem no nosso folclore e no de demais países23. Tal personalização, na maioria dos casos, é antropomórfica e opera-se por meio de um boneco de palha – o palhaço, em sentido restrito, como o paillasse francês, o pagliaccio na Itália, e o Strohmann da Europa Central, que figuram em múltiplas costumeiras tradicionais –: muitas vezes, ele compõe-se de um simples feixe, amarrado de modo a imitar grosseiramente o pescoço e a cinta de um ser humano; mas a regra mais corrente, que se verifica em quase todos os Carnavais europeus e se repete aqui no caso do «João», é a do manequim feito de palha enfardada em roupas velhas24. Mais raramente, e certamente com um sentido diferente, o boneco é de pasta ou papelão ; e então é em geral descomunal e feito com esmero, e destina-se a vistosos cortejos urbanos, merecendo o nome de Rei do Carnaval.
11Outras vezes, porém, aquela personalização realiza-se por meio de um ser humano real, e ainda por um animal, vivo, figurado, ou fabuloso; e notaremos desde já que a primeira destas últimas formas também ocorreu no caso que nos ocupa, em Carreiros, na pessoa de um indivíduo, chamado «João», que assumiu, para o efeito, as demais características do manequim local25.
12A exibição do veretrum, que aqui se realiza, constitui, sob todos os aspectos, um fenómeno muito raro em cerimónias europeias deste e de qualquer tipo; temos notícias de um caso esporádico semelhante apenas em relação ao enterro do Carnaval de 1587 em Bayonne, que se apresentou do mesmo modo26; mas com o carácter de evidência e regularidade que se verifica no «Enterro do João», pode considerar-se uma manifestação original e única.
13Os bonecos carnavalescos são habitualmente conhecidos pelo nome genérico de «Entrudos», que indica de forma imediata o seu significado; assim acontece, por exemplo, com o de Seixas, perto de Vinhais, e o de Moimenta da Raia, perto de Montalegre, entre outros; sem sairmos mesmo da terra da Maia, encontramos no concelho de Vila do Conde os «Entruidos» que são queimados no «Galheiro», à meia-noite de Terça-Feira Gorda, junto com as «Quaresmas» suas companheiras27; em Vimioso, pelo seu lado, ele é pictoricamente designado pelo «Caramono».
14Na França, além do nome genérico de Carnaval, usado de resto também em outros países, são frequentes os de Mardi-Gras, Caramantran. etc., bem como os descritivos de Pansard, com as suas múltiplas variantes dialectais; e em algumas regiões da Alemanha aparecem os Fous e os «Ursos» do Carnaval. Contudo, não é o «João» caso único em que o Entrudo se personaliza num manequim que leva um nome de baptismo: em França conhecem-se, entre outras, as formas Grégoire, Christophe, Père Joseph, etc., recordando talvez quaisquer habitantes da região que se tenham celebrizado pela sua gula e gordura; e existe mesmo a forma «João», na designação de «Jean Pansard», numa cantiga carnavalesca da Champagne, o mesmo sucedendo na Inglaterra, onde no século passado se destruía, no primeiro dia da Quaresma, um manequim de palha e roupa velha, que se chamava «João da Quaresma»28.
15O que, contudo, neste caso, nos elucida decisivamente sobre o significado do boneco, mais do que a sua forma geral e nome, é a sua própria caracterização intrínseca, tal como a definem o seu aspecto pessoal, os traços significativos que transparecem nos seus «testamentos», e, principalmente, o cenário geral do seu «enterro»29. A atmosfera de bebedeira, folia e liberdade licenciosa que ele sugere e o acompanha, e se traduz especialmente na indicação dos seus excessos de comezainas e sensualidades, no relato da sua morte: – «sentando-se à mesa... puxou de uma cabeça de porco – era o dia de se comer a célebre orelheira30 –, chegando a comer ossos de palmo e meio»; «todas as raparigas que deixou em estado de gravidez e que são ao todo quarenta e três» –; na exibição do veretrum, e nos actos que em relação a ele são permitidos; nas práticas escatológicas, manifestando-se com uma invulgar acumulação de pormenores; e finalmente na índole e desproporção das suas «deixas» – fazem dele um tipo de «Entrudo» local, que com predomínio de elementos estercóricos, corporiza a extroversão e glorificação de desejos primários, a expansão burlesca obscena, erótica e glutona que o Carnaval representa, e que são, porventura, nesse Introito ao período das abstinências mais severas do ano, a expressão de um potencial de tendências policiadas, que, em efígie inofensiva, se liberam31.
16O processo corrente do transporte do manequim ou daquilo que personifica o Entrudo é o carro ornamentado, que nos cortejos urbanos reveste por vezes aspectos brilhantes32; assim o vimos entre nós, no Carnaval do Porto, conduzindo o seu Rei; e, numa versão rural, mais simples, ele é usado, por exemplo, no de Seixas, já mencionado. Existem, porém, outros meios, tais como o passeio a cavalo – praticado entre nós na Vila da Ponte, perto de Montalegre, por exemplo –, aos ombros de um mascarado, como em certos lugares da Normandia, pendurado de uma vara, ou levado num lençol estendido, como fazem nos Abruzzos, ou ainda em trenó, como na Transilvânia; o transporte em caixão pousado numa padiola, que se verifica no caso do «João» e que tão apropriado é a uma paródia de enterro, não é muito frequente, mas ocorre em alguns outros pontos dos Abruzzos, onde apareciam também por vezes os gatos-pingados33, em certas regiões da Alemanha34. e na Grécia, em Pylos, numa figuração que, de acordo com o relato que dela dá Frazer, se aproxima singularmente do «enterro» que vimos em Triana35; e ainda na França, onde o processo, conquanto raro, é conhecido em mais do que uma localidade36. De resto, não parece que o modo especial de transporte do manequim tenha em si mesmo importância cerimonial particular, embora, como veremos, o emprego do caixão e da padiola, naquelas celebrações, ande geralmente associado à presença de figurantes que parodiam e representam o elemento sagrado, e que se podem considerar significativos.
17O oficiante e os acólitos, com a sua indumentária, e os demais elementos da cerimónia parecem-nos integrar simplesmente a ideia de um préstito fúnebre, tal como a experiência do povo o concebe, e representam a interpretação e adaptação carnavalescas dos factores que constituem um enterro qualificado e atestam o carácter sagrado que. sob a forma parodial, se pretende conferir-lhe, fazendo dele uma coisa diferente do mero transporte de um boneco através das ruas; este funeral característico, em relação aos manequins do Carnaval, é também raro, e especialmente com a abundância de pormenores que se observam conjuntamente no caso do «João»; mas de todos eles, isolados ou parcialmente agrupados, temos notícia: falámos já do enterro do Carnaval nos Abruzzos, em que um indivíduo é levado num caixão, o qual é precedido por um «padre» que borrifa a assistência com a água de um balde, e que. por vezes, inclui gatos-pingados ; e na cerimónia de Pylos, do primeiro dia da Quaresma grega, em que a efígie é transportada com idêntico ritual. Na França, embora excepcionalmente, como dissemos, encontramos também o cortejo fúnebre ou a procissão religiosa, com a presença dos figurantes e da sua indumentária, a utilização desta última de forma semelhante à que atrás referimos37, etc.; e a iluminação da cena, aqui como nesses países, era muitas vezes feita por meio de archotes38.
18Geralmente o cortejo decorre, como sucede com o enterro do «João», no meio de fingidos lamentos, «choradeiras» e despedidas; mas por vezes ele é seguido por músicas fúnebres e figuras de luto; outras, pelo contrário, por um acompanhamento ruidoso, como os «chocalhos», para matar o Entrudo, de Seixas, ou as pás. panelas, caldeirões e assobios da Normandia, e as caçarolas e sinos dos Abruzzos. Não raro, o cortejo compreende, como no caso do «João», a «viúva» do Carnaval, ou certos figurantes especiais, de significado simbólico39.
19A cerimónia cifra-se, portanto, no «enterro do Carnaval», sob a forma que é peculiar àquela zona. O drama ritual é por vezes mais complexo, compreendendo, além da morte e do enterro – que são os seus aspectos mais correntes – e, precedendo-os, a figuração do nascimento do Entrudo, no dia tradicionalmente assinalado para o seu começo – em geral o Domingo Gordo –40, o seu julgamento, e ainda, em casos muito raros, no final, a sua ressurreição41. De facto, naquele domingo, víramos já em Triana típicos disfarces e mascarados: rapazes com trajos femininos e raparigas com trajos masculinos, de caras recobertas com um simples pano branco, de malha ou de tecido, com dois buracos para os olhos, ou até apenas enfarruscadas e pintadas de vermelhão, « intrigando » em silêncio ou com voz de falsete os transeuntes42 –, o que prova que o período carnavalesco já começara, e que, portanto, as suas celebrações não se reduzem, ali, ao «Enterro do João» de Terça-Feira Gorda; o seu nascimento, porém, ocorrido em data imprecisa, não se personaliza sob qualquer forma aparente: o «João» surge nessa terça-feira sem antecedentes. De resto, o esquema completo, que acima indicámos, é difícil de se encontrar hoje, e habitualmente não se verificam alguns daqueles passos. Tal é, com efeito, o caso do «João», em que só existem – ou subsistem – o seu enterro e queima.
20As exigências da lógica objectiva não são necessárias para a compreensão dos acontecimentos parodiais, que possuem outra própria, cuja validade explicativa resulta da aceitação geral. Assim, ninguém objecta que o funeral do «João» preceda a sua morte, e que a queima remate a cerimónia. Esta incongruência, que o mecanismo das representações simbólicas autoriza e sanciona, é também em parte motivada pelo desejo de reservar para o final da festa, assinalando-o, os mais espectaculares e atractivos de entre os actos de que ela se compõe. As numerosas paragens do «enterro», antes da sua chegada ao lugar da queima, são ao mesmo tempo pretextos para alongar e conferir maior vulto à cerimónia, permitindo, sob a sua égide e pela utilização dos seus elementos, as galhofas e folguedos carnavalescos, e ocasiões para que, tirando do manequim todo o partido burlesco que dele se espera, o humor e a sátira populares se possam manifestar, sob as espécies das «choradeiras», clamores, responsos e outras brincadeiras, que culminam, finalmente, com o «testamento»43. Ao contrário, porém, do que sucede noutros lugares, o «João», aqui, longe de ser acusado, insultado, apupado ou maltratado vingativamente, é antes objecto de lamentosos encómios, e os «testamentos» falam no «dia de luto em todo o lugar», e no «nosso amigo e sempre chorado João»; e as suas faltas, que se mencionam e subentendem, são-lhe francamente perdoadas.
21O «Testamento do João», ou seja o «Testamento do Entrudo», é, numa forma excessiva e com uma exuberância que só nessa quadra de licenciosa liberdade é plenamente permitida e aceite, mais um exemplo desses «testamentos» chistosos e públicos, tanto ao gosto do povo, e que tão frequentes são entre nós. Nos «Compadres» e «Comadres» do Carnaval de Cinfães44, na «Serração da Velha» da Quaresma, na «Queima do Judas», em sábado de Aleluia45, e até mesmo, muitas vezes, na celebração de acontecimentos avulsos, eles aparecem46, e são sempre modos humorísticos, atenuados, indirectos, e gerais do controle social da vindicta pública, que por outro lado atestam a unidade e a coesão do agregado social perante os acontecimentos; representam a voz do povo, a sua opinião e crítica, o seu bom senso, espírito e gosto, numa mistura de elementos morais, satíricos, galhofeiros, e também obscenos e escatológicos, reveladores da sua vida mental em muitos aspectos. No caso que nos ocupa, eles interessam sobremaneira, porque, além do seu valor como testemunho psicológico, e a despeito da falta de rigor e da incerteza dos conceitos que os enformam, e embora em grande parte produto da criação pessoal e arbitrária dos seus autores, eles traduzem a ideia que o povo tem – que porventura recebeu e conserva – do «João», permitindo-nos caracterizá-lo de acordo com o seu sentido implícito e o seu significado tradicional.
22Como atrás dissemos, em cerimónias semelhantes a esta, peculiares a outras regiões, o manequim que personifica o Entrudo é por vezes insultado, apupado e maltratado, sobretudo quando, integrado de facto no plano do drama, tem lugar um julgamento ou uma acusação que de forma expressa vai nele encabeçando os pecados, vícios e males que ocorreram à comunidade durante o ano47, e que fazem dele o criminoso de todos os seus crimes, que, por isso, merece no final a morte48. Tal julgamento é, porém, raro; pelo contrário, o manequim é habitualmente, como no nosso caso, apenas alvo de lamentações, despedidas e outros carpimentos simulados. De facto, aqui, nenhum julgamento parodial estabelece os crimes do «João», e nenhuma acusação directa é contra ele formulada; em vez de censurar a sua vida e reclamar o seu castigo, o consenso público lamenta e chora a sua morte, testemunha-lhe, em actos e palavras, sentimentos de estima e simpatia e absolve-o das suas faltas: enquanto que, pelo seu lado, ele deixa legados para melhoramentos públicos que nunca se fazem, distribui generosamente os seus grotescos haveres, e exorta os seus vizinhos à concórdia, com propósitos edificantes, como um autêntico patriarca benfeitor da comunidade. Mas, apesar disso, o «João» corporiza e condensa a gula, a bebedeira, a fornicação, a indecência desmedida, glorificadas, é certo, mas que é necessário expurgar e expiar; os próprios legados para obras públicas, que nunca se fazem, conferem-lhe de certo modo um malefício que o identifica com essa permanente fraude e malogro, e investem-no da sua culpa. E assim, tal como, afinal, no caso anterior, e a despeito das provas de veneração que lhe são prodigalizadas, o «João» é também a expressão de todos os pecados, reais ou potenciais, e por eles é condenado e morrerá.
23O «Testamento do João», portanto, ao mesmo tempo que contém, nas suas palavras de grotescos lutos e simpatia, a fórmula da veneração do «João», revela-nos por outro lado o sentido essencial do corpo do delito do seu julgamento, que justifica a sua queima. E a cerimónia encerra-se com a execução do «João», nessa mesma noite de Terça-Feira Gorda, pelo processo do fogo.
24Embora, como adiante veremos, seja de admitir que a morte do manequim tenha carácter e significado rituais, não parece que o processo utilizado, seja ele qual for, o possua em si mesmo. «A forma do suplício é escolhida ao gosto das pessoas, sob a influência de circunstâncias diversas... O que a nossa gente do campo quer é destruir qualquer coisa, mas o como importa pouco... O suplício do fogo era aquele que as mais das vezes se aplicava às bruxas. Por outras palavras, a fogueira onde se queima o Carnaval... nada tem de ritual: ela é apenas judiciária... »49
25Casos há, porém, em que a queima do manequim representativo do Entrudo tem lugar numa fogueira, a qual tem existência autónoma e admite a hipótese da sua natureza ritual50; no «Galheiro» de Vila de Conde, por exemplo, penduram-se às vezes «Entruidos» e «Quaresmas» que ardem na fogueira; mas essas personalizações são independentes do «galheiro», que é autónomo e avulta por si próprio, e até raras vezes as inclui51.
26No caso do «João» verifica-se a regra usual quanto à data e tipo do suplício do representante do Carnaval, que tem com efeito lugar geralmente na Terça-Feira Gorda, pelo processo do fogo. Noutros casos, o boneco é, porém, «morto» num dia diferente – no Domingo Gordo, por exemplo, ou na quarta-feira de Cinzas, como sucede na Vila da Ponte, à saída da missa –, e, em vez ou além de queimado, pode ser afogado, apedrejado, fuzilado, enforcado, etc.; na Alemanha, os Fous do Carnaval eram geralmente enterrados sob o estrume ou a palha, e na Inglaterra o «João da Quaresma» era queimado, fuzilado, ou enfiado por uma chaminé; conhecemos o relato de destruições de manequins carnavalescos, na Normandia, em que este, depois de incendiado, era atirado a um rio, seguindo a arder pela corrente abaixo52; entre nós, o «Entrudo» de Seixas, em Vinhais, é alvo de bombas que lhe atiram durante a deambulação que faz pela aldeia, num carro; e vimos53 que, em Carreiros, o «João», antes da cremação, era enforcado, o que parece confirmar o sentido judicial da sua morte, que, mesmo quando ocorre só pelo fogo, toma o aspecto de uma execução, isto é, de uma eliminação violenta e forçada, como que de um castigo, à semelhança do que sucede com os «Judas» de sábado de Aleluia. E tal interpretação, que completa a ideia atrás exposta, acentua o desacordo dos dois sentimentos simultâneos e opostos que o povo manifesta para com o «João».
27As manifestações vulgares de júbilo – clamores, despedidas, danças ou cantares – a que a assistência se entrega enquanto o boneco arde ou é de qualquer outro modo destruído54, e bem assim a inclusão de morteiros ou bombas nos diversos tipos de manequins que são queimados cerimonialmente, e cuja explosão, geralmente, encerra o drama, podem considerar-se também práticas comuns, tanto entre nós como em outros países onde idênticos costumes ocorrem55.
28Mencionaremos ainda a intervenção da juventude local na efectivação da cerimónia, que se manifesta por diversas formas, e que, de facto se não por direito, parece corresponder ao costume que se verifica em outros países, e nomeadamente na França, respeitante à intervenção e às prerrogativas da juventude em geral nas celebrações cíclicas do Carnaval, de Maio, do S. João, etc.56.
29O «Enterro do João» é, segundo opinião unânime, confirmada por um octogenário, vizinho de Carreiros, que interrogámos, costume «muito antigo» na região; mas esse informador disse-nos que, no seu tempo de criança, o «Enterro do João», que já assim se chamava a cerimónia, constava apenas de uma deambulação que as crianças do lugar davam na tarde de terça-feira de Entrudo, com um pequeno caixão de madeira de dois a três palmos, fechado, e sem qualquer boneco dentro, que assim era simplesmente enterrado numa cova; os adultos pouco caso faziam da brincadeira, e jogavam entre si um Carnaval «porco», sujando-se uns aos outros com laranjas e imundícies.
30A cerimónia caíra em desuso; mas o aparecimento de pessoas com dotes chistosos, de que tantas vezes depende a conservação, o ressurgimento, ou, pelo contrário, a extinção de uma costumeira que exige alguém que seja capaz de tomar iniciativas e redigir «testamentos» espirituosos, fê-la reviver; contudo, o «Enterro do João», tal como agora se apresenta, só se pôde afirmar desde cerca de 1920.
31A informação do referido octogenário – que, apesar da sua aparente juventude e lucidez, era lacunar, impreciso, e até por vezes contraditório nas suas ideias – não nos parece digna de fé; ela é contrariada pela indicação que por outros lados nos deram de que a actual festa, ressuscitada de facto há cerca de trinta para quarenta anos, após um largo período de esquecimento, foi por inspiração daquilo que se recordavam de ouvir aos homens então velhos da terra, ainda presentes. Até que ponto, porém, as duas cerimónias coincidem nos seus elementos fundamentais, é difícil dizer-se com certeza; os resultados das investigações a que pudemos proceder devem considerar-se provisórios enquanto não forem confrontados com informes colhidos em outras localidades onde o costume também ocorra.
32Mas a principal razão que temos de duvidar do valor daquela informação, e de não aceitarmos a sua cronologia, está em razões de fundo, e, acima de tudo, na impossibilidade de se conceber que uma tal cerimónia, que na região tem uma expansão bastante larga, seja uma criação pessoal, arbitrária, gratuita, e recente – queremos dizer, desligada de qualquer tradição anónima poderosa que a determine e lhe confira o imperativo das suas formas – e que, ao mesmo tempo, todas as suas minúcias constitutivas – entre as quais avulta uma, que, pela sua natureza especial, não admite uma instauração actual, e, pelo contrário, exige uma motivação poderosa e ancestral, que dilua o significado que aparenta perante a nossa época de estrito policiamento de instintos – se ajustem com tão completo rigor, um por um, às minúcias correspondentes que vamos encontrar em cerimónias semelhantes de outros países e épocas; e que essas minúcias constituam um todo coerente e harmonioso, perfeitamente significativo e característico. Se a identidade de espírito e criação se pode admitir em relação a um pormenor isolado e de carácter muito geral, ela é impossível em relação a um facto complexo de cultura, de qualquer espécie. Pode-se, em relação ao «João», ter verificado uma importação recente – operando então, nos nossos dias, um fenómeno de difusão; se assim foi, o problema da sua origem e significado apenas se desloca regionalmente, mas a cerimónia pode continuar a entender-se como sendo uma sobrevivência de remotas práticas de ritual e magia; se essa difusão se deu pormenor por pormenor, por importações dispersas, o mesmo problema se põe, com idêntico interesse, em relação a cada pormenor isolado, sendo para admirar o poder de coesão e de unificação, a atracção concordante que o «João» exerceu sobre eles todos, a quem comunicou o seu sentido pessoal, marcado e original. E o interesse intrínseco da celebração actual nada perde com esse acerto histórico.
33O «Enterro do João», ou seja, de facto, o «Enterro do Carnaval», é mais um exemplo dessas celebrações anuais cíclicas, de fim de Inverno e princípio de Primavera, em que uma efígie humana é destruída, e de que, como vimos, existem, com a mesma denominação, inúmeros exemplos entre nós e em diversos países. Dentro da sua categoria, podem incluir-se mais cerimónias afins, próprias de outras regiões, tais como as da Expulsão da Morte e os Combates do Verão e do Inverno, a Serração da Velha, a Queima do Judas, etc., que parecem todas representar a mesma ideia, embora as personagens centrais, em cada uma delas, levem nomes diferentes, porventura, de resto, mais elucidativos em alguns casos. Assim, na Estónia, o manequim de Terça-Feira Gorda, geralmente um feixe de palha, vestido ora de homem ora de mulher, chamava-se o «Espírito dos Bosques» (Metsik), e era, no final do desfile, amarrado ao topo de uma árvore, na floresta; todos os dias se lhe dirigiam preces e se lhe faziam oferendas, entendendo-se que a cerimónia constituía uma prática mágica de protecção contra todos os males, referida em especial aos rebanhos57. Por outro lado, na Europa Central – na Turíngia, na Baviera, na Boémia, na Morávia, etc. –, era costume, em datas que variavam conforme as localidades, mas sempre igualmente no final do Inverno, realizar-se a cerimónia da «Expulsão da Morte», em que diferentes figurações, constituídas ora por um manequim de palha, vestido com roupas velhas, como os Carnavais, ora por pequenos bonecos, por vezes também deitados num caixão, ora ainda por figuras esquemáticas, feitas com ramos e folhas, que todas levavam o nome expresso de «Morte»58, eram queimadas, afogadas ou, mais raramente, despedaçadas ou enterradas em qualquer local; muitas vezes elas eram levadas para terras de uma povoação vizinha, com viva oposição por parte dos seus habitantes, e era frequente serem raparigas, vestidas festivamente, quem as transportava; em certas aldeias bávaras, contudo, a festa era feita pelas raparigas ou pelos rapazes, conforme o sexo da pessoa que aí falecera em data mais recente. De um modo geral, durante o cortejo, ou então no dia seguinte, a gente nova, que transportava o manequim, corria as casas, cantando velhas canções tradicionais, que anunciavam a expulsão da «Morte» e o regresso do Verão; e, aparentemente como recompensa do serviço prestado, recebiam em troca donativos e vitualhas diversas; em certos casos, porém, a efígie da «Morte» era encarada com medo e repulsa, e aquela visita considerava-se indesejável e de mau presságio. A cerimónia tinha geralmente por fim assegurar um ano próspero e feliz, entendendo-se que ela purificava a aldeia e protegia os seus habitantes contra as epidemias, doenças e peste, e que tomava fecundas as mulheres. Acerca do manequim, existiam crenças diversas, girando em tomo da ideia da morte; assim, por exemplo, na casa onde ele fora confeccionado ninguém morria durante o ano, etc.
34A «Expulsão da Morte» apresenta, como vemos, traços fundamentais que a aparentam ao «Enterro do Carnaval»; a primeira destas cerimónias, contudo, é em muitos casos seguida de outra, que parece completar o seu sentido, e é destinada a trazer de novo o Verão, a Primavera ou a Vida, sob a forma de quaisquer outras figurações – um manequim, um boneco, ramagens verdes ou outras guarnições vistosas – geralmente relacionadas com a Árvore de Maio, que se trazia da floresta e que, às vezes, vestiam com o próprio trajo da «Morte», após a sua destruição –, tudo isso acompanhado pelas canções que atrás mencionámos; em certas aldeias da Transilvânia e da Morávia, por exemplo, as raparigas arranjavam um manequim de palha, a que vestiam os lindos trajos femininos da região, e que, com o nome de «Morte», passeavam por todas as ruas da povoação; terminado o cortejo, as mesmas raparigas, noutra casa, despiam a «Morte», e atiravam o boneco aos rapazes que o aguardavam fora, e o levavam, a correr, para longe da aldeia, enquanto que uma delas envergava o trajo que a «Morte» usara, e saía novamente à rua, em alegre procissão.
35As árvores, ramos, manequins, ou pessoas, que, após a expulsão da «Morte», regressavam festivamente da floresta, representavam expressamente a Vida, a Primavera. Maio ou o Verão – ou seja, na interpretação e terminologia mannhardtianas, a incarnação do espírito da vegetação; mas tudo indica, além disso, que essas figurações se entendiam como reanimações ou ressurreições da própria «Morte», cuja efígie se destruíra. A efígie da «Morte», que de resto era. muitas vezes, decorada significativamente com folhagens, deve, portanto, ser já uma incarnação do espírito da árvore ou da vegetação – a vegetação que morre, a vegetação no Inverno – e a «Expulsão da Morte» e a «Evocação do Verão» constituiriam originariamente uma forma simbólica ritual da morte e renascença das forças vegetais na Primavera; mais tarde, «a prática de expulsar a vegetação moribunda ou morta, na Primavera, como prelúdio ao renovo dessa vegetação, ter-se-ia alargado... no esforço para banir da aldeia ou da região a morte em geral»59. A «Morte», tal como é concebida nestas celebrações, «possui», pois, «uma influência vivificante e fecundante, capaz de se comunicar ao mundo vegetal e mesmo animal»60, atribuindo-se mesmo à sua imagem uma nova potência vital, «que a toma, por uma espécie de ressurreição, o instrumento de uma renascença geral »61. Apesar disso, porém, dissemos que ela é por vezes tomada como um objecto de horror, o que, de acordo com a teoria de Frazer, se explicaria, como veremos, porque, nos remotos ritos que estão porventura na base da actual cerimónia, o representante do Espírito da Vegetação, anualmente imolado, era também o bode expiatório da comunidade, que concentrava em si mesmo todos os males, vícios, pecados e morte cometidos e sofridos pelos seus componentes durante esse ano, e que com a sua morte se expurgavam e expiavam62.
36Às vezes, o contraste entre o entorpecimento das forças da natureza no Inverno e o recrudescimento da sua energia na Primavera toma a forma de uma disputa entre figurantes que representam o Inverno e o Verão. Em certas cidades da Suécia, por exemplo, realiza-se no dia 1 de Maio um combate simulado entre dois grupos de rapazes a cavalo, chefiados, um pelo «Inverno», vestido de peles e atirando bolas de neve, e outro pelo «Verão», coberto de folhas e flores; no Palatinado e na Baviera, a meio da Quaresma, realizavam-se cerimónias parecidas, o mesmo sucedendo na Baixa Áustria, em Terça-Feira Gorda, onde dois homens, personificando verbalmente as duas estações, alternavam os seus cantares às portas das casas; – na Morávia, onde o «Inverno» era figurado por um velho de grandes barbas e vestido de peles, e o «Verão» por um rapaz com um trajo branco enfeitado com fitas, trazendo na mão uma árvore de Maio; – no Brunswick, onde um bando de rapazes, conduzindo um manequim ou um homem vestido de «Inverno», simulava a sua expulsão, correndo todas as casas, e era seguido por outro, de raparigas, vestidas de claro, com flores e grinaldas, que anunciavam a chegada da Primavera, etc.; de forma semelhante, em Zurique, na segunda-feira a seguir ao equinócio da Primavera, as raparigas do campo, vestidas de branco e denominadas Marielis, vinham à cidade, correndo as ruas, aos grupos de duas, com uma pequena árvore de Maio nas mãos, ou grinaldas de flores de que se suspendiam guizos, e, de casa em casa, cantavam uma canção em louvor da Primavera; enquanto que os rapazes, conhecidos nessa ocasião pelos Böoggen, mascarados e com uma camisa ornada de fitas por cima dos fatos e grandes chapéus de bicos, passeavam em carroças manequins de palha que representavam o Inverno, e que à noite queimavam vistosamente: a luta aqui era implícita, mas, como diz Frazer, não é possível enganarmo-nos quanto à significação da cerimónia63.
37Na zona sul do Ocidente europeu, na Itália, França, Espanha e Portugal (e ainda, com algumas variantes, na Suíça e entre certos povos eslavos) existe um outro costume, que se realiza a meio da Quaresma e é conhecido pelo nome de «Serração da Velha», o qual, pelo parentesco que tem com o «Enterro do Carnaval», pode talvez com ele ser comparado. Aqui, porém, o manequim que corporiza a cerimónia tem muitas vezes o aspecto de uma velha, muitas vezes horrenda, e é serrado ao meio, atirado à água, despedaçado ou queimado. Em certas regiões, porém, a «Serração da Velha» tem apenas um sentido verbal designando aquela data, sem qualquer personificação cerimonial; noutros casos ainda, nesse dia, conhecido por «Dia das Velhas» ou expressão semelhante, a gente nova tem o direito de perseguir, apupar ou insultar as mulheres idosas que encontra na rua, e a fazer-lhes assuadas em frente à porta ou até mesmo a entrar-lhes em casa. O estudo desta celebração deverá ser feito noutra ocasião, o mesmo sucedendo com a «Queima do Judas», que se realiza em sábado de Aleluia.
38Na Suíça, porém, como dissemos, esta cerimónia tinha um aspecto e uma designação especiais, que de certo modo a põem em relação com algumas formas da «Expulsão da Morte»; no cantão dos Grisons, por exemplo, no primeiro domingo da Quaresma, enquanto as crianças, na praça pública, brincavam aos combates umas contra as outras, armadas com serras de madeira, os adultos, com grandes brincadeiras e muito vinho, serravam ao meio a Bagorda, que era uma boneca de palha e trapo, imitando uma velha; noutros lugares, na Quinta-Feira de Carnaval, as crianças arrastavam pelas ruas um boneco com o mesmo aspecto, que em seguida degolavam e queimavam. E entre as mascaras de Terça-Feira Gorda, havia sempre o Bagord e a Bagorda, também conhecidas pelo Velho e a Velha, ou a Madame Inverno.
39Por outro lado, entre os ciganos do Sudeste europeu, um rapaz e uma rapariga, no domingo de Ramos, que é o «Dia da Sombra», serravam ao meio um manequim feminino, enquanto o resto do grupo se entregava a danças e cantos; na Transilvânia, esse manequim envergava a roupa da mulher que tinha enviuvado mais recentemente, e era assim queimado; entendia-se que a cerimónia era consagrada à Rainha da Sombra, que desaparece debaixo da terra à chegada da Primavera, e reaparece com o Inverno, para atormentar os homens com doenças. etc.
40E, finalmente, na Pequena Rússia era costume, na Páscoa, fazer-se o funeral de um boneco que representava a divindade da Primavera, e a que se dava o nome de Kostrubonko: «formava-se um coro, que circulava lentamente em tomo de uma rapariga estendida no chão, cantando a morte da personagem; num momento dado a rapariga acordava e levantava-se, e o coro celebrava então a sua ressurreição». A cerimónia repetia-se, sob aspectos diferentes, nos enterros de Kupalo, Kostroma e Yarilo, que se realizavam no mês de Junho, na véspera do S. João, no dia de S. Pedro, no fim do mês, e que revestiam múltiplas formas.
41Em todos os casos que apontámos, parece legítimo admitir-se que a «Velha», o «Judas», as personagens míticas das celebrações russas, etc., correspondem de modo mais ou menos próximo ao «Inverno» e à «Morte» que aparecem nas figurações da Europa Central; e que, paralelamente, a «Serração da Velha», a «Queima do Judas» e o «Enterro do Kostrubonko» representam o mesmo que a «Expulsão da Morte», cujo conteúdo é por sua vez idêntico ao do «Enterro do Carnaval», com as suas diversas variantes64.
42A questão da origem, significado e sentido geral das personagens burlescas que, como o « João », são actualmente destruídas no Carnaval e em outras celebrações afins, é sujeita a controvérsia.
43Segundo as teorias mítico-religiosas e mágico-rituais de Grimm e Mannhardt baseando-se em estudos comparativos da história das religiões e da estrutura da realeza nas sociedades primitivas, e na consideração da data das modernas cerimónias, no fim do Inverno e no princípio da Primavera; do seu conteúdo, que se apresenta sob a forma de um sacrifício humano; do período de liberdade licenciosa que o acompanha, característico de épocas críticas do ano; dos sentimentos confusos que sob forma parodial o público testemunha para com os figurantes centrais; do seu nome, em alguns casos, e de certas crenças, superstições e práticas de que ele é objecto, Frazer é de opinião que eles representam sobrevivências das personificações de conceitos anímicos e antropomórficos do «Espírito da Vegetação» e do «Bode Expiatório», que dominam a vida religiosa das mais remotas comunidades de economia agrícola.
44Com efeito, o primitivo rei, que representava a unidade do clã por herança do longínquo progenitor, único divinizado, e cuja vida exprimia e se identificava com a própria terra e as potências naturais – Deuses, Espíritos, ou Demónios da Vegetação, segundo a terminologia de Frazer – devia ser imolado no fim de cada ciclo anual agrário, a fim de, com a sua morte ritual, evitar o declínio das forças fecundas, vegetais, animais e humanas, que o Inverno patenteara, e promover o seu renascimento num corpo ainda não usado nem gasto pela decrepitude, assegurando, desse modo, com o seu sacrifício, a fertilidade, a vida e a felicidade humana.
45Por outro lado, em cada uma dessas velhas comunidades, e do mesmo modo no princípio do ano agrário, realizava-se uma cerimónia de purificação geral e anual dos espíritos maléficos que as habitavam, como preparação favorável para as sementeiras, que se efectivava pelo sacrifício da pessoa designada como Bode Expiatório do grupo, a qual condensava em si os vícios, crimes e mortes de todos os seus componentes, que expiava com a sua morte, expurgando-o e libertando-o deles.
46O sentido religioso dessa purificação e a relação entre os dois conceitos: o estímulo da fertilidade correspondendo à expurgação dos espíritos nocivos da esterilidade; a idêntica periodicidade e data dos dois sacrifícios – o final e o princípio do ano natural –; e uma lei que chamaremos de economia ritual –, levaram o homem a cumprir o rito que respeitava a duas personificações e pessoas, com a imolação de uma só vítima, que corporizava as duas entidades: aquela que representava o rei ancestral e o Espírito da Vegetação passou, com o andar dos tempos, mas já em épocas remotas, a representar também, para efeitos da sua imolação, o Bode Expiatório da comunidade, realizando-se, com a sua morte única, dois sacrifícios rituais65.
47Numa filiação mais recente e concreta, o actual Carnaval derivaria das Saturnais romanas, herdeiras dessas cerimónias primitivas, que se realizavam em Dezembro e se caracterizavam como sendo um período de completa liberdade licenciosa, durante o qual tudo era permitido, o curso normal da vida suspenso e transtornados radicalmente os quadros sociais; a festa e a orgia eram permanentes, e desaparecia a distinção entre senhores e escravos.
48Estas celebrações, que passavam por constituir uma restauração provisória do reino de Saturno, velho deus italiano da agricultura e das sementeiras, justo, benfazejo e alegre, eram presididas por um rei de farsa, que em Roma conduzia os divertimentos; e «somos tentados a conjecturar» que esse falso rei «representava talvez, na origem, o próprio Saturno»66, ele próprio sucessor mitológico da ideia divina ligada obscuramente ao primitivo rei ancestral.
49Longe de Roma, porém, a festa das Satumais, de acordo certamente com a sua mais antiga tradição, implicava ainda, e já em tempos cristãos, a imolação em pessoa do seu rei, no final de um breve reinado simbólico de prazer sem entraves; e é por isso lícito supor-se que, «numa época anterior e mais bárbara, na Itália, era costume, por toda a parte onde se adorava Saturno, designar-se um homem que personificava provisoriamente este deus, gozava de todas as suas prerrogativas tradicionais, e devia depois morrer... no papel do deus benfazejo que dá a vida pelo mundo»67.
50Como dissemos, as Satumais realizavam-se em Roma em Dezembro, que, após a reforma cesariana do calendário, marcava o fim do ano romano. Mas em tempos mais recuados, o ano começava em Março; e, se o período de liberdade licenciosa que corresponde às Saturnais de Dezembro representa uma purificação geral e pública no fim do ano velho, pode entender-se que elas se realizavam primitivamente em Fevereiro ou Março, e que seria nessa época, do mesmo modo, o fim do ano velho. É natural que na Roma urbana as festas se tenham deslocado de acordo com a nova data oficial do fim do ano, subsistindo, porém, nos distritos rurais a antiga data natural, de resto «eminentemente própria para a festa do... deus... das sementeiras»68.
51Por outro lado, nos antigos cultos da Vegetação, ao período de liberdade licenciosa purificadora, que se observava como preparação mágico-religiosa às sementeiras e plantações, seguia-se geralmente, e também como prática mágico-religiosa e encantação simpatizante, com o fim de favorecer a germinação da semente deitada à terra, um período de continência e jejum; assim, nas sementeiras de Outono, as mulheres gregas celebravam com abstinências os ritos de Demeter e Perséfona, que comemoravam a descida da deusa do trigo à terra, e o luto de sua divina Mãe. Desse modo, é razoável supor-se que elas se tenham conformado a regras análogas de luto e abstinência por um motivo semelhante, no momento das sementeiras da Primavera69.
52E vemos então os antecessores históricos do Carnaval, das suas folias e burlas, do manequim que o corporiza e do seu sacrifício final, e do período de abstinência que se lhe segue, explicados, segundo esta doutrina, pela análise dos mais antigos mitos, que se integram nos sistemas religiosos e rituais da humanidade pré e proto-histórica.
53A. van Gennep, porém, recusa esta aproximação, por falta de «documentos probantes», uma vez que a coincidência se faz, na tese de Frazer, por deslocação de datas que, embora estabelecida por conjectura verosímil, não se apoia em nenhum texto expresso. E recusa igualmente as equiparações dos manequins carnavalescos às personificações do «Inverno» ou do «Demónio da Vegetação», com fundamento em que nenhum mito respeitante ao Carnaval e à Quaresma existe que explique o conjunto cerimonial e as suas noções subjacentes, em função de sobrevivências dos sistemas religiosos coerentes da antiguidade mediterrânea ou da Europa céltica ou germânica; e em que a noção de « Inverno » é « abstracta de mais para poder ser primitiva»70, e que, enquanto que o Inverno e a Primavera são universais, «o manequim está territorialmente em minoria»71.
54E, aceitando em princípio a teoria do Bode Expiatório, que concorda com a observação de que os manequins do Carnaval são geralmente carregados com todos os crimes cometidos pela colectividade durante o ano, e que pode ter sido extraída do texto da Bíblia durante a Idade Média, entende, contudo, que a verdadeira explicação da sua existência está na tendência à dramatização, que é variável de povo para povo, de acordo com as «mentalidades colectivas» locais; aquelas personagens e práticas são «cerimónias de terminação dramatizadas», ritos de passagem que celebram o ingresso num período cíclico especial. «O Carnaval morreu», significa que não se deve comer mais carne72; e então alguém teve a ideia de fazer um boneco, a que se deu o nome de Carnaval, e se fez morrer. É natural que o aparecimento desta reacção popular se situe na data genérica que apontámos acima – meados da Idade Média – quando a imposição eclesiástica do jejum dos Quarenta Dias se tomou mais rigorosa. E assim o julgamento, o processo e a fogueira em que se queima o Carnaval não obedecem a nenhum ritual fixo, inscrito em qualquer liturgia; eles são apenas judiciários, e pertencem à rica série de paródias que são características dos períodos de liberdade licenciosa, isto é, de suspensão temporária das regras normais da vida colectiva73; e limita o momento de origem dos tribunais carnavalescos ao período da libertação progressiva das comunas burguesas, em meados da Idade Média.
55Pelo seu lado, C. W. v. Sidow, no estudo dos costumes, práticas, crenças e tradições populares, e nomeadamente das que se referem à agricultura, repele em bloco os princípios, o método e as condições das teorias mágico-religiosas, opondo um critério de observação directa dos factos e de análise desprevenida dos seus elementos, considerados sob o ponto de vista do seu conteúdo psicológico, à especulação mitológica e aos conceitos animistas que a integram e lhe servem de apoio. A sua principal crítica é dirigida contra a ideia mannhardtiana de que aqueles fenómenos se desenvolvem a partir de um sistema filosófico-religioso primitivo, que se encontra na sua base e em que por isso eles se integram com perfeita coerência, representando as suas manifestações sobrevivências de ritos ou prática mágicas ligados a cultos agrários, sob a forma de personalizações dos «Espíritos da Fertilidade». «O estudo da tradição popular», diz aquele autor, «mostra que não se trata de especulação filosófica, mas de formações de... acaso, surgidas de associações de várias espécies, linhas curtas, isoladas, de pensamento, que, embora ligadas a um e mesmo objecto, são falhas de toda a conexão interna... Os investigadores que conceberam o todo como sendo uma filosofia primitiva, pensaram erradamente que tudo era organicamente da mesma importância»74. Nesta conformidade, ao estudar e procurar a explicação daqueles factos, em vez de se buscar, de modo mais ou menos arbitrário e pessoal, o mito agrário que se postula por trás deles, segundo um sistema traçado de antemão, e em que encontram razão e lugar os seus diferentes elementos constitutivos, analisados à luz de concepções animistas, submetem-se tais factos a uma rigorosa observação directa, de carácter positivo, e procede-se à sua análise de acordo unicamente com os dados fornecidos por este método. Dessa forma se estabeleceu a distinção entre motivos primários e secundários, que Mannhardt e Frazer ignoraram, e que é essencial para g exacta compreensão do verdadeiro sentido do fenómeno folclórico; certos elementos, que nos conceitos daqueles autores completam e dão muitas vezes coesão ao «mito» em jogo – e muitas vezes determinam mesmo a sua eleição – são meros produtos secundários, que por associações lógicas e psicológicas de diversa ordem se enxertam acidentalmente no motivo principal, e nenhum significado essencial possuem. «Mannhardt confundiu o primário e o secundário, e julgou que havia um plano de fundo de crença popular onde nunca o houvera»75.
56Os conceitos de crença, de natureza animística ou mágica, e de fundamento religioso ancestral, são recusados; a explicação da génese dos fenómenos, em que eles tinham sido utilizados, é dada pelo simples mecanismo psicológico das associações emotivas, das alucinações e sonhos eróticos, das razões explicativas de tabus primários, sob a forma de «motivos bizarros», das ficções pedagógicas, humorísticas ou ocasionais, das sugestões e implicações dos conceitos de Primeiro e Último, de importância fundamental na tradição popular, e que não constituem formas características de crença, mas apenas «crença a brincar», ou «meia crença», «crença em que não se acredita», ou então crença de tipo orendístico, sem qualquer raiz num passado mitológico histórico; e a magia é apenas magia augurai, também «pura brincadeira, sem qualquer traço de crença, quando muito meia crença»76, «que nada tem que ver com qualquer demónio vegetal»77. As tradicionais incarnações do Espírito da Vegetação são apenas «expedientes técnicos», ou então «sinais» – sinais de que chegou o Verão, ou o Natal, ou de que a ceifa terminou, etc. – cerimónias festivas ou patranhas, e nada mais. Mas, acima de tudo, a verdadeira origem das tradições e práticas populares encontra-se no sentido lúdico do homem: tudo aquilo que para as teorias mágico-religiosas se afigura manifestações ou reminiscências de velhas crenças míticas e concepções anímicas respeitantes às divindades da Vegetação e da Fertilidade, sob a forma de superstições, costumes, festas, etc., são apenas produtos daqueles factores puramente psicológicos, postos em jogo pelo sentido lúdico fundamental e profundo do homem. «Aquele que não conhece os costumes do povo, com ficções e um modo figurativo de falar, o seu emprego de motivos excêntricos em fantasias ou experiências de sonhos, o seu pensar associativo, as suas patranhas festivas, por uma questão de divertimento e nada mais, sem o acompanhamento de superstições ou pensamentos religiosos» –, nunca «poderá atingir resultados de confiança»78.
57E assim, «nos fogos anuais, o povo costuma atirar para lá diversas coisas, às vezes um poste, às vezes um boneco de palha ou de outra substância, às vezes animais vivos. Embora alguns desses costumes sejam bastante brutais, eles são apenas brincadeira ou jogo, e nunca foram outra coisa. Eles provêm da vulgar inclinação humana para brincar com o fogo. É óbvio que todas estas coisas que se queimam nos fogos anuais estão secundariamente em relação com o próprio fogo. Não foi para se queimar um ou outro daqueles objectos que se inventou o fogo anual, mas, quando o fogo se fez, alguém teve a ideia de lá queimar várias coisas, ou de fazer qualquer outra coisa em relação com ele. A evidência disto ressalta da grande variedade de tais invenções e da igualmente grande variedade de dizeres que se usam como explicação de tais patranhas. Qualquer tentativa no sentido de se pôr unidade e crença religiosa originária dentro desta baralhada, conduzirá apenas a um engano sem valor, através de uma hipótese sem qualquer relação com a vida real»79.
58Qualquer que seja, porém, a verdadeira natureza dos manequins representativos do Carnaval, vemos assim que, entre as celebrações típicas que conhecemos do Carnaval, o «Enterro do João» constitui uma cerimónia de um rigoroso classicismo. O seu carácter tradicional, a perfeita articulação que opera de todos os elementos de que se compõe e se vão encontrar sob formas idênticas embora dispersas ou diversamente associadas, em todas as outras figuras que lhe correspondem e ocorrem entre nós e em outros países, com uma unidade e uma plenitude de significado representativo excepcionais, fazem dele um notabilíssimo espectáculo, em que cada hipótese explicativa encontra, invulgarmente acentuados e bem caracterizados, os factos que fundamentam as suas especulações teóricas e as suas conclusões.
59Entenda-se realmente que os manequins carnavalescos e as cerimónias que dizem respeito à sua destruição são criações de substractum meramente psicológico, manifestações do instinto lúdico fundamental e do poder imaginativo do homem, e corporização do seu sentido parodial pela utilização do mecanismo dos conceitos elementares que regem as transposições simbólicas, e pretexto para as realizaçõess espontâneas que só numa época em que a tradição consente a absoluta licenciosidade podem aparecer – farsas, sátiras, vindictas ou críticas dramatizadas –; ou, numa concepção totalmente diversa, e dentro das teorias mágico-religiosas, que eles representam a sobrevivência da última personificação da divindade ancestral que corporizava os Deuses, Espíritos, ou Demónios da Vegetação e da Fertilidade, em conexão com a do Bode Expiatório dos males anuais da comunidade, e que a sua destruição, e todo o cerimonial que lhe diz respeito, é a imagem do sacrifício anual do velho rei e dos seus ulteriores substitutos divinizados, e das múltiplas práticas de que, com significado mítico, ele era objecto: – na paródia do préstito fúnebre, no exagero das minúcias e manifestações escatológicas e obscenas que o acompanham, poderá a primeira daquelas opiniões ver a afirmação decisiva do ludus humano e do seu erotismo essencial, que irrompem para além das fórmulas organizadas e se afirmam brutalmente como as mais poderosas motivações; enquanto que as segundas encontrarão, a confirmá-las, a imagem do cortejo sagrado sacrificial qualificado e a reminiscência do período de liberdade licenciosa própria dos momentos críticos anuais, em eras e sociedades primitivas, que precediam ou se sucediam às sementeiras, e assumiam o significado de uma prática ritual de magia simpatizante, para estímulo da germinação, e que já nas Satumais romanas revestia o carácter de simples folia que hoje apresenta; e, além disso, na nítida incongruência dos sentimentos que o público manifesta para com o boneco – semelhante à que se observa na «Expulsão da Morte» na Europa Central –, e no tom de velho patriarca que lhe empresta, poderão estas últimas ver a sobrevivência dos sentimentos opostos que, dissociados, se votavam separadamente às duas pessoas que corporizavam aquelas duas personalizações, e a confirmação da sua ulterior unificação numa só pessoa, tal como sucedia com o Mammurius Veturius na cerimónia romana. E esta fundamentação toma um aspecto que nos parece decisivo na consideração da exibição do veretrum do manequim e da aposição das mãos que nele se pratica, como costume que, para lá do sentido burlesco da sua aparência escabrosa, pela sua forma e natureza especial, e pela sua semelhança com certos factos de manifesta feição mágico-ritual que se integram em cerimónias congéneres e paradigmáticas de outros povos e eras, e, embora sujeito a todas as influências, mergulha possivelmente raízes nas mais remotas concepções e práticas do homem primitivo, e a que uma motivação religiosa e uma vida milenária conferiram um imperativo que, embora desconsciencializado, resiste e perdura obscuramente.
60Se, num outro ponto de vista, se entender, com van Gennep, que os manequins e cerimónias carnavalescas são a forma que reveste o Rito de Passagem que corporiza o intróito ao período de quarenta dias de jejum da Quaresma, novo estado social em que o homem deve ingressar anualmente, encontraremos no «Enterro do João», um a um, e com completa identidade, todos os elementos cerimoniais estudados por aquele autor a respeito do Carnaval francês, que serviram de base à sua teoria; mas, enquanto que ali os mais significativos de entre eles são raros e aparecem dispersos em distintas celebrações – o carácter sacro-parodial do funeral, que o autor diz ser difícil de encontrar na França, e a exibição do veretrum, de que conhecemos a menção de um exemplo único, referente a um ano excepcional –, aqui vemos esses mesmos, como os demais, incluídos no cenário normal do drama, reunidos num todo coerente e homogéneo, e valorizados numa construção viva, animada e acabada, que revela assim com maior nitidez o sentido implícito de tais celebrações.
*
61Seja, porém, como for – e podemos dizer que, em relação à cerimónia global, se deve ter verificado um sincretismo de motivações determinantes, ao longo do tempo, de acordo com os gostos, conceitos e padrões vigentes –, o certo é que o «Enterro do João» se caracteriza por uma abundância de aspectos verdadeiramente notável: – a conotação complexa da personagem central, o seu nome, tipo, figura, o seu sentido geral indecoroso, burlesco, visceral, libertino e erótico, corporizando e representando integralmente um período de completa liberdade licenciosa, que, seja qual for a sua natureza, é concebida de uma forma difícil de superar, e se manifesta na aparência do boneco, na natureza dos actos, palavras e atitudes que em relação a ele e sob o seu signo e inspiração se praticam; o funeral, de padiola, a atmosfera de folia que o rodeia, o aproveitamento, adaptação e utilização de todos os elementos e materiais para fins estercóricos, obscenos e parodiais, com um a-propósito e uma ousadia extremos: o oficiante, com a sua indumentária e acólitos, a cruz, a caldeirinha e os responsos; o acompanhamento, os sentimentos que o público exibe e testemunha, as lamentações, «choradeiras» e bom humor, rematando com o «testamento» e as «deixas», tanto da tradição nacional, que, com a sua alusão à « orelheira ». a inclui no seu cenário mais amplo, acentuando a nota local; o papel que representa a juventude e os direitos que lhe são concedidos, e, finalmente, consumando o drama, a explosão final dos excrementos que recheavam o boneco: e outros ainda que, embora inéditos, se integram tão justamente no seu conjunto cerimonial, como seus elementos primários e intrínsecos, que, longe de alterarem a sua unidade qualitativa e sentido geral, os acentuam, completam, confirmam e amplificam, colocando-a, de certo modo, acima das demais celebrações do seu género, em poder representativo. E o interesse actual e significado palpável e original da cerimónia estão ao mesmo tempo, na sua perfeita personalização e definição do Entrudo de todos os tempos e países, segundo todos os cânones teóricos e tradicionais, e na adaptação que exprime desse conceito universal ao condicionamento psicossocial do meio particular, muito especial, em que se efectua.
62E, assim, o «Enterro do João», como manifestação do poder selectivo das formas que o povo cria, adapta ou conserva, e se revelam sem entraves nas liberdades carnavalescas que tudo autorizam, interessa principalmente como documento que lança luz sobre o seu gosto, mentalidade, tendências obscuras e desejos confusos, e sobre a natureza essencial do seu próprio ludismo.
63Junho de 1954.
Notes de bas de page
1 Segundo informação colhida em Carreiros, que deverá ser confrontada com ulteriores investigações, a área de difusão desta costumeira estende-se pelos lugares de Vilar. Travagem. Ermesinde e Palmilheira, da freguesia de Ermesinde e concelho de Valongo; a sul e poente, pelos da Granja. Giesta, Brás-Oleiro, Pedrouços e São Gemil, da freguesia de Águas Santas e concelho da Maia; e a nascente, além dos mencionados no texto, pelos de Rio Tinto, Baguim, Venda Nova e Vale Ferreiros. da freguesia de Rio Tinto e concelho de Gondomar.
A ser exacta esta delimitação, tratar-se-ia de uma faixa compreendida entre a vertente sul dos contrafortes ocidentais da serra de Valongo e os limites administrativos do Porto, correspondente aproximadamente ao extremo sudeste das antigas terras da Maia, com um carácter acentuado de subúrbio do Porto, e muito visivelmente compreendida na sua esfera de influência.
2 Dizem-nos em Carreiros que. numa «choradeira» (vide nota 8) feita noutros tempos por gente de Brás-Oleiro, alguém lhe chamou também «Artur».
3 Terça-Feira Gorda de 1954 (2 de Março).
4 Em Carreiros havia uma «labita» que todos os anos vestiam ao «João», e que lhe retiravam antes da queima. As raparigas do lugar iam de tarde apanhar bugalhos, com que faziam colares que lhe punham ao pescoço.
5 Em Carreiros e Forno, o veretrum era representado por um enorme nabo.
6 Parece que, não há muitos anos a esta parte, a paródia do enterro se completava com mais figurantes, cuja indumentária era utilizada, na medida em que a isso se prestava, para fins estercóricos. Assim, um outro auxiliar transportava um pequeno balde com água choca, e uma vassourinha, com a qual aspergia a assistência que assomava às portas das casas. A este respeito, vide também nota 37.
7 Em Carreiros, na longa volta noctuma que o cortejo dava, a iluminação era, de entrada, feita com archotes de palha embebida em alcatrão e. ultimamente. com velas compradas com o produto de um peditório feito de tarde, para esse fim. com a participação do «João», levado aos ombros do seu autor. A este respeito vide também notas 38 e 56.
8 As «Choradeiras» são demonstrações de simulado pesar, carpimentos clamorosos endereçados ao «João», que muitas vezes servem de pretexto para, nesse tom. se confessarem faltas velhas ou se dizerem chistes ousados, de maneira indirecta. A «Viúva», por vezes, referia-se em alusões cruas e gestos expressivos ao veretrum do «João», como objecto especial da sua «saudade».
9 Foi esta a própria expressão, naturalmente exagerada, que ouvimos a um comparsa do cortejo de Triana. Mas todos os demais informadores, ali em Carreiros, insistem unanimemente na «volta muito longa» que o enterro deve dar. «indo a toda a parte». Não conseguimos, porém, apurar se existe qualquer ideia ligada a esse «dever».
Noutros tempos, cada localidade fazia a sua festa, e. de uma vez. só em Triana, saíram três cortejos. Mas no ano de 1954, naquelas redondezas, houve apenas o enterro a que assistimos; um outro, que se preparava em Carreiros, não foi por diante, porque o peditório para as velas do acompanhamento degenerou em bebedeira, e não foi mais possível organizar-se a cerimónia.
10 Informam-nos de que. à passagem do «João», se chega por vezes a verificar a aposição das mãos, por parte da assistência, e. em especial, da «viúva», no seu veretrum. sob a forma de gracejo, sem contudo nos terem sabido esclarecer se isso é feito com qualquer intenção, se se liga ao acto um significado simbólico ou ideia de poderes mágicos ou apotropaicos, ou se existem crenças ou superstições relacionadas com o costume, supondo-se. pelo contrário, que se trata apenas de uma brincadeira carnavalesca.
11 Um ou outro ano, em Carreiros, o «João» foi representado por um homem verdadeiro, chamado João, que passearam deitado numa padiola, e se apresentou e foi tratado como o próprio manequim.
12 Em Carreiros, esse local costumava ser um pequeno largo, no cruzamento de ruas, a meio da localidade; e, em Forno, uma ampla encruzilhada, onde o ajuntamento é possível.
13 Em Carreiros, o manequim, no local da queima, era previamente enforcado, e só depois, pendurado da trave, é que o queimavam. É este, de resto, o processo usado no Hérault. na França. Cf. Arnold van Gennep, Manuel de Folklore Français Contemporain. Tome Premier, III, Paris. 1947, pág. 988.
14 Em Triana e Carreiros, disseram-nos que, anos atrás, costumavam rechear o «João» com stercum; e quando, no fim da festa, explodiam os morteiros que levava na cabeça, os espectadores ficavam todos esparrinhados. Este costume foi suprimido, em ambas as localidades, em vista dos protestos violentos que suscitava, muitas vezes precursores de sérias rixas.
15 Falaram-nos em Triana de um enterro das cinzas do boneco, que se seguia à cremação, e que constituiria o final da cerimónia. A informação, contudo, não nos parece segura, e não consideramos o pormenor averiguado enquanto novas investigações o não confirmarem. Em Carreiros ignoram tal enterramento: depois da queima, mais nenhuma cerimónia havia, e não se fazia mais caso dos restos, que ficavam abandonados no local onde ela se realizara.
16 O falecido barbeiro de Carreiros. Sr. Domingos Francisco Correia.
17 Estes « testamentos » não estão datados, à excepção do que figura em quarto lugar, que fecha com a indicação de 25 de Fevereiro de 1941. O segundo tem as páginas esborratadas, devido certamente à chuva que caía quando se procedia à sua leitura, no próprio local da queima.
18 «E de ocas e de moças salamaca e salamocas », ou « maçanetas e maçarocas », etc.
19 «Eu, que me considero como tabelião, declaro que foi feito na minha presença um testamento onde assinei e vou ler em voz alta, para que toda a gente ouça e fique a saber o que lhe toca por parte da família.»
20 Um dos colaboradores na redacção destes « Testamentos » diz-nos que as mulheres casadas lhe pediam muitas vezes para as incluir no rol das legatárias do «João»; mas isso nunca se fazia, para evitar melindres. Veja-se a este respeito nota 56, acerca das prerrogativas gerais da juventude nestas celebrações.
21 Raras vezes, em lugar do nome, figura uma indicação identificadora indirecta: «À criada do B ...», ou «A dois serradores que se encontram aqui, de fora...», etc.
22 Por vezes, repete-se a frase: « Deixo à menina... », e « Deixo ao menino...», antes do nome de cada legatário; outras vezes, estas frases encabeçam apenas a relação dos nomes de todas as raparigas e de todos os rapazes, respectivamente.
23 Vide nota 1. Existe um tipo diverso de personificação de elementos carnavalescos, que. isolada ou a par com outras, tais como a que aqui analisámos, se encontra em zonas difusas por todo o país; referimo-nos à área em que tal personificação se desdobra nos «Compadres» e nas «Comadres». aos quais, nos exemplos mais perfeitos, são consagrados dias diversos, geralmente as duas quintas-feiras que precedem o Domingo Gordo, que levam por essa razão os nomes de «Quinta-Feira de Compadres» e «Quinta-Feira de Comadres », respectivamente. Este costume pode ser comparado com aquele que se verifica no Bourbonnais, na França, onde se celebrava a quinta-feira anterior ao Carnaval, como sendo o dia de festa dos rapazes, o domingo de Carnaval como o das raparigas, a quinta-feira seguinte como o das mulheres, e o primeiro domingo da Quaresma como o dos homens; em Mónetier-les-Bains celebram-se as quatro quintas-feiras anteriores ao Carnaval, como sendo as dos rapazes, raparigas, pais e mães, respectivamente. Na Alsácia, além da festa dos amos, em Domingo Gordo, celebram-se os dois primeiros domingos da Quaresma como sendo o dos rapazes e das raparigas. (Cfr. Ernesto de Oliveira, O.r « Compadres » e as -Comadres- do Carnaval-II, « Cultura e Arte», página cultural de «O Comércio do Porto». 13, XII, 1960. P. Francisco Manuel Alves (Abade de Baçal). Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança. Tomo IX. 1934. pág. 300; e A. van Gennep. op. cit., pág. 870).
24 É assim que ele aparece entre nós em várias localidades, e igualmente em inúmeras cerimónias francesas, em várias aldeias dos Abruzzos, na Itália, na Baviera, na Transilvânia. na Suábia. na Grécia, na Estónia, na Rússia, etc. Na ilha de Malta, o boneco carnavalesco, também de palha e roupas velhas, era além disso ornamentado com folhagens de laranjeira – Cfr. James George Frazer. Le Cycle du Rameau d’Or. Vol. IV, Le Dieu qui meurt. Paris. 1931 (trad. francesa de The Golden Bough). págs. 191-199, e A. van Gennep, op. cit., pág. 962-969 e 975.
25 Vide nota 11. Na França são bastante frequentes os casos em que as personalizações do Carnaval se fazem com pessoas vivas, geralmente embrulhadas em palha, que substituem o manequim até ao final da paródia; no Hérault, por exemplo, o indivíduo era mesmo atirado à água, simulando o afogamento do Entrudo. O mesmo se observa em certas aldeias dos Abruzzos. e em outras da Suábia. onde o enterro do Carnaval se fazia com um homem vivo deitado num caixão. Cfr. van Gennep, op. cit., págs. 935-939, e J. G. Frazer. op. cit., págs. 191. 196 e 198. Veja-se também o caso referente às Ardenes, e relatado pelos mesmos autores a págs. 936 e 193-194 das duas op. cits., respectivamente.
26 Cfr. A. van Gennep, op. cit., pág. 975, nota 2; de facto, lutou-se durante tantos séculos, e com tanta obstinação, contra todas as formas, aspectos, e imagens destas manifestações, « que os símbolos e gestos eróticos se tomaram raros no nosso Carnaval». (A. van Gennep, op. cit.. pág. 882).
27 Cfr. Ernesto de Oliveira, O Entrudo, 1, A «Queima do Galheiro- no concelho de Vila do Conde, loc. cit. São de resto abundantes por toda a Europa os casos de o «Entrudo» ser acompanhado pela sua contrapartida feminina, que é ora outro boneco, destruído com ele. ora uma pessoa, geralmente um homem disfarçado de mulher, que acompanha o cortejo, com grandes manifestações de burlescos iutos. Cfr. A. van Gennep. op. cit., págs. 939-941 e 976-977; e J. G. Frazer, op. cit., pág. 195. referente a Saint-Lo. E vimos que é este o caso do «João», cuja «viúva» é representada por um rapaz que figura no seu «enterro».
28 Este figurante era muitas vezes tomado pelo Judas Iscariote. Cfr. J. G. Frazer, op. cit., pág. 196. Veja-se também A. van Gennep, op. cit., pág. 970, e nota 8, e 971. No caso do «João», aquele facto explicativo, a ter existido, perdeu-se totalmente da memória.
29 Vide especialmente notas 6, 10, 14, e também 11.
30 Pode-se afirmar que a came de porco – e em certas zonas mais limitadas, a orelheira – na refeição de terça-feira de Entrudo, tem, na verdade, o carácter de prato cerimonial carnavalesco. A este respeito, veja-se Ernesto Veiga de Oliveira. Manjares Cerimoniais do Entrudo em Portugal «Actas do XXIII Congresso Luso-Espanhol para o Progresso das Ciências, Coimbra. 1956», Coimbra, 1957.
31 De facto, a verdadeira expressão do « João » não é fácil definir-se; a impressão geral que causa – de resto pouco relevante, porque visivelmente condicionada por reduzidas capacidades de realização – não é de modo nenhum a de um autêntico Pansard, pletórico e pujante como Pantagruel, sibarita e obeso como Falstaff, ou sarcástico e mordaz como um polichinelo corcunda, que nos parecem tipos e conceitos fundamentalmente estranhos à experiência real ou imagética do nosso povo. O «João» de Triana, grosseiro e repulsivo, com o seu cortejo miserável, representa um Entrudo suburbano, de gente pobre económica e imaginativamente, cuja magreza reflecte carência, e cujos apetites e aspirações encontram a sua fórmula e limite numa pratada, por uma vez farta, da « célebre orelheira ».
32 São sobejamente conhecidos os grandes desfiles carnavalescos citadinos europeus, que se celebrizaram pelo seu luxo, e em que figura de forma proeminente o Rei do Camaval. Aos mais afamados podemos acrescentar o das festas da Radica, de Frosinone. na Itália, que incorporava as próprias autoridades, em homenagem ao Camaval, e o de Lérida, na Espanha, que num certo ano se iniciou com a luzida parada de Domingo Gordo, e terminou à meia-noite de terça-feira, com um solene enterro, de feição dramática, e de que J. G. Frazer nos dá a curiosa descrição (Le Dieu qui meurt, págs. 189-191 e 192). De resto, o «Carnaval» só excepcionalmente se apresenta com o aspecto que acima sugerimos; as mais das vezes, ele é apenas um modesto «palhaço», e com frequência é mesmo representado propositadamente por um manequim esfarrapado, imundo e horrendo, ou por um velho decrépito. Cfr., a este respeito. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, pág. 194, por exemplo, e a pág. 193, o «Carnaval» que figura o marido infiel. Pelo seu lado, A. van Gennep, op. cit., pág. 977, fala nas figurações de casais estéreis ou adúlteros, maridos cucos ou em quem as mulheres batem, ou ainda em velhos recém-casados, que embora não representem o Carnaval, se exibem nessa ocasião, aproveitando-se das liberdades que então são permitidas, como manifestações da vindicta pública local, sob a forma dos «charivaris» ou «assouades», que correspondem às nossas « assuadas » minhotas, às « cortiçadas » de Vila do Conde, às « Novenas de viúvos» de Celorico de Basto, etc.
33 Cfr. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, pág. 191.
34 Ibid., págs. 197 e 198, relativamente a Lechrain e Schõmzinger
35 Ibid,. pág. 199.
36 Cfr. A. van Gennep, op. cit., pág. 937, acerca do transporte em padiola do rapaz vestido de palha que figura o Carnaval. no Yonne, e págs. 939, acerca do mesmo costume nas Cótes-du-Nord; veja-se também pág. 974, nota 4, referente à região de Boulay e no Ardèche.
37 Cfr. A. van Gennep, op. cit., pág. 975, nota 2, acerca do emprego do balde e da vassoura, e também J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt. pág. 191, sobre um caso semelhante, nos Abruzzos. Esta aparente irreverência das minúcias do « Enterro » não reflecte, contudo, a nosso ver e a despeito da opinião de A van Gennep, op. cit., págs. 981-982, qualquer propósito ou intenção consciente de desrespeito, e eles são apenas uma manifestação do humor satírico, caricatural e parodial do povo. Vide nota 48
É interessante notar que da raridade das representações de cortejos fúnebres ou procissões religiosas com transporte de um boneco, este último autor, op. cit., pág. 974, nota 4. extrai um argumento contra a hipótese do carácter sagrado essencial do manequim carnavalesco; a contrario sensu, o «Enterro do João», nitidamente qualificado como cortejo fúnebre, com a presença de elementos que figuram parodialmente a própria participação sacerdotal na cerimónia, acentuaria aqui tal carácter, destruindo um argumento aduzido contra a sua interpretação como sobrevivência de outra cerimónia pagã também religiosa
38 Vide nota 7. Note-se ainda que o «enterro» do «João» tem a característica tradicional de ser realizado à noite, tal como era costume nos enterros de outros tempos.
39 Assim, por exemplo, a mulher ou viúva do Carnaval. vestida de negro – geralmente um homem disfarçado – que se lamentava e implorava grotescamente a piedade da assistência, que se via em muitas celebrações francesas e dos Abruzzos. ou os dois «Velhos» da Transilvânia. que pretendiam todo o tempo apoderar-se do boneco e salvá-lo da «morte», ou ainda o «Anjo» e o «Diabo» do Camaval de Schömzingen, na Alemanha. Cfr. J G. Frazer, Le Dieu qui meurt, págs. 197, 198, etc.
40 Assim, em S. Pedro do Sul, não há ainda cinquenta anos, segundo nos informam, as celebrações do Carnaval iniciavam-se no Domingo Magro, com uma mascarada que desfdava no largo da vila, onde havia festa e música, e em que intervinham a «Mãe» do Entrudo, a «Parteira», o «Médico», as « Ajudantas », etc. ; os figurantes eram, como sucede geralmente nestas cerimónias, todos homens, envergando trajos femininos, e a «Mãe», parodiando a gravidez, trazia sobre a barriga um grande panelo de barro. No Domingo Gordo, a mascarada repetia-se. mas dentro do panelo vinha um boneco, um cachorro, ou, mais frequentemente, um gato que miava e bufava, sempre que a «Mãe» lhe puxava pelo rabo. No momento oportuno, a «Mãe» começava a berrar, a «Parteira» acorria e metia as mãos, como que a assistir uma parturiente; a «Mãe», que fora escolhida por essa especialidade, emitia um peditum sonoro; a «Parteira» fugia, gritando que se tinha «escaldado»; acorria o «Médico», as «Ajudantas», acorria toda a gente, para ver se conseguia meter as mãos sem se «escaldar» do mesmo modo que a «Parteira»; mas, à intervenção de cada um. a «Mãe» respondia com nova descarga; até que, entre gracejos e chufas, que dependiam do espírito com que se respondia às situações que iam surgindo – e esgotadas as capacidades da «Mãe» –, o panelo era finalmente escacado, e saltava para fora o boneco ou o bicho, que se esgueirava: era o Entrudo que nascia. Na Terça-Feira Gorda saía pela terceira vez a mascarada; agarrava-se novamente o mesmo ou outro gato, e levava-se também um boneco de palha, cabeçudo, que se exibia no meio da hilaridade geral, provocada pelo aspecto desconforme daquele neófito de três dias; e. depois de uma deambulação por toda a vila, queimavam-no.
Pelo seu lado, na área dos «Compadres» e das «Comadres», o Carnaval começa em dias diversos – geralmente na segunda quinta-feira antes do Domingo Gordo, que é a «Quinta-Feira de Compadres». E em Cinfães, os folguedos carnavalescos começam no dia 20 de Janeiro (S. Sebastião), e duram até terça-feira de Entrudo (Bertino Daciano, op. loc. cit., pág. 132).
41 Cfr. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, pág 199.
42 Os problemas relacionados com a origem, significado e mecanismo psicológico da máscara e do disfarce são extremamente complexos e transcendem o objecto deste estudo. Basta-nos aqui referir o sentido ritual, não só mágico como também mítico, desses elementos, que mergulham as suas raízes em práticas remotíssimas e em tendências obscuras e profundas do homem, e os poderes sobrenaturais de que, nas concepções instintivas, elas revestem o seu portador. Entre nós, em muitas localidades – v. g. no lugar de Gemeses, do concelho de Esposende. na Branca, no de Albergaria-a-Velha, etc. –, qualquer tentativa que alguém faça no sentido de desvendar pela força das mãos o incógnito de um mascarado, provoca por parte deste último uma reacção violentíssima, que não nos parece explicável apenas pela simples mutação brusca dos planos lúdicos em jogo.
A acção niveladora dos conceitos modernos do racionalismo ocidental vai, por toda a parte, atenuando, diluindo e confundindo os exactos significados originários das velhas costumeiras, transformando-as em meras formas superficiais, por vezes incompreensíveis e absurdas, que respondem apenas a esse sentido lúdico geral do homem; nas aldeias, porém, as forças arcaizantes são mais vivas, e, na verdade, acerca deste caso, A. van Gennep, op. cit., pág. 884, fala do mutismo e da inviolabilidade características das máscaras carnavalescas, que concorda com os motivos obscuros dos factos que apontámos.
43 No Carnaval dos Abruzzos, por exemplo, as «choradeiras» da «viúva» são pretexto para os gatos-pingados irem esvaziando as garrafas que levam, à guisa de aljavas, e, na Normandia, era nas paragens que o cortejo fazia que se ia desfiando a acusação dos crimes do manequim. No «João», como dissemos, a «viúva» utiliza as «choradeiras» para se despedir grotescamente do «marido», evocando em especial o veretrum do boneco, que empunha para dar maior ênfase.
44 Cfr. Ernesto de Oliveira, O Entrudo, II, Os « Compadres » e as « Comadres » em Cinfães, loc. cit.
45 Cfr. Ernesto de Oliveira, A Queima do Judas, «Terra Lusa». n.° 3, págs. 83-88.
46 Assim, por exemplo, o Novo Testamento de Hum Casquilho Afrancezado, o Testamento e ultima disposiçam, que de seus ornatos, enfeites e adornos fez uma França por causa da nova pragmática (1751), o «testamento» de Manuel de Paços, nas suas Cantigas da Fôfa, etc.
Veja-se também a pequena nota de Luís Chaves – Os Testamentos na Tradição popular, «O Ocidente », Vol. XVIII, 1946, págs. 268-269, com a menção de vários casos de « testamentos » populares, típicos e avulsos, em qùe o autor diz que «houve testamentos de todos e de tudo», a partir de Gil Vicente, tudo levando a crer que este mesmo «já... se inspirara em corrente folclórica do seu tempo». Por outro lado, o Abade de Baçal, op. cit., pág. 291, fala nas Loas, Comédias ou Colóquios das «Festas dos Rapazes» de terras bragançanas, que são feitas dentro do mesmo espírito dos « testamentos » : « apreciação irónica, sarcástica e mordente muitas vezes, dos acontecimentos apreciados, feita em verso por um bardo local...».
47 Cfr. A. van Gennep, op. cit., pág. 994.
48 Encontramos «julgamentos» deste tipo na Provença (França), onde figuram juízes, advogados, etc., nas Ardenas; no Franco-Condado; na Normandia, onde o manequim é acusado de todos os excessos; no Yonne; no Quercy; etc.; e também na Suábia; na Transilvânia, onde se realiza sob uma árvore; na Baviera, onde a acusação menciona todos os pecados do ano, e onde figuram doze juízes, que são doze raparigas, um advogado de defesa, etc. Por vezes, os «pecados do ano» são apenas os pecados da época carnavalesca. Cf. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, págs. 193-195, e A. van Gennep, op. cit., pág. 978-983. Este último autor considera tais julgamentos como um exemplo das paródias caractersíticas das épocas de liberdade licenciosa, isto é, de suspensão temporária das regras da vida colectiva normal, que autoriza a troça às entidades que em tempo normal exercem sobre o povo a sua autoridade repressiva, e cuja origem deve remontar ao período de libertação progressiva das comunas burguesas, em meados da Idade Média (págs. 981-982); veja-se também a pág. 38 deste trabalho, a nota 73, e uma pequena nota de Luís Chaves, intitulada – «O Judas condenado e executado em sábado de Aleluia », « O Ocidente », Vol. xvm, 1946, pág. 267, onde o autor descreve uma «Queima do Judas», sem indicação de localização, que incluía no seu cenário o transporte do manequim em charola, a paródia completa do julgamento, com magistrados, oficiais de justiça, juiz, e as carpideiras, bradando as suas cómicas choradeiras, e o coro lamentoso dos «legatários», contemplados com as «deixas» do «testamento»; e também os diversos exemplos de «julgamentos do Bacalhau», que indicámos na nota 73.
49 Cfr. A. van Gennep, op. cit., págs. 993 e 995.
50 Cfr. James George Frazer. Le Cycle du Rameau d’Or. Vol. X. Balder le Magnifique, Paris. 1931 (trad. francesa de The Golden Bough, pág. 96 e seg ).
51 Cfr. Ernesto de Oliveira. A Queima do «Galheiro» no concelho de Vila do Conde, loc. cit. Em todo o caso, a destruição pelo fogo dos manequins representativos do Entrudo, em fogueiras autónomas, põe tais manequins em relação de facto com essas fogueiras: e tal relação, se por um lado contribui para que se realize a fusão de elementos de origens e significados que podem ser diversos, pelo menos em certos casos, por outro exprime talvez qualquer possível identidade de natureza entre eles, que permitiu e justifica a sua assimilação.
52 Cfr. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, págs. 195-196, e 194, 197 e 198, e também A. van Gennep, op. cit., págs. 984-988.
53 Vid. nota 13.
54 Merecem especial menção as numerosas canções próprias do Carnaval que existem em muitos países, e que nesse dia – e especialmente nesse momento – se fazem ouvir. Em certos casos, porém, no momento da queima realizam-se cerimónias especiais, de carácter tradicional muito acentuado, tais como os bombardeamentos com castanhas, entre a assistência, nos Abruzzos, e o lançamento ao fogo das «radica» que todos os assistentes devem levar na mão, na célebre e já mencionada festa de Frosinone. Cfr. J. G. Frazer, op. cit., pág. 191.
55 Cfr. Ernesto de Oliveira, A Queima do Judas, loc. cit., por exemplo, e A. van Gennep. op. cit., pág. 974. nota 5. citando Desforges, acerca do cantão de Luzy, no Nièvre. e também pág. 975.
56 Sobre a actuação da juventude, veja-se a nota 20 e págs. 25-27 deste trabalho. Acerca das prerrogativas e da intervenção da juventude local nas diferentes celebrações carnavalescas e outras, na França – peditórios, cortejos, mascaradas, condução de manequins, arranjo cénico do seu julgamento e execução, e mais liberdades e brincadeiras – cfr. A. van Gennep, op. cit., págs. 884 e 973-974, com numerosos exemplos em págs. 884-899, 935-938, e também 901. 915, etc.; este Autor, verificando que muitas localidades onde a juventude, em várias ocorrências, é muito activa. não tem, apesar disso, cortejos carnavalescos, é de opinião que ela não desempenhou a seu respeito um papel criador, tendo-se pelo contrário submetido a limitações tradicionais que existiam antes da sua organização em grupos coerentes; e conclui que, portanto, a diferenciação cerimonial, sob o ponto de vista geográfico, é anterior ao momento de formação das Bazoches e outras confrarias de gente nova, que se situa em meados da Idade Média (e que não se devem ligar a quaisquer Príncipes Juventutis galo-romano, de duvidosa existência).
Note-se, porém, que o mesmo autor, op. cit., pág. 882, referindo-se ao declínio das expansões e manifestações eróticas no nosso actual Carnaval, considera que as liberdades licenciosas que. em sua substituição, o caracterizam hoje, assumem «o aspecto jurídico popular » do «direito da juventude se erigir em justiceira», e diz preferentemente respeito a «vinganças pessoais ou colectivas. castigos, troças, farsas mais ou menos cruéis», «por parte do povo ou dos seus jovens representantes», só se encontrando esporádica e raramente em outros ciclos, «como elemento regular do seu cenário cerimonial».
Entre as prerrogativas atrás enumeradas, contam-se os peditórios, que. segundo sempre o mesmo autor, podem ser de duas espécies: uns, para pagamento das despesas da festa, que se fazem geralmente na rua, e que no caso do «João» se verificou relativamente às velas para a iluminação do cortejo, conforme atrás indicámos; outros, mascarados, em que os seus componentes entram nas casas dos parentes e amigos, com brincadeiras e farsas, e que têm por fim obterem-se vitualhas diversas – manjares ou doces próprios da época, variáveis de região para região, ou então géneros correntes, especialmente ovos, toucinho ou chouriços, e vinho – com os quais o grupo, no final, faz um festim. Nestes peditórios mascarados intervém muitas vezes um rapaz vestido de palha, que é a figuração viva do Carnaval; e é frequente os acompanhantes «pescarem», com um pau munido de um gancho, os salpicões que estão pendurados (op. cit., pág. 884, com vários exemplos em págs. 884- 889, e também 935-938, com o caso da Lorena em pág. 937).
Entre nós, em Couto de Esteves (Sever do Vouga), por exemplo, os rapazes que na véspera do Domingo de Páscoa andaram à noite a « gritar à raposa » à volta da povoação, efectuam ho dia seguinte, antes da visita pascal, um peditório para, com os ovos que recebem, fazerem no fim uma fritada, que comem em conjunto. E o Abade de Baçal, op. cit., pág. 290, relata que, nas «Festas dos Rapazes» da região de Bragança, estes mascarados e disfarçados entram nas casas fazendo mil diabruras, e «pedem mui teimosamente chouriços às mulheres, que muitas vezes lhos dão», e vinho aos homens; e depois fogem, de brincadeira, com móveis, que depois restituem; o juiz da festa, pelo seu lado, nas marchas através das ruas da aldeia, vai estendendo a cana, que faz parte da sua indumentária, às janelas, pedindo maçãs às raparigas, que lhas espetam no topo da mesma cana.
Estas «Festas de Rapazes» das regiões bragançana e rionoresa de que o citado Abade de Baçal, em págs. 289-296 da sua mencionada obra, e Jorge Dias. Rio de Onor. Comunitarismo Agro-Pastoril. págs. 317-320. dão minuciosas descrições e interpretação, parecem ser sobrevivências de antigos ritos de iniciação, para ingresso em associações secretas masculinas; contudo, os gritos característicos que os rapazes soltam na sua «Festa», e que D. Raimundo Rodriguez, no seu Guia Artístico de Leon, citado pelo Abade de Baçal. considera de origem céltica e comuns a todo o Norte da Espanha, repetem-se por parte dos mesmos rapazes, nas mascaradas carnavalescas que correm as ruas da aldeia, o que parece acusar uma sobreposição de elementos afins.
Poderão os factos franceses, que parecem acusar, de modo semelhante, sobreposições de práticas de natureza e origem diversas, interpretar-se à luz e em confronto com o nosso exemple de Bragança?
57 Cfr. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, págs. 199 e 217.
58 Por vezes, o manequim que representava a «Morte» era fabricado na casa onde em data mais recente falecera alguém; outras, era vestido com uma camisa da pessoa falecida também em data mais recente. Cfr. J. G. Frazer, op. cit., págs. 203 e 212.
59 Cfr. J. G. Frazer, op. cit., pág. 218.
60 De facto, a influência vivificante e fertilizante dos bocados do manequim que. para se enterrarem nos campos ou colocarem nas manjedouras, com o fim de fazer crescer as sementeiras ou prosperar o gado, eram disputados enquanto ele ardia ou era despedaçado, parece só se poder explicar pelo facto de a «Morte» ser uma incarnação do «espírito da árvore» ou da «vegetação». É de resto a mesma ideia que está na base do costume de se mostrar o manequim às mulheres, ou bater com ele nos animais, com o fim de tomar umas e os outros fecundos. Cfr. J. G. Frazer, op. cit., págs. 215-216. De resto, a par com a camisa da pessoa falecida, que mencionámos na nota 58. revestiam o manequim com o véu da mulher casada também em data mais recente (op. cit., pág. 212).
61 Cfr. J. G. Frazer, op. cit., pág. 212.
62 Cfr. J. G. Frazer, Le Bouc Émissaire, págs. 201-205.
63 Cfr. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, pág. 225.
64 Tal é a opiniào de Grimm, que entende que a «Serração da Velha» é apenas uma forma de expulsão da «Morte»; e, segundo Mannhardt. o espírito do trigo maduro é o «Velho» ou a «Velha», e leva também o nome de «Morte». Dentro da mesma concepção, Saintyves vê nela a personificação do « Ano Velho », e Rodney Gallop uma combinação dos caracteres do «Ano Velho», do «Inverno», e do «Espírito da Vegetação», entendendo que a perseguição e assuada às mulheres idosas é a forma de exprimir o castigo que os velhos merecem pela esterilidade que os afecta.
Para A. van Gennep, porém, a «Serração da Velha» não encerra qualquer problema de origem: ela é apenas a corporização dramática de uma expressão popular que designa uma concepção calendária – o Caramantran Velho –. fundada na mudança das datas oficiais das celebrações em causa. A reforma calendária, com efeito, deslocando as datas oficiais, originou os conceitos de Caramantran Velho e Caramantran Novo ; e o povo, durante algum tempo, continuou a realizar a sua festa na data tradicional. A «Serração da Velha», como o «Enterro do Carnaval», são, para este autor, acima de tudo, cerimónias de terminação dramatizadas. Ritos de Passagem, ao serviço do sentido parodial do povo: «O período de jejum da Quaresma é cortado a meio por um dia gordo: inventou-se uma-personagem que se cortará ao meio ... » (op. cit., pág. 994). Este autor, contudo, não recusa a hipótese explicativa de «OBode Expiatório», de Frazer, em relação a este caso, embora num sentido diferente. Veja-se a este respeito a pág. 40 deste trabalho, acerca dos manequins do Carnaval.
Em relação com esta e aquelas opiniões, lembramos que. na Branca, o costume de. na noite de 31 de Dezembro para 1 de Janeiro, os rapazes correrem as ruas, fazendo grande barulho com latas, chocalhos, etc., leva o nome de «enxotar o Velho»; e isto encontra o seu paralelo no costume inglês de Biggar, no Lanarckshire, de «Queimar o Ano Velho» na grande fogueira de 31 de Dezembro, e nas várias práticas de expulsão de bruxas e maus espíritos, que Frazer descreve em Le Bouc Émissaire, pág. 147.
65 É esta dupla natureza dos primitivos figurantes, unificada em virtude de essa lei de economia ritual acima enunciada, que, segundo Frazer, explica, pelo mecanismo das sobrevivências, no caso, por exemplo, das celebrações da Europa Central, a dualidade e assimilação de sentimentos opostos que o povo manifesta para com a «Morte», que por um lado é considerada benéfica e por outro temida, como Espírito da Fertilidade e como veículo infectado por todos os males que condensa e transporta, respectivamente ; e o mesmo sucede, presumivelmente por idênticas razões, no caso do «João».
66 Cfr. J. G. Frazer, Le Bouc Émissaire, pág. 275.
67 Ibid., pág. 277.
68 Ibid., pág. 308.
69 Ibid., pág. 310.
70 Cfr. J. G. Frazer, Le Dieu qui meurt, págs. 217-218, e A. van Gennep, págs. 992-993.
71 Cfr. A. van Gennep, op. cit., pág. 993.
72 Cfr. A van Gennep, op. cit., págs. 994-995. A este respeito são particularmente significativos os « julgamentos do Bacalhau » que em certas regiões do País se fazem no fim da Quaresma, em sábado de Aleluia ou domingo de Páscoa, descritos por Cláudio Basto. Arquivo Etnográfico, in « Portucale », Vol. VII, N.° 37-38, pág. 66. Porto. Janeiro-Abril. 1934, e também Cachulo da Trindade. O Enterro do Bacalhau, in «Mensário das Casas do Povo», Ano vii, N.° 82, Lisboa. Abril. 1953, págs. 14-16, e Luís Chaves, Páginas Folclóricas, in «Revista Lusitana», Vol. 36, pág. 231, Lisboa, 1938. Veja-se ainda nota 64. a propósito da «Serração da Velha». Aqui, do mesmo modo, o autor não recusa completamente a hipótese explicativa de Q Bode Expiatório, de Frazer, na interpretação dos manequins do Carnaval, mas. como vimos, dá-lhes um sentido diferente, de acordo com a concepção medieval.
73 Ihid., págs. 981-982.
74 Cfr. C. W. v. Sidow. The Mannhardtian theories about the last sheaf and the Fertility Demons from a modern critical point of view. in «Selected papers on Folcklore». Copenhague. 1948, pág. 95.
75 Ibid., pág. 96.
76 Ibid., pág. 98
77 Ibid., pág. 99.
78 Ibid., pág. 105.
79 Ibid., págs. 97-98. A crítica geral de v. Sidow. que se impunha como disciplina metódica contra a profusão arbitrária e a floração exagerada das construções especulativas e das concepções animísticas das teorias mágico-religiosas, leva, a nosso entender, longe de mais as suas conclusões. A ideia de sobrevivência de práticas que pertenceram a complexos rituais remotíssimos, pré ou proto-históricos, não nos deve surpreender nem parecer demasiado arriscada: não existem vestígios dessas mesmas eras, profusa e palpavelmente, nas inúmeras formas da cultura material – arados, barcos, construções, etc. –. que ainda hoje se repetem, imutáveis, apesar de, noutros sítios, já terem sido superadas por produtos de uma técnica muito evoluída e actualizada – para não falar dos próprios vestígios evidentes de factos da cultura espiritual dos nossos remotos avoengos –? Recusando sistematicamente tais hipóteses, esta teoria nada nos diz do fabuloso e inegável património mítico e ritual do passado, com o seu conjunto de crenças, práticas e sacrifícios, que suprime sem admitir reminiscências. De resto, a observação desprevenida de um povo como o nosso revela a sua profunda crença nos elementos animísticos, nos poderes sobrenaturais, na plena eficiência da actuação mágica, e o seu cepticismo perante inúmeras noções e produtos do racionalismo científico, que se manifesta em todos os sectores da sua vida moral.
Por outro lado, a explicação lúdica é demasiado genérica, porque o ludismo pode considerar-se um factor primitivo e uma constante do espírito humano – diremos quase biológica –, que está na base e se pode extrair de todas as suas manifestações. «A cultura nasce em forma lúdica »,... e « tem nas suas fases originárias o carácter de um jogo»; por isso, não só mesmo nas costumeiras populares, mas em todas as demais formas de comportamento e cultura humanas, « o impulso lúdico, mesmo que tenha tomado formas de uma cultura muito desenvolvida, pode fazer-se valer em qualquer momento», e isso quer dizer que o seu significado não se esgota na definição lúdica (Cfr. J. Huizinga, Homo Ludens, Lisboa, 1943, págs. 67-68).
Na verdade, a especulação teórica das diferentes hipóteses apoia-se sempre nos mesmos factos, e por isso será também sempre conjectural.
Notes de fin
1 «Douro Litoral». Sétima Série, vii-viii, Porto. 1956, págs. 601-700.
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