Capítulo 12. Usos e abusos do folclore musical pela Mocidade Portuguesa
p. 254-263
Texte intégral
1Apreciar a importância da prática da música folclórica numa organização como a Mocidade Portuguesa (MP), pode apresentar um interesse particular para a compreensão dos mecanismos de interacção entre as orientações ideológicas de um regime e as práticas e intenções estéticas por ele promovidas. De facto, na orgânica do Estado Novo, as políticas para a juventude assumem centralidade evidente como reprodutoras da ideologia dominante e não é de admirar que a música e, particularmente, o canto colectivo, desempenhem nelas um papel decisivo. Mas qual a finalidade da sua utilização numa organização juvenil de massas? Com que objectivos e, sobretudo, com que repertório foi ela dinamizada?
2Afunção da música na MP foi antes de mais, como já tivemos ocasião de desenvolver noutro lugar (Silva 1999), a de contribuir para a estetização das manifestações políticas do Estado Novo, constituindo um poderoso meio de mobilização para as exaltadas coreografias nacionalistas, de cunho marcadamente fascista, que o regime desenvolveu no final dos anos 30. Uma análise mais cuidada revelou-nos, no entanto, que a variedade de actividades musicais praticadas aponta para uma mais complexa funcionalidade, nomeadamente no que diz respeito ao estabelecimento de modelos de sociabilidade e de inculcação de valores. Paralelamente às marchas e hinos nacionalistas, o folclore, considerado como elemento de cultura popular decisivo para a constituição do ideário salazarista e dos seus propósitos de Revolução Nacional, foi particularmente acarinhado pelos dirigentes da MP.
3Podemos afirmar, portanto, que duas estratégias coexistiram no seio da dinamização musical da MP, ambas procurando apresentar uma feição estruturalmente nacional. Uma resolutamente mobilizadora e militarista, baseada nas canções de exaltação patriótica, e outra procurando as suas raízes no património musical tradicional. Procuraremos, neste artigo, compreender as razões que levaram os dirigentes da MP a privilegiar progressivamente este segundo repertório e, por outro lado, averiguar a funcionalidade da música coral de inspiração folclórica na definição dos conteúdos ideológicos e nos quadros de socialização implementados nos primeiros anos de vida da organização.
4A Organização Nacional Mocidade Portuguesa foi o instrumento escolhido pelo Estado Novo — depois das tentativas preliminares da Acção Escolar Vanguarda, da responsabilidade do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, e da Liga Mocidade Portuguesa, esta já no âmbito do ministério da Instrução — para o enquadramento político da juventude. Criada no âmbito da reforma educativa operada por Carneiro Pacheco, e que se traduziu, aliás, na alteração do nome de ministério da Instrução para o mais salazarista de Educação Nacional, a MP não disfarçou a sua inspiração. As organizações de juventude do fascismo italiano e do nacional-socialismo alemão foram evocadas pelos organizadores da MP como os modelos seguidos nesse momento de radicalização do regime, justificado pela pretensa “ameaça bolchevique” da República Espanhola, o que determinou, aliás, a criação no mesmo impulso da Legião Portuguesa.
5O primeiro comissário, Francisco J. Nobre Guedes, activista do nacional-sindicalismo de Rolão Preto e conhecido germanófilo, desenhou uma organização que se queria pré-militar, politicamente mobilizadora e totalitária. Não foi no entanto pacífica a inserção da MP na sociedade portuguesa, tendo surgido inúmeros diferendos e tensões com a igreja e o exército, que sentiam os seus campos de acção respectivos ameaçados pela nova instituição. O primeiro congresso da organização, realizado nos dias 21 a 28 de Maio de 1939, foi o momento decisivo deste debate, marcando o recuo das concepções mais totalitárias, reduzindo a milícia, terminando os contactos com a Juventude Hitleriana e as actividades ao domingo, e estabelecendo a obrigatoriedade da formação moral (Kuin 1993). O afastamento de Nobre Guedes em 1940 e a nomeação de Marcelo Caetano, nacionalista mais moderado e com experiência no escutismo católico, para comissário nacional, confirmaram essa orientação.
6Mas voltemos um pouco atrás, e tentemos acompanhar rapidamente a inserção das actividades musicais nos primórdios da organização. Carneiro Pacheco fez uma primeira apresentação da MP no Liceu Normal de Lisboa (Pedro Nunes) em 1936, na presença de uma delegação da Juventude Hitleriana. Curiosamente, na festa realizada nessa ocasião, aos cânticos nacionalistas da juventude alemã, os orfeões escolares portugueses responderam sobretudo com repertório de música tradicional.
7De facto, o repertório folclórico dominava por completo o panorama orfeónico português. Serão, pois, desenvolvidos esforços de criação de um repertório nacionalista, patriótico e mobilizador, para que a vocação inicial da MP de mobilização pré-militar se não resumisse aos tambores e clarins. Carneiro Pacheco afirmou nessa ocasião que urgia “orfeonizar a nação” e que com esse fim fora criada a Mocidade Portuguesa. A ideia não era nova. O maestro Hermínio do Nascimento, vice-director do Conservatório Nacional, apresentara comunicações nesse sentido ao 1.° Congresso Orfeónico Português em 1928 e ao Primeiro Congresso da União Nacional em 1934.
8Quando vice-reitor da Universidade de Lisboa, Carneiro Pacheco tomara conhecimento do trabalho deste maestro, então director do Orfeão Académico de Lisboa. Não será, portanto, de admirar que seja precisamente este músico o escolhido para organizar e orientar a Direcção dos Serviços de Música e Canto Coral da MP e o ensino dessa disciplina na Escola Central de Graduados. Acerca desses primeiros passos da organização, o maestro recorda:
Quando foi organizada a “Mocidade Portuguesa”, (…) coligimos dois pequenos cancioneiros de melodias populares que os rapazes cantavam e que rapidamente se esgotaram. Desses cancioneiros foram escolhidas umas oito ou dez canções, representativas das várias regiões do País, que numa visita de cumprimentos foram levadas à Alemanha por uns trinta dos nossos rapazes que tomaram parte de um acampamento onde confraternizaram com outros rapazes de organizações congéneres, de vários países. Pois, com grande satisfação e orgulho do nosso patriotismo, as canções portuguesas foram as mais apreciadas, especialmente o “Vira do Norte”, que era sempre delirantemente aplaudido, principalmente quando, além de cantado era também dançado (…) e em várias ocasiões era ouvida a apreciação espontânea: — Mas que lindas canções vocês têm! E elas por lá ficaram [gravadas em disco] a atestar a beleza e originalidade do nosso folclore (Nascimento 1957-59, II).
9O entusiasmo destas afirmações apresenta desde já o recorte das ideias defendidas por Hermínio do Nascimento para o canto coral. Em muitas das suas afirmações, não é difícil aperceber as tendências totalitárias do seu projecto:
Faltam-nos ainda os cânticos nacionais e que esses sejam entoados pelo povo. Igualmente as nossas tão belas e sugestivas canções populares, algumas acompanhadas por danças, devem ser cantadas por toda a gente portuguesa que não seja muda (Nascimento 1957-59, I).
10Nesse mesmo texto, acrescenta:
(…) quando cultivado pelas massas populares trabalhadoras das aldeias, os seus efeitos salutares manifestam-se bem cedo e rapidamente, sendo um dos principais o afrouxamento da frequência da taberna ou de tavolagens, chegando mesmo ao seu total abandono e esquecimento, com grandes proveitos moral e físico.
11Ao canto coral era atribuída uma função educativa no plano físico, estético, moral e cívico. Definia-se um conceito de prática musical saudável, que permitia estabelecer uma divisória qualitativa entre as diversas músicas à disposição da juventude. Dessa forma apontava-se que deveriam ser evitadas as músicas de origem duvidosa, em particular o fado, mas também a música ligeira anglo-saxónica e o jazz.1
12Numa homenagem às Forças Armadas na Sociedade de Geografia em 24 de Maio de 1936, Carneiro Pacheco pronunciou um discurso, que depois publicou com o título “A formação e a defesa da Pátria”, em que profetizava que “a mocidade portuguesa, liberta do morbidismo do fado, que talvez seja artístico, mas deprime, entoará de lés a lés, num coro viril de vozes puras, em que também entram a do Infante e a de Nun’Álvares, a fé imperecível nos destinos da Pátria” (Pacheco 1940: 223). Os responsáveis pelo canto coral na MP levaram muito a sério a prossecução dessa “libertação”. O padre José de Ávila, por exemplo, subdelegado em Angra do Heroísmo e regente do primeiro orfeão da MP, avisa num texto doutrinário que “o fado singular que é triste, gemido, trágico, não entusiasma, não exalta, não enobrece o espírito das multidões que aspiram a uma alegria risonha e sã”. Para o eclesiástico, esta canção é mesmo um perigo real que ameaça a acção formadora e educativa da organização:
É de todos notório que a Mocidade Portuguesa, nas suas excursões, marchas e passeios ao campo, num impulso natural e espontâneo, que ninguém pode reprimir, como tantas vezes tenho verificado, entoa hinos e canções, que por todas a parte lhe dão vida e graça saudável. Mas se algum deles tenta gemer um fadinho, logo os outros lhe imitam os trinados, exageram os gemidos e… a galhofa é certa… não serve. Aquele ambiente maravilhoso de união com as belezas e os encantos da natureza, aquela expansão comunicativa de corações felizes, não suportam os gemidos tristes e doentios dum canto, por uma única voz afectada e morna (Ávila 1942: 147-148).
13O II Cancioneiro da MP, organizado pelo professor Jaime Silva (Barcarena) e revisto por Hermínio do Nascimento, procura ir mais longe nesse combate. O seu prefácio anuncia claramente: “Acrescentaram-se algumas canções populares portuguesas, prosseguindo na orientação que a M. P. desde início marcou em defesa do que é nacional contra a invasão estrangeira e os horrores do ‘fado ‘”. E para que se compreenda que essa orientação não dispensava uma prevenção activa, prossegue: “Não será demais insistir que aos instrutores da MP é vedado ensinar ou consentir os fados com mais ou menos literatura, ou as cançonetas que a rádio e o cinema trazem dos piores meios e dos piores gostos da Europa, Ásia e América” (II Cancioneiro, prefácio) [sublinhado nosso].
14Arepressão das músicas que se não enquadravam no ideário preconizado nunca deixou de ser severa. Mesmo nos anos 1960, este fantasma continua presente, como se depreende do prefácio do Cancioneiro para a Mocidade organizado por Mário de Sampayo Ribeiro:
Pretende-se começar a contribuir de algum modo para o restauro do portuguesismo das toadas que a nossa gente moça canta nas escolaseapredispor-lhe os ânimos para reagir conscientemente contra a invasão das várias modalidades de exotismo musical, que está subvertendo o mundo de hoje (Ribeiro 1966: 7).
15Mário de Sampayo Ribeiro é outra figura central das actividades musicais na MP tendo sido o responsável pela inspecção das actividades de canto coral na organização e um dos mais activos cultores da canção popular no seu seio. A aparição de Sampayo Ribeiro na MP é tardia, situável porventura no início do comissariado de Marcelo Caetano, após as transformações provocadas pelas decisões do primeiro congresso.
16As ideias de Sampayo Ribeiro acerca do “justo valor” da canção popular não são exactamente iguais às de Hermínio do Nascimento. Segundo ele, esta constituía um “óptimo documento subsidiário para o estudo da arqueologia musical”, mas era um “péssimo elemento-base de um ‘nacionalismo musical’” (Ribeiro 1935: 25). Asua insistência no repertório tradicional baseava-se, portanto, não na intenção artística (que criticava na grande maioria dos instrutores), mas sim no princípio da educação pela música. Conservador e antimodernista, via na música tradicional um repositório dos valores da nacionalidade que urgia preservar, até porque, segundo ele,
(…) as camadas populares dos nossos campos [estavam] a ser contaminadas pela péssima música ligeira da nossa produção teatral e de origem estrangeira, [através do] império da grafonola e da radiodifusão (Ribeiro 1935: 15).
17Para ajudar a esclarecer melhor a evolução dos dois repertórios que apontamos no início (o mobilizador e o folclórico), escolhemos uma abordagem que pode parecer surpreendente. Trata-se da comparação, significativa em diversos aspectos, entre os filmes Mocidade Portuguesa (1937), de Leitão de Barros, e Mocidade Vitoriosa (1939), da Secção de Cinema do SPN.2 Se Leitão de Barros mostra naquele documentário a sua reconhecida habilidade de realizador, a equipa que produziu Mocidade Vitoriosa demonstra conhecer e dominar igualmente as mais modernas técnicas de montagem da época, nomeadamente as desenvolvidas no cinema soviético e alemão.
18Atentemos na feitura destes dois documentários. Ambos retratam a participação da MP nos festejos do 28 de Maio e o tradicional acampamento anual na Palhavã, realizado nos dias que precediam o aniversário da instauração da ditadura. O segundo documentário regista, além disso, os trabalhos do já referido primeiro congresso da organização realizado, relembramos, entre os dias 21 e 28 de Maio de 1939.
19No seu filme, Leitão de Barros centra-se no aparato coreográfico das manifestações e na vida disciplinada e militarizada do acampamento de 1937. Os elementos musicais usados são unicamente o Hino da Mocidade Portuguesa e, em momentos bem determinados, A Portuguesa.
20Em Mocidade Vitoriosa, a locutora apresenta-nos desta forma o dia-a-dia do acampamento de 1939:
Mal amanhece, os filiados saem das barracas e enquanto procedem à toalete vão enchendo o campo com os cantares típicos das suas regiões onde realçam pela sua alegria as canções minhotas.
21Os rapazes do Minho aparecem então reunidos em círculo em torno de um microfone, instalado sobre um tripé: adivinham-se cavaquinhos e guitarras, um acordeão, uma harmónica, um clarinete, um violino, um bombo e uma pandeireta. Um pequeno rapaz, que também dirige o grupo instrumental, canta uma canção de Viana do Castelo, seguido pelos restantes em coro. As imagens do grupo musical alternam com outras, primeiro de filiados a tomar duche, depois a arrumar as suas tendas, a engraxar os sapatos, a pentearem-se.
22Quando chega a hora do rancho a locutora comenta:
Ouve-se logo uma melodia. São os rapazes do Baixo Alentejo com as suas canções tradicionais que evocam a planície alentejana e, enquanto o almoço é servido, ouvem-se as modas Os olhos requerem olhos e Marianita é baixinha.
23Pela primeira vez, a evocação regional através da música é concretizada nas imagens: vemos uma aldeia perdida na paisagem, pastores conduzindo o seu rebanho, carroças e casas típicas, camponeses nos seus trajes folclóricos. Um plano de nuvens permite a transição para os olhos sonhadores do filiado que canta a canção da sua terra e para a bandeira da MP desfraldada.
24Podemos, desde já, retirar algumas conclusões. No filme de Leitão de Barros a dimensão musical é restrita e pretende apenas reforçar o carácter mobilizador, pré-militar e nacionalista dos primeiros anos da MP. No caso de Mocidade Vitoriosa, a música folclórica aparece como: a) reforço da dimensão nacional da participação no acampamento, pela apresentação dos grupos folclóricos de diversas alas presentes, nomeadamente as do Minho, da Beira Baixa e do Baixo Alentejo; b) emanação natural do povo que, por isso, ritma com naturalidade a vida do acampamento (não existe qualquer distanciação entre os filiados e o folclore; todos, independentemente da região a que pertencem, estão de uniforme da MP — a diferença regional é incorporada numa única identidade nacional); c) mostruário estereotipado da “personalidade do povo português”: a alegria dos minhotos, a tristeza alentejana, a originalidade beirã, exprimindo a “saudade”, etc.
25Mas Mocidade Vitoriosa mostra-nos ainda outras dimensões da utilização do folclore no contexto da MP.
26Após o encerramento dos trabalhos do congresso e as provas desportivas, realiza-se uma festa nocturna no Liceu Camões, onde a música tradicional volta a marcar presença com as danças e os cantares das diversas províncias, desta vez com trajes a rigor. Duas grandes modalidades de utilização do folclore musical são identificáveis: a) recriação resolutamente pitoresca (com traje), em situação de representação; b) integração nas actividades musicais da organização (em uniforme), em situação de participação.
27A cada uma destas modalidades corresponde uma função comunicativa diferente. Aprimeira é educativa, porque dá a conhecer o “património musical popular”; a segunda insiste no valor ético e moral do conteúdo “saudável” desse repertório e no modelo de sociabilidade que reproduz.
28O final de Mocidade Vitoriosa é significativo por outros motivos. No fim da festa final no Jockey-Club, todas as províncias que participaram na parada saem em formação pelas ruas de Lisboa, dirigindo-se à estação do Rossio para apanhar o comboio de regresso. Vieira de Sousa, responsável pela montagem, aproveita este momento final para realizar uma sequência mais arrojada, auxiliado pela partitura de Jaime Silva (filho). Às imagens dos filiados marchando pelas ruas sobrepõe-se a face risonha do rapazinho de Viana do Castelo, enquanto a orquestra retoma e trabalha o tema já duas vezes cantado no filme (e que entrou entretanto no ouvido do espectador). Com a chegada aos Restauradores e a entrada na estação, a imagem do jovem minhoto desaparece, dando lugar à imagem de um comboio partindo, sobreposta a filiados que marcham no mesmo sentido, fazendo a saudação fascista. O tema folclórico que a orquestra interpretava transforma-se subtilmente numa passagem do Hino da Mocidade, enquanto a imagem da bandeira da organização aparece. No mesmo impulso, o tema metamorfoseia-se no final de A Portuguesa, anunciando a bandeira nacional e a palavra fim.
29Atentemos pois nesta construção. O percurso simbólico que assim nos é apresentado, tanto nas imagens como na partitura, resume a dimensão de povo organizado (folclore e imagem de filiados marchando), que se pretende seja a essência da Mocidade Portuguesa (representada pelo respectivo hino e bandeira) e que se inscreve no conceito superior de nação e de pátria (aqui expressa pelo hino e bandeira nacionais).
30Esta progressão permite-nos surpreender a verdadeira dimensão que o folclore adquiriu para os dirigentes da MP, enquanto expressão essencial do que mais profundo se podia alcançar na busca da verdadeira nacionalidade. Assim, e através dessa carga simbólica, se investia a própria Mocidade Portuguesa como intermédio incontornável entre a expressão imanente da nacionalidade na “cultura popular” e a dimensão institucional e histórica da pátria e da nação.
31No que diz respeito ao repertório, Hermínio do Nascimento afirmava que o que existia era “pouco aproveitável devido aos arranjos das melodias, pois estas devem ser transcritas tal qual o povo as canta, com a sua ingenuidade e imperfeições. Deixem-nas estar como estão e não as arranjem…” (Nascimento 1957-59: II).
32Este zelo aparente não resiste, porém, à análise dos cancioneiros que ele próprio e Sampayo Ribeiro organizaram para a MP.
33Nesse sentido, a comparação que Mário Vieira de Carvalho estabelece entre os arranjos corais de melodias populares realizados por Sampayo Ribeiro e Lopes Graça é esclarecedora. Se o primeiro não toma em consideração
(…) o meio e a função sociais nem a especificidade estética e ideológica da canção popular, harmoniza de uma forma completamente convencional, usa o texto como mero pretexto para a realização coral, coloca tudo (melodia e texto) ao serviço de jogos corais pueris, esvazia, enfim, o elemento étnico de todo e qualquer significado real, reduzindo-o a uma espécie de arte ornamental, o segundo, pelo contrário,
(…) parte do documento, integra-o nas suas determinantes socioculturais, deduz das suas características estéticas específicas a reelaboração musical, considera-o na sua totalidade estrutural e potencia criativamente a relação-de-palavra-e-som (Carvalho 1993: 250-251).
34A inadaptabilidade de certo repertório folclórico para a função requerida mostra bem que certos aspectos das tradições se revelavam irredutíveis à intenção política pretendida pelas instituições do Estado Novo.
Conclusões
35As iniciativas de folclorização da MP inserem-se numa estratégia de criação de uma memória colectiva, articulada funcionalmente com a axiologia própria do regime. Através das figurações musicais específicas deste repertório almejava-se estabelecer um universo mitificado de valores considerados indiscutíveis. Neste quadro, era naturalmente mais sensível a presença de uma doutrina política conservadora e tradicionalista, baseada na ordem agrária pretendida pelo salazarismo, sendo a cidade, símbolo do progresso e vítima do anátema católico, vista como fonte de corrupção dos costumes. A importância crescente do folclore de origem rural nas actividades musicais da MP só é compreensível, portanto, se compreendida no âmbito duma nova exaltação do campo, das suas virtudes, da sua “verdade”.
36A canção popular não era, para os dinamizadores da MP, o verdadeiro veículo de educação estética, como já vimos nas afirmações de Mário de Sampayo Ribeiro, nem um património a descobrir cientificamente. A intenção de Hermínio do Nascimento de preservar a canção tradicional tal qual o povo a canta faz, portanto, pressentir que outro seria o elemento a salvaguardar.
37A música tradicional constituiu para a MP um “reservatório moral” e um importante momento de disciplina. Serviu assim de contrapeso ao repertório militarista e mobilizador característico da intenção inicial da MP, mesmo se este nunca desapareceu por completo. Nesse sentido, a supressão dos elementos heterogéneos da música folclórica relacionou-se estreitamente com a afirmação de princípios de autoridade e de ordem.
38A funcionalidade de um orfeão da MP poderia assim ser definida como a de “despertar o gosto pelas coisas belas, pela música sã, criar a alegria de viver, da qual nasce o desejo e o prazer de cantar”. O canto coral em grupos orfeónicos era por seu lado apresentado como servindo para “unir e disciplinar os indivíduos, para dar o sentido orgânico da vida em comum, para formar a consciência social” (Jornal da MP 1940) [sublinhados no original]. O folclore pretendido seria, como vimos, apenas o que permitia essa alegria e esse optimismo saudável e auto-suficiente de que se apregoava a necessidade. A centralidade desse folclore específico não é de maneira nenhuma inocente: é indissociável do “viver habitualmente”, reivindicado por Salazar — na célebre entrevista concedida a Henri Massis — como modelo de convivência social na ditadura.
39Os valores assim estabelecidos na canção popular eram um contributo precioso para a formação integral preconizada para a juventude. Assim se dava corpo à intenção de que os jovens portugueses assegurassem, “cantando e rindo”, a conservação e perpetuação da ordem social, moral e política do Estado Novo.
Notes de bas de page
1 A animosidade contra o fado tinha já uma longa tradição, desde a célebre conferência de António Arroyo (1909), passando por pseudodemonstrações científicas, como a de Ribeiro Fontes (1926), até às campanhas de Luiz Moita (1936).
2 Arquivo Nacional de Imagens em Movimento (ANIM), filmes n.os 102479 e 103729.
Auteur
Mestre em ciências musicais (Universidade de Paris VIII). Doutorando na mesma especialidade e universidade. Publicações no prelo: “Orfeonizar a Nação: o canto coral nos primeiros anos da Mocidade Portuguesa, 1936-1945” (Revista Portuguesa de Musicologia) e “Musique nationale et mémoire collective: le débat critique autour de l’identité du fado dans les années 30” (Actes des Journées d’Études Musique et Mémoire).
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003