Capítulo 11. A Federação do Folclore Português
A reconstituição do folclore em democracia
p. 245-251
Texte intégral
1Tomei consciência da importância da Federação do Folclore Português (FFP), através do contacto com a actividade de alguns agrupamentos folclóricos na vida folclórica do país. Neste artigo abordo a constituição desta entidade, a sua orgânica e a actividade desenvolvida.
Constituição
2O processo de formação da FFP teve início ainda na década de 1950, com Augusto Gomes dos Santos. Desde essa altura começaram a definir-se os parâmetros da acção daquela que viria a ser posteriormente a FFP. O ano de 1956 é marcado pela participação de Augusto G. dos Santos no Primeiro Congresso de Etnografia e Folclore, em Braga, que contribuiria para o reforço da consciência da urgência da salvaguarda das tradições locais. O futuro presidente da federação começa então a dedicar-se à recolha de bibliografia e de dados junto daqueles que julgava serem os detentores de valores tradicionais. Na publicação feita por ocasião da homenagem nacional, afirma-se:
Anotadas as faltas, as incorrecções e as imprecisões, (…) Augusto Santos começa por organizar um grupo de trabalho com cerca de 80 pessoas, que reúne mensalmente, para, a partir de 1959, iniciar junto dos responsáveis pelos ranchos folclóricos, uma forte campanha de mentalização, que tem por objectivo deter a adulteração das danças, cantares e trajos que então se verifica. (Cruz 1998).
3Esse grupo de trabalho, constituído por individualidades tais como Armando Leça, Fernando de C. Pires de Lima, Manuel Boaventura, Mota Leite, Carlos Vale, defendia a preservação e a transmissão dum verdadeiro património tradicional, através do incentivo às recolhas de danças, de cantares e de trajes. A actividade deste grupo era idêntica àquela que viria a ser a prática da futura FFP: desenvolviam-se esforços para conter a deturpação da identidade cultural.
4Em 1971 tem lugar o primeiro Seminário de Folclore e Etnografia em Vila Nova de Gaia. Nesta altura, o grupo de trabalho passa a designar-se Comissão Organizadora de Seminários e Congressos de Folclore. A realização anual desse seminário foi no entanto interrompida por altura do 25 de Abril e o grupo viu-se obrigado a suspender a sua actividade durante algum tempo.
5A Federação foi criada, em 1977, durante o Primeiro Congresso Nacional de Folclore, realizado em Vila do Conde. Augusto Santos é eleito presidente da comissão instaladora e, no ano seguinte, será eleito presidente da direcção, vindo a ser sucessivamente reeleito até à actualidade.
6A partir dessa altura começou a desenvolver-se uma “acção pedagógica”, através de colóquios, seminários, palestras e do contacto directo com os agrupamentos folclóricos.
7Durante o Estado Novo o acompanhamento dado aos agrupamentos, tanto pelo SNI, como pela FNAT, visava a construção duma imagem de representação da nação, no espírito do regime. Segundo Clara Sousa (1996), a FFP estabelece uma nova normalização, cabendo-lhe agora a acção fiscalizadora dos grupos folclóricos. Com a democratização da sociedade, o folclore deixa de ser um veículo de afirmação do estado para se transformar num meio de afirmação da sociedade civil. AFFP torna-se a entidade responsável pela prática do folclore, reivindicando o apoio logístico do estado, sem admitir a sua intervenção directa.
8Segundo os estatutos da FFP os corpos gerentes são constituídos pela assembleia geral, pela direcção e pelo conselho fiscal. A FFP tem ainda um conselho técnico central e vários regionais, que contactam com os grupos das suas zonas. Augusto Santos acumula as funções de presidente da direcção e de presidente do conselho técnico central desde o princípio da federação. A nomeação tanto dos membros do conselho técnico central como dos conselhos técnicos regionais é da responsabilidade da direcção da federação. Citando os estatutos: “(…) deverão ser pessoas com reconhecidos conhecimentos do Folclore Português, antigos dirigentes, componentes, directores artísticos ou técnicos de agrupamentos folclóricos.” A sua principal função é: “Desenvolver uma acção de saneamento dos grupos folclóricos, de acordo com solicitação da direcção da federação, com vista a conseguir a pureza que a federação pretende que seja atingida por todos os grupos nela federados.” (FFP 1978)
Augusto Gomes dos Santos: uma vida pelo folclore
9Nasce numa família numerosa, a 23 de Julho de 1924, na freguesia de Arcozelo, sendo aí que estuda, constitui família e continua a exercer a sua actividade. A entrada para a escola é retardada por motivos de saúde, mas após dois anos de frequência realiza com distinção a então escolaridade obrigatória. Frequenta a Escola Oliveira Martins até concluir o 2.º ano do curso comercial e a partir daí trabalha e estuda, com o objectivo de um dia vir a ser astrónomo.
10Casa-se aos 22 anos. Começa a aperceber-se do perigo que correm os “valores nacionais mais genuínos”, iniciando a sua procura de informação, de aldeia em aldeia, junto das pessoas mais idosas, complementando o seu trabalho com a leitura de autores como Armando Leça ou Teófilo Braga.
11Paralelamente a este trabalho de pesquisa e à formação do grupo de trabalho já referido, o seu nome aparece ligado a diversos agrupamentos folclóricos que surgem nessa altura nas imediações, como por exemplo, As Camponesas do Corvo, o Rancho Folclórico de Perosinho e a Rusga de Arcozelo.
12O período posterior ao 25 de Abril é conturbado para Augusto Santos. Apesar de não interferir activamente na vida política, querem-lhe retirar o material resultante das recolhas e dos seminários, conotando-o favoravelmente com o regime deposto. Dedicou-se desde a primeira hora à FFP. A sua acção abrange grupos em território nacional e da diáspora portuguesa. Desloca-se ao estrangeiro com frequência, organizando no âmbito dos grupos folclóricos colóquios, cursos de formação, congressos e festivais etnográficos.
13Ao longo da sua vida foi autor de vários escritos, que marcam o seu percurso. Aos 18 anos começa a escrever para a Gazeta do Sul. Em 1971 publica um trabalho sobre Santa Maria Adelaide. Esta brochura, já em 6.ª edição, confirma as convicções religiosas de Augusto Santos. Para além disso, foi um dos responsáveis pela rubrica Folclore e Etnografia do jornal O Comércio do Porto, durante o ano de 1980. Publicou ainda inúmeros artigos em jornais e revistas nacionais e estrangeiras. Colabora, desde Outubro de 1991, num programa semanal da Rádio Alfa de Paris.
14De todos os eventos organizados por Augusto Santos, o Festival Nacional de Folclore do Algarve é o de maior destaque, pela sua dimensão e importância adquirida. Envolvendo anualmente em média 1500 pessoas, cabia a Augusto Santos a organização e coordenação técnica, assim como a produção do guião dos apresentadores da final na Praia da Rocha, transmitida em directo pela RTP.
15Com um percurso profissional no folclore de mais de 50 anos, foi homenageado por dezenas de instituições do país e do estrangeiro. São de destacar a medalha de mérito cultural atribuída pelo ministro da Cultura e a medalha de ouro atribuída pelos sócios da federação.
16No último quartel do século XX definiu com mão de ferro o destino da instituição e, consequentemente, a configuração predominante no movimento folclórico.
A candidatura de um grupo
17O processo de candidatura de um rancho folclórico à federação é moroso. Consultei vários processos de grupos candidatos a sócios efectivos, que levaram mais de dez anos. Outros conseguem ver o seu processo decidido em meses. Segundo Augusto Santos o tempo depende da vontade e da capacidade de trabalho dos candidatos.
18O processo começa com o preenchimento de um questionário para a avaliação da actividade do grupo, onde se descreve o repertório e as respectivas recolhas, os trajes dos agrupamentos, a região que se pretende representar e seus usos e costumes. Relativamente ao repertório do candidato, apresentam-se as letras, sendo raro encontrarem-se transcrições musicais. Na maioria dos casos remetem-se cassetes áudio ou vídeo.
19Numa segunda fase, verifica-se a visita dos membros do conselho técnico regional da área a que pertence o candidato, com o objectivo de avaliar in loco o trabalho. Depois da visita, os conselheiros técnicos regionais dão o seu parecer ao conselho técnico central. Quando a decisão é negativa, o grupo é recusado. É da responsabilidade dos conselheiros apontar os aspectos a alterar, para que o grupo possa melhorar o seu desempenho. Deverá, mais tarde, ser solicitada uma nova visita do conselho técnico regional. Este processo repete-se até se obter um parecer positivo.
20Uma alteração recente nos estatutos da FFP introduz a nova categoria de sócio aderente. Nesta categoria incluem-se os grupos que não têm ainda os requisitos mínimos para sócios efectivos. Trata-se de uma categoria que está prevista nos estatutos de algumas associações regionais de folclore, que começam a abundar por todo o país.
21Quais as expectativas dum grupo filiado? Em primeiro lugar, a filiação corresponde a uma certificação de qualidade. Esta traduz-se numa relação preferencial em termos de contratações para exibições e na obtenção de subsídios das autarquias e de outros organismos.
22Segundo, a FFP, através dos seus conselheiros técnicos regionais, apoia tecnicamente os ranchos, encaminhando-os para o que estabelece como sendo o bom nível de representatividade. A assistência é dada sobretudo aos sócios aderentes recém-admitidos. Logo que se julga ter o grupo atingido “qualidade”, a federação retira-se, mantendo apenas contactos esporádicos.
Dissonâncias no movimento folclórico
23A actividade da federação é contestada, tanto por ranchos federados como por não federados. Queixam-se da falta de apoio dos conselhos técnicos. A maioria das acções promovidas pela FFP têm lugar no norte do país, destacando-se a zona envolvente da sede. A acção pedagógica que tanto é referida pelos membros da federação, não parece satisfazer os grupos folclóricos. Do mesmo modo, critica-se ainda a falta de coerência nos procedimentos e o favoritismo existente.
24Um rancho federado não é visto necessariamente como um grupo de qualidade. O desrespeito das normas da federação é frequente. Muitos grupos comprometidos em processos de reestruturação nunca o fizeram. Apesar de nos estatutos da federação estar prevista a exclusão de um membro, quando há desrespeito do folclore e do bom nome da federação, só dois ranchos foram sancionados, por não pagamento de quotas.
25AFFP atravessa um período de crise. A sua imagem está desgastada junto dos grupos, assim como perante os seus próprios conselheiros. Pressente-se uma mudança na FFP que se desenvolve lentamente, dada a postura conservadora do presidente. A reformulação pretendida é na forma como as ideias que orientam a instituição são postas em prática, de forma a garantir maior apoio aos grupos.
26Em parte como consequência da ineficácia da FFP começam a surgir em algumas zonas do país associações regionais de folclore e etnografia, com o objectivo de preencher as lacunas da federação e de dar resposta à falta de aconselhamento técnico aos grupos folclóricos.
27Numa primeira fase estas associações, como a de Coimbra e as que se lhe seguiram, opuseram-se à federação. Posteriormente, conciliaram-se e colaboram sempre que necessário. Na opinião de alguns dos conselheiros técnicos, nota-se o início de uma terceira fase, na qual as associações regionais integrarão a própria FFP.
28O modelo das associações repete o da federação a nível regional, sendo muitas vezes os membros da direcção das associações simultaneamente conselheiros técnicos regionais da federação.
Definir a representatividade
29Os conselheiros da FFP consideram como “grupos de qualidade” os que têm representatividade. Esta alcança-se pela definição da área geográfica que o grupo pretende representar e pelo período histórico a que se reportam as danças, os cantares e os trajes.
30Clara Sousa (1996) afirma que: “A fidelidade da representação deve ser mantida através de um trabalho de recolha e pesquisa, in loco, identificando hábitos e costumes comunitários referentes a um período compreendido entre o final do século XIX e o início deste século. Por conseguinte, o ‘antigo’ confina-se a um tempo padrão, limite para a existência de uma ‘verdadeira dança popular’, ainda não afectada pela modernidade.” Esta citação refere aspectos cruciais na definição da actividade da FFP. O primeiro é o destaque dado às recolhas no processo de constituição do repertório de um rancho. Um grupo com pretensões a filiar-se não poderá incluir no repertório músicas, coreografias, trajes que não tenham resultado de recolhas efectuadas junto dos habitantes mais idosos da área geográfica que se pretende representar. Deste modo nega-se então o processo de recriação cultural, que caracteriza a dança popular, onde a inovação é integrada segundo as necessidades.
31AFFP estabelece o ano de 1910 como limite cronológico. Na perspectiva da federação, a partir dessa altura ter-se-iam verificado mudanças profundas na sociedade portuguesa, dando origem ao enfraquecimento dos “verdadeiros usos e costumes da nação.” A maioria dos ranchos folclóricos perfilha esta visão. Assume-se tradição como um corpo isolado e concreto de práticas e traços culturais herdados, que chegam até nós sem nunca terem sofrido alterações. Mas não será antes a tradição um processo de construção simbólica contínuo, que chega até nós depois de sucessivas reinterpretações? Não será a tradição um processo interpretativo, que atribui significados actuais a elementos do passado? Num artigo de Handler & Linnekin (1984) é chamada a atenção para o facto de a vida social ser reconstruída e nunca naturalmente transmitida. Na verdade a tentativa de preservação de tradições dá origem a uma espécie de “reciclagem cultural”, utilizam-se elementos culturais do passado, adaptando-os às realidades culturais presentes.
32Deste modo a concepção de rancho folclórico imposta pela FFP baseia-se na convicção de que eles são portadores de uma cultura popular, congelada no tempo e transportada para a actualidade. As práticas culturais a preservar são arrancadas do contexto original para serem postas num palco ou no bar de um hotel. Os próprios actores cumprem uma série de regras rígidas, para tornar a representação verosímil. Qualquer dança folclórica interpretada hoje, nunca será um resgate do original. Ao adaptar-se às necessidades do novo público, atribuem-se-lhe outros usos, funções e valores.
Tradição autêntica versus inventada
33Ao exigir dos grupos autenticidade, a FFP contribui para a “invenção de tradições” (Handler & Linnekin 1984).
34Os componentes usados para representar a cultura tradicional são colocados em contexto diferente do original. Sempre que um rancho sobe a um palco e dança o fandango ou o vira, está a retirar essas danças do seu contexto anterior para representá-las.
35Numa fase inicial a FFP contribui para a tomada de consciência. Numa fase posterior os próprios membros da comunidade folclórica apercebem-se do valor das suas práticas, assumindo-as como elementos identitários.
36A preservação de tradições é um processo selectivo. Entre os aspectos que fazem parte das práticas socioculturais de uma comunidade, alguns são seleccionados para serem preservados. Este processo produz estereótipos. O Algarve é disso exemplo. O corridinho foi o género performativo escolhido para representar a região, apesar de não lhe ser exclusivo e de outras danças constituírem o seu património folclórico. O mesmo aconteceu no Ribatejo com o fandango, ou no Minho com o vira.
37O elemento tradicional não é o objecto concreto que a FFP pretende salvaguardar, mas sim o significado que esta lhe atribui. Ao afirmar que aquilo que os grupos folclóricos orientados pela acção da FFP fazem é uma reconstrução no presente de elementos culturais do passado, não afirmo que os actos dos nossos dias não tenham qualquer correspondência com esse passado. Digo antes que entre passado e presente existe simultaneamente uma relação de continuidade e de descontinuidade. Continuidade, porque os elementos culturais que os agrupamentos folclóricos representam são baseados em elementos culturais do passado. Descontinuidade, porque os seus membros estão física e temporalmente distanciados dos objectos representados.
38Assim, podemos dizer que a cultura em todas as suas vertentes é um processo dinâmico e não estático, estando-lhe implícito um processo permanente de renovação. Nesta ordem de ideias, não tem sentido classificar as tradições de falsas ou verdadeiras. Se tradição genuína é a que nos foi transmitida do passado sem ser alterada, então todas as tradições são falsas. Se por outro lado afirmarmos que as tradições são sempre definidas no presente, então, todas as tradições são verdadeiras.
Auteur
Licenciada em ciências musicais pela UNL. Actividade no âmbito da pedagogia musical.
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