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Capítulo 10. Uma cartilha portuguesa

Entre militância cultural e doutrinação política

p. 233-244


Texte intégral

Uma cartilha para o povo

1O Mensário das Casas do Povo (MCP) foi um periódico editado entre Julho de 1946 e Dezembro de 1971, perfazendo a respectiva colecção 306 fascículos. A revista tinha propriedade institucional, uma vez que era o órgão oficial da Junta Central das Casas do Povo (JCCP).1 A equipa dirigente manteve-se estável ao longo do tempo. Era formada pelo director Fernando Cid Proença, pelo orientador artístico Manuel Couto Viana (1892-1970) e pelo editor Álvaro Ribeiro (1905-1981). Não consegui apurar as tiragens feitas ao longo das quase três décadas de actividade.

2Uma das particularidades da revista era a sua distribuição gratuita, pensada para circular em todas as casas do povo do país e, por arrasto, provavelmente também noutros lugares de frequente acesso público. Até princípios dos anos 60 sugere-se na contracapa a divulgação do seu conteúdo pela leitura em voz alta. Do ponto de vista gráfico, houve sempre o cuidado de manter uma mesma imagem. Em formato ligeiramente superior ao A4, as 20 e posteriormente 24 páginas de cada fascículo ostentam um bom equilíbrio entre texto e ilustração (fotografia, desenho e banda desenhada), numa relação reveladora do cuidado posto na adaptação a um público destinatário caracterizado pela ausência do hábito de manusear material impresso, ou com falta de capacidade ou treino de leitura. Os artigos são curtos, ocupando desde uma coluna a uma página, sendo frequentemente continuados em números seguintes. Nas capas figuram fotografias ou desenhos alegóricos. Numa primeira fase prevalecem imagens fotográficas de indumentárias rurais das várias regiões portuguesas, enquanto as alegorias se inspiram no calendário anual associado às grandes fainas agrícolas ou a eventos religiosos; a quadra natalícia nunca é esquecida. Grandes campanhas levadas a cabo pelo governo, como a da alfabetização de adultos durante a década de 1950, forneceram motivo de inspiração para o arranjo de capas.

3Cada fascículo abre com um editorial, onde em regra se comenta em moldes efusivos alguma medida de cariz social recentemente aprovada pelo poder político. Seguem-se os artigos, ficando a parte final reservada à publicação de legislação oficial, de passatempos vários, de curtas transcrições de outra imprensa e de alguma publicidade — em regra de grandes empresas ligadas ao sector da lavoura.

4Compilando os artigos publicados ao longo dos 26 anos de vida do MCP, verifica-se como certos temas constituem uma constante na política editorial estabelecida. Na senda dos respectivos editoriais, são os aspectos de doutrinação no âmbito estrito da ideologia do regime — o corporativismo —, aplicados à realidade rural em termos de organização do trabalho, assistência e previdência sociais e dos tempos livres, que preenchem os sumários da revista. Tratando-se das questões centrais nos propósitos do organismo promotor da publicação, estes assuntos vão sendo explanados de dois modos. Um mesmo autor assegura o respectivo tratamento ao longo de vários fascículos, ou então estabelece-se uma rubrica continuada, garantindo-se o seguimento com os contributos fornecidos por várias pessoas; em regra predomina a primeira fórmula.

5Podem isolar-se as seguintes vertentes: o corporativismo como doutrina política e social do estado, a assistência rural, a educação sanitária, uma antologia literária rural, a economia rural, a saúde pública, a pureza da língua portuguesa — leia-se guerra aos estrangeirismos —, as personalidades e factos gloriosos da história nacional, a etnografia. Para além destas temáticas é dedicado espaço à divulgação da legislação sobre casas do povo, à comunicação dos subsídios pecuniários a cada uma delas atribuídos, ao relato dos eventos associativos nelas ocorridos, assim como à apresentação de uma que, após inspecção central, se julgou como tendo funcionamento modelar.

6Durante os primeiros anos de vida da revista é notório o cuidado em divulgar instruções e sugestões para o arranque e organização da instituição nas muitas localidades em que ela se implantou. São aflorados problemas relativos à organização de arquivos administrativos, à criação de emblemas, ao modo de mobilar e tornar o espaço atraente para o convívio entre os sócios. Propõe-se um mobiliário modesto, se possível transmitindo um espírito de sintonia regional. É dado destaque sempre que numa localidade a respectiva casa do povo passa a dispor de edifício próprio. Para além destes assuntos tratados em permanência, outros seriam aflorados duma forma menos continuada, pois traduzem questões sentidas num determinado momento.

7Vistas de relance, as opiniões expressas nos artigos são curiosas, mas monótonas. Quase três centenas de autores compõem o universo de colaboradores, que alimenta a revista ao longo do tempo. O Mensário não fomentou debate, porque era uma revista para a divulgação da doutrina oficial. Pode, por isso, deduzir-se que a angariação de colaboradores se baseou no critério da afinidade ideológica com o regime e só em segundo plano a remuneração terá constituído um aliciamento complementar.

Uma textualização etnográfica do país

8Se perspectivarmos o conteúdo das colaborações publicadas no MCP, em termos de construção de uma visão etnográfica do país, encontramos o seguinte panorama de autores e de matérias versadas.

9Luís Chaves (1888-1975) era conservador num museu arqueológico em Lisboa, cedo aceitando funções que lhe permitiram compilar tradições populares no vivo. Por conta de organismos centrais da política cultural calcorreou o país, desdobrando-se em iniciativas à escala nacional. Manteve no Mensário uma presença bastante assídua, na qual transparece mais a vertente ilustrativa em detrimento do elemento substantivo. Serve de exemplo a sua rubrica Coisas & Lousas, onde discorre sobre curiosidades e aspectos do folclore. Os textos abundantes que se irão paulatinamente sucedendo até ao penúltimo fascículo abordam temas diversos, como a valorização do artesanato, os presépios, os rituais do ciclo de vida do indivíduo, efemérides em torno de congressos realizados em Portugal e no Brasil, recolhas de adivinhas, o papel educativo dos pequenos museus rurais ou ainda os trajes históricos. Relativamente a este etnógrafo vale a pena salientar que a lista das suas publicações não se esgota no Mensário. Deu à estampa uma série de livros e mantinha colaboração não menos frequente para outras revistas do seu tempo. É difícil encontrar um fio condutor na sua produção escrita: simplesmente trata tradições populares. Os seus trabalhos assentam na compilação de dados em torno do elemento escolhido, as observações próprias feitas ou ouvidas ficam quase abafadas pelo complemento da informação histórica não menos carregada de factualidade. Para ele, assim como para muitos outros da sua geração, o método parece sobrepor-se ao objectivo, assentando o primeiro nos factos ou na necessidade da sua criação. Por isso compreende-se que uma das suas preocupações reveladas nas páginas do MCP tenha sido a de aproveitar a revista como veículo para a recolha local e a centralização em arquivo das respostas obtidas por todo o país. A quadra popular é um dos assuntos que propõe para um levantamento nacional sistemático.

10Folheando a colecção da revista, encontram-se mais autores escrevendo com uma perspectiva similar: temas de incidência etnográfica expostos ou compilados à escala nacional.

11Fernando Falcão Machado (1903-), professor de liceu, dedicou-se à arqueologia, à crítica de arte e foi um devotado compilador do rifoneiro português. Ao longo de 48 números dá à estampa Estudos sobre o Rifoneiro Português I, II, III, ordenados segundo os meses do ano. Em extensa colaboração anterior apresentou uma bibliografia das monografias regionais, organizada por distritos — e que, sendo um instrumento de trabalho útil, certamente nunca foi lida em voz alta, ao contrário do rifoneiro. Foi, por conseguinte, um autor assíduo na colaboração prestada, destacando-se pelo referido rifoneiro.

12O artesanato é outro assunto de relevo e para o qual se ensaiam textos legitimadores com enquadramento etnográfico. Muitos dos autores debruçam-se repetidas vezes sobre esta matéria. A sua listagem seria demasiado fastidiosa. A revitalização do artesanato integra a orientação política assumida nos objectivos do Mensário. Deixo referidas algumas situações. É o caso de Rosa Ramalho, uma ceramista popular descoberta e incentivada por intelectuais urbanos, ou o artigo de João Falcato (1917-?), um escritor nacionalista que sai em defesa dos bonecos de barro de Estremoz, nesses anos já sem artesãos continuadores. Situação análoga é referida por Manuel Coimbra, ainda na década de 1940 sobre a loiça preta produzida em Molelos, no interior norte do país. Receia-se o desaparecimento desta artefactualidade, a perca do respectivo saber técnico pela adopção de substitutos de origem industrial — temidos por descaracterizantes do quadro rural desejado. Em contrapartida, outras produções enaltecidas parecem gozar de boa saúde, como as colchas bordadas de Castelo Branco. Como se vê, entram e saltam para a arena nomes sem pergaminhos adquiridos nos domínios da etnografia. É uma união de esforços entre a fundamentação e a defesa de valores materializados duma tradição que se quer construir.

13Surpreendem-se outros pontos de confluência entre razão dita etnográfica e posições de princípio no campo ideológico ou no das atitudes. Uma destas convergências traduz-se na opinião de que os agrupamentos folclóricos devem exibir um espírito de pureza nas suas actuações.

14Mas não é diferente a forma de olhar a relação entre a árvore de natal e o presépio. Ao folhear o Mensário fica-nos a sensação de ter sido esta outra questão de fundo. O lento abandono dos presépios a favor das árvores nos centros urbanos, que se começa a fazer sentir na década de 1950, adquire na revista importância justificadora de campanha em prol de valores nacionais ameaçados. Há artigos expressivos desta luta entre o nosso e o alheio. As lamentações aparecem soltas ao longo dos anos e ecoam no extremo cuidado posto na ilustração dos números de Dezembro, sempre dedicados a esta festividade.

15À música regional e ao canto é prestada também grande atenção, sobretudo até finais dos anos 50. Entre os vários contributos dados à revista, figuram os de Armando Leça (1893-1977), compositor e professor de música, autor de uma cantiga para as festas de São João de 1946, na cidade do Porto. Para além desta actividade dedicou-se durante longos períodos à recolha musical para a elaboração de uma discoteca popular portuguesa. No MCP assina dois artigos, um no número inaugural, prevendo o impossível, ou seja, as casas do povo como focos de concentração e difusão de música popular, outro mais tardio, versando matéria mais substantiva da sua especialidade. Esta ideia de educação popular nas áreas rurais através da dedicação à música e ao canto parece ter constituído uma das grandes apostas iniciais difundidas nas páginas do Mensário.

16No segundo número dá-se início a uma série de onze artigos intitulados Música para todos, onde em moldes bastante simples e claros se mostra como organizar um grupo musical ou de canto coral.

17A temática continuaria a ser abordada, desta vez por Hermínio do Nascimento (1890-1972), compositor nacionalista, professor de história da música e estudioso de música africana, num conjunto de sete artigos. Reflectem o pressentimento de que a folclorização a que se assiste é um movimento social em crescimento.

18Um problema que transparece regularmente na revista é o do estatuto da etnografia. Este assume uma dupla vertente. Por um lado, insiste-se na difusão para fins de educação popular — papel a ser desempenhado por pequenos museus rurais —, pelo outro, defende-se a institucionalização por via do seu ensino como disciplina a ser ministrada na formação dos professores primários.

19Sebastião Pessanha (1892–1966) é figura influente e prestigiada no debate museológico então travado. Tendo sido coleccionador, legou ao estado após a sua morte uma importante colecção de máscaras portuguesas. É com esta matéria que marca presença como colaborador do Mensário. Intervém desde os primeiros fascículos com uma série, onde procede a uma revisão crítica do panorama da museologia etnográfica no país. Esta voz com autoridade reconhecida é secundada por outras, tanto de pessoas ligadas à actividade etnográfica (Abel Viana, J. A. Capela e Silva, Luís Chaves, Guilherme Felgueiras), como pela de outros empenhados na acção propangandística. Resumem-se a dois os principais objectivos contidos na museologia defendida. Numa primeira abordagem trata-se de recolher objectos considerados tradicionais, entenda-se por tal, em vias de cair em definitivo desuso, servindo desta forma de arranjo estético no interior das casas do povo, de alerta para a salvaguarda e incentivo para a recuperação pelo estímulo e incremento da actividade artesanal orientada. Segundo, e em ligação estreita com o primeiro pressuposto, julga-se possível criar um inventário de etnografia portuguesa, a partir de objectivações seleccionadas (o profano, o sagrado, o nacional, o local). Ao último propósito pretende-se associar de igual modo uma acção pedagógica tradicionalizadora junto das populações. Este objectivo não seria alcançado, na medida em que se julgou possível a sua concretização em termos amadorísticos. As iniciativas desenvolvidas em algumas localidades do país cedo caíram no esquecimento, dada a falta de capacidade de mobilização de recursos científicos e técnicos para a continuidade das recolhas, da conservação e manutenção do espólio, como por fim também pela precariedade dos espaços expositivos disponibilizados.

20A concretização dos fins em vista passaria pela crescente valorização da matéria etnográfica. Só assim o elemento de instrução popular desejado poderia ser sistematizado e transmitido às pessoas. Aforma de institucionalizar a ideologia nacionalista assente na nostalgia rural seria a fixação de um corpus etnográfico erigido sobre uma base empírica a estabelecer. À etnografia é atribuída esta função desde o início da revista. Logo nos números iniciais são incluídos artigos contendo extractos de discursos oficiais de dirigentes políticos nacionais, onde estes incluem na estratégia política do corporativismo o interesse pela matéria etnográfica como uma das essências da acção ideológica a levar a cabo.2 Para exemplificar, recorro quase ao acaso a um funcionário do SNI, jornalista muito activo e musicólogo, Gastão de Bettencourt (1894-1962), que na qualidade de colaborador regular do MCP, escreve artigos com títulos sintomáticos como Do folclore como elemento de formação nacionalista ou O folclore nos meios rurais contra a poluição das ideias nacionalistas, comprovando-se esta atitude e o respectivo procedimento. Trata-se de um princípio editorial programático.

21Estes parâmetros editoriais foram decerto vistos em moldes diferentes pelos potenciais colaboradores da revista interessados na matéria etnográfica. Enquanto uns enviavam colaboração de acordo com esse espírito nacionalista, onde o princípio ideológico prevalecia sobre o rigor da matéria exposta, outros terão remetido os seus escritos no intuito de contribuir para a formação dum fórum etnográfico num quadro nacionalista.

22Em 1950 a pressão sentida pela redacção da revista para reforçar a componente etnográfica publicada no Mensário deve ter sido considerável. Manuel Couto Viana encarrega-se de fazer um inquérito junto de presumíveis interessados, a fim de ser ponderada a hipótese de se vir a fundar uma revista de etnografia. O questionário foi enviado a 118 destinatários, obtendo-se 51 respostas. Dos resultados apurados interessa sublinhar que a esmagadora maioria dos inquiridos é favorável ao lançamento duma revista etnográfica, a ser publicada por um organismo público, tendo Lisboa como local de edição, sendo o nome de Luís Chaves o mais solicitado para a dirigir. Destas circunstâncias, certamente insuspeitas ao comum dos hipotéticos leitores ou ouvintes do Mensário, pode-se extrair uma conclusão. O papel da etnografia na formação ideológica do cidadão, especialmente rural, não é questionado por literatos e etnógrafos que confluem na revista em causa. A divergência das posições vistas numa perspectiva individual parece derivar da motivação pessoal que faz com que uns discorram num discurso circunstancial de ficção, enquanto outros julgam possível criar bases de instrução cívica nacionalista a partir de um trabalho disciplinado conduzindo à fundamentação etnográfica dos mesmos princípios ideológicos. A principal característica deste discurso etnográfico defendido pelos segundos não será a falta de método ou de interesse pela teoria, mas a exclusão do elemento comparativo. É uma etnografia popularizante.

23Compreende-se assim o empenho manifestado regularmente na revista pela introdução da etnografia como matéria a ministrar nas escolas de formação dos professores.

Uma militância cultural

24No Mensário é dada voz a um sentimento nacionalista em busca de fundamentação cultural dentro do programa ideológico do regime. A etnografia é entendida como um estado de espírito e um meio para alcançar esse objectivo. Salvo algumas excepções, não tem substância na obra dos seus autores, porque ela é produzida, em regra, como manifestação contra o movimento neo-realista emergente na literatura. A maioria dos textos de feição ou intenção etnográficas publicados podem ser lidos como uma arma forjada para esse combate.

25O universo dos colaboradores da revista que nela divulgam etnografia popularizante (pelo público-alvo tido em mente) e nacionalista (pela postura ideológica que os congrega), é relativamente reduzido. Um simples relance permite constatar que muitos etnógrafos vivos e activos naquele período não figuram como autores no MCP. Parece ter existido uma selecção de colaboradores feita por sintonia ideológica. Não será de excluir que potenciais autores editáveis não o tenham sido por razões de ordem pessoal ou de lealdade de grupo alheia à postura ideológica. Por último, a redacção do Mensário certamente se esforçou por equilibrar a presença das diversas regiões. Estes elementos são conjecturas suscitadas pelo contacto com a colecção completa da revista.

26A presença dos autores que escrevem sobre etnografia pode ser tipificada da seguinte forma: os de visibilidade ténue, regular, assídua ou constante. Esta graduação assenta na quantificação da colaboração dada, respectivamente, em um ou dois fascículos (J. A. de Capela e Silva, Joaquim Roque, J. Vieira Resende, Armando Leça, Armando de Matos), um tema ou vários em três a cinco cadernos (Sebastião Pessanha), em mais de dez números (António M. Mourinho, Abel Viana, Alexandre de Carvalho Costa, Augusto César Pires de Lima, Fernando de Castro Pires de Lima) e continuada ao longo de anos (Luís Chaves, J. Azinhal Abelho, Manuel Joaquim Delgado, Guilherme Felgueiras). Mas sobre estes casos seleccionados para exemplificação há que referir ser a frequência na colaboração uma variável pouco esclarecedora da autoridade adquirida pelos autores, uma vez que alguns terão entretanto falecido e que outros intercalam períodos de pausa alongados entre os artigos que vão publicando.

27Em termos temáticos a situação também não é homogénea. A frequência da colaboração publicada deveria ser associada ao conteúdo versado. Aqui as opções são múltiplas. Encontramos a abordagem de um tema por número, um tema continuado ao longo de vários fascículos ou ainda a situação duma rubrica estender-se por uma temporada (L. Chaves: Coisas & Lousas; J. Azinhal Abelho: Roteiro Lírico do Alentejo; Fernando de C. Pires de Lima: Crónicas de Aldeia; etc.).

28Num esboço preliminar para a caracterização do autor etnográfico patente nas páginas do Mensário, dir-se-á ainda que imperou um modelo de participação aberta, cujas traves mestras foram o estilo (curto, para ser popularizante) e o conteúdo (a doutrinação nacionalista). Da combinação destes requisitos resulta uma colaboração etnográfica versando o elemento rural, de preferência em vias de desaparecimento ou em desejada reanimação. São entretimentos — socorro-me da expressão que serve de título a uma pequena publicação de A. de Carvalho Costa — conduzindo a uma forma específica de textualização etnográfica.

29No seu conjunto, os etnógrafos do MCP eram amadores, que viviam de outras profissões. Colocavam outros escritos etnográficos em diversas revistas de carácter regional, para além de muitas vezes editarem trabalhos mais extensos em separatas ou em edições de autor, sendo menos frequente a edição comercial. Na sua maioria foram hommes de lettres. Dos seus curricula constam ainda romances, poemas e abundante intervenção jornalística. A veia literária aliada à curiosidade de índole etnográfica conjugam-se, podendo a última servir de inspiração à primeira.

30Perante estas circunstâncias, é importante determinar o modo como estes autores acedem à etnografia. O material contido no Mensário, uma vez mais, proporciona pistas para a formulação de hipóteses de trabalho. Nesta ordem de ideias, a análise não se deve restringir à produção escrita e editada, mas de igual forma terá de reter o envolvimento social e cultural do autor. Parecem fundamentais as associações culturais ou científicas em que se insere, assim como as revistas onde se dá a conhecer como entusiasta da causa etnográfica, frequentemente misturada com a filologia e a arqueologia. No Mensário separam-se águas: as divagações etnográficas vindas a lume articulam-se com a linguística e suprimem a componente arqueológica.

31Na qualidade de etnógrafos nacionalistas, os colaboradores do MCP não querem estar sozinhos. Encontramos na revista invocações a personalidades da etnografia portuguesa recentemente desaparecidas: José Leite de Vasconcelos, padre Firmino A. Martins, abade de Baçal e Sebastião Pessanha. Outros entretanto igualmente falecidos não são referidos, mesmo tendo em vida pertencido ao mesmo quadrante ideológico. O mundo dos vivos estava dividido.3

32O Mensário não é um arquivo, mas um catálogo de materializações potenciais retiradas e seleccionadas das tradições populares, a repetir mecanicamente nos moldes proporcionados por uma época caracterizada pelo domínio dos processos técnicos de reprodução. Nele seriam depositados textos que fixaram rifoneiros, cancioneiros, adagiários, a oratória religiosa popular e a normalização de quadros campestres regionais e locais. Foram edificados palcos ou ambientes cénicos a promover: o teatro popular (numa cruzada contra o cinema comercial), os agrupamentos folclóricos e respectivas exibições, a organização de cortejos evocativos e de desfiles históricos e os muitos concursos (de estações ferroviárias ajardinadas, de aldeias típicas, de janelas e ruas floridas). Procedeu-se à criação de emblemas pela fixação de uma artefactualidade: os assobios de Estremoz, a olaria de Molelos e de Felgar, os galos de Barcelos, os presépios, a preservação dos moinhos de vento, a campanha promovida pela Mocidade Portuguesa Feminina pela recuperação dos nichos a Nossa Senhora, o levantamento da Junta Autónoma de Estradas denunciando um total de 1338 alminhas a restaurar através de comissões paroquiais, as mantas de Castelo Branco, a indumentária regional divulgada nas capas da revista, a campanha lançada por Manuel Couto Viana para a disseminação de cata-ventos e de relógios de sol pelas aldeias, a refuncionalização do Primeiro de Maio ou a reimplantação de pelourinhos.

33Resta indagar a repercussão que a revista possa ter tido junto das pessoas. Como as divagações etnográficas não são um acto colectivo, mas derivam duma liderança pessoal num contexto propício, parece-me provável que os números da revista tenham servido de inspiração a muitas pessoas espalhadas pelo país interessadas em promover iniciativas neste domínio.

Conclusões

34A linha ideológica do Mensário é definida desde o início nas palavras de A. J. de Castro Fernandes: a etnografia deve servir para o aportuguesamento, como meio do combate às tendências “cosmopolitas e desnacionalizadoras” (Fernandes 1947: 212-213). No processo de folclorização em que se encontra Portugal desde os anos 1930 é neste espírito nacionalista que o regime intervém no movimento folclórico. A sua acção é importante na fase inicial do movimento; a partir da década de 1960, ela parece perder força, influência e capacidade interventora. Com a morte de M. Couto Viana desaparece também a revista, tudo ainda antes do colapso do regime. No entanto, as divagações etnográficas e as emblematizações criadas pelo salazarismo haveriam de perdurar, pois a revolução de 1974 não as baniu — antes pelo contrário. E, desde a década de 1980, assiste-se a uma refolclorização acelerada, que implica quase sempre a reciclagem directa ou atenuada do que fora inventado sob o autoritarismo. Estas constatações requerem indagação.

35Da análise feita à colecção do MCP (Branco 1999) ressalta o seu cariz de cartilha destinada a um público adulto masculino e feminino, trabalhador, rural e pouco ou nada letrado, versando com insistência bem doseada exemplos de aspectos a folclorizar. Por folclorização entenda-se a tendência para a fixação de conteúdos, de procedimentos e de condutas norteados por uma ideia de tradição. Tais aspectos deverão ser normalizados, segundo preceitos ideológicos, morais e estéticos, que os colaboradores da revista apregoam insistentemente — pode então falar-se duma luta entre gostos (Branco 1999a).

36Neste combate os autores que publicam no MCP parecem maioritariamente mais impregnados dum espírito que releva uma postura de militância cultural, do que de uma atitude de mero combate político. Neste sentido, o Mensário veicula a militância de direita, oposta à de esquerda, patente na figura de Michel Giacometti (Branco & Oliveira 1993). Distinguem-se pela visibilidade do factor político; enquanto no Mensário a acção propangandística é assumida, no campo oposto ela encontra-se tacticamente camuflada. Unem-se por serem protagonizadas por grupos de intelectuais.

37Nestes moldes as militâncias a que me venho referindo representam vanguardas, cujo objectivo é a mobilização de pessoas. Seduzir indivíduos, ganhar seguidores torna-se o objectivo principal num contexto em que processos de folclorização deixaram de constituir actos isolados no tempo e no espaço, para passarem a estruturar um movimento social — o do folclorismo — característico da modernidade (Bausinger 1961). O Mensário das Casas do Povo é o instrumento mais aperfeiçoado e visível do regime salazarista para a intervenção activa nessa nova forma de associativismo, que é a dos agrupamentos folclóricos permanentes.

38Não é de negligenciar o que da cartilha perdurou até ao presente. Os aspectos relativos à museologia local — ou de comunidade —, peças do chamado artesanato regional transformadas em emblemas de circulação nacional e internacional, a noção popularizada de etnográfico, são um legado de sentidos múltiplos e fluidos. Por si, o movimento folclórico veio criar a necessidade de uma textualização etnográfica do país. Por tal, entenda-se o levantamento não sistemático, mas nem por isso menos global, feito à escala nacional, assente em critérios não unificados, mas convergindo no sentido de criar na unidade nacional uma diversidade ponderada e equilibrada. Também neste aspecto se reconhecem características da modernidade. As representações territoriais relativas ao local ou ao regional alinham-se num tabuleiro mental, cujas coordenadas são consolidadas pela radiodifusão e, mais tarde, pela televisão. O movimento folclórico constitui um suporte de apoio para que, a nível local, as pessoas tenham melhor consciência de si próprias num todo nacional.

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Capa do primeiro fascículo do Mensário das Casas do Povo, Julho de 1946
Fonte: Ministério do Emprego e da Segurança Social, Centro de Documentação

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Augusto Gomes dos Santos, presidente da FFP, ministra curso de folclore e etnografia em Toronto, Canadá, de 6 a 12 de Março de 2000.

Notes de bas de page

1 Versão condensada e reformulada de um texto anteriormente publicado, onde analiso em pormenor as características e o conteúdo do MCP (cf. Branco 1999). Renovo os agradecimentos pessoais e institucionais então feitos, extensivos também ao arquivo do actual Ministério da Segurança Social e Trabalho.

2 Refiro-me a altos funcionários e a políticos com cargos no governo do Ministério das Corporações (mais tarde também da Previdência Social), como Jorge Felner da Costa (1916-1976), Fernando Cid Proença, Gonçalves Proença ou António Júlio de Castro Fernandes (1903-1975), logo no lançamento da revista. Todos eles defendem esta posição de princípio na política do ministério, onde se inseriam organismos como a Junta Central das Casas do Povo (JCCP) — de que, recorde-se, o Mensário era o órgão oficial —, ou a Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT). Esta última teve igualmente durante alguns anos uma revista, Alegria no Trabalho. Boletim da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (1945-49, perfazendo 60 fascículos), cujo conteúdo não tem interesse no contexto em apreço.

3 Não marcam presença no Mensário e pertencem a esta linha figuras então de grande destaque, como José de Sá Pereira Coutinho, conde de Aurora (1896-1969), Pedro Homem de Melo (1904-1984) ou Joaquim Sellés Paes de Vilas Boas (1913-1990).

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