Capítulo 7. Lisboa 94, Capital Europeia da Cultura
p. 171-187
Texte intégral
1Lisboa 94 (L94) marcou uma importante convergência nos calendários nacional e internacional.1 Comemorou-se a revolução portuguesa, marcando-se ao mesmo tempo a estreia cultural de Portugal na Comunidade Europeia (CE). Por isso, L94 celebrou simultaneamente a redução das fronteiras portuguesas que se seguiu à libertação das colónias e a expansão das fronteiras socioespaciais que se seguiu à integração na CE a partir de 1986. Esta negociação entre as forças em conflito da redução e da expansão e entre a liberdade nacional e a integração europeia, reflectiu-se notoriamente na publicidade e na requalificação urbanas, levadas a cabo no âmbito de L94.2
2No despertar de uma proliferação sem precedentes de aniversários, memoriais e comemorações em grande escala por todo o globo, muitos teóricos da cultura concentraram a sua atenção na análise de festivais nacionais (Turner 1982, Falassi 1987, Davis 1986, Handelman 1990, Ozouf 1988, Bennett e outros 1992, Gillis 1994, Kirshenblatt-Gimblet 1995, Ley e Olds 1988, Wallis 1994, Myerscough 1994). Num período em que as novas tecnologias de comunicação e a globalização do capital, juntamente com localismos emergentes, ameaçam a importância e a soberania do estado-nação, o festival cultural nacional representa um novo e “muito particular re-condicionamento” da imagética nacional (Wallis 1994: 267).
3Algumas investigações sobre a ideologia dos festivais nacionais focam frequentemente o artefacto e os eventos programados. No presente texto, sigo a recente chamada de atenção crítica de teóricos a favor de leituras politizadas e interdisciplinares do espaço (Soja 1989, Lefèbvre 1991, Certeau 1984, Harvey 1989, Rodman 1992), examinando a transformação do espaço urbano de Lisboa efectuada ao longo de 1994. Numa tentativa de revelar as “relações de poder… inscritas na espacialidade aparentemente inocente da vida social” (Soja 1989: 6), analisarei a retórica espacial das campanhas publicitárias de exterior e a requalificação urbana de L94, e examinarei ainda a produção performativa e a utilização destes espaços.
4No seu livro The Production of Space (1991), Henri Lefèbvre esboça as limitações gerais da semiologia como instrumento analítico aplicado ao espaço. A semiologia, argumenta, reduz o espaço às “marcações” e “traços” simbólicos, sem tomar em conta que o espaço simultaneamente se produz e é produzido, repleto de instruções “baralhadas”, “diversas”, “contraditórias em si” e “sobrepostas”. Argumenta, contudo, que certos espaços são criados para serem “deliberadamente legíveis”, e podem, por isso, ser descodificados como signos (1991: 140-147). Defendo que L94 produziu espaços — anúncios de exterior, intervenções urbanas e a construção e requalificação de recintos culturais — que foram “deliberadamente legíveis” — para apresentar uma imagem cultural de Portugal facilmente identificável. A minha análise, contudo, também considera a advertência de Lefèbvre. Empregando o paradigma da performance, coloco o “espaço legível” de L94 contra o pano de fundo de um meio urbano dinâmico, e ponho em primeiro plano os processos corporizados do uso e da produção do espaço — processos enformados pelas “instruções” da forma arquitectónica, bem como pelo movimento de outros corpos através do espaço.
5Esta análise é enquadrada pela minha experiência de quatro anos em Lisboa, de etnógrafa luso-americana interessada na performação folclórica portuguesa, de ter assistido à L94, e de “amateur de cidades”, “alguém que ama as cidades” (Barthes 1988: 191), no sentido em que Barthes aplica o termo em toda a sua ressonância etimológica. Utilizando comunicados de imprensa, programas de espectáculos, catálogos de exposições, documentos promocionais, artigos de jornais portugueses e estrangeiros e entrevistas com artistas e administradores de L94, examinarei o discurso oficial produzido pelos organizadores, a fim de abordar as seguintes questões. Como é que os organizadores de L94 “trajaram” o património edificado, a fim de renovaram a imagem cultural de Portugal? Como são espacialmente produzidos os temas articulados da liberdade nacional e da integração europeia? Também darei atenção ao feedback dado a tal produção espacial. Durante 1994, as condições socioeconómicas na cidade e as características pré-existentes do património edificado de Lisboa forneceram um contraponto dialógico, contestando a retórica espacial de L94. Quando considerada conjuntamente, esta amálgama de produção espacial cria uma representação da identidade portuguesa rica em nuances neste final do século XX, reveladora das ambiguidades e das contingências duma existência semiperiférica.
6Conceptualizei o “trajar” do espaço urbano usando a indumentária como uma metáfora central, não só porque a retórica do vestir é repetidamente evocada em recensões de jornal e em comunicados de imprensa relativos a L94, mas de igual forma, porque o acto de “trajar” é uma prática transformativa e significante. Na tradição dramática ocidental, a indumentária é aquilo que é deliberadamente acrescentado ou subtraído ao corpo do actor, a fim de alterar a sua imagem ou persona. Este é precisamente o modo como os organizadores de L94 conceberam e personificaram a metamorfose infra-estrutural de Lisboa. Na véspera de 26 de Fevereiro, Lisboa retirou “andaimes e tapumes”,3 mostrando orgulhosamente o seu “traje de gala” (Antunes 1994a, Guardiola 1994), os olhos postos no velho continente (Ruela 1993b), convidou o resto da Europa a testemunhar a sua espectacular transformação urbana.
Os objectivos do festival L94
7O festival L94, financiado em parte pelo governo (43%), pela autarquia (43%), por investidores privados (12%) e pela Comunidade Europeia (2%) (Myerscough 1994: 46), teve quatro objectivos distintos. De acordo com os organizadores do festival, a cidade devia: a) ampliar e desenvolver recintos culturais, b) utilizar em pleno a capacidade dos recintos culturais já existentes, c) aumentar a visibilidade do sector cultural e d) estimular o mercado cultural através da criação de novos públicos (Myerscough 1994: 189). Numa análise comparativa de todas as capitais europeias de cultura, de Atenas 85 a Lisboa 94, John Myerscough afirma que, ao contrário de muitas outras capitais culturais, a preocupação prioritária de Lisboa 94 foi a melhoria das infra-estruturas (1994: 9).
8Os objectivos de L94 não podem, contudo, ser analisados isoladamente. Lisboa 94 situa-se num continuum de eventos internacionais que expuseram Portugal durante os anos 90. Em 1991, Portugal teve um lugar central em Bruxelas, por ocasião do festival Europália. Em 1992, o país assegurou a presidência da União Europeia. E em 1998, Lisboa acolheu a Expo 98. O empenho sequencial de Portugal em eventos culturais internacionais obrigou a articular a recuperação de espaços culturais com a festividade cultural. Esta sequência produziu também uma dinâmica de interperformatividade aparentada à intertextualidade, na qual cada acontecimento se erguia sobre outros em continuum. A renovação contínua de Lisboa durante os anos 90 mantém-se, com o desvendar de edifícios recuperados gradualmente a par do espectáculo da nova arquitectura. A identidade cultural de Portugal, assim como as infra-estruturas de Lisboa, permanecem uma obra de improvisação em curso.
Oculto pela sombra: a campanha promocional falhada de L94
9A empresa de publicidade francesa Publicis/Ciesa (PC) ganhou o concurso inicial e lançou uma campanha de promoção pré-festival em 1993, com uma série de imagens fotográficas evocativas. Cadeiras isoladas de todos os tamanhos e feitios surgiam no primeiro plano de fotografias tiradas em vários locais pitorescos de Lisboa. “Elemento visual básico”, a cadeira sugeria supostamente a concepção-chave da PC relativamente a Lisboa “como um imenso palco” (Semanário Económico 1993: 39). As cadeiras ocupavam planos de espaço desprovidos de pessoas — à beira-rio, perto de uma escadinha calcetada, ao lado de colunas ornamentadas e dentro de um teatro. Nas legendas das imagens lia-se: “Estar em toda a parte”, “Estar à altura”, “Estar em maré alta”, “Estar por dentro” e “Estar muito ocupada”.
10A população lisboeta reagiu aos anúncios da PC com indiferença e desorientação. Um responsável de L94 citado pela imprensa portuguesa afirmou: “tivemos imensos telefonemas a perguntar qual era o sentido de uma cadeira, ainda por cima virada de costas para o Tejo” (O Independente 1994: 11). Em contraste com a retórica textual da campanha, que invocava vários estados corpóreos acentuados, a imagem fotográfica, focando uma cadeira isolada, por vezes revestida de tecido branco, sugeria torpor, solidão, mesmo desolação. A iluminação fortemente contrastante obscurecia as cadeiras, assombrando o espaço fotográfico. A campanha da PC recorreu a deixas visuais, que invocavam a melancolia mítica portuguesa, a nostalgia do passado vista a partir da sombra de um presente semiperiférico. Contudo, Portugal passou anos de isolamento forçado, arredado do continente. Uma cadeira desocupada nesse vazio assombrado não era o estilo de tratamento imagético que os organizadores de L94 esperavam.
11É deste modo que o filósofo Gaston Bachelard descreve as características físicas da sombra: “[A sombra] perdeu o seu ‘estar lá’ …(1994: 217). Quando aplicada à iconografia da imagem construída pela PC, a descrição sintestética que Bachelard faz da sombra enquanto” confuso zumbido" não localizável, contradiz o objectivo de L94 de centrar Lisboa, como uma presença audível, “no lugar cativo do mapa cultural da Europa” (Jornal de Notícias 1994: 10).
12Empregando a imagética da sombra, a PC obscureceu inadvertidamente a emergência simbólica de Portugal da escuridão periférica. O forte contraste entre os “dias de glória” de Portugal no século XVI e o seu actual estatuto a nível mundial actuou como uma pedra no sapato dos que tentavam reinventar uma imagem nova do país. Como uma jovem investigadora portuguesa descrevia, a memória histórica infesta o imaginário social português: “A nossa especialidade é a invocação de sombras… o mesmo velho filme do Império Perdido… Nunca recuperámos e somos incapazes de o esquecer. Se desligar a luz num quarto, vê… a sua imagem reflectida na retina. Esta é a nossa situação em relação ao império colonial perdido” (Enzensberger 1989: 159-160).4
13Ao peso da memória histórica junta-se o que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos diagnostica como a fixação de Portugal no passado, fruto de um “excesso mítico” literário produzido por um conventículo reduzido de elites culturais, divorciadas da crítica racional e separadas da engrenagem produtora de decisões que o estrato político constituiu, gerou, reproduziu e acumulou ao longo de gerações, dando origem a vastas quantidades de mitos interpretativos de Portugal e dos portugueses. De acordo com Santos, a elite cultural nunca foi forçada a comparar, aplicar ou verificar as suas ideias, confrontando-as com a realidade. Santos traça uma analogia entre a cegueira da elite cultural e a subsequente invisibilidade do país (1993b: 30-31).
14É precisamente este “excesso mítico” que L94 procurou combater, ao substituir a PC por outra empresa publicitária francesa, a Euro RSCC (ER). As fotografias etéreas e melancólicas da PC foram substituídas por imagens de acção e vigor. A estratégia da ER foi criar uma imagem clara e legível para Portugal, sem fixação no passado, orientada para o futuro, apontado para um novo caminho de visibilidade internacional do país como membro da União Europeia.
“Lisboa não pára!”: a substituição da estratégia publicitária de L94
15Letras vermelhas a cheio sobre painéis a negro prometiam aos passantes que “Lisboa não pára”. As fotografias de cunho realista da PC, com luz taciturna e em espaço tridimensional, foram substituídas por imagens claras e bidimensionais, de cores brilhantes, traços límpidos e símbolos largos e energéticos, que enfatizavam temas de acção e de cosmopolitismo. Estrategicamente colocados nas entradas da cidade, os painéis saudavam os turistas de L94 que chegavam de barco, de comboio, de avião ou de carro. A campanha “Lisboa não pára”, da ER, era entendida para “envolver e ‘pressionar’ aqueles cuja atitude passiva tem de ser alterada. [E] dar um ar festivo à cidade” (Euro RSCG s. d.).
16Na praça de Espanha, uma das entradas oeste da cidade, uma impressionante cadeia de rodas motorizadas que, literalmente, “nunca paravam”, decorava um grande painel colocado em cima de duas majestosas colunas negras. Sete rodas dentadas giravam sem parar, espelhando a rotunda da praça, que orienta múltiplas faixas de trânsito, tanto para dentro como para fora da cidade. O movimento lustroso e sedutor das cremalheiras circulando ad infinitum dava contudo um ar de ironia a este ponto nevrálgico da cidade. Na praça de Espanha formam-se frequentemente engarrafamentos, sendo este problema criado pelo aumento do tráfego resultante da modernização que L94 celebra. A questão do tráfego foi abordada em várias avaliações de L94, como impeditiva do acesso do público aos eventos culturais ou, pelo menos, como tornando essa experiência menos agradável (Público 1994: 28). Numa entrevista de 1994 com o escritor e prémio Nobel José Saramago, intitulada “Mi Lisboa ya no existe”, o “barulho”, a “poluição” e o “trânsito infernal” eram referidos como elementos novos e condenáveis numa Lisboa em mudança, de que não gosta, e que não reconhece (Arias 1994: 2).
17Além de representar mobilidade física, o painel da praça de Espanha também aludia à indústria e ao progresso. Rodas douradas de várias dimensões vacilando horizontalmente numa superfície negra sugeriam, contudo, a labuta e as chaminés fumegantes do século XIX, e não a tecnologia da era cibernética em final do século XX. Este simbolismo é particularmente ressonante, quando perspectivado com o desenvolvimento económico de Portugal em relação ao do resto da Europa. A industrialização portuguesa não ocorreu antes de meados da década de 1950, quase um século depois da da Europa do norte e 50 anos após a dos outros países na periferia da Europa, como a Suécia e a Rússia (Neves 1994: 48-49).5
18O crescimento industrial português deu-se, por isso, num período de tempo condensado. Certas fases do desenvolvimento foram aceleradas, e outras nem se realizaram. A modernização industrial portuguesa é caracterizada, em termos socioeconómicos, por irregularidade e fragmentação. O sociólogo Augusto Santos Silva sublinha a inconsistência regional do desenvolvimento socioeconómico de Portugal. O desenvolvimento nas últimas décadas não seguiu um padrão linear de progresso, tendo antes sido caracterizado por uma “dinâmica complexa de coexistências, adaptações, dissoluções, reemergências, reestruturação e intersecções” (1994a: 149). Se considerarmos estas dinâmicas de “coexistência”, ao analisarmos a publicidade de L94, o painel da Praça de Espanha deixa de parecer anacrónico. Os símbolos visuais evocando a indústria do século XIX coexistiam com outra publicidade de exterior promovida por L94; por exemplo, as mensagens digitais. Neste sentido, a campanha “Lisboa não pára” trazia à ribalta uma série de referências tiradas do percurso da modernização e da industrialização portuguesas, que sendo do presente, simultaneamente estavam orientadas para o futuro europeu.
19Na fachada da estação ferroviária de Alcântara-Mar, um painel de grandes dimensões projectava uma mensagem digital em contínuo, com o seguinte texto: “Lisboa dança… Em Lisboa a liberdade é muito mais que a Avenida. É a cidade inteira. Estamos no meio dum palco com 807.937 hectares. Lisboa está em cena. Lisboa está em exposição… Escute e olhe… mas não pare. Em Lisboa não há intervalos…” Esta proclamação, emitida na tonalidade escarlate dada pelo digital irradiando do painel a negro polido, elevava-se sobre o velho casario de Alcântara. Carregada de tropos descritores da metamorfose contínua de Lisboa, a mensagem do painel fornecia um leque vertiginoso de metáforas conceptuais, que permitiam a compreensão da nova identidade da cidade. Esta mensagem em suporte electrónico revela a estratégia promocional, na qual meta-rótulos são ensaiados, retirados e repostos. O painel de Alcântara era resultado das ideias-mestras de L94; colocava a natureza processual e inacabada da requalificação urbana no final do século XX, que permanecia aberta ao escrutínio público. Parecia que a ER não era capaz de decidir a toilette que Lisboa iria usar na noite de estreia, tendo optado por sobrepor várias vestes até que o manequim urbano ficasse com uma sobrecarga representacional.
20Coagidos pelo painel “Escute e olhe… mas não pare. Em Lisboa não há intervalos”, o público não tinha tempo para dialogar ou sequer comentar. A mensagem do painel parecia sumariar o ritmo frenético da transformação da cidade e uma antevisão do que estava para vir. De facto, tem havido muito poucos compassos de espera na última década, período em que os financiamentos comparticipados por fundos europeus, do governo português e de investidores privados, finalizaram a primeira auto-estrada ligando as duas maiores cidades do país, Lisboa ao Porto, renovaram o metropolitano lisboeta e edificaram megacentros culturais, hipermercados e condomínios com áreas comerciais. Durante este processo, Lisboa esteve de facto em “cena”, numa posição com consequência global perante a CE. Boaventura de Sousa Santos assinala, contudo, que tem sido dada pouca oportunidade aos portugueses de “escutar” ou “olhar”, muito menos de “parar” e ponderar a transformação radical do seu país desde a adesão à União Europeia. De acordo com Santos, o estado negociou a entrada de Portugal na UE “sem consultar as organizações dos diferentes grupos de interesses sociais. Várias sondagens, não só à generalidade da população, mas aos próprios empresários, revelaram um desconhecimento quase total das consequências económicas, políticas e sociais da adesão à CEE” (1993a: 50). Santos adverte para um futuro onde o entusiasmo imediato, relativamente à vistoria das infra-estruturas portuguesas, se transformará num desapontamento a longo prazo, altura em que a Europa se tornará mais competitiva no seu mercado global a expensas da sua própria periferia (portuguesa) (1993a: 53).
21Proclamando que “a liberdade é muito mais que a Avenida”, o painel de Alcântara-Mar invoca um dos mais poderosos símbolos lisboetas. Em 1919, o poeta Fernando Pessoa descrevia a avenida da Liberdade como “a mais bela artéria de Lisboa” (Pessoa 1992: 47), um símbolo material que formou a pedra angular do projecto patriótico do poeta, que lutava contra a despromoção de Portugal do estatuto europeu e civilizado (Lopes 1992: 18).
22Décadas depois da descrição de Pessoa, a avenida transformou-se no objecto de um projecto patriótico diferente. De acordo com Eduarda Dionísio, a avenida serviu como “o tema urbanístico de Lisboa quando o 25 de Abril rebentou” (1993: 38). Pouco depois do golpe de 1974, o arquitecto Vieira de Almeida elaborou um plano ambicioso para a sua conservação. A avenida — um poderoso símbolo da liberdade recuperada em 1974, é uma artéria que deveria, por isso, servir uma “função colectiva” — estava em grave risco de cair em declínio ou ser monopolizada pela irresponsabilidade social de empreiteiros da construção civil (Almeida, P. 1994a).
23O plano de Almeida nunca se concretizou e o desenvolvimento da avenida permaneceu fragmentado, tendo esta chegado ao seu actual estado: espaços de escritório modernos e resplandecentes confinam com edifícios decadentes e abandonados. Na preparação para a Lisboa 94 e a Expo 98, contudo, os autores de projectos urbanísticos e os seus políticos revisitaram o tema da avenida, propondo ideias para um novo plano de recuperação. Durante o último século, esta incapacidade para criar um acordo relativo à “função colectiva” deixou a “artéria mais bela” de Lisboa transformar-se num pot pourri esquizofrénico de grandes edifícios modernos, elegantes vivendas antigas, velhos edifícios degradados com grafitti alusivos ao Partido da Terra e espaços vazios deixados pelas demolições recentes.
24Nomeada na campanha publicitária, a avenida e o seu actual estado físico suscitam interrogações. Como é que este poderoso símbolo urbano articula os ideais da liberdade? E como é que, por sua vez, a comemoração dos 20 anos de liberdade se reflecte em L94? Dionísio compara a mistura de estilos arquitectónicos discrepantes da avenida e a delapidação ou preservação da mesma, aos actuais programas de televisão portugueses, nos quais cantores de música folclórica, divas de ópera e bandas de rock actuam seguidos no mesmo espaço de programação (1993: 38). Esta mistura do velho e do novo, do tradicional e do moderno, do barroco e do minimalista, vista como um produto de pobres ou como um plano inovador, foi a opção dos organizadores de L94. A SL94 procurou infligir “um equilíbrio justo no programa que [era], por escolha deliberada, nem elitista nem conscientemente populista” (Myerscough 1994: 196). Além disso, Vítor Constâncio define L94 como um “vasto exercício de democratização da cultura” (Antunes 1994b: 10). Embora a avenida da Liberdade não estivesse “arranjada” para L94, como o estavam outros espaços urbanos, e embora ela exista para muitos como um triste testemunho do avanço revolucionário falhado, ela ergue-se como um reflexo irónico da ideologia de L94.
25Contrastando com a difícil representação material da liberdade, a Divisão de Música Popular de L94 despendeu uma porção considerável do seu orçamento na produção dos celebrados “sons” da liberdade, um álbum de dois CD intitulado Filhos da Madrugada e dedicado a José Afonso. Este álbum reúne 19 grupos numa homenagem ao autor de Grândola Vila Morena. Constituindo “um dos mais significativos êxitos da indústria discográfica portuguesa” (Música Popular: 26), este álbum revela talvez uma aliança mais fácil entre a memória, a liberdade e a efemeridade do som, em oposição à materialidade de tijolo e argamassa da avenida, carregada de cicatrizes da história.
26A ER também colocou um painel de L94, realçando filas de relógios coloridos, nas docas ribeirinhas junto à praça do Comércio. Os relógios acertados por fusos diferentes representam uma Lisboa cosmopolita, onde estrangeiros chegam à cidade por mar e vêem, pela primeira vez, a majestosa praça do Comércio. Esta famosa praça, uma das maiores da Europa, “é onde tem origem Lisboa, cidade marítima por excelência, convidando o visitante a subir a escadaria baixa das margens para terra seca e a entrar nos seus domínios” (Coimbra 1990: 76). Os edifícios governamentais em rosa velho na praça do Comércio têm sido chamados “o abraço cor-de-rosa, saudando todos os homens de boa vontade” (Coimbra 1990: 76). A descrição erotizada da referida praça transforma Lisboa numa sedutora. Barthes teoriza um erotismo da cidade, na qual o centro urbano, um ponto de encontro sexualmente carregado, é “o sítio do nosso encontro com o outro” (1988: 199). Durante L94, então, a cidade, como “grande dame, o Tejo a seus pés”, convoca “todos os seus poderes de sedução” (Kaplan 1991: 282) e em pose à beira-rio na praça do Comércio, penteada e vestida de novo, aguarda a oportunidade para “produzir uma agradabilíssima impressão aos mais exigentes turistas” (Pessoa 1992: 41).
27De facto, os paquetes de luxo navegam frequentemente junto às docas perto da praça do Comércio, os turistas desembarcam e visitam o “abraço cor-de-rosa” lisboeta. A indústria turística portuguesa, que cresceu mais 6% em relação a 1994, tem vindo a aliciar o turista com renovado vigor, ao mesmo tempo que o comércio ligado ao turismo é uma componente cada vez mais importante da economia nacional. Alguns teóricos sugerem que o país mais meridional da Europa se transformará num espaço de lazer para a Europa industrializada. Henri Lefèbvre perspectiva países como Portugal numa espécie de “espaço de não trabalho… reservado não apenas para férias, mas também para convalescença, repouso, retiro, etc.” (1991: 58).
28Embora este possa ser o futuro português mais próximo, particularmente na faixa litoral, no plano urbanístico Lisboa está empenhada na acomodação de torrentes de trabalhadores residentes e dos turistas. Os “turistas exigentes” que Pessoa descreve, devem agora enfrentar milhares de pessoas que se deslocam diariamente nos cacilheiros para a praça do Comércio. Embora não sejam estes os viajantes-alvo da campanha publicitária de L94, muitas destas pessoas, de etnias variadas, são recém-chegadas a Lisboa e constituem a nova face da mão-de-obra portuguesa. A população africana de Lisboa tem vindo a crescer constantemente desde o fim da guerra colonial, em 1974. Lisboa é uma das cidades europeias com mais residentes africanos, acima da centena de milhares (Rivas 1994a). A grande transformação de Portugal, “[de] o único estado-nação uniétnico da Europa” (Santos 1993b: 22) para um pequeno melting-pot com imigrantes africanos e asiáticos, reflecte-se na vida cultural “não oficial” de Lisboa, incomodamente representada na publicidade de L94.6
29O lema oficial de L94, “Lisboa: ponto de encontro de culturas”, foi obscurecido por preocupações mais imediatas, como a europeização da imagem de Portugal. Victor Constâncio articula o primeiro objectivo de L94, como sendo integrar Portugal na cultura europeia, reforçar essa presença e alcançar maior visibilidade (cf. Constâncio 1994: 3). Os promotores também afirmaram que a “missão cumprida será [a] projecção da cidade no contexto europeu” (Antunes 1994b: 10). L94 minimizou a relação de Portugal com África durante a promoção e a programação. O lema “ponto de encontro de culturas”, com que se pretendia evocar os laços pós-coloniais de Portugal com a África e a Ásia lusófonas e a própria identidade de Lisboa como “uma importante cidade africana” (Rivas 1994a: 6), soa bastante oco; Portugal coloca o seu olhar na integração europeia, enfatizando uma pertença ocidental distinta.
30Do mesmo modo que Benedict Anderson (1993) coloca a imprensa como a materialidade da qual emerge a consciência nacional, o painel do relógio na praça do Comércio fornece um objecto para a contemplação pública da pertença internacional, uma pertença, contudo, que privilegia a coesão europeia mais do que outras associações globais. O painel de L94, no qual relógios acertados por diversos fusos horários partilhavam o mesmo espaço, evocava não só uma falsa semiótica do globalismo a-hierárquico (onde todos os fusos horários existiam no mesmo plano bidimensional e lhes era dado o mesmo campo visual), como também se subverteu a si própria; nenhum dos relógios cumpria a função de assinalar a hora! A campanha promocional centrada em torno de uma actividade cultural contínua — “Lisboa não pára” —, apresenta um problema de ordem hermenêutica, erguendo relógios cujos ponteiros estão literalmente fixos.
31Deve o espectador assumir uma imagem de Portugal parado no tempo — como a estância de férias remota que Lefèbvre tinha em mente? Um tesouro antropológico a deixar imperturbado no seu presente intemporal? Fará o painel um prognóstico do papel de Portugal enquanto intermediário entre o primeiro e o terceiro mundos, onde o tempo estancou e as feridas da história são negociadas e saradas? Ou talvez, de forma mais imediata, o painel represente uma comunidade municipal que parou o tempo, a fim de se preparar para uma década de mega-eventos, suplantando e talvez impedindo a produção cultural espontânea do quotidiano? Eduarda Dionísio descreve a cultura portuguesa de hoje como ocupando um espaço liminar estagnado entre as inaugurações e encerramentos oficiais, com “não espaço [nem tempo] para o presente” (1993: 112, parêntesis meus). Nos anos 90, a cultura portuguesa ficou por completo absorvida pela concepção de uma nova roupagem para o espaço municipal lisboeta, para elaboração duma outra imagem nacional.
De trapos a mini-saias: a renovação do Coliseu
32Medida pelas receitas do turismo, pelas dotações orçamentais e pelos pontos percentuais, a cultura portuguesa foi, nos anos 90, uma parcela específica da economia, onde a visibilidade dos recintos culturais está constantemente a variar e “o critério de ‘rentabilização’ está presente no desaparecimento dos espaços culturais e na utilização de outros para fins semelhantes” (Dionísio 1993: 93-94). Os objectivos de L94 centravam-se não só no preenchimento dos recintos culturais, através do estímulo de novos mercados, mas também na criação e renovação de recintos culturais concebidos para rivalizar com os das outras capitais ocidentais.7
33L94 patrocinou a renovação de vários edifícios, entre os quais o Coliseu dos Recreios, o Museu Nacional de Arte Antiga, o cine-teatro Tivoli e o Museu do Chiado, enquanto novas edificações, em particular o colossal Centro Cultural de Belém (CCB) e a Culturgest, apresentados no início dos anos 90, foram consideradas grandes revelações de Lisboa 94.
34Entre as renovações de casas de espectáculo, feitas no âmbito de L94, o Coliseu dos Recreios, um espaço percebido como um “autêntico emblema da cidade” (Silva 1993: 38), foi considerado o “ex-libris de Lisboa 94" (Pomar e Portas 1994: 46). O Coliseu de Lisboa, construído em 1890, ergue-se majestosamente na rua calcetada das Portas de Santo Antão, à distância de um quarteirão da avenida da Liberdade. Sendo a maior sala de concertos em Portugal, o Coliseu de Lisboa mantém uma identidade mítica. Ostentando mais de um século de actividade cultural ecléctica, da ópera ao circo, dos combates de boxe aos Ice Capades, dos comícios ao bailado, passando pelo fado e pelos desfiles de moda, o Coliseu” guarda entre as suas paredes a memória de alguns dos mais importantes momentos da vida cultural de Lisboa" (Silva 1993: 38).
35Contudo, nas últimas décadas, as imediações, a programação e o público do Coliseu degradaram-se como nunca. A entrada foi utilizada para bingo; no bar dos andares superiores havia peep shows e apresentava-se streap tease e danças exóticas. As cadeiras e o interior do edifício deterioraram-se, chegando a um estado generalizado de descuido. Como escrevia um jornalista, “ultimamente… pairava sobre [o Coliseu] o espectro da decadência, adivinhava-se um futuro sombrio” (Silva 1993: 32). Dada esta situação, era imperioso que o Coliseu de Lisboa fosse incluído nos ambiciosos planos de L94 em termos de recuperação de recintos culturais importantes, dignos do rico património arquitectónico de Lisboa. No seu artigo “Identity, heritage, and history”, David Lowenthal explica a importância de manter os edifícios históricos: “A arquitectura e outras manifestações materiais do património aumentam a identidade e a auto-estima comunitária. Um património rico e representativo é mantido para promover a cidadania, para catalizar a criatividade, para atrair a simpatia estrangeira e enriquecer todos os aspectos da vida nacional” (1994: 45).
36O arquitecto contratado para remodelar o Coliseu, Maurício de Vasconcellos, pretendia “melhorar as valências do espaço, proporcionando maior comodidade ao público” (Ruela 1994: 83). Vasconcellos pretendia também “não retirar nunca as suas memórias — mas actualizá-las. Quis fazer um Coliseu novo sem perder o antigo” (Ruela 1994: 83).
37Durante um ano, o Coliseu fechou as suas portas para se concretizarem as obras de remodelação propostas por Vasconcellos, orçadas em mais de um milhão de contos. Embora a intenção do arquitecto fosse contar com os fundamentos de memórias já existentes, muitos críticos enfatizaram a transformação radical do teatro. O palco foi reconstruído, os equipamentos de som e de iluminação modernizados, a plateia reorganizada, o átrio e a entrada redesenhados, o bar do peep show deitado a baixo, os camarins ampliados e melhorados, o número de instalações sanitárias aumentado, abertas mais saídas de emergência e instalado um novo equipamento contra incêndios, concebidas uma livraria e uma discoteca sofisticadas, construídos um grande auditório, uma sala VIP e uma sala de imprensa. A jornalista Rosa Ruela descreveu a metamorfose do Coliseu em termos de traje: “O Coliseu era uma senhora de muita idade com uns trapos velhos… De repente, passou a ser uma senhora de mini-saia. É outra.” (1994: 83). Uma mulher de mini-saia, insinuante, sexy e moderna, corresponde ao alvo apontado por L94 para refazer a imagem da cidade.
38O próprio arquitecto reconheceu que o impacte visual do Coliseu constitui “uma mudança total” (Ruela 1994: 83). Dominada por tons de prata, cinzento carvão, preto e branco, a nova gama de cores contrasta com o velho Coliseu decorado que estava em tonalidades de bordeaux e castanho. “Claro, lavado e com um vago ar de Centro Cultural de Belém… O Coliseu está também mais frio. Funcional e confortável, a própria sala de espectáculos peca por não ser aconchegante” (Ruela 1994: 83). Um ambiente ameno, delicado e aconchegante, contudo, não era o efeito visual desejado, quer pelo arquitecto, como por L94. Tal como o Centro Cultural de Belém e a Culturgest, a acutilante remodelação do Coliseu resultou num espaço impessoal, remetendo para um ambiente de trabalho “de bata branca”, e não para a intimidade mais suave do lar.
39A grande proximidade entre os espectadores foi de igual modo evitada pelo novo alinhamento dado aos assentos. Anteriormente, a geral do Coliseu estava estruturada em longas filas de bancos de madeira corridos. A disposição propiciava uma sensação extremamente claustrofóbica na assistência. A geral, em muitos eventos esgotada, com as pessoas apertadas, proporcionava alguns incómodos, como o “lendário pontapé nas costas” (Martins 1994a: 16). Vasconcellos melhorou estas condições, afastando os assentos da geral, de modo a que cada pessoa do público ocupasse um lugar marcado, agora com 50 centímetros de largura.
40Embora alguns jornalistas caracterizassem a remodelação dos lugares na geral como a “surpresa mais agradável” (Silva 1993: 36) conseguida por Vasconcellos, outros sentiam que os espectadores da geral achariam os novos assentos “estranhos” (Ruela 1994: 83). Na minha qualidade de frequentadora assídua antes e depois do advento de lugares marcados no Coliseu, posso atestar o maior conforto proporcionado pelo aumento da distância lateral, pelo espaço previsto para as pernas e pelas cadeiras estofadas. Os antigos assentos aglutinados da geral, contudo, eram ocupados por gente mais jovem, com menos poder de compra, e a zona ficou conhecida como o sector de comportamento transgressivo e de crítica articulada por exclamações em voz alta. Dada a proximidade física e a resistência colectiva às condições de assistência adversas, os espectadores da geral muitas vezes partilharam aquela experiência que o antropólogo Victor Turner define como “communitas” (1969: 97). Na antiga geral, pediam-se e davam-se cigarros, passavam-se garrafas de bebidas alcoólicas, emprestavam-se e pediam-se emprestados casacos e travavam-se diálogos. Se, numa noite, um intérprete era pouco apreciado, a assistência da geral apupava, interrompia ou mais frequentemente batia os pés, amplificando-se o ruído pelas tábuas do soalho.
41Pela separação física dos corpos, os lugares individuais impediam a “imediatez espacial” característica da communitas. O envolvimento físico pelos encostos altos das cadeiras e respectivos braços encorajava trocas de opiniões entre gente que se conhecia e não um diálogo público alargado entre estranhos. O comportamento barulhento incontrolável da geral foi contido pelo design dos assentos e pela reconfiguração espacial. Esta mudança arquitectónica implicou uma alteração comportamental clara, assumida pelo público lisboeta. Como Ruela descreve: “Uma coisa é certa: acabaram-se as pateadas que faziam estremecer o Coliseu. Reconstruída em betão, a ex-geral é agora uma menina muito bem comportada” (1994: 84).
42Ruela emprega o corpo feminino para personificar a mudança espacial e caracterizar com uma metáfora a “personalidade” das bancadas da geral. Esta figura feminina não fuma, não bebe, não grita, nem bate o pé e é “muito bem comportada”. A renovação do corpo feminino foi um factor para a demolição do “Bar 25". Desalojando o nu feminino, Vasconcellos e L94 limparam a imagem do Coliseu.
43A substituição das dançarinas exóticas por elegantes capas de vídeos, livros e CD ocorreu em sintonia com a radical reprogramação do cartaz do Coliseu ao longo de 1994. A L94 substituiu circos, combates de luta livre americana, acrobacias, boxe, espectáculos de magia e outras “variedades” por eventos “mais eruditos” (Ruela 1994: 84). Ao invés, o Coliseu viu esgotarem-se espectáculos das melhores orquestras e óperas do mundo. Ao longo do ano, passou a dominar a programação “erudita”. Uma grande parte da publicidade e do orçamento de L94 destinaram-se a custear música e dança “clássicas”. A Divisão de Música Popular orientou os seus esforços para o Projecto Fado, uma pesquisa de dois anos que culminou numa exposição montada no Museu Nacional de Etnologia, intitulada Fado: Vozes e Sombras. Esta exposição procurou dignificar a mais importante música popular de Lisboa, pelo seu estudo científico (Carvalho 1994: 124) e por uma exposição etnográfica — um tratamento “limpo e sóbrio” de um género performativo conotado com desvio social.
44Combinando uma programação “erudita” com a remodelação do Coliseu, L94 mudou profundamente o espaço cultural emblemático de Lisboa. Estas transformações não “actualizaram” a longa memória do Coliseu, como Vasconcellos desejava, mas, em vez disso, recondicionaram-na. Este recondicionamento mnemónico, parte integrante duma viragem rumo ao centro europeu, implicou de igual forma “esquecimentos combinados” (Gillis 1994: 7). A assistência do Coliseu foi solicitada a pôr de parte um passado de programação ecléctica; a esquecer os nus femininos contratados pelo “Bar 25" e a velha mulher esfarrapada ensombrando o espaço. Ao público da geral foi pedido para esquecer as manifestações espontâneas, para ocupar lugares individuais e para ser” bem comportado". O Coliseu remodelado enterrou as camadas mnemónicas sob demãos de pintura, pronto para uma nova era europeia.
A guerra aos rosa: a intervenção urbana em Lisboa
45Os organizadores de Lisboa 94 promoveram activamente a vivência nas ruas da cidade. Para esse efeito L94 despendeu mais de 200 mil contos e empregou uma enérgica equipa liderada por Elísio Summavielle para o projecto de intervenção urbana designado “Sétima Colina”. Posto em prática numa zona histórica de Lisboa, ao longo do trajecto entre o cais do Sodré e o largo do Rato, o projecto combinou de modo inovador um amplo restauro arquitectónico com ofertas culturais em recintos fechados e ao ar livre, 24 horas por dia de transportes públicos e descontos no comércio local. Tratou-se duma tentativa para motivar os lisboetas a deixar o conforto das suas casas e a revisitar a “Lisboa Romântica”. Embora a “Sétima Colina” tenha editado mapas pormenorizados e assegurado visitas guiadas, o objectivo do seu roteiro era “não indicar nenhum percurso particular”, mas libertar o peão de modo a que este possa “(…) traçar o seu passeio, visitas ou escolher os seus interesses consoante as rubricas à sua disposição” (Perdigão 1994: 1).
46Denominado a “face de Lisboa”, o projecto em causa suscitou mais comentário público do que qualquer outro evento de L94 (Coutinho 1994: 29). Summavielle e a sua equipa repintaram as fachadas de 70 edifícios ao longo do trajecto principal da “Sétima Colina”, delineado para “devolver ‘as cores’ à capital.” Acreditando que Lisboa “usa e abusa dos cinzentos e cor-de-rosa”, instituiu uma “guerra aos pinkes” substituindo os rosa por outras mais fortes — “ocre, azul e sangue de boi” (Ruela 1993a: 10).
47De modo a não impor uma estética numa área residencial flagelada em anos passados por “conspiração… PIDE… e censores”, Summavielle e a sua equipa dirigiram-se aos proprietários dos 70 edifícios da área, pedindo autorização para repintar os seus prédios (Martins 1994b: 8). De acordo com Summavielle, a resposta do bairro foi inicialmente contida. Mas depois de vários edifícios municipais terem sido pintados, os proprietários colaboraram. Summavielle encarou todo o processo de repintura como “essencialmente pedagógico… os proprietários estão muito mais conscientes do valor arquitectónico dos seus prédios e para os interiores estão já a pedir fundos ao RECRIA” (Martins 1994b: 8-9).
48Estes 70 edifícios de cores vivas tornaram-se rapidamente objectos da curiosidade pública, assunto de diálogo animado e, por vezes, de críticas severas. Summavielle estava convencido de que 50 anos de fachadas cinzentas, simbolizando a opressão e a degradação urbanas ocorridas durante o fascismo (Martins 1994b), poderiam ser erradicados, devolvendo Lisboa à sua forma resplandecente do século XIX (Ruela 1993a). Arquitectos, jornalistas e outros debateram a ética e a eficácia do esquema cromático da “Sétima Colina”. Havia um consenso para que cada edifício fosse restaurado por um arquitecto diferente, combinando estéticas individuais. Outros ainda, como o jornalista Pedro Vieira de Almeida, questionaram a ideia, afirmando que “a cidade foi e será sempre um artefacto colectivo, com a sua própria autonomia. Não poderá haver um proprietário único, ninguém a executar uma intervenção isolada, nem mesmo com respeito à cor” (1994: 9).
49Seguramente, empregar uma oligarquia para interpretar o significado da cor e repintar uma faixa inteira da cidade parece perigosamente semelhante às práticas ditatoriais que L94 condenou através da sua comemoração da liberdade pós-revolucionária. Contudo, Summavielle trabalhou os moradores, que se caracterizavam por diferenciações no plano socioeconómico (Ruela 1993b), procurando encontrar colaboração e consciência comunitária. Estas iniciativas estenderam-se para além de L94, porque os presidentes das juntas de freguesia da “Sétima Colina” juntaram-se às autoridades municipais para dar continuidade aos eventos culturais ao longo de 1995 (Bertrand 1994). Além disso, o projecto “Sétima Colina” pretendia fomentar a auto-estima da comunidade através da remodelação das fachadas (e, mais tarde, por iniciativa dos proprietários, do espaço interior). Nos meses que se seguiram, uma nova leva de edifícios foi surgindo, colorida, dentro da “Sétima Colina” e para além dela (Ribeiro 1994). A “Sétima Colina” procurou criar novos públicos para os grandes recintos culturais e para estabelecimentos no Bairro Alto e no cais do Sodré, tais como restaurantes, lojas de artesanato, boutiques, casas de fado, bares e discotecas. Conseguiu-se a adesão dos comerciantes no sentido de oferecerem descontos nos seus restaurantes, clubes e lojas, e em troca tiveram publicidade nas brochuras e nos guias turísticos de L94.
50A transformação da roupagem urbana da “Sétima Colina” tornou estranho o que era familiar, fazendo nascer nos lisboetas uma consciência do espaço e um empenho com a imagem em mudança da sua cidade. Em contraste com a alteração do Coliseu, que procurou banir o corpo indisciplinado e abafar a voz mal educada, o projecto “Sétima Colina” encorajou aquilo que Michel de Certeau designou “caminhada como enunciação” (1984: 98), onde o movimento físico através do espaço público coincide com a vocalização da opinião pública. Acolhendo o direito à livre expressão e ao movimento no espaço público, a L94 encenou uma intervenção urbana que comemorou 20 anos de liberdade, reforçando os ideais democráticos.
Conclusão
51Tentados pela promessa de que “Lisboa não pára”, mais de milhão e meio de pessoas, sobretudo turistas nacionais, consumiram a feira cultural de L94, demonstrando “que os portugueses estão com fome de cultura” (Braga 1994: 2). O público das galerias e dos museus cresceu muito, atingindo um total de 685.000 entradas, das quais 323.000 se reportam a eventos de música popular (Braga 1994: 2). O programa de grandes orquestras mundiais esgotou-se. Os recintos de espectáculos tinham a lotação completa. Um novo fluxo de peões reanimou a área da “Sétima Colina”. De acordo com responsáveis da área de relações públicas de L94, “o público ultrapassou largamente tudo o que podíamos imaginar” (Braga 1994: 2). Lisboa 94 também teve sucesso na concretização dos seus quatro objectivos: criar novos públicos, encher por completo os recintos existentes, restaurar salas de espectáculo e aumentar a visibilidade do sector cultural. L94 atingiu os seus objectivos sem ultrapassar o orçamento inicial de 8 milhões de contos (Artur 1994).
52A equipa de L94, cujos membros representavam os dois principais partidos políticos e os governos municipal e central, congratularam-se com o êxito alcançado. Alguns jornalistas, contudo, refrearam esse entusiasmo, apresentando dúvidas sobre a duração da animação cultural da cidade. Outros ainda, como Alexandre Pomar, Miguel Portas e Eduarda Dionísio foram mais pessimistas. Dionísio afirma que hoje é “muito mais difícil encontrar um inimigo claro… era preciso pensar muito mais para não se gostar de Cavaco, da CEE e do Centro Cultural de Belém…” (1993: 32). Dionísio pondera o modo como o espectáculo nacional em grande escala esconde hegemonia, pois em edifícios como o CCB o poder permanece ilusivo e não localizável; tanto a CEE, como o anterior primeiro-ministro Cavaco Silva mascaram e ocultam uma agenda política sob o manto da cultura.
53No seguimento das convulsões que acompanharam as transformações espaciais, socioeconómicas e políticas desencadeadas pela revolução de 1974 e pela integração na CEE em 1986, os especialistas portugueses debatem até que ponto Portugal sofre de uma crise de identidade (Lourenço 1994, 1992; Santos 1993a, 1993b; Cruz 1992; Macedo 1990, Rivas 1994b; Herr e Polt 1989; Sapega 1995; e Almeida 1991). Respondendo implicitamente a estes debates, L94 empenhou-se em fabricar uma nova imagem para Lisboa e, por extensão, para o país. Examinando a produção espacial de L94, começamos a compreender o modo como a classe dominante desenhou a inclusão de Portugal na Europa. De acordo com a campanha publicitária de L94, Portugal já não era um país na orla do continente e confinado ao isolamento cultural. Por meio de vitalidade, labor e tenacidade que “não pára [m]”, Portugal vai erguer-se para integrar o centro duma Europa unificada. Os espaços legíveis sobrepuseram, confinaram e dissecaram um palimpsesto de espaço social que foi devolvido pela roupagem de L94. Expondo os custos da modernidade, a fragilidade da liberdade e as cicatrizes do subdesenvolvimento, tais contradições não permitem uma formulação redutora da imagem cultural e da posição política de Portugal numa Europa unificada. “Portugal, ao contrário dos outros povos europeus, teve de ver-se em dois espelhos para se ver, no espelho de Próspero e de Caliban, tendo a consciência de que o seu rosto verdadeiro estará algures entre eles” (Santos 1993a: 33).
54O país é uma mistura quixotesca de colonizado e colonizador, uma nação de imigrantes e emigrantes, um país que está ao mesmo tempo em nenhum lugar e em toda a parte. Apesar de L94 ter optado por desenvolver a componente Próspero da identidade híbrida de Portugal, a natureza inacabada e por vezes provisória da roupagem de Lisboa 94 garante que a viagem de Portugal na descoberta nacional de si próprio prosseguirá no novo milénio.
Notes de bas de page
1 Tradução do inglês de Catarina Silva Nunes e revisão técnica de Salwa El-Shawan Castelo-Branco.
2 A pesquisa para este artigo contou com o apoio da Northwestern University’s Alumnae Fellowship e com um subsídio da Joint Committee on Western Europe do Council for Learned Societies e do Social Science Research Council, com fundos das fundações Ford e Mellon. Uma versão anterior deste artigo foi apresentada na International Performance Studies Conference, Evaston, Illinois, em 1996. Gostaria de agradecer a Sofia Silva, pela ajuda na recolha de materiais impressos sobre Lisboa 94, e a Tracy Davis, Catherine Cole, Bruno Taboul, Helena Correia, Tim Raphael, Dorothy Noyes, Dwight Conquergood e Salwa Castelo-Branco, pela leitura cuidadosa e pelos comentários que fizeram a versões anteriores. O texto é da minha inteira responsabilidade.
3 No original, “Lisbon took’off her braces and glasses” (Provan 1994: 30).
4 O ditador português, António Salazar, expressa uma dinâmica similar: “O passado do nosso país é cheio de glória, cheio de heroísmo, mas aquilo de que necessitámos nos últimos 100 anos tem sido menos brilhantismo e mais poder estável, algo menos vistoso, mas com mais perspectiva. [As memórias] das nossas páginas de passado glorioso [fazem-nos] queimar-nos em chamas, e depois cair em fatalismo melancólico… É esta a causa de sermos um povo triste; estamos removidos das realidades da vida, porque somos dados a viver num heroísmo fraudulento” (Ferro 1939: 248-49).
5 O economista João César das Neves afirma que o desempenho económico português, embora não estagnado, foi muito menos dinâmico que o do resto da Europa, no final do século XIX, o que explica parcialmente o desenvolvimento industrial tardio do país. De acordo com Neves, Portugal não podia industrializar-se no início do século XX, devido às guerras mundiais que flagelaram a Europa. Neves retoma as teorias de Jaime Reis, que cita a falta de “abertura” de Portugal, a interdependência internacional e os recursos exportáveis durante a última metade do século XIX, como as principais componentes que obstaram ao desenvolvimento de Portugal (1994: 49).
6 Como descrito no ensaio de Manuel Rivas “África, capital Lisboa” (1994a), autores angolanos e moçambicanos, particularmente Mia Couto, Pepetela, Manuel Lima e Germano de Almeida são muito lidos em Lisboa. O editores da cidade publicam vários periódicos exclusivamente dedicados à cultura africana. Lisboa tem mais de 20 discotecas africanas e uma próspera indústria musical africana. Os autores de Lisboa Africana descrevem a cidade como o destino de incontáveis “imigrantes, estudantes [e] exilados políticos… que seguem ao contrário o caminho do Atlântico, o caminho que durante séculos trouxe os portugueses a África (Rocha e outros 1993: 7)
7 Esta comparação explícita de Lisboa com outras cidades ocidentais reflectiu-se nitidamente numa campanha publicitária, que fez correr os seguintes anúncios de duas páginas na imprensa portuguesa “Londres é o sítio indicado para assistir ao render da guarda (Para ver bom teatro renda-se a Lisboa)” ou “Em Paris descobrem-se os grandes nomes da moda. (Em Lisboa, os grandes nomes do espectáculo)” ou “Para conhecer actores não há como Los Angeles. (Para conhecer cinema Lisboa é melhor” (Euro RSCG, s. d.).
Auteur
Doutora em estudos performativos, coordena um programa de estudos portugueses na Universidade de Rutgers, Newark, NJ. Tem artigos publicados sobre cultura popular em Portugal e sobre flamenco (The Journal of American Folklore, Text and Performance Quarterly); prepara um livro com o título From Showmanship to Scholarship: Political Change and Folkloric Performance in Portugal.
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Castelos a Bombordo
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