Capítulo 2. A FNAT entre conciliação e fragmentação
p. 37-57
Texte intégral
1O papel da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) no processo de folclorização português enquadra-se numa tendência comum, desenvolvida sob os regimes fascistas e autoritários desde os anos 1920. Esta tendência, por sua vez, integra-se num movimento internacional mais lato de reabilitação do folclore, que se afirmou como reacção às transformações decorrentes das convulsões político-militares e da modernização económico-tecnológica em curso.1 A reabilitação da tradição cultural — também definida pelos conceitos de folclorismo (Cavazza 1997) ou de tradição inventada (Hobsbawm 1994) — resultou dum processo social complexo, não tendo sido determinada exclusivamente pelo poder político. Não obstante, verificou-se a sua instrumentalização pelo poder político para a afirmação duma cultura nacional e nacionalista. No caso dos regimes fascistas e autoritários, esse fenómeno foi ainda mais acentuado, tornando-se um meio fundamental para o consenso em torno daqueles, ao conferir-lhes legitimidade cultural e simbólica assente numa resposta nacionalista à modernização.2
2Em Portugal, a FNAT desempenhou um papel importante na concretização dum programa oficial de cultura popular, no qual o folclore era um dos elementos principais, de acordo com o movimento internacional Alegria no Trabalho em que se inspirou e filiou, e cujos principais impulsionadores eram a Kraft durch Freude nazi e a Opera Nazionale Dopolavoro fascista.3 Esta intervenção não foi isenta de tensões, à semelhança do ocorrido em regimes similares, registando-se um fraco incremento da folclorização no quadro da actividade dirigida ao mundo laboral urbano. Curiosamente, tais tensões tiveram maior repercussão no âmbito da estrutura corporativa, sobretudo na acção da própria FNAT, dada a dificuldade em consagrar um modelo de intervenção cultural comum aos mundos rural e urbano.
Enquadramento institucional e doutrinário da FNAT
3Na orgânica do Estado Novo, a política específica para a cultura popular convocou uma miríade de instituições, designadamente as câmaras municipais, juntas de província/juntas distritais, Secretariado de Propaganda Nacional/Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), Instituto Nacional do Trabalho e Previdência (INTP), FNAT, Junta Central das Casas do Povo (JCCP), Junta de Acção Social (JAS) e Ministério da Educação Nacional (MEN). No aparelho estatal foi incorporada uma estrutura corporativa, a qual por sua vez geria uma subdivisão “associativa”, que articulava as casas do povo, casas dos pescadores, sindicatos nacionais, etc., com os centros de alegria no trabalho (mais tarde, desdobrados em centros de alegria no trabalho e centros de recreio popular). A complexidade da estrutura institucional reflecte a tentativa de segmentarizar intervenções dentro duma “especialização” das instituições, segundo um projecto globalizante de inculcação ideológica e de enquadramento corporativo da sociedade. No entanto, a rigidez da perspectiva político-ideológica prevalecente comprometia a hipótese dum esquema institucional-programático mais flexível e consequente com a integração e evolução socioeconómicas.
4Em termos genéricos, a orientação da FNAT era determinada pela perspectiva oficial de cultura popular, assente na filtragem dos valores do ruralismo, do tradicionalismo e do historicismo por um estado autoritário, nacionalista e confessional católico. A utopia totalitária implícita no projecto salazarista consistia em tornar o sujeito passivo da política oficial em agente dinâmico dessa mesma política. Neste contexto, a FNAT produziu um contributo importante dentro do aparato institucional do Estado Novo, não só pela sua prestação no campo doutrinário e da intervenção prática como pelo facto de essa mesma prestação reflectir a capacidade de gerar um discurso radical autónomo e com influência na evolução da política cultural.4 Com efeito, e a título de exemplo, num texto doutrinário do Pelouro da Cultura da FNAT apresentado ao II Congresso da União Nacional (1944) preconizava-se que a acepção estrita de cultura como o conjunto de actividades espirituais que induzem progresso mental e material (expresso correntemente nos textos oficiais por comodidade de expressão) devia ser substituída por uma acepção que permitisse encarar a cultura como um meio (i. e., um instrumento) para o desenvolvimento espiritual do homem (FNAT 1944: 7-8). Transpondo esta perspectiva para a área da cultura popular, impunha-se uma valorização da capacidade activa (criadora) do agente popular para gerar a sua própria cultura, o que legitimava a própria intervenção oficial específica, uma vez que ao estado caberia fomentar a virtude imanente a este sistema e preservar a sua harmonia relativamente à ameaça exterior (e esta tanto abarcava transformações que comprometessem equilíbrios antigos como o saber e informação considerados prejudiciais para o povo). Tal lógica continha todo um programa: ao estado competia determinar o que tinha valor (certas tradições, sobretudo as ligadas ao catolicismo) e combater o que não o tinha: “A FNAT defende a tese de que devem ser conservadas todas as tradições populares que não se oponham à marcha da civilização cristã, porque elas asseguram a originalidade da fisionomia nacional” (FNAT 1944: 13). Não obstante, a orientação oficial genérica preconizava que a cultura popular correspondia a toda a produção que circulava nesse circuito e não apenas a de autoria popular-tradicional, ainda que se pretendesse ou alegasse que o estado tinha um papel meramente de salvaguarda da tradição.
5Por outro lado, apesar das intenções originais de harmonização social e nacional subjacentes ao discurso de “regeneração da pátria” do Estado Novo, a actuação sociocultural da FNAT sobre um segmento social preciso — desde a sua criação em 1935 que tinha como finalidade a ocupação do tempo livre dos trabalhadores portugueses —5 será balizada não só pela necessidade permanente de neutralizar os antagonismos sociais, promovendo a conciliação entre capital e trabalho, como por uma concepção dualista do mundo laboral, logo, da sociedade: de um lado, os trabalhadores da cidade, do outro, os trabalhadores do campo. O dualismo entre os mundos urbano e rural relacionava-se com a valorização dos elementos rurais segundo uma certa perspectiva da nacionalização das tradições e como reacção ao cosmopolitismo e a aspectos ligados não só ao universo citadino coevo (industrialização, urbanização), como ao passado recente de vigência republicana, com a politização, o conflito social e o desafio democratizante a afirmarem-se mais consistentemente nas cidades (ligação à base social de apoio republicana, à massificação social e política, à cultura operária, etc.).6 A defesa duma cultura para o povo esvaziada da componente de emancipação política e intelectual do cidadão herdada do Iluminismo e do ideário da Revolução Francesa articulava-se com a construção dum discurso alternativo centrado na reabilitação dos valores morais inerentes à tradição (com maior presença nos campos, e de acordo com as formulações de feição regionalista) e reivindicando uma base teórica etnográfica.7 Neste discurso estava implícito que a actividade cultural para o povo era considerada primeiramente como função pública, tendo a consolidação da intervenção do regime estadonovista nesta área estimulado uma lógica de reivindicação do monopólio estatal relativamente à sociedade civil. Por outro lado, combatia-se a cultura operária, pretensamente associada à subversão dos equilíbrios socioculturais bem como o papel de certos intelectuais difusores dum saber mais erudito, porque descaracterizador da identidade do povo.8 Esta lógica significava um reforço do afastamento entre cultura popular e cultura de elites, advindo do processo civilizacional ocidental, justamente numa época que registava uma aproximação e cruzamento daqueles universos por via da emergência duma cultura de massas e pela democratização crescente do saber e da cultura. Paradoxalmente, isto não invalida que houvesse uma preocupação de aproximação das elites ao povo (sobretudo através dum movimento cultural de redescoberta/reinvenção das tradições). Por outro lado, perante um universo urbano culturalmente ecléctico, o pragmatismo político do regime salazarista levou-o a optar pela conciliação do modelo de cultura popular tradicionalista com o da cultura de massas, ligado à modernização económica e tecnológica em curso no espaço capitalista.9
6Assim, a intervenção da FNAT era condicionada grandemente tanto pelo enquadramento fornecido pela ideologia oficial como pela organização concreta da estrutura institucional do regime. A isto acresce a disputa de espaço de manobra pela própria instituição, consubstanciada nas alterações estatutárias e reflexo da evolução política mas também das ambições e influências dos seus dirigentes. Ainda que a própria designação da instituição e sua finalidade original apontassem uma grande área de acção exclusiva, a dos lazeres pós-laborais, a FNAT contou sempre com uma forte concorrência doutras instituições oficiais (centrais, intermédias e mesmo locais) à afirmação das suas pretensões hegemónicas.
Âmbito de intervenção da FNAT
7Desde as suas origens que a FNAT respondia a um pressuposto globalizante, em prol da “transformação profunda da nossa mentalidade, [d]o revigoramento de todos os laços e de todos os sentimentos que mantêm a comunidade nacional e a perpetuam através dos tempos” (Decreto-lei n.° 25.495, de 13/06/1935). Numa primeira fase, contudo, a actuação da FNAT centrou-se especialmente nos sindicatos nacionais, por razões de ordem político-social (ligadas à neutralização do sindicalismo livre e à formação corporativista). A partir de 1940, com a clarificação estatutária de funções, ganha a incumbência de superintender o conjunto das iniciativas de cultura popular dentro da organização corporativa e, portanto, passa a ocupar-se também das casas do povo (existentes desde 1933).10 O âmbito de entendimento da cultura popular era lato, extensível aos seis núcleos de intervenção cultural: cursos de formação intelectual (cultura geral), técnica (profissional) e física (ginástica, educação física); conferências e palestras radiofónicas; bibliotecas populares; deslocações com interesse histórico, técnico ou didáctico (visitas de estudo, passeios, excursões e viagens); espectáculos educativos (sessões de cinema, horas de arte e representações teatrais de sentido popular, festas desportivas); organismos desportivos ou recreativos. Por regulamentos de 1941 e 1942, estabelece-se superiormente que toda e qualquer iniciativa cultural-recreativa corporativa tinha que ter o aval prévio da FNAT e, para fomentar e disciplinar essa mesma actividade, sugeria-se a formação de grupos especializados. Tais grupos eram igualmente tutelados pela FNAT, detendo esta o poder de autorização superior, coordenação, orientação e fiscalização. No sentido de uniformizar/integrar a acção destes grupos, esboça-se a partir de então o modelo de centro de alegria no trabalho (CAT), funcionando como subdivisão no interior das unidades primárias corporativas e contemplando ainda outras situações (agregados populacionais, bairros de casas económicas, etc.). Esta rede de centros permitia simultaneamente controlar e suportar a acção cultural local, aumentando a operacionalidade da malha corporativa. A denominação CAT será legalmente consagrada em novos regulamentos de 1945 (de 14 de Agosto e 24 de Setembro), onde também o seu âmbito se reduzirá paradoxalmente a grupos de trabalhadores da mesma empresa ou bairro de casas económicas, ainda que preservando a superintendência sob toda a estrutura corporativa em matéria de cultura popular e lazer.11
8Em termos operacionais, portanto, só em finais de 1942, início de 1943, é que a FNAT podia dar uma resposta consequente às questões culturais, com a estruturação duma malha de núcleos associativos especializados e a prescrição de serviços específicos na sua orgânica interna. A esta situação não era estranha a necessidade de reforço da intervenção oficial numa conjuntura político-social de crise originada pela Segunda Guerra Mundial, bem como a necessidade de corresponder à ofensiva da sociedade civil, especialmente no campo do associativismo cultural-recreativo. Com efeito, a constatação duma má gestão corporativa atingia as próprias casas do povo, denotando desorientação na sua actividade e o perigo de subversão político-ideológica. Para obviar a esta situação seria ainda criada a JCCP, em 1945, que tinha precisamente como atributos a supervisão e coordenação a nível central de toda a actividade das casas do povo, incluindo a cultural.12 Indirectamente, tal medida demonstrava a insuficiência da actividade da FNAT. Por outro lado, uma organização sedeada em Lisboa, a Federação Distrital das Sociedades Populares de Educação e Recreio (FDSPER)) realizara em 1940 o seu I Congresso Nacional, com o qual pretendia alargar o seu raio de acção a todo o território nacional. Esta federação, fundada em 1924, com conotação republicana/democrática e de intervenção independente, passou a ser vista como uma ameaça à acção institucional e de política cultural do regime, tornando-se uma concorrente à estratégia de afirmação da FNAT, sobretudo no meio urbano.13
9Pode depreender-se daqui que a FNAT não conseguia corresponder às vastas competências que lhe estavam atribuídas e, por isso, foi necessário proceder a uma maior especialização e sectorialização das funções e iniciativas culturais no interior da estrutura corporativa, procurando-se uma maior eficiência através da interdependência funcional, ainda que tal contrariasse o enunciado normativo. Por outro lado, pretender-se-ia preservar o campo de acção doutros organismos corporativos e do SPN/SNI (no espaço urbano).
10Nesse sentido, nos anos 40 e no âmbito corporativo rural, à FNAT caberia sobretudo a orientação das práticas desportivas, espectáculos e outros divertimentos. Além disso, estando a actividade de cultura popular subordinada a um fundo etnográfico, para salvaguarda da identidade rural, seria a FNAT a responsável pela avaliação do cumprimento da norma, através do seu nóvel Gabinete de Etnografia (criado em finais de 1946).14 Este serviço devia concentrar-se na “recolha dos elementos úteis indispensáveis para os estudos [de cultura popular rural]” e “mediatas aplicações de ordem prática”, para o que seria indispensável o contributo dos especialistas, ou seja, os etnógrafos ou folcloristas.15 No entanto, continuavam a ser as próprias casas do povo as principais responsáveis pelas suas iniciativas, mesmo no âmbito etnográfico, o que comprometia a dinâmica cultural global.16 Assinale-se ainda que no final de 1947 seriam clarificados outros aspectos da divisão de tarefas culturais entre a JCCP e a FNAT, com aquela ligada à coordenação das actividades das casas do povo relativas a museus etnográficos, bibliotecas, sessões de leitura e cursos de educação de adultos e adolescentes, e a última com a alçada dos restantes assuntos culturais e desportivos (Melo 1997: 144).
11A FNAT seria alvo de nova remodelação institucional em 1950, pela qual se acentuou o seu papel relativamente à componente etnográfica (ou tradicionalista): destaque-se a promoção de “agrupamentos artísticos”, a criação e direcção de “museus do trabalho” e do Museu Nacional do Trabalho, o fomento e restauração das “festas tradicionais do trabalho” e a orientação “de todas as iniciativas de carácter recreativo em que tomem parte trabalhadores”.17 De acordo com os novos estatutos, a sua acção repartia-se por três áreas (a educativa, a recreativa e a económico-social) e definiam-se competências particulares para os gabinetes entretanto constituídos (de Divulgação, Heráldica Corporativa e Etnografia). Quanto ao Gabinete de Etnografia, competia-lhe a “recolha de elementos de carácter social e etnográfico, com vista à formação social e à educação artística dos trabalhadores”, estando anexados os referidos “museus do trabalho”, modalidade cultural que serviria para “documentar os aspectos moral, estético, social e económico do trabalho e da vida dos trabalhadores”. Por fim, reformula-se a rede do associativismo oficial, com a redefinição do âmbito do CAT (abrangendo doravante os grupos sedeados em empresas, organismos ou instituições empregadoras) e a criação de centros de recreio popular (CRP), para grupos com referência a um aglomerado populacional. Esta nova categoria visava enquadrar numa rede própria a organização corporativa rural e piscatória local, ou seja, as casas do povo e as casas dos pescadores. Para protecção do associativismo cultural oficial, e sob pena de extinção, consigna-se a obrigatoriedade de inscrição na FNAT de todos os grupos de trabalhadores com fins recreativo-culturais e proíbe-se os grupos nela inscritos de se filiarem “em associações ou federações desportivas ou outras de carácter oficial ou particular”. Por fim, atribuía-se a esse mesmo associativismo corporativo regalias extraordinárias, como a isenção da aprovação de estatutos pelos governos civis. Esta nova estrutura, que se manteria até à fase marcelista, estava novamente em íntima relação com a evolução do associativismo independente, tendo a FDSPER, entretanto renomeada Federação das Sociedades de Educação e Recreio, realizado o seu IV Congresso (II Nacional) em 1949, numa atmosfera de grande participação associativa, potenciada pela adesão oposicionista.18
12Numa análise comparativa, pode observar-se que o associativismo cultural-recreativo corporativo levou bastante tempo para se equiparar ao associativismo livre federado (quadro 2.1).19 Mesmo que comparando somente com o movimento filiado na FPCCR (a FCDPERD não tem dados regulares), a FNAT só consegue ombrear com aquele em finais de 50; ultrapassa-o em 1958, reforçando depois a sua supremacia, mas de modo lento, irregular e sem grandes diferenças. Se se tomar em conta dados menos abonatórios publicados nos relatórios da FNAT e o facto de em 1958 a federação nortenha ter cerca de 100 filiadas, então a sociedade civil continuaria na dianteira do movimento associativo cultural-recreativo.20
Propostas e actividades culturais da FNAT
13Decorrente do que atrás ficou dito, não é possível atribuir o resultado da acção cultural dos organismos primários corporativos exclusivamente à FNAT (ainda que esta conclusão possa ser menos pertinente para os sindicatos nacionais), apesar da existência dos CAT e CRP. Também por esse motivo e por razões de economia discursiva, analisar-se-á esquematicamente a contribuição da FNAT sobretudo através das propostas e actividades culturais que levam a sua marca própria.
14Basicamente, a FNAT apostou em intervenções culturais nas áreas das actividades terpsicóricas (via ranchos folclóricos), festividades e espectáculos (p. e., serões para trabalhadores) e doutrinária/formativa (edição livresca, concursos literários, cursos, etc.). Parte destas actividades conformava-se com o desígnio da recuperação do folclore nacional, mais evidente ao nível das casas do povo, o que não significa a sua circunscrição ao espaço aldeão/rural, uma vez que muitos destes organismos foram instituídos em centros urbanos (Melo 1997: 118). Ainda assim, deve falar-se na consagração dum paradigma institucional rural, dada a centralidade que coube às casas do povo no imaginário nacional e no próprio processo de folclorização oficial. Isto não significa que este processo fosse isento de tensões e ambiguidades.
15Com efeito, num inquérito da FNAT sobre as prioridades dos CRP, elaborado em 1951 e com respostas estendendo-se até aos anos 60, verifica-se que a modalidade mais pretendida é desportiva, o futebol, seguindo-se-lhe outras dos três sectores considerados: sessões de cinema, bailes, grupos cénicos e folclóricos, festivais e ténis de mesa, etc. (ver quadro 2.2).21 Em termos globais, o sector mais pontuado é o cultural (187 escolhas), ainda que haja um equilíbrio relativo entre todos. O sector desportivo não tem remissão à tradição folclórica, exceptuando a escolha residual da malha, chinquilho e jogo do pau. O sector recreativo também não parece revelar conteúdo folclórico.22 Só no sector cultural é que está representado o grosso das iniciativas com pendor etnográfico, ainda que minoritário. Esta escala opcional não tinha necessariamente que reflectir um distanciamento irredutível em relação ao programa etnográfico oficial, podia apenas significar que era mais fácil escolher actividades mais popularizadas ou tecnologicamente mais actualizadas, práticas ou atractivas. Sem embargo, assinale-se uma grande apetência pelos ranchos folclóricos (55 referências), ligeiramente suplantada pelos grupos cénicos (59), além das bandas filarmónicas (30), e um fraquíssimo interesse pelas iniciativas formativas (cursos e palestras: 1+1) ou de leitura (biblioteca e leitura: 2+2).
16Idêntico inquérito foi realizado aos CAT dos sindicatos nacionais em 1951, e as respostas traduzem diferenças significativas, indo ao encontro da já aludida dualidade cidade/campo. Além da escala hierárquica por sectores se alterar — com a prioridade para as modalidades desportivas (sobretudo futebol, ténis de mesa e basquetebol) e maior diversidade, seguidas pelas actividades recreativas (sobretudo festivais, bailes e sessões de cinema) — a componente folclórica é quase nula: apenas uma referência explícita a folclore (ainda por cima dentro da área recreativa). Por outro lado, registe-se um reforço da componente formativa (conferências, palestras, estudos, serões e visitas de estudo totalizam 13 referências). Desta amostra pode concluir-se que os sindicatos nacionais não tinham interesse no folclore é provável que não integrassem ranchos folclóricos.
17Em termos globais, os centros das casas do povo e sindicatos nacionais preferiam as modalidades desportivas, seguindo-se os sectores recreativo e cultural (ambos ligeiramente aquém de 1/3). Individualizando, o futebol era a modalidade mais escolhida (13,5%), seguindo-se as sessões de cinema (10,4%), bailes e grupos teatrais (ambos com 9,7%), ténis de mesa (9,4%) e festivais (9,0%). Apesar da nula apetência dos CAT sindicais pelos grupos folclóricos, estes apresentavam, no cômputo global, uma cifra razoável (7,3%). Além disso, se agregarmos os valores das várias modalidades ligadas ao canto e à música (tunas, grupos corais, bandas, ranchos, etc.), obtemos um valor significativo, quase 18%. Com extremo rigor, apenas se pode registar que a componente etnográfica rondava os 8% do total global de escolhas (junção de jogos tradicionais, folclore e grupo folclórico).
18No âmbito da divulgação e formação, assinale-se primeiramente a realização dum programa radiofónico pela FNAT, difundido na rádio estatal, inicialmente designado por FNAT Hora de Arte do Trabalhador e, mais tarde, por Alegria no Trabalho, uma das iniciativas mais duradoiras e decerto com grande potencial de implantação.23 No respeitante à área do livro e da leitura, a FNAT tentou criar um corpus literário adequado ao perfil popular, para ser incorporado nas bibliotecas corporativas, dentro da preocupação comum às instituições centrais corporativas de estabelecer uma biblioteca popular oficial. Logo em 1941, surge um projecto malogrado do vice-presidente Castro Fernandes para a edição duma colecção livresca, que fosse alternativa à recente Biblioteca Cosmos no campo doutrinário.24 Apesar de vários concursos literários corporativos, alguns através do jornal próprio (p. e., o Concurso Literário do Trabalhador, em 1942), só muito tardiamente a FNAT conseguiu concretizar projectos editoriais específicos, com o lançamento de duas colecções sectoriais nos anos 50 e 60. Uma primeira colecção, intitulada Cultura e Recreio, agrupava obras diversas, a maioria recolhas e estudos de temática etnográfica (10), da autoria dum conjunto de folcloristas ou etnógrafos mais ou menos ligados ao regime (Fernando de Castro Pires de Lima, Sebastião Pessanha, Luís Chaves e Manuel Viegas Guerreiro), e ainda propaganda, doutrina, história e jogos florais. Esta colecção, iniciada em 1955 por via da colaboração entre os gabinetes de etnografia e de divulgação, não parece ter obedecido a uma planificação coerente, mesmo no âmbito etnográfico, onde incluía temas tão díspares como a princesa Magalona, a chula, a doçaria popular, os transportes populares, etc., e necessitando de nove anos para integrar 15 títulos. Uma segunda colecção, lançada em 1958, dizia respeito ao Teatro do Trabalhador, e reproduzia peças vencedoras de concursos literários próprios (8 títulos em 7 anos). O resultado, tardio, modesto e limitado, espelhava a dificuldade genérica do salazarismo em criar uma literatura popular oficial consistente (excepção para a colecção educativa do MEN, mas só desde meados dos anos 50). Esta debilidade inicial esteve directamente associada à incapacidade para consolidar um contributo etnográfico, comprovável no baixo índice de formação e investigação científicas modernas, nos falhanços de encontros académicos ou outros e de revistas especializadas, de falta de estrutura institucional de afirmação, etc.25 A quase inexistência de encontros ligados à temática etnográfica é elucidativa da dificuldade de afirmação dum corpus de saber especializado e penaliza grandemente o próprio regime: a título exemplificativo, registe-se o fracasso absoluto de dois projectos oficiais, o Congresso das Corporações (agendado para um ano pleno de comemorações mas também de encontros académicos: 1940) e os congressos anuais da FNAT (obrigação incluída nos estatutos de 1950), que não viram a luz do dia uma única vez (Melo 1997: 186).
19Outra área afim, a do artesanato, obteve também um fraco contributo por parte da FNAT, que embora não tivesse essa responsabilidade particular (era do INTP, mas só após a sua reforma de 1948 (ibid. 190), tinha ainda assim os encargos estatutários de (via Gabinete de Etnografia) colaborar com aquele para a sua “protecção e dignificação” e criação de “museus do trabalho” (onde se incluiriam colecções etnográficas). Este projecto museológico jamais terá consistência, comprometendo toda uma série de iniciativas conexas (exposições, cursos, palestras, “arquivos de tradições e curiosidades locais” nos diversos organismos corporativos, etc.).26 O único contributo significativo da FNAT para esta área foi a I Exposição de Arte dos Trabalhadores (1952), que pretendia consagrar uma arte e estética populares, mas onde a ligação à tradição era ou somente sugerida (pelos materiais e modelos de inspiração) ou minoritária (com “objectos de artesanato” via participação de rurais ou CRP das casas do povo, existindo ainda uma secção própria para artesanato, destinada a artesãos). Apesar do pretenso êxito da exposição, esta não teve continuidade (Melo 1997: 195-197). Além disso, registe-se o suporte de concursos de presépios (desde 1950 em Lisboa, desde 1952 no Porto e desde 1954 nos restantes distritos), correspondendo “à intenção de conservar as nossas formas tradicionais”, neste caso ligadas à religiosidade católica (FNAT 1956: 63).
20A intervenção da FNAT no processo de folclorização organizou-se, essencialmente, em torno dum conjunto restrito de práticas culturais, destacando-se as festas do trabalho, os festivais e, sobretudo, as intervenções dos ranchos folclóricos. Estes últimos condensavam a fórmula oficialmente consagrada para a apropriação das actividades tradicionais ligadas à dança e ao canto ou, mais correctamente, terpsicóricas. Representou uma das fórmulas de maior ligação a uma pretensa recuperação/ revitalização da herança folclórica nacional, e de maior perenidade no imaginário cultural português por acção do salazarismo. Apesar de corresponder a uma tendência internacional, com origem europeia, foi pela acção do regime salazarista que se institucionalizou (sobretudo através das casas do povo, como já se aludiu) e consagrou no âmbito luso, sendo indissociável da concepção oficial de folclore. Parte da sua força e atractividade advinha do seu potencial imagético, lúdico, festivo, e do facto de ser uma manifestação dependente da acção física imediata de pessoas (“ao vivo”).27
21Não obstante a reclamação da genuinidade da recuperação folclórica entretecida, as celebrações festivas coevas apoiadas pelo salazarismo (incluindo as prestações dos ranchos folclóricos) rompiam com a celebração tradicional, por quatro motivos principais: quebra do ritual comunitário vinculativo, organização, competitividade e autonomização em relação ao ciclo festivo tradicional.28 Por outras palavras, a participação nessas festividades não era obrigatória para (toda) a comunidade, a organização anulava o espontaneísmo e informalidade, a lógica da competição (sobretudo via concursos, cortejos e festivais) instalou-se em muitas ocasiões, e a maioria das festividades encontravam-se desintegradas dum contexto festivo tradicional rigoroso, fosse do calendário agrícola, religioso ou outro (veja-se novamente a prestação dos ranchos folclóricos em concursos, eventos oficiais, etc.). O próprio figurino (dança, canto e traje) dos ranchos folclóricos estava muito dependente duma certa tradição popular minhota, portanto regionalmente circunscrita. Em suma, a sua generalização foi promovida superiormente, com um contributo importante da FNAT, segundo um processo de homogeneização e estilização baseado no estereótipo minhoto e primeiramente institucionalizado nas casas do povo locais.29
22Para a divulgação folclórica junto dos trabalhadores citadinos, a FNAT recorrera aos festivais: o germinal foi realizado em 24 de Junho de 1946, no Coliseu dos Recreios (Lisboa), com uma parte preenchida pelo nóvel Grupo Coral de Lisboa e outra com a exibição do Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio (um agrupamento modelo). Com a institucionalização e dinâmica de alguns ranchos folclóricos foi possível à FNAT colmatar uma lacuna nas suas realizações para o público urbano, atendendo a que até então era norma os programas serem constituídos por prestações não folclóricas (declamações, variedades, música ligeira com orquestra, etc.).30
23Por motivos atrás mencionados, o rancho folclórico tornou-se numa das modalidades culturais mais presentes na estrutura corporativa rural. O já referido inquérito da FNAT revela que quase metade dos 127 CRP respondentes (+ 43%) pretendia ter um grupo folclórico (ver quadro 2.2). Não obstante, os poucos dados estatísticos fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) revelam uma modesta representatividade dos ranchos folclóricos nas casas do povo, quando comparados com as actividades desportivas ou as filarmónicas, etc. Na série existente (1949-56), o baixo número inaugural de ranchos folclóricos (32) não regista grande aumento (no final 42), variando entre 6,4% e 8,0% no respeitante à proporção relativamente ao total de casas do povo activas (ver quadro 2.3).31 Deve ainda assinalar-se o contributo dos orfeões para a recuperação do folclore (outra iniciativa amparada pela FNAT), uma vez que estes grupos vocais também se dedicavam à interpretação de cantigas de cunho tradicional, mas é impossível determinar quais e em que proporção (registe-se, no entanto, que na série do INE, 1941-56, o seu número nunca ultrapassou o máximo de 26 grupos, correspondendo a 5,8% das casas do povo activas em 1942).32 Note-se que os CRP activos constituíam uma parte minoritária do associativismo oficial, tendo crescido bastante no início dos anos 50 para depois estabilizar em torno de 1/5 do total (ver quadro 2.1). Sem embargo, estes valores não impediam uma forte supremacia ao nível das iniciativas de recorte etnográfico: p. e., cerca de 82% dos CRP activos em 1958 tinham grupos folclóricos.33 Ainda no respeitante ao impacte dos ranchos folclóricos, convém frisar que o seu número era superior ao referido para as casas do povo, uma vez que existiam agrupamentos fora dessa estrutura, sobretudo desde os anos 50, início dum forte crescimento e, por isso, o seu universo global tem que ter em conta a existência doutras formas de organização, mais informais e mais difíceis de detectar.34
24Além da preocupação com a consolidação institucional dos ranchos folclóricos a FNAT também convocou aqueles para propósitos propagandísticos (e turísticos) precisos, em eventos nacionais ou no estrangeiro. O circuito madrileno do Concurso Internacional Danzas y Canciones Populares foi um dos palcos escolhidos, denotando a proximidade tanto dos regimes como das estruturas corporativas no respeitante ao fomento do tradicionalismo, pelo menos durante os anos 40-50. A nível nacional cabe mencionar três exemplos: o certame folclórico integrado no programa do I Congresso de Etnografia e Folclore (1956), com exibição de grupos portugueses (sobretudo nortenhos), espanhóis e franceses, em Braga e Viana do Castelo; o concurso folclórico de Braga, por ocasião dos festejos de S. João (1957); o I Grande Festival Nacional de Folclore (1958), em colaboração com o SNI e a Câmara Municipal de Lisboa, e contando com ranchos folclóricos de todo o país.35 Deve ressalvar-se que a instrumentalização dos grupos folclóricos ou das festividades não servia prioritariamente um fim propagandístico mas sim o escapismo e a difusão de valores, mais eficazes para a integração social e o consenso nacional, além do turismo (fomentando simultaneamente uma imagem atraente do país e um recurso económico) (Cavazza 1997: 8, 97, 109, 248-250).
25A capacidade realizadora da FNAT dependia, em parte significativa, da iniciativa individual das delegações distritais (para além da das casas do povo, já atrás salientada). A este propósito importa referir uma iniciativa da delegação da Covilhã, que preconizou uma proposta de concurso de ranchos folclóricos mesclado, paradoxalmente, com elementos das marchas populares de Lisboa. Esta influência estava presente desde logo na designação da experiência, I Concurso de Marchas Populares (1954), passando ainda pela fórmula de apresentação adoptada (representantes de bairros, marcha comum, júri, concurso, mesma quadra festiva, etc.). Esta mistura do urbano com o rural era, possivelmente, inevitável, tentando-se numa primeira fase atrair operários daquela cidade beirã. O que mais interessa aqui notar, contudo, é que se pretendia incorporar no espírito urbano a recuperação de folclore supostamente rural: “restaurar as festas tradicionais do trabalho nesta cidade nos dias de São João e São Pedro”.36 Esta experiência de recuperação duma suposta tradição local, e a própria estratégia, parece ter dado resultados, uma vez que o concurso teria continuidade assegurada.
26Tal como no respeitante aos orfeões (e agrupamentos similares), também para as bandas filarmónicas é difícil definir a sua componente ligada à recuperação do folclore; a sua provável matriz externa (francesa), a sua continuidade sem hiatos (desde, pelo menos, inícios de oitocentos) e a sua implantação e perfil homogéneo eminentemente nacionais, tornam-na de problemática integração no complexo do movimento de folclorização em Portugal. Com essa complexidade tiveram os próprios organismos oficiais estadonovistas de se confrontar. Por um lado, o movimento filarmónico parecia corresponder a um fenómeno demasiado “recente”, inovador e homogéneo para encaixar no quadro do regionalismo etnográfico oficial, o que se relacionará com a sua grande ligação ao meio urbano e à “tradição” liberal/republicana, tendo prestado um contributo importante no programa político-cultural de laicização das festas portuguesas instaurado pelo liberalismo português. Note-se que as bandas filarmónicas mantiveram grande presença no espaço do associativismo independente mesmo durante o Estado Novo, tendo sido uma das componentes basilares tanto da FPCCR como da FCDPERD. Por outro lado, talvez graças ao peso da “tradição”, elas detinham uma institucionalização significativa mesmo dentro da estrutura corporativa (tanto no âmbito rural como urbano; para as casas do povo ver quadro 2.3), sendo por isso suportadas, de certa forma, pelo próprio estado. Como quer que seja, numa primeira fase as filarmónicas não terão tido grande consideração oficial superior (talvez apenas local) e, só tardiamente, a partir dos anos 50, é que a situação registará uma mudança. A tal não terá sido estranha a irrupção duma crise no interior do movimento filarmónico, para além da consolidação da sua presença institucional corporativa (e mesmo nacional) e da concorrência do associativismo livre, como atrás se aventou. Nesta área a FNAT seguiu uma estratégia própria que, se podia concordar com as necessidades conjunturais oficiais, também implicava uma lógica de afirmação autónoma, tentando consolidar a presença de filarmónicas na sua rede associativa. Assim se poderá interpretar o parco labor da FNAT neste âmbito, que deixava de lado a defesa do movimento filarmónico como um todo; para além da actuação pontual de bandas em Serões para Trabalhadores, assinale-se como iniciativa mais importante o concurso de filarmónicas e bandas civis de 1959 (por sinal, com a colaboração da FPCCR), que contou com grande participação e tendo apenas a eliminatória inicial para a 1.a categoria uma prova musical que convocava fundo etnográfico (a “Rapsódia de Cantos Populares do Baixo Alentejo”, de Sousa Morais).37
Conclusão
27Em jeito de conclusão, a FNAT desempenhou um papel importante no processo de folclorização oficial sob o Estado Novo, não só a nível doutrinário como institucional, com a criação e consolidação duma estrutura corporativa directamente vocacionada para as actividades culturais-recreativas. A sua intervenção no domínio cultural foi pautada pela intenção de integrar uma componente etnográfica no projecto nacionalista oficial para a ocupação do tempo livre dos trabalhadores, numa ofensiva que se proclamava de pendor restauracionista mas que funcionava grandemente através dum impulso de recriação e manipulação de estruturas da tradição popular ou por via dum efeito de alusão a estas: vejam-se as festas tradicionais do trabalho, os ranchos folclóricos, etc. Por outro lado, a reivindicação do exclusivo de atribuição da autenticidade pretensamente baseada numa teoria etnográfica implicava a instrumentalização e sobrevalorização do conceito de genuinidade. Tal pretensão esteve em permanente tensão com a prática oficial — uma vez que esta se fazia grandemente pelo processo de homogeneização/formalização de iniciativas culturais e era condicionada pela interacção de intuitos ideológicos, propagandísticos, lúdicos e turísticos —, e com a própria configuração cultural da sociedade portuguesa, mesclada, ecléctica e dinâmica. Além disso, muitas das propostas oficiais correspondiam a “tradições inventadas” (inclusive as festas do trabalho), sendo fundamental atribuir-lhes credibilidade, esforço este que não podia socorrer-se da genuinidade dada a sua inexistência. Decorrente do enquadramento político-ideológico oficial e sua articulação com o fenómeno sócio-histórico de dualidade cidade/ campo e a lógica institucional da própria FNAT, prevaleceu a defesa duma concepção ruralista e tradicionalista para a intervenção cultural. Este quadro favoreceu uma fractura operativa, separando os trabalhadores citadinos dos rurais, a qual se tentou atenuar ou contrariar pelo cruzamento de influências. Ressalve-se, porém, que no mundo urbano recorreu-se voluntariamente a um compromisso mais acentuado com a cultura de massas.
28Alicerçada numa estratégia de afirmação institucional e programática radical e autónoma, a FNAT esforçou-se por legitimar a sua estrutura cultural corporativa com o fito de impor a adopção dum associativismo oficial hegemónico. Esta ambição, que também implicou a instrumentalização da etnografia para fins de legitimação ideológica e programática, não almejou uma materialização absoluta, o que se deve a uma série de constrangimentos, internos e externos. Estes constrangimentos, extensivos a toda a estrutura estatal e limitativos do seu projecto globalizante, podem condensar-se em cinco factores principais: o já referido carácter fragmentário da intervenção (dualidade rural/ urbano, tendencialmente só trabalhadores adultos, etc.); a consequente restrição do público-alvo; o compromisso com práticas mais relacionadas com a cultura urbana; a grande dependência da dinâmica comunitária local (em última instância, determinada pela capacidade das unidades corporativas primárias em se relacionarem com as comunidades locais e atraírem e congregarem grupos de pessoas para a prática de actividades culturais); e a concorrência de modelos alternativos (a cultura de massas e o associativismo popular independente) ou doutros organismos oficiais (o SPN/SNI, a JCCP, a JAS, os municípios, etc.).
29Neste contexto e como balanço geral, conclui-se que a FNAT promoveu uma maior incorporação de aspectos folclóricos junto das actividades terpsicóricas, festividades e espectáculos vários, tendo sido modesto ou mesmo fraco o seu contributo no respeitante aos sectores artesanal, museológico, exposições de cultura material e edição livresca específica. Em termos genéricos, pode dizer-se que o labor desta instituição foi mais nítido na difusão e divulgação do que na preservação e reflexão etnográficas.
Notes de bas de page
1 Para o caso da Itália fascista, ver Cavazza (1997), bem como as suas referências bibliográficas para a Alemanha nazi e a França de Pétain, ambas igualmente detentoras de programas oficiais para a restauração de tradições populares. Sobre este último, veja-se ainda a monografia de Faure (1989).
2 As experiências pioneiras para a “regeneração nacional” surgem na Espanha e Itália: já na ditadura de Primo de Rivera se regista o patrocínio estatal de mostras de folclore, da exposição de trajes regionais de 1926 à concepção do pueblo español na Exposição Internacional de Barcelona de 1929 (Ucelay Da Cal 1993: 56); sob a ditadura de Mussolini, registam-se como principais iniciativas inaugurais a mostra do trajo popular do Lácio (em Roma, 1927), os desfiles nacionais de trajes tradicionais de 1928 e 1930 e o documentário cinematográfico Sentinella della Patria (1929) (Cavazza 1997: 98-99).
3 Para uma análise global do programa oficial de cultura popular sob o Estado Novo português (1933 a 58) ver Melo (1997). Para o seu relacionamento com a história da etnografia e o movimento folclórico ver Branco (1999). Para o estudo político-institucional da FNAT entre 1935-58 cf. Valente (1998).
4 Sobre a perspectiva doutrinária cf. Melo (1997): cap. II, especialmente p. 65 e seguintes.
5 Cf. decreto-lei n.° 25.495 (de 13/06/1935). Mas noutro local alude-se somente aos trabalhadores adultos: “Assim, terá a F. N. A. T. de ver o problema da cultura popular dentro de um círculo muito mais restrito do que o do Estado; a sua acção dirigir-se-á apenas aos trabalhadores, quer dizer, a homens adultos e já habituados às condições sociais de uma profissão, e exercer-se-á apenas durante as horas destinadas ao repouso e ao recreio” (FNAT 1944: 5). Mais adiante surge outra formulação: “Em relação à cultura (…) podemos considerar como povo todos os homens que não receberam os benefícios do ensino superior ou que, como autodidactas, não atingiram o respectivo nível. E como o ensino primário é obrigatório, competindo o seu exercício a entidades públicas e particulares, a FNAT apenas terá em vista uma zona intermédia, ampla e complexa, da população, e só a ela destinará a sua específica actividade cultural” (FNAT 1944: 10-11).
6 Esta perspectiva de redução da cultura popular à cultura rural/campesina foi amparada pela orientação dominante na comunidade etnográfica e por uma certa herança romântica e tradicionalista, o que tem grande paralelo com a Itália fascista (ver Cavazza 1997: 9, 40, 97/8, 104).
7 Ver p. e. FNAT (1944: 11-14, 18 e 25). Afirma-se inclusivamente que a prevista integração dum departamento de etnografia e folclore na FNAT, incluindo “gabinete de estudos”, serviria a “estabilização étnica de tôdas as iniciativas de cultura popular” (FNAT 1944: 14).
8 Continuando a seguir o mesmo texto: “a verdadeira cultura popular não consiste na divulgação dos resultados da alta cultura, julgando, pelo contrário, que tal propaganda pode difundir uma mentalidade falsamente culta, que por sua vez, suscita problemas de difícil solução social” (FNAT 1944: 17).
9 A questão da incorporação da cultura de massas na política cultural para o mundo laboral é longamente analisada numa obra já clássica sobre o fascismo italiano (ver De Grazia 1981).
10 Segue-se a análise do estatuto jurídico-legal da FNAT em Melo (1997: 122 e seguintes).
11 Institucionalmente a denominação CAT só surge em III/1943 (ver FNAT 1945: 199), mas o projecto vinha de trás (consignado para as casas do povo, sob a designação de agências, no regulamento de II/1941, art.° 33.° — cf. Boletim do INTP, ano VIII, n.° 4, 28/II/1941, p. 86), invocando-se uma legitimidade já radicada nos Estatutos de 1940 (art.° 5.°, ponto 8: “Promover a criação de organismos de carácter desportivo ou recreativo e a federação dos já existentes”). Note-se que a minha alusão a uma rede de agrupamentos culturais-recreativos não é totalmente literal, uma vez que prevalecia uma orientação centralista e esses agrupamentos não comunicavam entre si. A existência do regulamento de 1941 e a limitação de âmbito dos CAT presente nos regulamentos de 1945 foram assinaladas primeiramente por Valente (1998: 92 e 110, e 150, respectivamente). O 2.° regulamento de 1945 surge erradamente datado de 4/X (por troca com data do n.° do Diário do Governo em que foi publicado) em Melo (1997: 123). Corrige-se outro lapso aí presente: a sua transcrição é feita no boletim Alegria no Trabalho n.° 9 (IX/1945) e não no seguinte (mantêm-se as pp.).
12 Ver Melo (1997: 124) e seguintes. Posteriormente, com o lançamento do Plano de Formação Social e Corporativa (1956), dar-se-á uma transferência de funções culturais da JCCP para a JAS (ver idem: 135).
13 Mais tarde, em 1944, surgirá outra federação independente, a Federação das Colectividades do Distrito do Porto de Educação, Recreio e Desporto (FCDPERD). Sobre este assunto, ver Melo (1997: cap. V) (1999).
14 Medida aprovada pela Direcção da FNAT na reunião de 2/XII/1946 (Livro de Actas, ap. Valente 1998: 171).
15 Esta a perspectiva expressa pelo subsecretário de estado das Corporações enquanto presidente da JCCP (cf. Fernandes 1947: 112/113, cit. 113).
16 Como referia o mesmo líder corporativo: “Compete-lhes [às casas do povo] recolher em museus e reproduzir no mobiliário, no vestuário e nos instrumentos de trabalho as formas a que os nossos olhos foram habituados. Pela fixação de ritmos tradicionais, os agrupamentos folclóricos que elas criarem contribuirão, também, para não deixar perder, no nosso consciente e no nosso subconsciente, as características mais vincadas da Grei.” (Fernandes 1947: 113).
17 Decreto n.° 37.836 (de 24/V/1950). Segue-se a análise de Melo (1997: 131 e seguintes).
18 Sobre este assunto remete-se para a nota 10.
19 Quadro elaborado com base em informação fornecida pelo Instituto Nacional para o Aproveitamento do Tempo Livre dos Trabalhadores (INATEL) para os centros da FNAT e nos relatórios da FPCCR para as associações nela filiadas (dados retirados de quadro em Melo 1997: 361). Não foi possível alargar até 1970 os dados da FPCCR por impossibilidade de consulta dos relatórios correspondentes na sua sede (devido a transferência de edifício).
20 Os dados contidos nos relatórios da direcção da FNAT apresentam valores inferiores, apesar de exprimirem o movimento de CAT e CRP existentes, i. e. não só os activos (para 1951-59 ver Valente (1998: 187); para dados anteriores ver FNAT [1956]: 49). Para a estimativa relativa à federação distrital portuense ver FCDPERD (1959: 8).
21 Quadro elaborado a partir de documentação compulsada no Arquivo do INATEL (inclusive a relativa aos CAT de sindicatos nacionais, que registam menos respostas em relação aos CRP das casas do povo, respectivamente 45 e 127). Aproveita-se este texto para não só alargar como fazer algumas correcções à análise do inquérito às casas do povo presente em Melo (1997: 141-143). Ao quadro de resultados para CRP aí inserido acrescentou-se uma última resposta de 1966 (preferências do CRP de Ramalhal, Lisboa: futebol, ténis de mesa e sessões de cinema).
22 A menos que o público fosse submergido com filmes e festivais de temática etnográfica, o que não era o caso (ver para cinema, p. e., FNAT [1956]: 57-8); já os bailes estavam fora de causa, eram “modernos”.
23 Na Emissora Nacional existiram ainda outros programas relacionados com a etnografia, como “Conheça a sua terra” (SPN/SNI), “A voz do campo” (JCCP, 1948-60) e “Terras de Portugal” (da própria estação) (ver Melo 1997: 287, também 131; corrigenda: “Meia hora de cultura popular”, era da FNAT e só teve um programa, cf. Valente 1998: 97).
24 Ver Valente (1998: 87). Castro Fernandes retomaria esta proposta em 1945, enquanto subsecretário de estado das Corporações (ver Melo 1997: 82-85, 144/5, 157/8). Sobre a edição literária da FNAT para a área cultural ver Melo (1997: 171).
25 Sobre este fenómeno da debilidade da etnografia portuguesa ver Melo (1997: 181-187).
26 Cf. FNAT (1956: 45-46). Trata-se de incumbências assumidas nos estatutos de 1950.
27 Para uma análise dos ranchos folclóricos sob o salazarismo ver Melo (1997: 199-215).
28 Ver idem. Um estudioso italiano reflecte também sobre esta questão no respeitante às festividades do regime fascista (ver Cavazza 1997: especialmente 108-113, 137-140, 202-204). A expressão ritual comunitário vinculativo é adoptada de “rito vinculante” (cf. idem: 7/8, ver também 152).
29 O exemplo do Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio (Braga), um dos primeiros ranchos folclóricos consagrado como CAT, é sintomático desta tese da modelação oficialmente conduzida, com a prévia disciplinação dos seus elementos e ensinamento do folclore por um erudito (discípulo daquele mestre folclorista) enquanto representante corporativo local. Sobre este processo ver Melo (1997: especialmente 199-203). Assinale-se ainda que a FNAT zelava pelo cumprimento da norma oficial (da genuinidade), ainda que tal não evitasse a tendência de homogeneização. O regulamento especial do Gabinete de Etnografia é elucidativo quanto ao pendor da intervenção corporativa no processo de folclorização: “Aos ranchos cuja classificação se não possa definir por não estarem devidamente integrados no espírito e matéria etnográfica, deverá o gabinete de etnografia dar orientação tendente à purificação da sua expressão folclórica” (FNAT 1958b: 2). À incapacidade “regeneradora” de determinado grupo correspondia a sua desclassificação e passagem para recreativo ou artístico (ibid.).
30 Ver Melo (1997: 203) (o Grupo Coral de Lisboa é aí mencionado como Orfeão de Lisboa, designação então também empregue). Para consulta do programa ver Festival Dedicado aos Trabalhadores de Lisboa, Lisboa, (Tip. Ideal), 1946, s. p. Em VII/1944, exibira-se no mesmo recinto, em “espectáculo regionalista”, o CAT Rancho de Santa Marta de Portuzelo (V. Castelo) (ver FNAT 1945: 108 e 118).
31 Ver quadro mais global e correspondente análise em Melo (1997: 192 e 204 respectivamente).
32 O já referido Grupo Coral de Lisboa estreara em 1946 um espectáculo intitulado “Portugal a cantar”, de Raul de Campos, constituído por canções tradicionais (do Minho ao Algarve) adaptadas para coro e acompanhadas por orquestra. No programa do festival de que fazia parte, referia-se que os grupos corais tinham o “incomparável mérito de integrar um número considerável de pessoas (…) na execução musical de consagrados autores, ou em composições (e está neste caso o programa de hoje) que vindas de fonte popular, em geral ignorada de conhecidos folcloristas e cancionistas, nos dão a conhecer as deliciosas melodias, que o povo canta e baila de norte ao sul de Portugal” (op. cit., s. p.). Mas logo de seguida se afirmava que “o valor pedagógico dos grupos corais, reside, principalmente, no subsídio que dão para a criação de um clima alegre e são”, sem mais referências ao elemento folclórico (idem). Curiosamente, já no ano seguinte a “hora de arte popular” integrada na celebração natalícia da FNAT tinha um programa repleto de música clássica, valsas, rapsódias e até samba, sendo minoritária a componente etnográfica (sobretudo convocada pelo coro supracitado, que também já inseria o fado e canções estrangeiras no seu repertório) (ver Comemorações do XII aniversário [programa], [1947], s. p.).
33 Os 94 grupos folclóricos então inscritos na FNAT traduziam um grande salto relativamente aos 17 de 1954 (ap. relatório de 1958 da FNAT e obra do XX aniversário, ver Valente 1998: 171/2).
34 A este propósito ver p. e. o contributo da Feira do Ribatejo em Melo (1997: 204/5).
35 Ver Melo (1997: 210-214) e FNAT (1958a: 38-44). A FNAT colaborou ainda no festival folclórico do Estoril, por ocasião do Congresso da Federação Internacional de Agências de Viagens (1954), organizado pelo SNI (ver FNAT 1955: 19-20); enviou/suportou igualmente grupos representantes ao Congresso Mundial para os Lazeres e Recreação (II: 1936 e III: 1940), a congressos da congénere nazi (IV: 1938 e V: 1939), a Biarritz e aos concursos do Congresso Internacional de Folclore de Palma de Maiorca (1952) e do IX Congresso Internacional de Llangollen (País de Gales, 1955), (ap. documentação do Arquivo do INATEL e FNAT 1945: 183 e 186). As necessidades de propaganda (interna e externa) conduziram à consagração dum clube selecto de grupos folclóricos por parte da FNAT: neste incluem-se o Grupo Folclórico Mirandês de Duas Igrejas e Cércio (Miranda do Douro), o Rancho Tá-Mar (Nazaré), os “Zés Pereiras” de Carrazeda de Anciães, os ranchos das casas do povo de Barqueiros (Douro), Carreço (Minho), Alte (Algarve), Almeirim (Ribatejo) e Camacha (Madeira), além dos já referidos Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio e Rancho de Santa Marta de Portuzelo, etc. (ver Melo 1997: 210-214 e FNAT [dl 1956]: 56/7). Outros organismos oficiais recorreram a esta estratégia, nomeadamente o SPN/SNI.
36 Cit. de A. V. Costa e Melo, dirigente local da FNAT, ap. documentação do Arquivo do INATEL (cf. Melo 1997: 310). Sobre este assunto ver idem: 310-312 e o texto sobre “As marchas populares” incluso nesta obra.
37 Propunham-se ainda outras peças de autores lusos mas que não se afiguram classificáveis como etnográficas (ainda que algumas possam ser alusivas ao folclore) (FNAT 1959). Existe vasta documentação sobre esta iniciativa no Arquivo do INATEL. Sobre as filarmónicas independentes ver Melo (1997: cap. V).
Auteur
Mestre em história contemporânea (UNL), doutorando, investigador associado do Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa (CEHCP/ISCTE). Participou em projectos de investigação nas áreas da história contemporânea de Portugal e história da educação. Prémio de História Contemporânea da Universidade do Minho, em 1998, atribuído à sua tese de mestrado. Publicação mais recente: Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958) (Imprensa de Ciências Sociais, 2001).
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