Capítulo 1. A ciência do povo e as origens do estado cultural
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Texte intégral
1O objectivo deste ensaio é estudar o desenvolvimento das pesquisas sobre a chamada cultura tradicional, no contexto da construção dos estados democráticos modernos na Europa. Interessa-nos compreender em que medida a democracia foi identificada com a gestão da cultura de massas e a cultura democrática com o chamado folclore.
Folclore e democracia
2Em 1900, a Enciclopédia Portuguesa Ilustrada traduzia folclore como a “ciência do povo” (folk significaria povo e lore, ciência). O folclore constituiria o “ramo da arqueologia que recolhe a literatura, as tradições e os usos populares”. O germânico folk era geralmente entendido como o equivalente da palavra latina vulgus, a multidão, a plebe. A literatura e as tradições dos folcloristas não eram os da cultura académica, identificada com a antiguidade grega e romana. Os folcloristas recolhiam as “antiguidades populares”, termo pelo qual, aliás, o folclore era conhecido em Inglaterra no princípio do século XIX.
3A “ciência do povo” remete logicamente para o “governo do povo”. A folclorização foi uma das dimensões da emergência da legitimidade democrática na Europa. O “povo” não era qualquer aglomerado de indivíduos, mas uma comunidade unida por uma vontade colectiva. A vontade desse povo era expressa pelas instituições representativas. No entanto, a identidade do povo foi procurada no modo de vida, na língua, nos usos e costumes da população. O direito de um grupo populacional a constituir uma unidade política autónoma residiu na originalidade das suas manifestações vitais, no seu enraizamento num território. Por isso, logo em 1852, o escritor espanhol Sinibaldo de Mas utilizou a refutação, por Herculano, da antiguidade lusitana dos portugueses para provar que Portugal era uma “nação inteiramente moderna”, e que portanto nenhum argumento válido poderia ser aduzido contra a união ibérica (Mas 1853).
4Como folcloristas portugueses, a Enciclopédia citava Almeida Garrett, Luís Augusto Palmeirim, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso, Adolfo Coelho e José Leite de Vasconcelos — quase todos escritores comprometidos com a esquerda liberal e republicana. O folclorismo desenvolveu-se como um instrumento da cultura do patriotismo cívico que animou o estado liberal. O objectivo dos liberais nunca foi o de reduzir a sociedades às relações de mercado. Os liberais aspiraram a construir em Portugal o que poderíamos chamar “um estado cívico” (Ramos 1994, 1997). Queriam que o governo pertencesse a um corpo de cidadãos, autónomos e iguais entre si, para quem a actividade política constituísse a mais alta forma de realização pessoal. O estado cívico compreendia os homens adultos, educados e com meios de vida. Era neles que a razão residia, e seria pelo uso calmo da razão que os liberais se propunham resolver a maior parte dos problemas humanos. De fora desta comunidade política ficavam os ignorantes, os pobres, e aqueles excluídos pela sua natureza (como as mulheres e os jovens). Para enquadrar estes últimos, os liberais confiaram na disciplina proporcionada pelas instituições tradicionais, como a monarquia e a igreja, embora reformadas. Para aumentar o corpo dos cidadãos, recorreram à engenharia social: demoliram a antiga nobreza, tornaram o ensino estatal obrigatório, investiram em meios de comunicação. Acima de tudo, porém, preocuparam-se em criar um certo estado de espírito colectivo. A “opinião pública”, um dos fundamentos do regime representativo, não podia existir entre um povo sem este sentimento colectivo (Mill 1967: 367). O sentimento de pertença à comunidade cívica era frequentemente traduzido pelo termo “patriotismo”. O patriotismo evocava imagens heróicas, de sacrifício, de devoção, de altruísmo, usualmente fornecidas pela literatura grega e latina. Mas os escritores liberais, como Almeida Garrett e Alexandre Herculano, exploraram outras fontes: a literatura e as tradições deixadas em Portugal pelas épocas ditas “patriarcais e religiosas”, como a Idade Média. Em novelas, baladas e ensaios históricos, apresentaram a cavalaria como o padrão de comportamento do cavalheiro, e os concelhos como o modelo de vida pública para uma sociedade de lavradores proprietários (Saraiva 1977; Ramos 1990, no prelo).
5Os escritores liberais viram na afirmação da Idade Média como memória colectiva a possibilidade de uma população numerosa e diversa poder ter uma “vontade colectiva”. De facto, resolviam assim um problema formulado por J. J. Rousseau. Este concebera a democracia como um meio de legitimar o estado. Se os governantes coincidissem com os governados, isto é, se todos os cidadãos adultos exercessem a soberania, ninguém teria motivo para se sentir oprimido. Para instalar a democracia nos grandes estados territoriais, Rousseau sugerira duas coisas. Em primeiro lugar, era preciso não deixar os cidadãos isolarem-se uns dos outros nas suas vidas privadas, mas juntá-los constantemente em festivais e jogos, para lhes incutir o sentimento da comunidade. Em segundo lugar, convinha que os cidadãos sentissem por esse grande estado o afecto que os habitantes de uma aldeia sentiam pela sua pequena terra. Para tanto, era necessário cultivar o conhecimento da sua história, costumes e paisagens, o qual faria com que os habitantes do estado se sentissem um mesmo povo, uma mesma “nação”, gente com a mesma origem. Rousseau fizera assim da “cultura nacional” um dos fundamentos da democracia, e por aí da própria legitimidade política (Rousseau [1772] 1971). Não foi por acaso que a “descoberta” de Ossian e o interesse pelo folclorismo andaram a par com a influência de Rousseau e a emergência da democracia moderna (Thiesse 1999).
6Na segunda metade do século XIX, a participação no tipo de manifestações patrióticas recomendadas por Rousseau — comemorações como a de 1880, ou protestos como os de 1890 — era para a elite uma forma de confirmar civicamente o seu estatuto social, e para as associações populares urbanas uma espécie de “nobilitação” social. Fora deste mundo cívico, porém, ficava muita gente, como todos aqueles que viviam nas pequenas aldeias e vilas (Ramos 1994: 69-93). Anova classe intelectual que emergiu por volta de 1870 atribuiu a indiferença cívica da maioria da população ao método seguido pelas gerações anteriores para definir uma cultura comum. A nova geração queria ser “positiva”, isto é, “científica” (Ramos 1992, 2000). O patriotismo só seria eficaz se assentasse, não em exemplos exóticos, como os da Grécia ou Roma, nem em elaborações imaginárias, sem verdadeiro eco no povo. O folclorismo e o medievalismo da geração de Garrett e Herculano estariam neste último caso (Martins [1881] 1925: II, 131, 134-136). A cultura comum precisava de assentar na apreensão da “nação” como um facto científico. Para estabelecer as “bases positivas da nacionalidade”, Teófilo Braga levou a cabo “uma larga investigação sobre a etnogenia do povo português, compreendendo os costumes, as indústrias locais, crenças e superstições, festas religiosas, cerimónias funerárias e nupciais, símbolos de direito consuetudinário, jogos infantis, adivinhas, adágios, colóquios e danças dramáticas, músicas e canções, novelas, profecias nacionais, cantos heróicos do romanceiro, literatura de cordel, dialectologia e lendas históricas”. Enfim, todas as “manifestações do viver português”, que ele tentou sistematizar em O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições (1885). Teófilo notava haver começado como um simples compilador romântico, à Garrett. No entanto, a ciência positivista levara-o a definir um objecto e método de estudo. Agora, o que lhe interessava, nos usos e costumes do povo, não eram curiosidades, mas a “tradição”, isto é, a cultura, que ele define como uma forma de “consenso” social, aquilo que unia um povo e lhe dava “carácter” próprio. Mais tarde, na sua História da Literatura Portuguesa, Teófilo faria desta tradição um critério estético, julgando a obra de cada escritor pela “intuição que teve das fontes tradicionais”. Esta procura de documentos genuínos permeou toda a sua geração. Por exemplo, Joaquim de Vasconcelos revoltou-se contra o estilo pitoresco que até então merecera o nome de português, o chamado manuelino, e fez campanha pelo românico das igrejas do Norte, certificado pelo seu ruralismo e arcaísmo (Vasconcelos [1918] 1992).
7José Leite de Vasconcelos, a alma do Museu Etnográfico, criado em Lisboa em 1893, e director da Revista Lusitana (1887) e de O Arqueólogo Português (1893), levou estes escrúpulos mais avante. Teófilo ainda recolhera os seus materiais pelo que lhe diziam os amigos ou lia em livros novos e antigos. Leite quis ser mais científico (ou “positivo”, como então se dizia). Na busca de fontes não contaminadas pelo cosmopolitismo moderno, foi para as aldeias e as serras, onde apurou a técnica de abordar e interrogar as populações. No prefácio à sua monumental Etnografia Portuguesa, explicou que a base da “solidariedade psíquica” que leva os indivíduos a identificarem-se como um povo não era uma adesão consciente, mas o resultado da participação quotidiana nos usos, costumes e conversas. Por isso, “o cultivo de um horto, a preparação de umas papas, a feitura de um capote” expressavam o “génio nacional”, mais até do que as artes eruditas.
8J. L. de Vasconcelos justificava assim o interesse que um cada vez maior número de revistas, de sociedades de eruditos e de museus dedicados às “indústrias caseiras” mostravam por peças de olaria, cestos e rocas de fiar. Nos campos, sobrevivia a nação incorrupta, e era aí que convinha abrir “cientificamente” os caboucos do sentimento colectivo. As aldeias não forneciam apenas objectos de museu. Sugeriam também instituições para recriar a sociedade. Em 1909, a Liga de Educação Nacional convidou o sociólogo francês León Poinsard, membro da Sociedade Internacional de Ciência Social, para dirigir na Universidade de Coimbra uma série de inquéritos sobre a vida do povo, que tiveram um grande impacte público. A ideia base, sugerida por Frédéric LePlay, era que a “força” de um país dependia do tipo de relações que uniam os indivíduos, sobretudo no quadro da família. Segundo LePlay, havia um tipo de família que propiciava estabilidade e ao mesmo tempo libertava a iniciativa: a “família-tronco”. Poinsard detectou-a entre os agricultores-proprietários do Minho, da Beira Litoral e do Alto-Trás-os-Montes. Nessas comunidades rurais, estava a vacina contra a proletarização e a desordem social que proliferavam entre as “famílias desorganizadas” das cidades e do sul do país (Medeiros 1987).
Folclorização e reaportuguesamento
9Os positivistas afectaram profundamente o debate sobre o processo pelo qual os habitantes dos estados modernos adquiriram consciência de ser um grupo com a mesma origem (uma “nação”). A sua teoria das “raças” históricas, definidas pela língua, folclore e biologia, ficou desacreditada quando foi adoptada pela direita revolucionária nas décadas de 1920 e 30. Na segunda metade do século XX, predominou a inspiração da esquerda marxista, para quem as nacionalidades eram um sintoma da alienação das populações em relação à sua condição de classe. Constituíam uma “falsa consciência”, “construída” ou “inventada” pelos eruditos do século XIX e imposta pelo estado burguês (Hobsbawm & Ranger 1983). O argumento escondia uma esperança: a de que as nacionalidades pudessem ser desinventadas (Thiesse 1999). Obviamente, a tese construtivista provocou reacções. Alguns autores observaram que a “invenção” utilizara “dados” antigos, e não apenas elementos produzidos pela imaginação dos filólogos e folcloristas (Smith 1991). De facto, as chamadas “identidades nacionais” não surgiram subitamente numa certa época, como Minerva saindo da cabeça de Júpiter. No entanto, a consciência de que há factores preexistentes não nos deve impedir de reconhecer uma revolução quando ela se dá. No caso português, as décadas que vão do centenário de Camões ao duplo centenário de 1940 constituíram um momento de produção e divulgação intensa dos símbolos e narrativas que balizaram o que foi ser português no século XX (Ramos 1994: 565-595). De resto, foi nestes anos que se afinou o conceito de cultura, à volta da ideia de que, depois da “morte” do cristianismo, era necessário integrar os indivíduos num novo sistema de crenças. Em A Decadência do Ocidente (1918-22), Oswald Spengler definiu a “cultura”, por contraste com a “civilização”, como o conjunto das actividades e dos objectos produzidos por uma sociedade enquanto expressão da maneira de viver característica dessa sociedade. “Cultura” era, assim, a vida vivida como totalidade harmoniosa. Anos mais tarde, T. S. Eliot descreveu a “cultura” como a “encarnação de uma religião” (Eliot 1988: 33). Cultura deixou assim de ser um termo descritivo para passar a ser uma utopia: a de uma religião sem Deus.
10Apareceu então uma literatura, à volta de celebridades internacionais como Paul Bourget ou Maurice Barrès, a afirmar que o verdadeiro eu do indivíduo era definido pela raça e pela pátria (Sternhell 1985). Não era um sentimento novo. Em 1874, na ilha Terceira, longe de Lisboa, Antero de Quental confessava a Oliveira Martins que se sentia ali “na comunhão do quid nacional, da alma tradicional colectiva, que cada vez aprecio mais e se me torna cada vez mais necessária” (Quental 1989: I, 248-249). Avida tradicional fazia-lhe sentir a serenidade disciplinada que ele, em vão, se esforçara por obter através da dedução científica. Vinte anos depois, António Nobre resgataria o interesse pelas aldeias, pelas “festas ingénuas, arraiais, danças, procissões, sermões do Sr. Abade” (Nobre 1982: 258). Alberto de Oliveira, seu confidente, quis lançar “uma literatura portuguesa nova, pujante, toda de regresso às tradições, com a melancolia e o maravilhoso do povo”. Como patrono, escolheu Garrett. Garrett “copiou Portugal para os seus livros”, recuperando os “velhos mobiliários”, o “pitoresco da nossa paisagem e da nossa antiga literatura”, o “sensualismo e fatalismo” da “nossa raça”. Eça de Queiroz, cuja geração se afirmara no combate “positivo” contra os “românticos”, menosprezou este novo “tradicionalismo literário” como uma reedição da estéril exploração das lendas e tradições históricas e populares que ocupara os literatos de 1830 a 1860 (Queiroz 1983: II). Mas o “neogarretismo” tinha algo de subversivo. Implicava a contestação da sociedade presente a partir do pressuposto de que antes dela existira uma “realidade portuguesa”, uma forma de vida que correspondia exactamente ao modo de ser dos portugueses, e que se perdera quando estes começaram a imitar os outros burgueses europeus. Essa vida original já só podia então ser entrevista nas lendas históricas, em certos costumes rurais, no artesanato e em sentimentos como o da nostalgia por uma vida mais perfeita (a “saudade”). Alberto de Oliveira estava aterrado pela perspectiva de um dia Portugal ser um país igual aos países ricos da Europa. Por isso, pediu aos artistas para irem para as aldeias tirar à pátria “a máscara mortuária” (Oliveira, A. [1894] 1984).
11Oliveira quis formar uma rede intelectual que resistisse à descaracterização cosmopolita. Na viragem do século XIX para o século XX, a rede ficou lançada. Pintores como Silva Porto, José Malhoa ou Alfredo Roque Gameiro romperam com a tradição académica das cenas históricas e paisagens “sublimes”, para registarem romarias, debulhas, vindimas, feiras, casas de aldeia e figuras “populares” em trajos e atitudes típicas. Em 1895, Ramalho Ortigão chamou a Silva Porto o “Garrett da pintura portuguesa”, e à sua obra “as Viagens na Minha Terra a óleo” (França 1990). Em 1902, no Porto, Emílio Biel publicava, com um enorme sucesso, o equivalente fotográfico nos oito volumes de A Arte e a Natureza em Portugal. Por volta de 1920, uma nova literatura regionalista, encabeçada por Aquilino Ribeiro, promovia as aldeias como o cenário de uma vida mais directa, mais verdadeira, em que o contacto com as origens e a morte estava livre dos preconceitos cristãos e das angústias modernas. Os músicos tentaram entrar em contacto com a mesma fonte. Alfredo Keil teve grande sucesso em 1899 com a ópera “verdista” A Serrana. A sincronia internacional era clara. Francisco de Lacerda, que entre 1897 e 1914 fez carreira em França como chefe de orquestra, contou com o entusiasmo de Claude Debussy para o projecto de editar as músicas populares que recolhera nos Açores (Câmara 1987: 38). Acima de tudo, estes émulos de Garrett procuravam o real, o vivido. Ao pintar O Fado, Malhoa como que forneceu a prova da existência real de um universo — o dos fadistas — que já era tema literário e cinematográfico, e objecto de discussões eruditas (Ramos 1994: 574-576). É curioso que tanto a propósito dos romances de Aquilino como dos quadros de Malhoa, os críticos da época tenham falado de “paganismo” e “obra portuguesa”. A “verdade” de Portugal era anterior à civilização cristã e burguesa.
12Foi neste contexto que, por 1910, Afonso Lopes Vieira lançou a campanha do “reaportuguesamento de Portugal”. O seu objecto principal foi a “reintegração” na vida intelectual portuguesa da arte dos “primitivos”, de que eram exemplo o teatro de Gil Vicente e os painéis atribuídos a Nuno Gonçalves. A promoção de Nuno Gonçalves ajuda a compreender os pressupostos do “reaportuguesamento”. Vieira não hesitou em declarar os painéis superiores aos Lusíadas, pois que mostravam a “Grei”, o esforço colectivo da nação, em vez de heróis mitológicos. Fora José de Figueiredo, director do Museu Nacional de Arte Antiga, quem desvalorizara a influência flamenga e integrara Nuno Gonçalves num meio artístico próprio: o dos “primitivos portugueses” (Figueiredo 1910: 87). De facto, o “primitivismo” dos painéis não queria dizer inferioridade técnica, mas designava antes as condições em que essas obras haviam sido realizadas: em contacto com o povo e a vida. Numa nuance fundamental, Figueiredo não chamara “artista” ao pintor Nuno Gonçalves, mas “artifície”. A sua arte não vinha das academias, mas, segundo Figueiredo, da anónima tradição dos frescos nas igrejas rurais. Em conformidade, na Exposição de Arte Popular no Porto, em 1929, os quadros dos “primitivos” foram exibidos entre cerâmicas do Alentejo e rendas de bilros. Por isso, Afonso Lopes Vieira pôde dizer que em Nuno Gonçalves estava contida a expressão da “alma colectiva” do seu tempo, a inspiração primitiva que fazia as verdadeiras obras de arte (Vieira 1942: 152). Figueiredo e Vieira (ambos republicanos nessa época) sujeitavam assim o juízo estético a uma espécie de legitimidade democrática: a boa arte era a que provinha do povo. O mesmo defendera Joaquim de Vasconcelos, inspirado pelo movimento de Arts and Crafts inglês. Para Vasconcelos, o “futuro da arte portuguesa está na indústria popular, nas indústrias caseiras”. A arte precisava de ser devolvida ao quotidiano, ao dia-a-dia, de voltar a ser feita por artesãos e usada pelo povo. Para conseguir isso, Joaquim de Vasconcelos montara no Porto as primeiras exposições de cerâmica, ourivesaria e tecidos “nacionais” (1882, 1884), e apoiou Rafael Bordalo Pinheiro e a sua fábrica de louça das Caldas da Rainha (França 1990: II, 119). A tarefa da arte moderna em Portugal só podia ser a de recuperar o “primitivismo”, isto é, regressar ao povo e à terra: tornar-se “folclore”.
13A indústria do “reaportuguesamento” definiu o que era “ser português” de uma maneira convenientemente plástica. Raul Lino fez “casas portuguesas” através da combinação livre de um certo número de elementos “ditos à portuguesa”: “a linha de cobertura sanqueada e arrematada pelo beiral dito à portuguesa”, alpendres, vãos guarnecidos de cantaria, cal branca e azulejos. Mas, em última instância, não eram estes materiais que podiam definir a casa portuguesa, mas apenas o “sabor português”, um “certo ar amoroso de doçura” (Lino 1929: 67-68). Já José de Figueiredo descobrira nos painéis a manifestação de um cristianismo doce e gentil, que atribuiu ao facto de os “primitivos” terem absorvido o “modo de ser físico da nossa terra”. A “arte primitiva portuguesa” continha o segredo de uma harmonia nacional, ecológica, que, segundo Figueiredo, se perdera devido ao “cosmopolitismo” da Renascença (Figueiredo 1910: 138 e seguintes). Foi esta harmonia que, desde 1924, a Companhia dos Caminhos de Ferro, representante máximo da modernidade, quis honrar com as suas estações de estilo “nacional”, dotadas de alpendres, gelosias, beiradas de telha e forradas com painéis de azulejo mostrando paisagens, monumentos e costumes. Avoga das coisas “portuguesas”, desde os tapetes de Arraiolos até aos quadros de José Malhoa, coincidiu, como notou António Sérgio (1971: I, 79), com a afirmação das novas classes médias, os médicos, advogados e negociantes que emergiram durante a República e precisaram de adquirir, mais não fosse através de consumos de prestígio, alguma “tradição”. Trata-se do mesmo motivo que, em 1923, levou os estudantes da nova Universidade de Lisboa, fundada em 1911, a inventar as suas próprias praxes e “queimas das fitas”, à imitação de Coimbra — onde, aliás, as “codificações” da praxe datam de 1916 e 1925. Tudo em Portugal se tornava tradicional, português.
O estado democrático como estado cultural
14Algures, na década de 1920 ou 1930, Fernando Pessoa notou que “a revolução republicana e a transformação literária das três gerações anteriores são efeitos do mesmo fenómeno” (1986: III, 184). De facto, a experiência da República de 1910 demonstrou que o estado democrático não poderia ser um estado laico, mas, como os “aportuguesadores” já haviam percebido, um “estado cultural”— a “religião moderna”, como lhe chamou Marc Fumaroli (1991).
15A revolução republicana abriu uma guerra cultural na sociedade portuguesa. A democracia, tal como os republicanos a concebiam, exigia que se melhorasse a condição do povo, mas também que se desse um novo sentido à vida colectiva. Odiando as religiões estabelecidas, os republicanos estimaram sempre o “sentimento religioso”, o sentimento de ligação interindividual e de harmonia cósmica, que podia ou não incluir referência a um deus pessoal. Por isso, a República procurou instaurar um culto próprio e oficial, que era o da pátria, à volta dos símbolos nacionais, hino e bandeira, e dos mortos ilustres (Ramos 1994: 401-433). Segundo o secretário-geral do novo Ministério da Instrução, João de Barros, o fim da escola era evangelizar as crianças neste culto da pátria, dando-lhes a conhecer Portugal e criando-lhes “amor à terra, à paisagem, aos seus produtos, às suas tradições nobres, ao seu pensamento, à sua arte”. Era necessário “excluir todo e qualquer vestígio do estrangeiro” no ensino primário. Os edifícios escolares deveriam ser construídos segundo os modelos portugueses de Raul Lino. Barros esperava que o professor aproveitasse todas as ocasiões para observações patrióticas: “Que um professor não saiba invocar a propósito de uma noção agrícola o trabalho dos nossos campos — e logo fará obra desnacionalizadora, antipatriótica, mesmo.” (Barros 1913). Era como se o espectro de Rousseau tivesse conquistado as escolas portuguesas.
16Foi com este espírito que dezenas de intelectuais republicanos fundaram a Renascença Portuguesa (1912), uma organização que se propunha preencher o vazio deixado pela proscrição oficial dos padres e da igreja católica. Teixeira de Pascoaes anunciou que vinham para “ressuscitar a Pátria Portuguesa”, através da “criação, na alma do Povo, dum ideal religioso, que lhe provoque os sentimentos de heroísmo e sacrifício, sem os quais nenhuma nação poderá viver”. Religião tinha, para Pascoaes, um “sentido filosófico”: era a busca colectiva de uma forma de vida superior. Para dar forma nacional a essa religião, Pascoaes investigou a tradição popular e poética. O catolicismo romano parecia-lhe uma importação estrangeira, imprópria para portugueses. Acabou por seguir os “neogarretistas” e escolher a saudade. O saudosismo mantinha a referência a um além, típica das religiões reveladas, mas reinterpretava esse além como a busca humana de perfeição. Este misticismo laico formava o fulcro espiritual de um treino ascético, cuja parte física incluía a ginástica, o vegetarianismo e abstenção do tabaco e álcool. Os intelectuais seriam os sacerdotes deste novo culto. Financiados pelas autoridades, os renascentistas editaram livros e revistas, fizeram exposições e abriram cursos de conferências (as “universidades populares”). A Renascença lembra movimentos contemporâneos como os da Renascença Céltica, na Irlanda, ou da Renascença Catalã. Por toda a Europa, entre cerca de 1880 e 1920, grupos de intelectuais vasculharam as tradições poéticas e folclóricas em busca da espiritualidade que desse um sentido nacional e até esotérico às leituras, excursões e outras actividades de lazer das classes médias (Ramos 1994: 532-536).
17A Grande Guerra (1914-1918) acabou por dividir e isolar a oligarquia republicana. Enquanto os governos faziam remessas de soldados para a Flandres e perseguiam padres, o povo saqueava lojas e acorria ao sítio de Fátima, esperando uma intervenção divina para acabar com a guerra. Foi neste meio que floresceu o movimento do Integralismo Lusitano, uma espécie de contra-Renascença Portuguesa (Ibid. 540-546). Os integralistas acusavam a esquerda republicana de tratar as nações como uma mera etapa transitória na organização da humanidade. Segundo os integralistas e os seus padrinhos espirituais da Action Française, as “ciências sociais” haviam demonstrado que a humanidade vivia melhor sob costumes e leis que fossem o resultado, não da escolha dos indivíduos, mas da própria vida em comum através da história. Era preciso subordinar a política ao “facto científico e experimental” da nação. Para esclarecer este “facto”, os integralistas mobilizaram toda a erudição positivista portuguesa no campo da história, da filologia e do folclore. Nas suas conferências de estreia da Liga Naval Portuguesa, em Lisboa (Abril de 1915), estudaram a “individualidade” portuguesa em termos de território e raça (Sardinha), língua e arte (Hipólito Raposo), música e instrumentos musicais (Luís de Freitas Branco), etc. Sardinha sentia-se detentor de uma “verdade portuguesa”, que consistia no projecto de um estado de municípios livres, animado pelo “sebastianismo”, uma “religião da esperança” (Sardinha 1928: 264). Os paralelos com as propostas de Herculano, Teófilo Braga e Pascoaes são óbvios. Sardinha abandonara o campo republicano e liberal, mas não o ideal de unidade e estabilidade colectiva elaborado no quadro do patriotismo cívico. O que Sardinha detestava na república não era o republicanismo, mas o devaneio “jacobino” de querer realizar esse ideal a partir do nada, desprezando o estudo científico das tradições nacionais. Mas mesmo aqui, ele seguia Teófilo e Pascoaes.
18Em suma, renascentistas e integralistas haviam percebido que a democracia requeria, mais do que simples escolarização, o estabelecimento de uma cultura de massas gerida, vigiada e promovida pelo estado, e que essa cultura deveria assentar “cientificamente” na “tradição nacional”. Foi assim que os integralistas avançaram com um projecto de “estado cultural”, baseado num sistema de “subsídios” às artes e instituições para “defesa do património”. Na década de 1920, Sardinha desvalorizou objectivos partidários imediatos e identificou o projecto integralista com o “reaportuguesamento de Portugal”. Era esta “cultura colectiva” que havia de gerar a “minoria resoluta e capaz” para salvar o país. Este enfoque culturalista, esta ênfase na procura “duma finalidade portuguesa, anterior e superior às finalidades partidárias”, como diria António Sérgio na revista Homens Livres, permitiu que os integralistas e os ex-renascentistas da Seara Nova, se encontrassem juntos à volta do tipo de investigação histórica e folclórica praticada na revista Lusitânia (1924-1927), de Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Ramos 1994: 552).
19O estrangulamento financeiro do após-guerra, porém, impediu o estado cultural de ser mais do que uma ideia e um esboço. O mesmo aconteceu, de resto, ao projecto do estado-providência. No entanto, as tendências ficaram claras. Reconhecendo que a “arte tem uma moralizadora acção política, como educadora dos meios populares”, os governos republicanos multiplicaram os museus pelo país. O “património”, enquanto tal, já merecera a consagração dos governos da monarquia: a maior parte dos mais célebres monumentos dos roteiros turísticos foram classificados entre 1907 e 1910. Organismos oficiais surgiram a cuidar do que até então dependera de entusiasmos privados. Em 1920, apareceu enfim uma Direcção-Geral da Estrada e Turismo. Até aí, coubera à Sociedade de Propaganda de Portugal, fundada em 1906, a tarefa da divulgação de roteiros, organização de excursões e até elucidação dos caminhos, através da colocação de postes indicadores nos cruzamentos de estradas. No entanto, a cultura oficial continuava espartilhada por instituições semiautónomas, como a Academia das Ciências, a Sociedade de Belas Artes, o Teatro Nacional, o Teatro de São Carlos, ou o Conservatório. Ora, todas elas eram motivo de divisão e rancor nos meios letrados. Os “aportuguesadores” boicotaram-nas ferozmente. Quando perguntaram a Afonso Lopes Vieira se estava interessado em ingressar na Academia, ele respondeu logo que era o “Portugal ingénuo”, o “povo”, quem guardava a tradição, e que era aí que ele se sentia bem (Diário de Lisboa, 16.1.1923, 4).
20Por isso, na década de 1920, alguns festejaram o “regionalismo” como uma alternativa. Foi a época em que notáveis e eruditos locais — os advogados, médicos e professores de liceu que, nas horas vagas, escreviam para o semanário da terra — animaram as cidades de província com congressos, exposições, festas tradicionais, sessões solenes nos paços do concelho e paradas agrícolas (Ramos, 1994: 590-593). Os integralistas entusiasmaram-se com este “patriotismo local”. A pátria era uma entidade “positiva”, definida pelo contacto e sobretudo pelo conhecimento do que existia, não por utopias. Como poderia alguém sentir algo pela nação se o não sentisse, primeiramente, pelas “torres caiadas da sua paróquia”, ou pelo “cemitério em que repousam as raízes do seu sangue e da sua alma”? (Sardinha 1931: 54). Mas o “regionalismo” levantava problemas. As regiões evocavam contrastes, a começar pela oposição entre o Norte e o Sul. Oliveira Martins, Basílio Teles, Alberto Sampaio foram alguns dos que afirmaram essa diferença social (lavradores do norte versus comerciantes do sul), filológica ou, mais frequentemente, étnica. Sardinha viu nisto uma perniciosa tendência para adaptar a Portugal a lógica da oposição entre a langue d’oc e a langue d’oeuil em França (Sardinha 1961: 44). Mas não era fácil ignorá-la.
21O “nacionalismo” nunca foi feliz em Portugal, um país simultaneamente demasiado diverso e demasiado pequeno, e com uma classe intelectual cosmopolita. Mesmo Sardinha anunciou finalmente que “apenas nacionalismo não basta”. Compreendera que aquilo que lhe interessava, a transformação da civilização, não cabia num pequeno país (Sardinha 1940). Para Jaime de Magalhães Lima, o verdadeiro “nacionalismo” consistia na simples e inconsciente adaptação da população a uma determinada terra. Tinham sido “nacionalistas”, neste sentido, os camponeses medievais. Ora, o “nacionalismo” português contemporâneo era urbano, era importado, era um “nacionalismo” extraído de livros franceses e ingleses. Em suma, era uma forma de cosmopolitismo. Assim, o que Magalhães Lima recomendava aos “aportuguesadores” era a urgência de “desistir corajosamente” (Lima 1931).
Conclusão
22A má consciência que tanto afligia Jaime de Magalhães Lima era antiga. Em 1891, quando Alberto de Oliveira o felicitou por ter capturado o verdadeiro povo português em Os Simples, Junqueiro desfez-lhe as ilusões. “Fiz camponeses, como eu gostaria de sê-lo nesta hora (…) Não é a aldeia que é perfeitamente assim, sou eu” (Oliveira 1955: II, 192). O positivismo exigia realidades objectivas e independentes. Foi assim que as gerações de Junqueiro e Oliveira procuraram a verdadeira “nação” nas aldeias e na história. O seu objectivo era o mesmo dos fundadores liberais do estado cívico: segundo a lição de Rousseau, formular uma cultura comum que unisse os cidadãos num mesmo estado de espírito. No entanto, queriam ser “científicos” (“positivos”, como então se dizia), não queriam “inventar”, como teriam feito Garrett e Herculano. O “aportuguesamento”, pesquisa científica da vida e arte popular primordiais e ao mesmo tempo “restituição” desse ambiente “primitivo”, seria o alicerce da democracia em Portugal. No entanto, se a ideia do “estado cultural” ficou esclarecida nesta época, os aparelhos legislativos e institucionais que lhe viriam a dar corpo ainda estavam para vir.
Auteur
Licenciado em história (UNL), doutor em ciência política (Universidade de Oxford). É investigador do Instituto de Ciências Sociais (ICS/UL). Tem leccionado na Universidade Nova de Lisboa, na Universidade de Évora e na Universidade Católica Portuguesa. Interessa-se por história da cultura política portuguesa nos séculos XIX e XX, em especial pelo papel dos intelectuais na formação da identidade nacional. É autor dos seguintes livros: História de Portugal. VI. A Segunda Fundação (1890-1926) (Círculo de Leitores, 1994), Os Presidentes da República Portuguesa (Colecções Philae, 1999), João Franco e o Fracasso do Reformismo Liberal (Imprensa de Ciências Sociais, 2001), Introdução à História da Alfabetização em Portugal (Imprensa de Ciências Sociais, 2002).
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