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Fábulas de Esopo (Vertidas do grego por Manuel Mendes, da Vidigueira)
p. 270-299
Texte intégral
I o galo e a Pérola
1Andava o Galo esgravatando no monturo, para achar migalhas, ou bichos, que comer, e acertou de descobrir uma pedra: disse então: – Ó Pedra preciosa, ainda que lugar sujo, se agora te achara um discreto Lapidário, te recolhera; mas a mim não me prestas; mais caso faço de uma migalha, que busco para meu sustento, ou dous grãos de cevada. Dito isto, a deixou, e foi por diante esgravatando para buscar conveniente mantimento.
II O lobo e o Cordeiro
2Estava bebendo um Lobo encarniçado em um ribeiro de água, e pela parte de baixo chegou um Cordeiro também a beber. Olhou o Lobo de mau rosto, e disse, reganhando os dentes: – Porque tiveste tanta ousadia de me turvar a água onde estou bebendo? Respondeu o Cordeiro com humildade: – A água corre para mim, portanto não posso eu torvá-la. Toma o Lobo mais colérico a dizer: – Por isso me hás-de praguejar? Seis meses haverá que me fez outro tanto teu pai. Respondeu o Cordeiro: – Nesse tempo, senhor, ainda eu não era nascido, nem tenho culpa. – Sim tens (replicou o Lobo) que todo o pasto de meu campo estragaste. – Mal pode ser isso, disse o Cordeiro, porque ainda não tenho dentes. O Lobo, sem mais razões, saltou sobre ele e logo o degolou, e o comeu.
III O lobo e as ovelhas
3Havia guerra travada entre Lobos e Ovelhas; e elas, ainda que fracas, ajudadas dos rafeiros, sempre levavam o melhor. Pediram os Lobos paz, com condição que dariam de penhor seus filhos, e as Ovelhas que também lhe entregassem os rafeiros. Assentadas as pazes com estas condições, os filhos dos Lobos uivavam rijamente. Acodem os pais, e tomam isto por achaque de ser a paz quebrada; e tomam a renovar a guerra. Bem quiseram defender-se as Ovelhas, mas como sua principal força consistia nos rafeiros, que entregaram aos Lobos, facilmente foram deles vencidas, e todas degoladas.
IV O rei dos bugios e dois homens
4Caminhavam dois companheiros, tendo perdido o caminho, depois de terem andado muito, chegaram à terra dos Bugios. Foram logo logo levados ante o rei, que vendo-os lhes disse: – Na vossa terra, e nessa por onde vindes, que se disse de mim, e do meu reino? Respondeu um dos companheiros: – Dizem que sois rei grande, de gente sábia, e lustrosa. O outro, que era amigo de falar verdade, respondeu: – Toda vossa gente são bugios irracionais, forçado é que o rei também seja bugio. Como isto ouviu o rei, mandou que matassem a este, e ao primeiro fizessem mimos, e o tratassem muito bem.
V A Andorinha e Outras aves
5Semeavam os homens linho, e vendo-os a Andorinha disse aos outros pássaros: – Por nosso mal fazem os homens esta seara, que desta semente nascerá linho, e farão dele redes e laços para nos prenderem. Melhor será destruirmos a linhaça, e a erva, que dela nascer, para que estejamos seguras. Riram as Aves deste conselho e não quiseram tomá-lo. O que vendo a Andorinha, fez pazes com os homens e se foi viver em suas casas. Eles fizeram redes, e instrumentos de caça, com que tomaram e prenderam todos os pássaros, tirando só a Andorinha, que ficou privilegiada.
VI O Rato e a Rã
6Desejava um Rato passar um rio, e temia, por não saber nadar. Pediu ajuda a uma Rã, a qual se ofereceu de o passar, se se atasse ao seu pé. Consentiu o Rato, e tomando um fio, se atou pelo pé e na outra ponta atou o pé da Rã. Saltaram ambos na água, mas a Rã com malícia trabalhava por se mergulhar, por que o Rato se afogasse. O Rato fazia por sair para fora, e ambos andavam neste trabalho e fadiga. Passava um milhano por cima e vendo o rato sobre a água, se abateu per o levar, e levou juntamente a Rã, que estava atada com ele, no ar os comeu ambos.
VII O Ladrão e o Cão de casa
7Querendo um Ladrão entrar em uma casa de noite para roubar, achou à porta um Cão, que com ladridos o impedia. O cauteloso Ladrão, para o apaziguar, lhe lançou um pedaço de pão. Mas o cão disse: – Bem entendo que me dás este pão por que me cale, e te deixe roubar a casa, não por amor que me tenhas: porém já que o dono da casa me sustenta toda a vida, não deixarei de ladrar, se não te fores, até que ele acorde, e te venha estorvar. Não quero que este bocado me custe morrer de fome toda a minha vida.
VIII O Cão e a Ovelha
8Demandou o Cão à Ovelha certa quantidade de pão, que dizia haver-lhe emprestado, ou dado na sua mão em depósito. Ela negou havê-lo recebido. Dá o Cão três testemunhas, convém a saber: um Lobo, um Buitre e um Milhano, os quais todos já vinham com o Cão subornados, e apostados a jurar em seu favor, como com efeito juraram, dizendo que eles viram receber à Ovelha o pão, que se lhe pedia. Vendo a prova, a condenou o Juiz a que pagasse; e como ela não tivesse por onde, lhe foi forçado tosquiar o pêlo, e vendê-lo ante tempo, do que pagou o que não comera, e ficou nua padecendo as neves e frios do Inverno.
IX O Cão e a Carne
9Levava um Cão na boca um pedaço de carne, passava com ela um rio, e vendo no fundo da água a sombra da carne maior, soltou a que levava nos dentes, por tomar a que via dentro na água. Porém como o rio levou para baixo com sua corrente a verdadeira, levou também a sombra e ficou o Cão sem uma e sem outra.
X A Mosca Sobre a carreta
10Sobre um carro de mulas, carregado, pousou uma mosca, e achou-se tão altiva de ir a seu gosto, alta, que começou a falar soberba contra a mula dizendo que andasse depressa, senão que a castigaria, picando-a onde lhe doesse. Virou a mula o rosto dizendo: – Cala-te, parva sem vergonha, que não temo nem me podes fazer nada; o medo que me causa é do carreteiro, que leva na mão o açoite, que tu só com importunações cansas-me, sem me fazer outro mal.
XI O Câo e a Imagem
11Buscando de comer, o Cão acertou de achar uma Imagem de homem, muito primorosa, e bem feita de papelão com cores vivas. Chegou o Cão a cheirar por ver se era homem que dormia. Depois deu-lhe com o focinho e viu que se rebolava, e como não quisesse estar queda, nem tomar assento, disse o Cão: – Por certo que a cabeça é linda, senão que não tem miolo.
XII O Leão, a Vaca, a Cabra e a Ovelha
12Fizeram parceria um Leão, uma Vaca, uma Cabra e uma Ovelha, para que caçassem de mão comum e partissem o ganho. Correndo sobre este concerto, acharam um Veado, depois de terem andado e trabalhado muito, o mataram. Chegaram todos cansados e cobiçosos da presa, e fizeram-no em quatro partes iguais. O Leão tomou uma, e disse: – Esta é minha conforme ao concerto; estoutra me pertence por ser mais valente de todos; também tomarei a terceira, porque sou rei de todos os animais, e quem na quarta bulir, tenha-se por meu desafiado. Assim as levou todas, e os parceiros se acharam enganados, e com agravo, mas sofreram por serem desiguais na força ao Leão.
XIII O Casamento do Sol
13Dizem que em certo tempo desejou o Sol de se casar, e todas as gentes, agravadas disso, se foram queixar a Júpiter, dizendo: – Que no Estio trabalhosamente sofriam um Sol, que com seus raios os abrasava, donde inferiam e provavam, que se o Sol casasse e viesse a ter filhos, queimaria o mundo todo; porque um Sol faria Verão calmoso na Índia, outro em Grécia, outro na Noruega e terras setentrionais; pelo que sendo todas as três zonas tórridas, não teriam as gentes onde viver. Visto isto por Júpiter, mandou que não casasse.
XIV O Homem e a Doninha
14Um homem que caçava Ratos, prendeu na armadilha uma Doninha. Ela vendo-se em seu poder, lhe disse que a soltasse, e alegou razões, dizendo: que ela nenhum mal fazia, antes’ lhe alimpava a casa de ratos e bichos, e sempre, por lhe fazer bem, os andava matando. Respondeu o homem: – Se tu por fazer bem o fizeras, devia-te eu agradecimento, mas como o fazes pelo comer, não te devo nada, antes te quero matar, que se eles te faltarem, comer-me-ás o meu, pior do que o fazem os mesmos ratos.
XV A Bugia e a Raposa
15Rogava a Bugia à Raposa que cortasse a metade do seu rabo e lho desse, dizendo: – Bem vês que o teu rabo arroja, e varre a terra, e é defeito por demasiado; o que dele sobeja me podes prestar a mim, e cobrir- – me estas partes, que vergonhosamente trago descobertas. Antes quero que arroje, (disse a Raposa) e varra o chão, e me seja pesado, que aproveitares-te tu dele. Por isso não to darei nem quero que coisa minha te preste. E assim ficou sem ele a Bugia.
XVI Juno e o Pavão
16Veio o Pavão a Juno muito queixoso, dizendo, por que razão o Rouxinol havia de cantar melhor que ele, e ter-lhe outras muitas vantagens? Disse Juno, que não se agastasse; que por isso tinha ele as penas formosas cheias de olhos, que parecem estrelas. – Isso é vento (replicou o Pavão) mais tomara saber cantar. Juno respondeu. Não podes ter tudo. O Rouxinol tem voz, a Águia força, o Gavião ligeireza, tu contenta-te com tua formosura.
XVII O Lobo e o Grou
17Comendo o Lobo carne, atravessou-se-lhe um osso na garganta, que o afogava. Estando nesta afronta, pediu ao Grou que lhe valesse nela, e com seu pescoço comprido lhe tirasse do papo o osso. Fê-lo o Grou, tirou-lhe o osso, e estando livre o Lobo, pediu-lhe alguma parte do muito que antes se oferecia a dar-lhe. Porém o Lobo lhe respondeu: – Ó ingrato! Não me agradeces que te tivesse metido a cabeça dentro na minha boca, e que pudera apertar os dentes e matar-te. Não me peças paga, que obrigado me ficas, e assaz és de ingrato em não reconheceres tão grande benefício. Calou-se o Grou, e foi muito arrependido do que fizera, dizendo: – Nunca mais por gente ruim meterei a cabeça, e vida em semelhante perigo.
XVIII As Duas cadelas
18Tomando a uma cadela as dores de parir, e não tendo lugar donde parisse, rogou a outra que lhe desse a sua cama e pousada, que era em um palheiro, e tanto que parisse se iria com seus filhos. Fê-lo a outra com dó dela, e depois de haver parido, lhe disse que se fosse embora; porém a boa hóspeda mostrou-lhe os dentes, e não a quis deixar entrar, dizendo que estava de posse, e que não a lançariam dali, senão fosse por guerra e às dentadas.
XIX O Homem e a Cobra
19Na força do chuvoso, e frio Inverno andava uma Cobra fraca, e encolhida, e um homem de piedade a recolheu, agasalhou e alimentou enquanto houve frio. Chegado o Verão, começou a Cobra a estender-se, e desenroscar-se, pelo que ele a quis lançar fora; mas ela levantou o pescoço para o morder. O que vendo o homem, tomou um pau, assanhou-se a Cobra, e começaram ambos a pelejar. De que resultou ficar ela morta, e ele bem mordido.
XX O Asno e o Leão
20O Asno simples e torpe encontrou-se com o Leão em um caminho; e de altivo, e presunçoso, se atreveu a lhe falar, dizendo: – Vades embora companheiro. Parou-se o Leão vendo este desatino e ousadia; mas tomou logo a prosseguir seu caminho, dizendo: – Leve cousa me fora matar e desfazer agora este; porém não quero sujar meus dentes, nem as fortes unhas em carne tão bestial e fraca. Assim passou, sem fazer caso dele.
XXI O Rato Cidadão e Montesinho
21Um rato que morava na Cidade, acertando de ir ao campo, foi convidado por outro, que lá morava, e levando-o à sua cova, comeram ambos cousas do campo, ervas e raízes. Disse o Cidadão ao outro: – Por certo, compadre, tenho dó de ti, e da pobreza em que vives. Vem comigo morar na Cidade, verás a riqueza, e a fartura que gozas. Aceitou o rústico e vieram ambos a uma casa grande e rica, e entrados na despensa, estavam comendo boas comidas e muitas, quando de súbito entra o despenseiro, e dois gatos após ele. Saem os Ratos fugindo. O de casa achou logo seu buraco, o de fora trepou pela parede dizendo: – Ficai vós embora com a vossa fartura; que eu mais quero comer raízes no campo sem sobressaltos, onde não há gato nem ratoeira. E assim diz o adágio: Mais vale magro no mato, que gordo na boca do gato.
XXII A Águia e a Raposa
22Tinha a Águia filhos e para os cevar levou nas unhas dois raposinhos tomados de uma lousa. A mãe, que o soube, lhe foi rogar que desse seus filhos. Mas a Águia lá do alto zombou dos rogos e disse que não deixaria de lhos comer. A raposa magoada começou logo a cercar a árvore, onde a Águia tinha seu ninho de muitas palhas, tojos, paus secos e acendalhas de tal maneira, que pondo-lhe o fogo, fez uma fogueira muito grande. Viu-se a Águia atribulada do fumo, e labareda, e do receio que ardesse a árvore toda, lançou-lhe os filhos sem lhe tocar, e quase ficou chamuscada pela indústria da Raposa.
XXIII O Galo e a Raposa
23Fugindo as Galinhas com seu Galo de uma Raposa, subiram-se em um pinheiro, e como a Raposa ali não pudesse fazer-lhes mal, quis usar de cautela, e disse ao Galo: – Bem podeis descer-vos seguramente, que agora acabou-se de assentar paz universal entre todas as aves e animais; portanto vinde, festejaremos este dia. Entendeu o Galo a mentira; mas com dissimulação respondeu: – Estas novas por certo são boas e alegres, mas vejo acolá assomar três Cães; deixemo-los chegar, todos juntos festejaremos. Porém a Raposa, sem mais esperar, acolheu-se dizendo: Temo que o não saibam ainda, e me matem. Assim se foi e ficaram as Galinhas seguras.
XXIV O Bezerro e o Lavrador
24Tinha um Lavrador um Bezerro, forte e mimoso e pô-lo no jugo, com outro boi manso; mas como o Bezerro o não quisesse tomar nem sofrer, com pancadas e pedradas, trabalhava o Lavrador per o amansar. E disse ao Boi manso: – Não te tomo com este para que lavres, que ainda não é para isso, senão para o amansar de pequeno, porque depois que for touro madrigado não haverá quem o amanse.
XXV O Lobo e o Cão
25Encontrando-se um Lobo e um Cão em um caminho, disse o Lobo: Inveja tenho companheiro, de te ver tão gordo, com o pescoço grosso e cabelo luzidio; eu sempre ando magro e arripiado. Respondeu o Cão: – Se tu fizeres o que eu faço, também engordarás. Estou em uma casa, onde me querem muito, dão-me de comer, tratam-me bem; e eu tenho cuidado só de ladrar quando sinto ladrões de noite. Por isso, se queres, vem comigo, terás outro tanto? Aceitou o Lobo, e começaram a ir. Mas no caminho disse oLobo: – De que é isso companheiro, que te vejo o pescoço esfolado? Respondeu o Cão: – Porque não morda de dia aos que entram em casa, estou preso com uma corda, de noite me soltam até pela manhã, que tomam a prender-me. – Não quero tua fartura; respondeu o Lobo: A troco de não ser cativo, antes quero trabalhar, e jejuar livre. E dizendo isto se foi.
XXVI Os membros e o Corpo
26As mãos e os pés se queixavam dos outros membros, dizendo – que eles toda a vida trabalhavam e traziam o corpo às costas, e tudo redundava em proveito do estômago que comia sem trabalho; portanto que se determinasse a buscar sua vida, que eles não haviam de dar-lhe de comer. Por muito que o estômago lhes rogou, não quiseram tomar outra determinação, e assim começaram a negar-lhe a comida: e ele enfraqueceu. Mas como juntamente enfraquecessem os pés e mãos, tomaram depressa a querer alimentá-lo; mas como já a fraqueza fosse muita, nada lhes valeu, e morreram todos juntamente.
XXVII A Águia e a Coreixa
27A Águia tomou nas unhas um Cágado para cevar-se, e trazendo-o pelo ar, e dando-lhe picadas, não podia matá-lo, porque estava mui recolhido em sua concha. Embravecia-se muito com isso a Águia, sem lhe prestar, quando chega a Coreixa, e diz: – A caça que tomastes é em extremo boa, mas não podereis gozar dela senão por manha. Disse a Águia que lhe ensinasse a manha e partiria com ela da caça. A Coreixa o fez dizendo: – Subi-vos sobre as nuvens, e de lá deixai cair o Cágado sobre alguma laje, quebrará a concha e ficar-nos-á a carne descoberta. A Águia assim o fez; sucedendo como queriam, comeram ambas da caça.
XXVIII A Raposa e o Corvo
28O Corvo apanhou um queijo, e com ele fugindo, se poisou sobre uma árvore. Viu-o a Raposa, e desejou de lhe comer o seu queijo: e pondo-se ao pé da árvore, começou a dizer ao Corvo: – Por certo que és formoso, e gentil-homem, e poucos pássaros há que te ganhem. Tu és bem disposto e mui galante; se acertaras de saber cantar, nenhuma ave se comparará contigo. Soberbo o Corvo destes gabos e desejando de lhe parecer bem, levanta o pescoço para cantar; porém abrindo a boca, caiu-lhe o queijo. A Raposa o tomou e foi-se, ficando o Corvo faminto e corrido de sua própria ignorância.
XXIX O Leão e Os outros animais
29Estava um Leão doente e fraco de velho, e vindo um Porco-Montês, que lhe lembrou ser maltratado dele noutro tempo, deu-lhe uma forte trombada, e passou. Veio um Touro e escornou-o, e outros muitos animais por se vingarem o maltrataram. Por derradeira veio um asno e deu-lhe dous couces, com que lhe derrubou as queixadas. Chorava o Leão, dizendo: – Tempo sei eu que todos estes só de meu bramido tremiam e nenhum havia tão forte, que não fugisse de se encontrar comigo, agora que me vêem fraco, todos querem vingar-se, e não há quem não se me atreva.
30NOTA – João de Deus, com a sua intuição poética tratou artisticamente o tema desta fábula alegorizando no Leão velho Portugal caído no meio das facções políticas da pedantocracia liberal, ao serviço de uma dinastia tarada: Leão moribundo. Achou-se um dia o rei dos animais / Por velhice ou doença moribundo, / E (há casos neste mundo / Incríveis, mas reais...) / Quem dantes mais solícito o servia, / É que às portas da morte o injuria! // Veio o cavalo e deu-lhe uma patada! / Veio o lobo, ferrou-lhe uma dentada, / Veio o boi, arrumou-lhe uma marrada! / Ele, coitado, manso como um lago, / Apenas lhes lançou um olhar vago. // Mas, quando ouviu um zurro, / E olhando então deveras, / Viu aos pinotes vir correndo o burro... / Ah! pressentindo a injúria, / O forte de outras eras, / Rei dos bosques e feras, / Em suma, o grande, o generoso, o forte, / Arranca das entranhas / Um gemido, um rugido, um uivo, um urro, / Que retumbou por vales e montanhas: / «Antes a morte! a morte! / A morte! a morte!» (Campo de Flores, p. 252. Ed. 1897.)
XXX As Rãs e Júpiter
31As Rãs, no outro tempo, pediram a Júpiter que lhes desse rei, como tinham outros muitos animais. Riu-se Júpiter da ignorante petição, e deferindo a ela, lançou um madeiro no meio da lagoa. Começaram as Rãs a ter-lhe respeito, porém desde que entenderam que não era cousa viva, de novo tornaram a Júpiter pedindo rei. Agastado Júpiter da importunação, deu-lhes a Cegonha, que começou a comê-las uma a uma. Vendo elas esta crueldade, foram-se com queixas, e por remédio a Júpiter, mas ele as lançou de si, dizendo: – Andai para loucas: já que vos não contentastes do primeiro rei, sofrei este, que tanto me pedistes.
XXXI As Pombas e o Falcão
32Vendo-se as Pombas perseguidas do Milhano, que as maltratava de quando em quando, e buscando como poderiam livrar-se, quiseram valer-se do Falcão. Tomou este o cargo de as defender; mas começou a tratá-las muito pior, matando-as e comendo-as sem piedade. Vendo-se sem remédio, diziam: Com razão padecemos, pois não nos contentando do que tínhamos, soubemos tão mal escolher cousa que tanto nos importava.
XXXII O Parto da Terra
33Em certo tempo, começou a Terra a dar urros, e inchar, dizendo que queria parir. Andava a gente mui pasmada, e cheia de temor, e receosa que nascesse algum monstro proporcionado com a mãe, que pudesse destruir o mundo todo. Chegado o tempo do parto, estando todos juntos suspensos, pariu a Terra um Murganho, e ficou sendo riso o que antes era medo.
XXXIII O Galgo velho e Seu amo
34A um Galgo velho, que havia sido muito bom, se lhe foi uma lebre dentre os dentes, porque quase já os não tinha. O amo por isso o açoitou cruelmente, e lançou de si, como cousa que nada valia. Disse o Galgo: – Deves, senhor, lembrar-te como te servi bem enquanto era moço, quantas lebres tomei, e quanto me estimavas: agora que sou velho, e estou posto no osso, por uma que me fugiu, me açoutas, e lanças fora, devendo perdoar-me e pagar-me bem o muito que te tenho servido.
XXXIV As Lebres e as Rãs
35Vendo-se as Lebres corridas dos Galgos e espantadas de todos os animais, assentaram, por não passar tanto sobressalto, de se matarem afogadas em um rio; e querendo dá-lo à execução, como corressem com ímpeto para se arremessarem na água, chegando à borda dela viram grande número de Rãs saltarem com medo na ribeira. Reportaram-se as Lebres um pouco, e mudando o conselho, disseram: – Pois que vivem estas Rãs, havendo medo de nós e de todos os que no-lo causam, soframos nós a vida, que já há outros mais acossados e medrosos.
36NOTA – Acha-se nas Fábulas de Babrius, n.°xxiv: «As lebres resolveram pôr termo à vida, indo-se precipitar na água turva de um charco, pois que eram os mais medrosos dos animais, que na sua poltroneria só tinham fôlego para fugir. Assim que elas chegaram junto de um grande charco, viram sobre as suas margens uma multidão de rãs, que de um salto se precipitaram no lodaçal. As lebres estacaram, e uma delas, enchendo-se de coragem disse:
37– Vamo-nos embora. Já não é preciso morrer, porque ainda há quem tem mais medo do que nós.» (Trad. Beyer, p. 29.)
XXXV O Lobo e o Cabrito
38Uma Cabra, indo pastar ao campo, deixou o filho em casa e mandou-lhe que não abrisse ao Urso, nem lobo, que ali viesse, porque morreria. Ida elaveio um Lobo, e fingindo a voz de Cabra, começou a afagar o cabrito, dizendo – que lhe abrisse, que era sua mãe. Ouvindo isto o Cabrito, chegou a porta e por uma fenda olhou, e viu o Lobo, e sem outra resposta virou as costas e recolheu-se em casa. O Lobo foi-se, e ele ficou salvo.
XXXVI O Cervo, o Lobo e a Ovelha
39Demandava o Cervo à Ovelha falsamente certo trigo, que dizia haver-lhe emprestado. A Ovelha pudera negar-lho, mas receou, porque estava um Lobo, de companhia com o Veado, e assim com dissimulação lhe disse: – Rogo-te por tua vida, que esperes alguns dias, e então averiguaremos nossas contas, que eu te pagarei quanto te dever. Foi contente o Cervo. Porém tanto que ambos se encontraram sem o Lobo estar presente, a Ovelha o desenganou, que nem lhe devia trigo, nem lho devia de pagar.
XXXVII A Cegonha e a Raposa
40Sendo amigas a Cegonha com a Raposa, a Raposa a convidou um dia a jantar. Chegado o tempo, preparou a Raposa ardilosa uma comida líquida, manjar como papas e a estendeu por uma lousa, e importunava a Cegonha a que comesse. Mas como ela picava na lousa, quebrava o bico, e nada tomava nele, com que se foi faminta para o ninho. Mas por se vingar, convidou a Raposa outra vez e lançou o manjar em uma almotolia, donde comia com o bico, e pescoço comprido. E a Raposa não podendo meter o focinho, se tornou para sua casa, corrida e morta de fome.
XXXVIII A Gralha e Os Pavões
41Fez-se a Gralha bizarra e louca vestindo-se de penas de Pavões, que pediu emprestadas e desprezando as outras Gralhas, andava com os Pavões de mistura. Porém eles lhe pediram as suas penas, e começando a depená-la, todos lhe levavam penas e carne no bico. Depois querendo chegar-se às outras, ainda que com temor e vergonha, diziam elas: Quanto te valera mais contentares-te com o que te deu a natureza, que quereres mudar de estado; para vires a este em que estás, pelada, ferida e vergonhosa.
XXXIX A Formiga e a Mosca
42Entre a Mosca e a Formiga, houve grande altercação sobre pontos de honra. Dizia a Mosca: – Eu sou nobre, vivo livre, ando por onde quero, como viandas preciosas, e assento-me à mesa com o rei, e dou beijos nas mais formosas damas. Tu mal-aventurada, sempre andas trabalhando. Respondeu a Formiga: Tu és douda ociosa. Se pousas uma vez em prato de bom manjar, mil vezes comes sujidades e imundícias, aborrecida de todos; se te pões no rosto das damas ou à mesa com o rei, não é por sua vontade, senão porque tu és enfadonha e importuna.
XL A Rã e o Touro
43Andava um grande Touro passeando ao longo da água, e vendo-o a Rã tão grande, tocada de inveja, começou de comer, e inchar-se com vento, e perguntava às outras se era já tão grande. Responderam elas que não. Torna a Rã segunda vez, e põe mais força por inchar; e desenganada do muito que lhe faltava para igualar o Touro, terceira vez inchou tão rijamente, que veio a arrebentar com cobiça de ser grande.
XLI O Cavalo e o Leão
44Viu o Leão andar comendo o Cavalo em um outeiro, e cuidando em que maneira faria que lhe esperasse para o matar, chegou-se com palavras amigas, dizendo que era médico, se queria que o curasse. O Cavalo, que o conheceu e entendeu, disse com dissimulação: – Em verdade, vens, amigo a bom tempo, que tenho neste pé um estrepe de que estou maltratado. Chegou-se o Leão a ver-lhe o pé; e o Cavalo o levantou e lho assentou nas queixadas, em modo que ficou embaraçado; e tornando em si, vendo era ido o Cavalo, disse: – Por certo que fez bem em me ferir e ir-se, pois eu queria comê-lo e não curá-lo.
XLII As Aves e o Morcego
45Havia guerra travada entre as Aves e outros animais, que, como eram fortes, andavam as Aves maltratadas e vencidas. Temeroso disto, o Morcego passou-se do bando contrário e voava por cima dos animais de quatro pés, posto já de sua parte. Sobreveio a Águia em favor das Aves, e alcançaram vitória. E tomando o Morcego, em castigo de traição, lhe mandaram que andasse sempre pelado e às escuras.
XLIII O Cavalo e o Asno
46Indo o Cavalo com jaezes ricos de seda e ouro de muito preço, encontrou no caminho um Asno carregado, e disse-lhe com muita soberba: – Animal descomedido, porque não me dás lugar, e te desvias para que eu passe? Calou e sofreu o pobre Asno. Mas daí a poucos dias emanqueceu o Cavalo, e puseram-no de albarda para servir. Acertou o Asno de o achar carregado de esterco, e disse-lhe: – Que vai, irmão, onde está vossa soberba, porque não mandais agora que me arrede, como fazias em outro tempo?
XLIV O Falcão e o Rouxinol
47O Falcão uma manhã se apossou do ninho onde o Rouxinol tinha seus filhos, e quis matá-los. Começou o Rouxinol com muita brandura a rogar-lhe que não os matasse, e que o serviria. Disse o Falcão, que era contente, se cantasse de modo que o satisfizesse. Começou o triste Rouxinol a cantar muito sentido, e suave. Porém o Falcão mostrando-se descontente da música, começou a comê-los. Chega nisto por detrás um caçador e lança ao Falcão um laço em que o prendeu e o levou arrastos, e o Rouxinol ficou livre.
XLV As Árvores e a Machada
48Um machado de aço bem forjado, faltando-lhe o cabo, sem ele não podia cortar. Disseram as Árvores ao Zambujeiro, que lhe desse o cabo. E como o machado esteve encavado, um homem com ele começou a fazer madeira, e destruir o arvoredo. Disse então o Sobreiro ao Freixo: – Nós temos a culpa, que demos cabo ao Machado para nosso mal; porque a não lho darmos, seguras pudéramos estar dele.
XLVI O Asno e o Mercador
49Um tendeiro caminhando para a feira levava um Asno carregado de mercadorias, que de mui fraco, andava devagar. O Mercador cobiçoso com desejo de chegar, dava tanto no Asno, que não podia bulir-se, que caiu no caminho com a carga e morreu. Depois de morto o esfolaram e da pele lhe fizeram um tambor, em que andavam de contínuo rangendo e batucando.
XLVII O Rato e a Doninha
50Uma Doninha, como de velha e cansada, não pudesse já caçar, usava esta manha: Enfarinhava-se toda e punha-se mui queda a um canto da casa. Vinham alguns Ratos que cuidando ser outra coisa, chegavam por comer, e ela os comia. Por derradeiro veio um Rato velho, que tinha já escapado de muitos trances, e posto de longe disse: – Por mais artes que uses, não me colherás. Engana tu a esses pequenos; mas eu, conheço-te bem, não hei-de chegar a ti. E dizendo isto, foi-se.
XLVIII A Raposa e as Uvas
51Chegava a Raposa a uma parreira, viu-a carregada de uvas maduras e formosas, e cobiçou-as. Começou a fazer suas diligências para subir, porém
LII O Milhano e Sua Mãe
52Estando o Milhano enfermo e receando a morte, que via já chegada, rogou de propósito a sua mãe que fizesse, por sua saúde, romarias aos Santos. Respondeu ela: De boa vontade, filho, as fizera, mas temo que não te prestem; porque como gastaste a vida toda em males e sempre com teu esterco sujaste os Templos dos Santos, receio que não me queiram ouvir, ainda que os rogue por sua saúde.
LIII O Porco e o Lobo
53Estava uma Porca com dores de parir, e um faminto Lobo se chegou a ela, dizendo que era seu amigo, e tinha dó de a ver desamparada, que queria servir-lhe de parteira. Bem entendeu a Porca que vinha ele por lhe comer os filhos; e dissimulando disse: – que não pariria enquanto ele ali estivesse, que era mui vergonhosa, e que se pejava dele, que era seu afilhado; portanto, que se fosse e a deixasse parir, e que depois tomaria. Fê-lo o Lobo assim, mas em se desviando dali, a Porca também se foi buscar um lugar seguro em que parir.
LIV O Velho e a Mosca
54Repousava à soalheira um Velho calvo, com a cabeça descoberta, e uma Mosca não fazia senão picar-lhe na calva. Acudia logo o Velho com a mão, e como ela fugisse mui depressa, dava em si mesmo grandes palmadas, de que a Mosca gostava e se ria. Disse o Velho: – Ride-vos, embora, de quantas vezes eu der em mim; que isso não me mata, mas se uma só vez vos acerta, ficareis morta, e pagareis o novo e o velho.
LV O Cordeiro e o Lobo
55Andava um Cordeiro entre as cabras e chegou o Lobo, dizendo-lhe: – Não é este o teu rebanho, vem comigo, levar-te-ei a tua mãe. Respondeu o Cordeiro: – Não quero; porque esta Cabra me quer muito, e me faz mais como estavam altas e íngreme a subida, por muito que fez, não pôde trepar; pelo que disse: – Estão uvas em agraço e botar-me-ão os dentes, não quero colhê-las verdes, que também sou pouco amiga delas. E dito isto se foi.
XLIX O Pastor e o Lobo
56Fugiu um Lobo de um caçador que vinha em seu seguimento, e diante de um Pastor se escondeu em umas moutas, rogando-lhe que se o caçador lhe perguntasse, dissesse era ido. Ficou o Pastor de o fazer. E chegado o caçador, perguntando pelo Lobo, o Pastor lhe dizia que era ido, mas com a cabeça lhe acenava para onde estava; não atentou o caçador nos acenos, e foi-se. Saiu o Lobo e disse-lhe o Pastor: – Que vai amigo, muito me deves, bom valedor tiveste em mim. Valeu-me a mim minha ventura, (respondeu o Lobo) e não te entender o caçador, pelo que nada te devo, antes se bendigo a tua língua, amaldiçoo a tua cabeça, que tanto fez por me descobrir.
L O Asno e a Cachorrinha
57Vendo o Asno que seu amo brincava com uma Cachorrinha, e se alegrava com ela, e a tinha à mesa, dando-lhe de comer, porque o afagava vindo de fora e saltava nele, creio que se o outro tanto lhe fizesse, também seria estimado; e com essa inveja se vai ao senhor em entrando de fora e pondo-lhe as mãos sobre os ombros, começou a lamber-lhe o rosto com a língua. Espantado o amo, brada, e acodem os criados e a poder de muitas pancadas tornaram a meter o Asno em sua estrebaria.
LI O Leào e o Rato
58Estando o Leão dormindo, andavam uns Ratos brincando ao redor dele, e saltando-lhe por cima, o acordaram. Tomou ele um entre as mãos, e estava para o matar, mas pelo ter em pouco, e pelos muitos rogos, com que lhe pedia, o soltou. Sucedeu daí a pouco tempo cair o Leão em uma rede, ond ficou liado, sem poder valer-se de suas forças. E sabendo-o o Rato, tal diligência pôs, que roeu brevemente os laços e cordéis, e soltou o Leão, que se foi livre, em paga da boa obra que lhe fez.
mimo que a seu próprio filho. Contudo (replicou o Lobo) melhor estarás com tua mãe. Bem estou aqui (disse o Cordeiro) não quero provar ventura, que por bem que me suceda, não deixará o pastor de me tirar o velho, e ficarei morrendo de frio.
LVI O Homem Pobre e a Cobra
59Um homem pobre costumava afagar e dar de comer a uma Cobra, que em sua casa trazia; e enquanto assim o fez, tudo lhe ia por diante. Depois, por certa agastadura, fez-lhe uma grande ferida. E vendo que tornava a empobrecer, com muitas palavras e humildade lhe pediu perdão. Respondeu a Cobra: – Eu de boamente te perdoo, mas não te há-de isto prestar para deixares de ser pobre; que esta ferida sempre me há-de doer, e sempre há-de estar pedindo vingança de ti.
LVII O Bugio, o Lobo e a Raposa
60Querelou o Lobo da Raposa, dizendo que fizera um furto. Era juiz o Bugio. E a Raposa negou fortemente, disputando ambos diante do juiz e cada um descobriu quantas maldades sabia do outro. Depois de o Bugio os ouvir, pronunciou a sentença, dizendo: que o Lobo não provara bem ser-lhe feito furto: mas que ele entendera que a Raposa tinha furtado alguma cousa; portanto, condenava a ambos que ficassem entre si sempre desavindos, e suspeitosos.
LVIII A Faia e a Cananoura
61A Faia alta e direita não queria dobrar-se ao vento, antes vendo a Cananoura que se meneava facilmente, a aconselhava que estivesse tesa, sem dobrar-se. Respondeu a Cananoura: – Tu podes resistir e eu não, que não tenho raízes compridas, nem sou forte como tu és. Dizendo isto, veio um pé de vento com braveza, que arrancou a Faia com raízes e tudo; mas a Cananoura, que se dobrou, ficou em pé.
LIX A Formiga e a Cigarra
62No Inverno tirava a Formiga da sua cova é assoalhar o trigo, que nela tinha, e a Cigarra com as mãos postas lhe pedia que repartisse com ela, que morria à fome. Perguntou-lhe a Formiga: que fizera no Estio, porque não guardara para se manter? Respondeu a Cigarra: – O Verão e Estio, gastei a cantar e passatempos pelos campos. A Formiga então, perseverando em recolher seu trigo, lhe disse: – Amiga, pois os seis meses de Verão gastaste em cantar, bailar é comida saborosa e de gosto.
63NOTA – Por muito velha e universal que seja uma fábula, ela pode pela alegorização receber um sentido novo, actualizando-se. Assim, representando na Formiga o povo que trabalha, e na Cigarra a aristocracia que se diverte, faz-se o quadro do conflito que sintetiza a Revolução Francesa. No poemeto Leviatã, trata-se assim o tema esópico: Debaixo de um sol de Agosto, / Na fadiga / A que a precisão obriga, / Gira da aurora ao sol posto / A Formiga. // Aqui sobe, ora além desce, / Quase esbarra; / De manhã, ’té que anoitece / Canta ociosa de entre a messe / A Cigarra. // Chega a enxurrada de Outubro: / – Minha amiga! / Fome negra... este olhar rubro... / Que horrenda crise descubro! / Ai, Formiga. // Com frio, faminta, inquieta / Seu mal narra; / Responde a outra: «Pateta! / Cura a febre com dieta, / Mãe Cigarra. // Chasqueavas-me em Agosto, / Na fadiga / Com descuidada cantiga; / Hoje, vai-te e dança ao gosto / Da Formiga.» // E foi o Seis de Outubro o grande dia / Da tremenda Justiça! Dia amargo, / Embate de dois mundos. / Pelo caminho que a Versalhes guia, / Irrompe a multidão que expande ao largo / Doestos iracundos. (Visão dos Tempos, C. IV, 221).
LX O Caminhante e a Espada
64Achou um Caminhante uma Espada bem guarnecida em meio da estrada, e perguntou-lhe, quem a perdera, e deixara ali. Calou-se ela e esteve queda. Depois, sendo outra vez perguntada, respondeu: – Ninguém me perdeu a mim, ainda que me vês lançada neste chão, antes eu fiz perder a muita gente; que dando ocasiões a brigas, matei alguns homens de que resultou ficarem perdidos os matadores, e os mortos mais perdidos se não estavam em graça; porque caminharam para o Inferno.
LXI O Asno e o Leão
65Encontrando-se em um caminho o Asno com o Leão, lhe disse: – Subamos a um outeiro, que quero que vejas os muitos animais, que hão medo de mim. Riu-se o Leão e foi com ele. Zurrou o Asno, e fez fugir grande número de lebres, coelhos, zorras e outros semelhantes. Disse-lhe então: – Que te parece? Vês este medo com que fogem de mim? Fogem de ti (respondeu o Leão) os fracos, que são os que cobram medo de ouvir bradar; mas eu sem brados desfaço às mãos os mais valentes; pelo que de nenhum, nem de ti tenho temor.
LXII A Gralha e a Ovelha
66Uma Gralha ociosa pousou sobre o pescoço da Ovelha, e ali a repelava, e lhe tirava a lã, picando-a por entre ela. Virou a Ovelha o rosto, dizendo: – Esta manha ruim e antiga havereis de deixá-la esquecer, que podeis ir picar um rafeiro no pescoço e matar-vos-á levemente. Respondeu a Gralha: – Já sou velha, e muito feia e conheço a quem posso agravar e a quem devo afagar. Não temas que me ponha no pescoço do cão, senão no teu, que me não podes fazer mal.
LXIII O Boi e o Veado
67Por fugir o Veado de um caçador, se acolheu à vila, e entrando medroso em uma estrebaria, achou o Boi, a quem perguntou – se podia esconder-se ali. Disse o Boi, que era muito certo o morrer e que antes devera tomar-se ao mato, e contudo o escondeu, e o cobriu de palha. Veio o dono da estrebaria e olhando por ele, viu as pontas do Veado. Foi descobri-lo, e achou o que era. Mas disse-lhe: Já que de tua vontade vieste à minha casa, não te quero matar, senão defender e fazer muitos mimos.
LXIV O Homem e o Leão
68Andando o Leão à caça, meteu um estrepe no pé, com que não podia bulir-se. Encontrou um homem e mostrou-lhe para que lho tirasse. Fê-lo assim o homem, e o Leão em paga partiu da caça com ele. Dali a muito tempo foi tomado este Leão para certas festas e nelas se lançavam homens para que os matassem. Entre eles lhe lançaram este que o curou, que estava preso por algumas culpas. Porém o Leão não só o não matou, antes se pôs em sua guarda, e o acompanhou toda a vida, caçando para ele.
LXV O Lobo e a Raposa
69O Lobo se aparelhou e proveu sua cova muito bem de mantimento. A Raposa chegou e disse, que obrigada de amor andava atrás dele, por vê-lo e servi-lo. Não quero o teu serviço, (disse o Lobo) que tua intenção não é senão roubar-me e comeres-me o que eu tenho. Vendo-se a Raposa alcançada, buscou quem matasse o Lobo, e meteu-se de posse da sua cova, e de quanto estava nela, mas sobrevindo uns caçadores, foi achada dos cães e feita em pedaços.
LXVI O Leão e Outros Animais
70Eleito o Leão rei de todos os animais, prometeu de a nenhum fazer mal. E logo chamando-os a cortes, os pôs por ordem, e corria-os, dando-lhes a cheirar o seu bafo. Os que diziam que lhes cheirava mal, os matava. Os que diziam que bem, feria-os. Andando assim, chegou à Mona, e perguntou-lhe, como a todos, se lhe fedia o bafo. A Mona o cheirou, e dizendo que não fedia, se foi. Porém o Leão, per a matar, se fingiu doente, e disse que sararia se a comesse. E por esta manha tomou ocasião de a matar.
LXVII O Veado e o Caçador
71Bebendo o Veado em uma ribeira, viu nos seus cornos ramos e as pernas delgadas, pareceram-lhe as pernas mal, e ficou pesaroso de as ter, e por outra parte tão satisfeito da formosura dos cornos, que se fez soberbo de contente. Ainda bem não saía da água, quando dá sobre ele um Caçador. Foi-lhe forçado valer-se dos pés, que pouco antes desprezara, e eles o punham em salvo. Mas entrando por um arvoredo basto, embaraçavam-se-lhe os cornos com os ramos das árvores, com que se embaraçou e foi tomado. Pelo que dizia, vendo-se preso e ferido: Grande parvo fui; que o que me era bom desestimei, fazendo muito caso do que me causou a morte.
LXVIII A Bicha e a Lima
72Buscando a Bicha de comer na tenda de um ferreiro, foi topar com uma lima e quis roê-la, mas como os dentes não entravam pelo aço, dava-lhe muitas voltas virando-a de todas as bandas. Enfadada a Lima de andar aos tombos, lhe disse: Que fazes, parva? Não sabes que sou de ferro, e lima? Por muito que trabalhes desfarás os dentes; eu com os meus de aço bem temperado, cortarei dentes e qualquer arma a quem chegar, em pouco tempo.
73NOTA – É a Fábula 28 de Loqman: O Gato. Eis a sua versão do árabe por Joseph Benoliel: «Um gato entrou uma vez na oficina de um ferreiro, e encontrando uma lima caída, pôs-se a lambê-la com a língua. Ora começou a correr-lhe sangue da língua e como ele julgasse que era da lima foi-o engolindo, e continuou até que se lhe fendeu a língua e morreu.» (Op. cit., p. 85.)
LXIX Os Carneiros e o Carniceiro
74Estando juntos uns Carneiros, entrou o Carniceiro, e eles não se alvoroçaram, nem fizeram caso disso. Tomou o Carniceiro um e logo o matou; e nem com ver sangue temeram os outros. Foi por diante e os matou a todos um a um até o derradeiro, que, vendo-se manietado, disse: – Por certo, com razão padecemos, pois vendo o nosso mal não quisemos entendê-lo. No princípio às marradas nos poderíamos defender, vendo que nos matavam, então não quisemos; agora eu só não posso: e assim acabámos todos.
LXX O Lobo e o Asno Doente
75Estava o Asno mal-disposto, e foi o Lobo visitá-lo, fazendo-se muito amigo. Tomou-lhe o pulso, correu-lhe a mão pelo rosto e disse: que queria curá-lo. Estava o Asno quedo, bem desejoso de se ver a cem léguas do Lobo, o qual lhe apalpava os membros todos: perguntou onde lhe doía, e apertava-o e arrepelava-o tanto, que disse o Asno: – Onde quer que me pões a mão, logo aí me dói; mas rogo-te que te vás e não me cures, que ido tu, sararei logo.
LXXI A Pulga e o Camelo
76Pôs-se uma Pulga sobre um Camelo carregado, e deixou-se ir sobre a carga uma jornada, no fim da qual saltou abaixo, e sacudindo-se, disse: – Folgo em verdade de me descer: porque tinha dó de ti; agora irás leve com pouca carga. O Camelo se riu deste cumprimento e respondeu: – Nunca te senti se te levava em cima, nem tu podes carregar-me nem aliviar-me; que não tens peso para isso. A carga que eu levo, essa sinto. Tu não tens peso para te sentirem.
LXXII O Caçador e As Aves
77Consertava um pobre Caçador as varas do visco; e as Aves olhando, estavam cantando à sombra das árvores e gabando-o de benfeitor e primoroso. Um pássaro já experimentado lhes disse aos outros: – Fujamos logo todos, porque este que vedes, não quer mais que enviscar-nos e prender-nos. Andemos pelo ar, até ver o que acontece a outra; porque este e todos como ele, quantos de nós houverem às mãos, ou lhes torcem o pescoço, ou lho cortam, e mortos, ou presos nos metem em sua taleiga.
LXXIII O Cervo e o Cavalo
78Pelejaram algumas vezes sobre o pasto, o Cervo e o bom do Cavalo, e porque o Veado com os cornos fez sempre fugir o Cavalo, foi-se a um homem e disse-lhe: – Põe-me um freio, uma sela e sobe sobre mim, e matarás um Veado que aqui anda. Fê-lo o homem assim. E morto o Veado, quis o Cavalo que se apeasse; mas o homem acolheu-se à posse e o Cavalo ficou sempre sujeito ao freio e sela, e a andar debaixo.
LXXIV O Buitre e Mais Pássaros
79O Buitre convidou a banquete todas as outras aves, dizendo que queria solenizar o seu natal. Vieram muitas delas e recolhendo-as todas em um aposento, depois que foram horas de cear, como todas estivessem assentadas esperando, vem o Buitre e cerra as portas, e começa a matá-las a uma e uma. Todas com medo avoejavam, por não haver alguma que se atrevesse com ele. E enfim ele sem piedade as matou, porque para isso as convidou ou ao menos para as pilhar.
LXXV A Raposa e o Leão
80Fingindo-se o Leão enfermo, visitavam-no os outros animais; e de quantos entravam na cova, nenhum deixava sair. Eles obedeciam como a rei, mas o Leão a um e um os comia todos. Por derradeiro chegou a Raposa à porta da cova e perguntou-lhe: – como estava? Respondeu o Leão, – porque não entrava a vê-lo? Respondeu a Raposa – que não era necessário, que devia estar a casa cheia de gente; que ela via muitas pegadas dos que entravam, e nenhuma de que saíssem para fora.
LXXVI O Carneiro grande e Os pequenos
81Três Carneiros moços e um marroço andavam passando. Saiu o velho correndo e fugindo. Os outros estavam pasmados, sem saber a causa, e como não entendiam seu perigo, riam-se do medo, e fugida do marroco, o qual vendo-os escarnecer-lhes, disse: – Vós sois loucos e ignorantes; não vedes que quando vem o carniceiro sempre mata os maiores? Eu por isso fujo. Mas quando ele vier e vos matar, pesar-vos-á de terdes escarnecido e esperado.
LXXVII O Leão e o Homem
82O Homem com o Leão altercavam sobre qual era mais valente. O Homem, para provar sua tenção, o levou a um sepulcro, onde estava de pedra um homem afogando um Leão, que tinha debaixo de si. O Leão se riu de ver isto, dizendo: – Se não fora homem o que isto aqui pôs, pudera ter algum crédito, mas sendo homem é suspeito. Portanto, deixemos pinturas e provemos isto pelo braço. E logo isto dito estendeu o Homem no chão, e o matou com muita facilidade.1
83NOTA – É entre as fábulas de Loqman, a 7.a; ei-la traduzida do árabe: «Um Leão e um Homem iam uma vez em sociedade pelo caminho. Puseram-se ambos a conversar, e travaram uma contenda a respeito da força e do valor do ânimo. O Leão insistia na ponderação da sua força e da sua valentia. Nessa ocasião avistou o homem, numa parede, um quadro representando o homem a estrangular um leão, e pôs-se a rir. Então o Leão lhe disse: – Na verdade, se os leões soubessem pintar como os filhos de Adão, não seria o homem que afogaria o leão, mas o leão que afogaria o homem.» (Op. cit. p. 27).
A panela de barro e a de Cobre
84Uma corrente de água levava duas panelas, uma era de cobre, outra de barro, e cada uma ia por sua banda. Disse a de Cobre à outra: Cada uma de nós só não tem força para fazer resistência à água, mas chega-te a mim, e ambas poderemos resistir-lhe. Não quero, (disse a de barro) nem me vem bem, porque se na água tu me deres uma topada, ou ta der a ti, de qualquer maneira tu ficarás sã, e eu far-me-ei em pedaços.
Moralidade
85Quem faz bando com homem mais poderoso, corre grande risco, porque enfim os poderosos são de cobre, e os pobres de barro, e sempre quebra a corda pelo mais fraco. E se dois poderosos têm brigas, e depois querem concertar-se, fazem tão pouco caso da honra dos pobres, que os ajudaram nelas, que muitas vezes fazem concertos, como fez Augusto com Lépido, e Marco António, que por se vingarem de seus inimigos, cada um entregou seus amigos à morte.
O Cão e o seu dono
86Um Cão de um Hortelão chegou ao poço, e como em baixo viu sua figura, começou a afeiçoá-la; e tanto fez, e buliu, que caiu no poço. Andava o Cão meio afogado, e o Hortelão com dó dele desceu abaixo junto da água, para o tirar, e como lhe pegasse, o Cão lhe meteu os dentes no braço, e o atravessou: o Hortelão o largou com a dor, e o Cão daí a pouco afogou-se.
Moralidade
87Per este Cão se entende o pecador, que quando alguém com bons conselhos o quer tirar do poço dos pecados, vira-se e morde-o com afrontas de obras; mas o que ganha o tal é que seu ajudador o larga, e se Deus não lhe acode afoga-se, e acaba em seus vícios, para ir começar a pagá-los no Inferno.
A Nora e a Sogra
88Uma mulher casada, que tinha sogra, estava muito mal com ela, e uma à outra se tinham má vontade. Acertaram de mandar a esta mulher certas cousas de doce, entre as quais vinha uma mulher, feita de espécie. E disse quem as trazia, que aquela era a figura de sua sogra. Ela partiu uma migalha, que meteu na boca, e tomando-a a cuspir, disse: Basta que é sogra, que até de açúcar amarga.
Moralidade
89Além de mostrar esta fábula humana cousa tão ordinária como é ódio entre noras e sogras, também nos ensina quão má cousa é o ódio, e quanto para fugir, pois faz que o açúcar pareça fel; como se vê muitas vezes, quando a boa obra, que um inimigo faz a outro; ele a não quer aceitar, antes a despreza, e tem por ruim.
O Ladrão e o Anjo
90Dormia o Ladrão ao longo de uma parede, e viu entre sonhos um Anjo, que o acordava, dizendo: Levanta-te, e guarda-te daqui. Acordou o Ladrão, e apartando-se da parede, viu-a vir de súbito ao chão. Ficou deste acontecimento muito alegre, e soberbo, crendo que por sua virtude o guardara Deus. Mas tornando a dormir, tomou a ver o Anjo, que lhe dizia: Não te ensoberbeças, que se ontem te guardei, foi porque não era aquela tua morte, senão a da forca, para que estás guardado.
Moralidade
91Na forca do Inferno vão parar os que das mercês, que Deus lhes faz, tomam ocasião de o ofender, e serem mais soberbos. E esta fábula nos avisa e ensina que a muitos favorece a fortuna por seu mal. Muitos vivem, que lhes fora melhor morrer. Pelo que um filósofo, escapando de uma casa, que se arruinou e matou muita gente, disse com humildade: Ó ventura! para que ocasião me terás guardado?
A Raposa e o Leão
92Tinha a Raposa sua cova bem fechada, e estava-se dentro gemendo, porque estava enferma; chegou à porta um Leão, e perguntou-lhe como estava, e que lhe abrisse, porque a queria lamber, que tinha virtude na língua, e ele lambendo-a, logo havia de sarar. Respondeu a Raposa de dentro: Não posso abrir, nem quero: creio que tem virtude a tua língua; porém é tão má vizinhança a dos dentes, que lhe tenho grande medo, e portanto quero antes sofrer-me com meu mal.
Moralidade
93Avisa-nos esta raposa, que quando nos oferecem alguma obra boa, notemos as circunstâncias dela, que às vezes são tais, que custam muito mais do que vale a obra pia.
O Soldado e o Pífano
94Um Soldado velho aposentado e enfadado da guerra, por se tirar de ocasiões, assentou de queimar todas as armas, que tinha; e pondo-o em efeito, tinha entre elas um Pífano, o qual lhe rogava que não quisesse queimá-lo, dizendo, que ele não era arma, nem instrumento de matar ou ferir, pelo que não merecia pena. Tu a mereces maior, (respondeu o Soldado) e a ti hei-de queimar primeiro; porque não prestando tu para pelejar, atiçavas os outros, se matassem na peleja; e logo o queimou com as armas.
Moralidade
95Na figura do Pífano se mostra o castigo que merecem alguns cobardes, que servem de urdir brigas com a língua, e tomam o ofício do Diabo, tecendo meadas, e incitando a mal, gente perniciosa na República, e que os delitos, que por sua causa se fizessem, deveram ser castigados em dobro.
96(Manuel Mendes)
O Lobo Esfaimado
97Passando um lobo esfaimado por uma casa, ouviu chorar dentro um menino, e lhe dizia a mãe: – Se choras, hei-de-te dar ao lobo. Este, parecendo-lhe ser aquilo assim, esperou um pouco; porém vendo que, sossegando-se o menino, a mãe, fazendo-lhe carícias, lhe dizia: Se vier o lobo havemos matá-lo, uivando partiu dali, dizendo: Esta diz uma cousa, e faz outra! Há muitos cobiçosos, que cegos da sua utilidade, esperam cousas impossíveis.
98(Marques Soares, Divertimento de Estudiosos, t. II, p. 62)
As Duas Rãs
99Duas Rãs, que se achavam em um charco, secando-se este com o calor do Verão, foram em busca de outro, e achando no caminho um poço, disse uma: Parece-me que entremos para ele. Respondeu-lhe a outra com mais acerto: Por nenhum modo farei tal; porque secando-se esta água, como a outra, não poderemos sair. É ofício do Sábio prever e evitar os futuros danos.
100(Id. ib., p. 64)
O Caçador e a Rede
101Estendia um Caçador suas redes. Um Melro, que o viu, perguntou-lhe o que fazia. Respondeu-lhe o Caçador, que edificava uma cidade; e acabando de espalhar as redes, escondeu-se. O Melro, dando-lhe crédito, chegou-se para ver o novo edifício, e caiu na rede. Saiu o Caçador para apanhá-lo, e o Melro lhe disse mui indignado: Homem falso, e enganador, se assim edificas tal cidade, poucos habitadores lhe acharás.
102(Id. ib., p. 135)
O Lobo mordido pelo Cão
103Sendo um Lobo mordido gravemente por um Cão, estava estirado na terra, em se poder erguer. Vendo passar uma Ovelha, pediu-lhe, que lhe trouxesse uma pouca de água de um rio, que por ali corria, dizendo-lhe, que, se lhe dava de beber, ele lhe daria de comer. Entendeu a Ovelha ser aquilo assim; trouxe-lhe de beber, e contra sua vontade também de comer. A malícia faz grande dano aos simples.
104(Id. ib., p. 136)
Queixumes do porco (Versão da ilha da Madeira)
Fui chamado à cidade
No mês do Natal um dia,
Pera eu feitorizar
Grande casa morgadia:
E levei, p’ra meu negócio,
Uma cabra, sua cria,
Um porco e um carneiro,
Comigo de companhia.
Vai o porco vagaroso,
Arrastado bem par’cia;
Todos os mais vão calados,
Só o porco se carpia;
Os gemidos que ele dava
A cabra não os sofria:
– Cal’-te porco. Porque choras?
(A cabra ao porco dizia)
Vês o carneiro calado,
Eu calada também ia;
O filho que vai comigo
Nem de mamar me pedia.
Pára tu já de grunhir,
Que ninguém te sofreria
Por tão longa caminhada
Tão seguida gritaria.
O porco, sem se calar,
Estas razões respondia:
– Cada qual conta da festa
Como na festa lhe iria.
Vocês vão viver no pasto
Com farta comedoria,
O carneiro, p’ra dar lã,
E tu, leite cada dia:
Mas cá eu, só dou toicinhos,
Só minhas carnes daria;
Tenho meus dias contados,
Só me espera a agonia.
Tinha o porco razão.
Quem também não chiaria?
Pola festa do Natal
O triste porco morria.
(Romanceiro do Arquipélago
da Madeira, p. 452)
105NOTA – Nas fábulas de Loqman, vertidas do árabe em português, pelo exímio hebraizante Joseph Benoliel, vem esta lição primitiva: O Homem e o Porco. Um homem carregou um dia num jumento, um carneiro, uma cabra e um porco, e foi vendê-los à cidade. O carneiro e a cabra não se agitaram nem se mexeram sobre o animal; quanto ao porco, esse debatia-se de contínuo e não podia estar quieto. Disse-lhe o homem:
– Ó tu, o pior dos animais, porque é que o carneiro e a cabra estão calados e sossegados, ao passo que tu nem te acalmas nem te aquietas?
– Ó meu amo, respondeu o porco, cada um porta-se conforme o que mais lhe convém. Ora, eu sei que o carneiro é procurado pela sua lã, e a cabra pelo seu leite; enquanto que eu, infeliz de mim! sem lã e sem leite, apenas chegar à cidade, logo serei mandado matar, sem a menor dúvida. (Fábulas de Loqman, p. 56. Lisboa, Imprensa Nacional, 1898.)
106João de Deus metrificou esta fábula com extraordinário relevo artístico, tomando-a uma bela obra de arte. Na versificação varia o âmbito dos versos nos seus hemistíquios quebrados, fazendo dessa polimetria modulações de um grande poder dramático e descritivo.
Notes de bas de page
1 Merece estima esta tradução das Fábulas de Esopo, feita da língua grega, por Manuel Mendes, professor de Latim e considerado humanista dos fins do século XVI. Teve o seu livrinho numerosas edições: 1603, 1611, 1643, 1673, 1705 e 1778, rolandiana, in-8.° pequeno, de vii-155p. e 4 de índice n.n.
Manuel Mendes da Vidigueira, ajuntou a cada Fábula de Esopo a Moralidade com certa ingenuidade; e acrescentou-lhes, uma Segunda parte, como Suplemento às Fábulas de Esopo, com quinze Fábulas portuguesas, umas colhidas da tradição popular e de anedotas vulgares com sua Moralidade. Transcrevemos por isso seis destas fábulas, de valor folclórico.
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Contos tradicionais do povo português (II)
Ce livre est cité par
- Leal, João. (2021) The Palgrave Handbook of the History of Human Sciences. DOI: 10.1007/978-981-15-4106-3_102-1
- Leal, João. (2022) The Palgrave Handbook of the History of Human Sciences. DOI: 10.1007/978-981-16-7255-2_102
Contos tradicionais do povo português (II)
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