Antepassados criadores. Representações entre a Europa e a África1
p. 186-204
Texte intégral
1Jill Dias era uma académica versátil. Para além da sua formação em História, abraçou a Antropologia e muitos dos seus textos são testemunho dessa capacidade de se mover num plano interdisciplinar em que as várias abordagens se complementam. Dois textos que testemunham de uma forma exemplar essa versatilidade são o catálogo África, para a exposição Nas Vésperas do Mundo Moderno (1992), que espelha o seu trabalho de organização e coordenação da mesma, e um texto anterior, denominado “História e identidade na Angola oitocentista: quem eram os ambaquistas?”, em que Jill Dias realça a necessidade de reflectir criticamente sobre “as representações e as realidades sociais ou culturais” que surgem na documentação colonial a partir do século XV para distinguir e descrever grupos populacionais.
2É na obra que acompanhou a exposição, no capítulo “Os vivos e os mortos” que Jill Dias reflecte sobre a relação entre o mundo dos vivos e o dos antepassados em África, e como a concepção da sepultura constituía uma “importante e integral parte do processo funerário e da criação dos antepassados” (Dias 1992:197). Usando sobretudo as fontes escritas por Cavazzi e por Miller, Jill explicita como as várias descrições do século XVII testemunham tradições diversas observadas nas populações que convergiram nas zonas do reino do Kongo, Matamba e Angola.
3Partindo destes dados referentes às Áfricas nas “vésperas do mundo moderno”, pretendo aqui fazer uma viagem diacrónica pelo universo das relações entre vivos e mortos, e sobretudo reiterar a asserção de Jill Dias acerca do processo de construção da sepultura como uma parte crucial no estabelecimento dessa relação. Sendo que a paixão de Jill era sobretudo Angola, onde viveu e trabalhou durante vários anos, passarei na segunda parte do texto para uma abordagem de dados mais recentes, referentes a uma fase tardia do colonialismo português, no século XX, e às sepulturas que espelham a influência dos portugueses e do catolicismo
Morte e a construção do lugar de pertença
4Em antropologia social, as concepções da morte e do morrer têm merecido a atenção de um vasto conjunto de autores que vão dos mais clássicos – Frazer, Hertz e Evans-Pritchard – a autores contemporâneos, como Gable (2006) e De Boeck (2009). Como João de Pina Cabral salientou (1984), estas abordagens incluem o simbolismo dos vários elementos cerimoniais até à liminaridade dos rituais funerários, enquanto ritos de passagem. Para além destes aspectos, são as materialidades em torno da morte que espelham o ethos de um determinado grupo: é o caso das sepulturas e o modo como elas se constituem enquanto lugares de pertença, revelando não só a dimensão telúrica dos funerais mas também a interacção entre vivos e mortos.
5Uma das mais emblemáticas obras sobre a morte é o livro organizado por Maurice Bloch e Jonathan Parry (1982) intitulado Death and the Regeneration of Life no qual os vários autores procuram reflectir sobre a presença de símbolos de fertilidade e renascimento nos rituais funerários. A relação entre lugares e cerimónias fúnebres está aqui presente, nomeadamente no último artigo de Maurice Bloch, onde o autor retoma uma problemática anterior, desenvolvida na sua principal obra etnográfica intitulada Placing the Dead (1971), em que chama a atenção para a relação entre os rituais funerários e a identificação com a terra. Baseando-se na sua pesquisa entre os Merina de Madagáscar, Bloch argumenta que a morte e os rituais funerários implicam dois enterros. Um primeiro, nas imediações do lugar onde a pessoa faleceu, com vista a limpar o cadáver das substâncias impuras que o compõem. Dois anos mais tarde, o corpo é transladado para ser novamente enterrado, mas desta vez na campa onde se encontram os seus antepassados. A sepultura e o grupo de parentes equivalem-se e, portanto, ser enterrado naquela terra significa uma reunião com os parentes passados, presentes e futuros. Este enterro na terra ancestral é a celebração da união com as redes familiares e uma vitória face à divisão e à separação que a vida quotidiana implica. Este segundo enterro reposiciona os Merina que morreram longe da sua terra ancestral no que acreditam ser a sociedade dos antepassados, associada a uma ordem imutável, assente no parentesco e no território, que se contrapõe à precariedade da vida quotidiana e que assim dá continuidade à existência (Saraiva e Mapril 2012).
6Como veremos no material histórico e etnográfico referente a África, e mais especificamente a Angola, na construção da interacção entre os dois mundos (o dos vivos e o dos mortos), importa não só a relação entre as cerimónias fúnebres e a produção e simbolização dos lugares de pertença sintetizados na sepultura, mas também o modo como essas construções, simbólicas e físicas, são moldadas e transformadas pelos processos de aculturação. Por outras palavras, o material que vamos percorrer mostra como a morte e o seu locus físico, a sepultura, são reveladores de interacções coloniais e de representações reais e fictícias dos povos observados e descritos pelos europeus do século XV. Não obstante, ele revela igualmente algumas constantes cross-cultural, visíveis no respeito pelos mortos através da preocupação com o criterioso cumprimento dos rituais funerários, e a criação do espaço de memória por excelência, a sepultura.
Sepulturas: materialidades e dramas
7A perspectiva de Bloch perpassa no material histórico que Jill Dias analisa, bem como nos relatos de outros etnógrafos. Apesar da existência em várias zonas de África de sepulturas aparentemente muito simples, em que o cadáver é enterrado ou colocado no chão coberto com terra e nada mais assinala esse local do que um amontoado de pedras, são igualmente numerosas as sepulturas imponentes e grandiosas. O caso descrito por Maquet (1962: 207) das pirâmides-sepultura dos Askia do Mali é um bom exemplo desse investimento na visibilidade do lugar de destino final do cadáver enquanto testemunho do que a pessoa era em vida e do que o espírito será na vida do além.
8Nos múltiplos relatos históricos de Cavazzi, Dapper e Milller, a construção da sepultura, pensada enquanto residência do morto, era uma parte integrante do processo de criação dos antepassados. O local do repouso fisco exprimia por um lado a viagem empreendida pelo defunto – e por isso eram aí colocados os bens e objectos do próprio – mas passava também a ser um local de culto aos antepassados. Para que o defunto ascendesse a essa condição era necessário celebrá-lo, mostrar a sua importância, sobretudo no caso dos defuntos mais notáveis da sociedade. Mas mesmo para os outros, mortos mais comuns, parece ser vital que eles sejam representados ou identificados, muitas vezes através dos objectos e representações relacionadas com a sua ocupação.
9O processo de construção e conceptualização das sepulturas é corolário das sequências que ditam a necessidade do integral cumprimento dos rituais funerários como sendo de primordial importância no processo da concepção da morte, já que o desenrolar dos “dramas que o grupo encena para si próprio sob a autoridade dos patriarcas” (Thomas 1982: 147) tem por fim último incentivar as boas relações entre os vivos e os mortos, mantendo a comunhão entre antepassados e descendentes (Dias 1992: 194-5). Louis-Vincent Thomas, analisando as concepções e atitudes sobre a morte em variados grupos africanos, salienta como na cosmogonia africana a inumação toma um significado quase metafísico, representando o retorno à terra-mãe, fonte de fecundidade e locus dos antepassados (Thomas 1982: 222). Exemplos que corroboram esta noção são as formas como, nos enterramentos primários ou secundários, o local é escolhido de acordo com regras precisas, o mesmo acontecendo com a forma do túmulo e a posição em que o corpo ou os restos mortais são colocados.
10O que a antropologia da morte tem mostrado é como os rituais funerários e as construções de sepulturas devem ser pensados como um todo processual, físico e simbólico, constituindo por si só um feixe polissémico de significados, que sempre tem interessado historiadores e etnógrafos.
11A sepultura e os cuidados referentes à disposição final do cadáver reflectem as concepções cosmogónicas do grupo, o estatuto social e económico do defunto e a sua posição estrutural no seio da comunidade a que pertencia. Deste modo, os relatos relativos à inumação (ou qualquer outra forma de disposição do corpo) denotam os maiores cuidados se a posição do morto fosse prestigiada. O referido capítulo “Os vivos e os mortos” incluí descrições que Jill Dias sintetiza, referentes ao Kongo e a várias partes da África Centro-ocidental a partir do século XV e XVI, que denotam a preocupação em estabelecer e manter a comunhão entre antepassados nomeados e os seus descendentes (Dias 1992:194-5). Assim, na Serra Leoa, no século XV, o cadáver de um alto dirigente era embalsamado e enterrado em casa, sentado numa cadeira com a lança numa mão e a espada à cintura e rodeado por oferendas de jóias e de valiosas peças de pano. Outros exemplos referem a variedade e riqueza dos rituais fúnebres africanos, que mostram “a grande diversidade de crenças que se misturaram no decorrer de longos períodos de tempo entre as comunidades através da savana e da floresta” (Dias 1992.196): do aspergir do corpo com cinzas e pó de cascas de árvore na Costa do Ouro aos sacrifícios animais a acompanhar o enterro no Benim, passando pelos rituais funerários praticados em diferentes partes de Angola no século XVII, que “testemunham o fluxo e convergência de populações com origens diferentes que parecem ter ocorrido nesse período” (Dias 1992: 197). Sem dúvida que um dos aspectos mais notáveis do Kongo do século XVII e XVIII são os mintadi, esculturas antropomórficas em pedra-sabão, colocadas nos túmulos como figuras comemorativas. Jill Dias menciona figuras de caçadores, tocadores de tambores e outras ocupações de relevo e assinala a sua função primordial: “como outros objectos acumulados nos túmulos, as esculturas de pedra eram destinadas principalmente a mostrar o papel e as características pelas quais o defunto tinha sido conhecido” (Dias 1992: 200).
12A diversidade de práticas é recorrente, se viajarmos nos tempos e nos espaços africanos. No caso dos grupos pastores do sudoeste angolano, e já no século XX, Estermann refere a tradição de embrulhar o cadáver numa pele de boi, que se mata após o falecimento, e a inumação do corpo em posição sentada. Nos grupos Bantos e nos Ambós, o enterramento era realizado no chão da casa ou no curral dos bois, muitas vezes assinalado apenas com um simples pilão enterrado. Os rituais funerários de indivíduos pertencentes a uma hierarquia superior eram mais complexos e suscitavam uma demarcação da sepultura, como no caso das campas dos sobas que se cercavam com paus fortes e altos e constituíam o único monumento funerário da zona. Estermann menciona ainda como nos grupos Nhaneca-Humbe e Herero surgiam cemitérios de cariz familiar, ligado aos grupos de residência (Estermann 1960a; 1961; 1983).
13A utilização de espaços naturais como cemitérios é assinalada relativamente aos Dogon do Mali, que usavam o sistema de içar os cadáveres – adornados com as suas máscaras rituais – por meio de cordas até cavernas rochosas, situadas acima do nível da aldeia e consideradas como locais sagrados (Ghesi 1978:123; Thomas 1982:222). A mesma tradição de utilização de cavernas naturais como sepulcros era praticada pelos Bassari do Senegal (Thomas 1982:223). Os Somba do Daomé e Togo marcam ainda hoje os lugares de inumação com colunas fálicas, regularmente aspergidas com cerveja de milho-miúdo e sangue dos animais sacrificados, oferendas cerimoniais para os antepassados, que coabitam os espaços com os vivos; o rés-do-chão das casas representa o mundo dos mortos e o terraço o mundo dos vivos. No interior e exterior da residência multiplicam-se os altares dedicados aos antepassados; as escarificações corporais destinam-se igualmente a impedir os maus espíritos de penetrar no corpo, perpetuando assim a nível individual a relação entre vivos e mortos patente na arquitectura (Ghesi 1978: 208).
14Entre os Papel da Guiné-Bissau um homem deve ser enterrado na morança do pai, progenitor social – isto é, o primeiro marido da mãe, com o qual ela adquiriu o estatuto de mulher casada – ou do tio materno, de quem herdou. Os dignatários religiosos são sepultados em locais específicos, reservados para indivíduos de estatuto especial, nomeadamente junto aos altares e santuários onde oficiavam (Saraiva 1999: 221-223; 2003; 2004).
15Todos estes exemplos sublinham a ligação entre o locus de depósito final dos restos mortais, como espaço de terminus da vida e as vivências que o antecederam, relacionando deste modo o espaço da vida com o da morte (Saraiva 1999: 339-341).
Mobilidades e construção de lugares
16A conceptualização da morte como uma viagem até ao mundo dos antepassados tem como corolário toda uma série de práticas que propiciam o seu correcto desenrolar e que, simultaneamente, reiteram a ambiguidade posicional do defunto, que está ainda muito próximo do mundo terrestre e das mundividências que o rodearam.
17A sepultura é por excelência o locus físico onde se revela a importância da ligação do defunto à sua vida anterior. Por permanecerem apegados ao mundo material, pelo menos durante um lapso de tempo após o trespasse, os mortos necessitam de ter consigo uma série de objectos que utilizaram em vida, com os quais se tenham relacionado, tais como os que usavam nas suas ocupações quotidianas e que o devem acompanhar, sendo muitas vezes enterrados com o cadáver de modo que o espírito não empreenda a sua viagem para o outro mundo desprevenido.
18Nos récitos históricos ligados a tais práticas os viajantes europeus mencionam casos em que soberanos e notáveis dos vários reinos africanos eram acompanhados, na sua viagem para o além, não só de objectos e animais, mas também de pessoas. Surgem assim relatos como o que nos dá Cavazzi (1965:128) sobre a morte de um notável da corte da rainha Jinga, em que duas das suas concubinas se bateram pela honra de serem enterradas com o falecido, e do seu contentamento quando a rainha permitiu que ambas fossem sepultas junto com o amante comum. São numerosas as descrições, sobretudo dos séculos XVI e XVII, que apontam a frequência dos sacrifícios humanos ligados ao enterro de reis e notáveis. No Kongo, à morte do rei, as jovens pertencentes a boas famílias disputavam entre si a possibilidade de serem inumadas vivas junto com o soberano. As doze jovens escolhidas vestiam-se com as suas mais belas e ricas vestes e eram-lhes oferecidos presentes que elas pudessem usar na vida do outro mundo. O sacrifício de escravos, serventes ou mulheres, juntamente com animais domésticos e outros haveres à morte de um personagem ilustre é descrito também entre os Beafadas da Costa da Guiné, na Serra Leoa, Costa do Ouro, Benim, e Reino do Lovango (Dapper 1989:175; 231-233; 252-258). São ainda variados os relatos sobre as cerimónias por ocasião de “um rei grande” entre os Papel da ilha de Bissau (Mota 1974:12; 61-69; Lampreia 1963:185).
19Os rituais que horrorizaram Cavazzi são descritos dois séculos depois por Capelo e Ivens nos seus diários da expedição portuguesa ao interior de África (Martins 1952) nos finais do século XIX, nomeadamente por ocasião da morte do soba de Garanganja2 e do soba de Manica. Noutros grupos, mesmo nos nómadas, em que o acervo material era diminuto, como entre os! Khu de Angola, junto à sepultura eram colocados objectos pertencentes ao defunto (Guerreiro 1968: 262-264).
20A relevância dada aos testemunhos do quotidiano vivencial demonstra, mais uma vez, a tensão decorrente da ambiguidade do estatuto do defunto que, embora corporeamente tenha já abandonado o mundo terreno, perpetua espiritualmente essa ligação. Os objectos ou seres animados utilizados como viático ajudam a ultrapassar a dificuldade em abandonar a vida, criando a ilusão à alma do defunto de que algo do que o rodeara em vida o acompanhará no além, pretendendo assim que o outro mundo seja um prolongamento do universo terreno.
Angola: iconologia tumular
21No seio dos trabalhos sobre transnacionalismo3, uma das temáticas recorrentes é a constatação de que os laços e mobilidades – reais e imaginadas – são frequentemente acompanhados pela construção social e simbólica de espaços e lugares de pertença, de familiaridade. Como Karen Fog Olwig (2007) e Clifford Geertz (1996) chamaram a atenção, a mobilidade e os fluxos globais são acompanhados por processos quotidianos de produção de lugares. O que está em causa é a construção de familiaridade num mundo de fluxos e deslocamentos múltiplos.
22Quero aqui mostrar que também a morte é uma boa metáfora para pensar esta produção de lugares e espaços de pertença em contextos de deslocação e de aculturação. A morte é um bom exemplo de circulação de universos simbólicos, em que a noção de processo é extremamente importante, na manutenção da relação com o espaço de origem, mas também no modo como se “emprestam” símbolos na criação da sepultura enquanto lugar de afirmação grupal e social, e o modo como isto é feito em contextos coloniais.
23No quadro variado de sepulturas e monumentos funerários angolanos, destacam-se quatro casos que revelam traços expressivos da influência portuguesa e que mostram o modo como se produzem os loci de construção de união entre vivos e mortos de que Bloch nos fala. Esses exemplos, documentados numa excelente colecção fotográfica existente nos arquivos do antigo Centro de Antropologia Cultural e Social do Instituto de Investigação Científica Tropical, são interessantes por permitirem uma análise dos processos de aculturação entre as populações locais e os colonizadores portugueses. Trata-se das sepulturas dos nobres da região de Cabinda, as estelas Solongo da área congolesa, dos monumentos funerários dos Kibalas, do Noroeste e centro de Angola, e das estelas Mbali, da região do antigo distrito de Moçâmedes.
Realeza de Cabinda
24Na região de Cabinda, o governo português atribuiu títulos honoríficos a vários elementos da nobreza do Reino de Ngoyo, como foi o caso dos barões de Puna e do Duque de Chiasi. Os túmulos existentes testemunham a relação estabelecida entre os descendentes congoleses e o poder colonial. No cemitério dos Punas encontram-se algumas sepulturas dessa família que reproduzem modelos correntes nos cemitérios portugueses do século XIX e XX, com a originalidade de, em algumas delas, as cabeceiras serem colunas encimadas por bustos (foto 1). Esta representação do defunto estava reservada, na iconografia tumular portuguesa, a personalidades de alto estatuto social e público. O facto de aqui surgirem demonstra a necessidade de sublinhar a pertença a um meio e uma vivência social decorrentes da hegemonia lusitana, assimilando categorias e modelos portugueses que surgem assim integrados em fórmulas próprias4. Outras sepulturas reproduzem cabeceiras tendo no centro a foto do falecido e a lápide, no espírito da iconologia portuguesa.
25O túmulo do Duque de Chiasi é um bom exemplo da interpenetração da gramática tumular portuguesa com a iconologia original africana, com destaque para os símbolos de estatuto e poder que aos nobres assistia. Numa sepultura de modelo europeu clássico, vê-se uma cabeceira onde figura o duque, de pé, com um ceptro na mão direita, uma esfera mundi na mão esquerda, a kimzemba real (espécie de romeira) sobre os ombros, ladeado por uma figura de negro que suporta aos ombros duas crianças e uma cabeça de homem. À inscrição que encima o nicho “Sua Alteza Real Príncipe D. José Manuel Conceição Franque” junta-se a data de nascimento (25/12/1885) e a da morte (16/4/1966). Na face superior da sepultura, em relevo, vêem-se duas cimpabas, símbolos da realeza da zona de Cabinda. Mais uma vez é interessante notar a proeminência dada a esta heráldica definidora de uma hierarquia extremamente valorizada e que os portugueses aproveitaram a seu favor. Em 1971 Benjamim Pereira fotografou o chefe Woyo de Cabinda empunhando essa insígnia da dignidade e do poder, uma cimpaba em prata que o seu antepassado, o rei de Ngoyo, tinha recebido de presente do rei português, D. Carlos, no fim do século XX5, e que reproduziu um original em madeira.
Estelas Solongo
26A estatuária funerária tinha um papel importante no continente africano; as estelas fúnebres, ao contrário, surgiram por influência dos contactos culturais com os europeus. As estatuetas mortuárias em pedra-sabão – as mintadi – dos Mboma e Solongo da região do maciço de Noqui constituem um bom exemplo do valor dado à representação do morto e das ocupações e características pelas quais era conhecido, ou ainda de objectos e elementos que lhe estavam próximos em vida (Bastin 1994:26; Balandier 1965:234-239; Dias 1992:200).
27Dos casos conhecidos de estelas funerárias africanas salientam-se, igualmente na região do Kongo, as estelas Solongo6. Nesta zona que desde os primórdios da colonização sofreu um forte impacto da igreja católica – que se exprimiu de forma categórica na conversão do rei D. João I do Kongo, em 1480 – encontram-se exemplos tumulares que testemunham da marcante influência europeia, designadamente na colocação das estelas funerárias que teriam sido levadas para África pelos europeus. Os testemunhos que nos chegam revelam figurações em baixo relevo distintas da iconologia das estelas portuguesas. Enquanto que nas europeias dominavam as rosáceas e os símbolos religiosos e profissionais (Frankowski 1918; Correia 1918), nas estelas dos Solongo prevalece uma temática por vezes muito complexa, que parece apontar para estruturas mitológicas originais africanas misturadas com elementos cristãos e europeus em que a ideia do Cristo domina, surgindo ainda outras figuras, como a imagem da serpente, o caçador, o par primordial, homem e mulher, com atributos da sua especificidade no mundo do trabalho: o pilão para a mulher, a espingarda para o homem. Um dos temas recorrentes é a maternidade, compreensível numa cultura em que ela é extremamente valorizada: as mulheres infecundas eram segregadas e projectadas para fora da aldeia. Marie Louise Bastin refere que o colector holandês que recolheu em 1885 a estela que se encontra actualmente em Leiden salientou que uma pedra tumular desse género apelava à lembrança de “mulheres falecidas grávidas ou após o parto” e que o “roubo de uma tal pedra era considerado um sacrilégio” (Bastin 1994:27).
28As figuras da maternidade possuem os atributos que lhe são peculiares neste contexto etnográfico, penteados e adornos, designadamente o cordão sobre os seios, as manilhas nas pernas, e o colar no pescoço (foto 2)7. A transfiguração do Cristo na figura da mulher, mãe primordial, surge mais uma vez em diálogo com a serpente, símbolo por excelência da fecundidade e fertilização.
29Ainda na região do Kongo, aparecem sepulturas construídas em cimento que se inserem na actual valorização dos materiais modernos e que mostram figuras humanas vestidas com trajes europeus e figuras de aviões ou automóveis, acompanhados de epitáfios relevando a condição social do morto.
30Estes exemplos revelam uma corrente crescente na África actual de valorização de materiais modernos e figurações fantasistas em que a interpenetração de elementos originalmente exógenos, trazidos pelos europeus, com imagéticas africanas é recorrente, e em que a plástica africana os integra e recombina de maneira original8. De modo semelhante, as estátuas funerárias em tamanho real de vários grupos da África Ocidental (Domowitz 1984; Gilbert 1981; Nicklin 1977) são testemunhos desta criatividade que mostra o modo como o monumento fúnebre reflecte, para além do estatuto social do defunto, a estética e capacidade inventiva de um grupo.
Monumentos Kibalas
31Os Kibalas mantiveram, até aos nossos dias, uma arquitectura tumular extremamente complexa. Esses monumentos surgiam de preferência nas elevações rochosas, parecendo ter em vista preservar os mortos do contágio com a terra. Esta arquitectura aparece-nos configurada em dois tipos fundamentais: de forma geral paralelepipédica e cupuliforme. Estes maciços encerram câmaras onde os mortos eram depositados e as grandes lajes que aparecem com mais regularidade em torno das paredes, parecem figurar entradas para essas galerias. Na realidade, elas inscreviam-se no túmulo de modo a dissimular a sua situação e disposição, tendo em vista iludir a verdadeira entrada, para que os mortos não viessem a ser inquietados por quaisquer forças estranhas.
32Os túmulos das figuras mais representativas da hierarquia social, nomeadamente dos chefes, acusavam traços distintivos que testemunham uma hipotética pertença à cultura do Zimbabwe (séculos XI-XIV), nomeadamente decorações e ornamentações em espinha de peixe (ou “folha de palmeira”), chevron e linha quebrada, que evocam os frisos decorativos dos longínquos centros culturais da África do sudeste (Bastin 1994:15). As mais faustosas, encerravam o corpo mumificado do líder, sentado numa cadeira. Bastante elaboradas, compreendendo por vezes quatro compartimentos, a sua construção levava vários anos. Em certos casos, os túmulos paralelepipédicos são encimados por um monólito recto de sugestão fálica (foto 3). Os túmulos cupuliformes, por seu turno, parecem sugerir o elemento feminino, o mamilo materno (foto 3). Indicações do terreno apontam para uma relação dos primeiros com os enterramentos masculinos e dos segundos com os femininos.
33No seu artigo de 1968, Adriano Vasco Rodrigues refere que a construção destas sepulturas não seria anterior ao século XVI e se manteve até ao século XX. Recentemente estes túmulos deram lugar a um processo de elaboração em que essa forma vetusta foi alterada, tendo o corpo do monumento sido revestido a cimento e pintados com cores exuberantes ou a estrutura cupuliforme tendo dado lugar a uma forma cúbica, com cobertura de quatro águas. Num processo evolutivo que levou a uma linha totalmente despegada do modelo inicial, aparecem sepulturas que figuram casas de tipo europeu, de planta rectangular, com telhado de quatro águas, porta e janelas, por vezes varanda corrida ao estilo colonial, beiral saliente e lápide sobre esse beiral, com o nome do morto e a data do falecimento. Surgem ainda campas com uma base simples encimada por figuras como um avião (foto 4), denotando a inventividade local reflectida nos monumentos fúnebres.
Estelas Mbali
34Na região do Namibe, a partir do século XIX, por conjunturas especiais e como reflexo da proeminência desta cidade, difundiu-se uma prática de enterramento e uma arte lítica original, profundamente influenciadas pela cultura portuguesa e desenvolvida pelos Ovimbali (Bastin 1994:47).
35Lopes Cardoso (1963; 1974), na esteira de Estermann, refere que os Ovimbali do antigo distrito de Moçâmedes eram descendentes de antigos escravos e trabalhadores das fazendas que assimilaram uma grande parte dos elementos culturais dos seus patrões. Essa profunda aculturação reflectia-se nos modos de viver e sobretudo na cultura material.
36As campas eram assinaladas por estelas funerárias talhadas numa pedra macia, ou, mais raramente, em madeira. Estas estelas revelam uma iconologia do maior interesse para a análise dos fenómenos de aculturação. Na verdade, o modelo formal geral é tributário das matrizes europeias: uma estela com base mais ou menos elaborada, prolongada por um espaldar que é o espaço fundamental onde se inscreve uma iconografia diversificada e encimada por uma cruz mais ou menos elaborada.
37A análise da documentação recolhida nos cemitérios de Moçâmedes e de S. Nicolau parece mostrar algumas constantes dessa iconologia: o antepassado, o par primordial, a maternidade, em certos casos, a família alargada e ainda, de um modo mais explícito na relação com o modelo português original, os instrumentos de ofício, tais como os de pedreiro, carpinteiro, costureira, etc. As estelas podem encimar sepulturas que se destacam acima do solo, na base das quais se inscrevem textos, como é o caso do túmulo de Vítor Jamba, um mestre pedreiro de renome; ou terem no cimo uma escultura de pé ou sentada, com trajes, posturas e expressão perfeitamente europeias. Por vezes o frontão da cabeceira integra elementos mais simples de uma imagética mais simples que combina anjos com vasos de flores, ramos de palmeira, etc.
38A pertença a uma ideologia católica afirma-se na presença da cruz que domina o conjunto destas estelas e no rosário suspenso das mãos de figuras esculpidas; a influência portuguesa revela-se nas estelas onde os instrumentos de ofício ocupam o lugar central. As profissões mais figuradas são a da costureira (foto 5) e a de pedreiro, com a colher, maceta e prumo. A preocupação em retratar a ocupação ou objectos que faziam parte do universo vivencial da pessoa, presente em várias necrópoles portuguesas do século XIX e XX (Saraiva 1996), parece assim ir de encontro à similar ânsia africana em rodear o defunto de coisas e seres que lhe eram próximas em vida e que o devem acompanhar na viagem para o além.
39Excepcionalmente, a estrutura das estelas toma uma forma mais próxima da plástica africana, “em criações de grande pureza de formas ou, ainda por vezes, com uma centelha de surrealismo”, que faz com que a “arte dos Ovimbundu se demarque nitidamente do que se conhece entre os povos vizinhos” (Bastin 1994:47). Nos seus estudos sobre a arte Mbali, Cardoso (1974) salienta a originalidade desta arte funerária relativamente a outras formas de escultura em pedras angolanas, como o caso das “pedras da tristeza” de Ambrizete e as estelas do maciço de Nóqui. Noutro texto (1963) o mesmo autor referira a anterioridade das cruzes mais simples de madeira, depois substituídas pelos trabalhos em pedra e também por cruzetas de madeira mais elaboradas, antropomórficas, pintadas ou lavradas. A documentação fotográfica do seu artigo “Mbali art – a case of acculturation” mostra exemplos retirados do seu trabalho em oitenta e quatro cemitérios Mbali que incluem estelas de madeira e de pedra, algumas bastante mais abstractas e estilizadas que os exemplos que aqui usamos.
40O processo de imitação da arte funerária ocidental foi marcado pelos túmulos que iam de Lisboa, elaborados por canteiros de nomeada e encomendados pela elite portuguesa mais abastada. Deste modo, os mestres canteiros Ovimbali aprenderam a arte da cantaria, contando-se entre eles a figura do referido Vítor Jamba, célebre por ter trabalhado numa oficina de cantaria, e autor da maioria das obras do cemitério de S. Nicolau. A representação profissional é um dos temas mais fecundos de Vítor Jamba. Num túmulo, um homem ferreiro segura o martelo, bigorna e caneca; noutro, a figura que representa o defunto toca reco-reco e, num terceiro, um homem, tanoeiro, segura o martelo, duas pipas e ferro, e outro conduz um tractor.
41As cruzetas dos Ovimbali pareciam ter uma função tripla, relativa à propiciação do espírito do morto, sua identificação e veneração – formas de homenagear a memória do defunto pelos motivos representados de modo conceptual ou realista. As práticas funerárias dos Ovimbali relatadas por Lopes Cardoso mostram a aculturação sofrida por este grupo; apesar da presença de elementos africanos, elas legitimam a referência feita aos Mbali como o “grupo mais aculturado de língua umbundu” (Bastin 1994:47), remetendo sobretudo para as tradições vigentes na cultura portuguesa, nomeadamente no que respeita à sequência ritual e à sua temporalidade (Saraiva 1999:351-2).
Inovação e modernidade nos ritos fúnebres
42Pretendeu-se dar alguns apontamentos sobre a extrema variedade do complexo fúnebre em África, e por isso usaram-se exemplos que ocupam lapsos temporais que vão desde o século XVI ao século XX e espaços que se estendem desde a Guiné ao sul de Angola. Os casos aqui citados ilustram a riqueza cultural expressa nos rituais funerários próprios de cada cultura, no sentido atribuído à vida após a morte e à relação com o símbolo máximo dessa transição, a sepultura.
43O estudo dos rituais e monumentos fúnebres em África na actualidade pode ser uma via fecunda para se perceber uma série de alterações decorrentes da adaptação de velhas tradições culturais à mudança e a elementos vindos do exterior.
44Além dos casos angolanos aqui tratados, outros exemplos inovadores na evolução dos costumes funerários são recorrentes em vários grupos africanos; eles são o testemunho, para lá de um sincretismo cultural afro-europeu, de um dinamismo imaginativo que conduz a soluções que reflectem as adaptações entre as antigas tradições e a modernidade.
45No Ghana, são conhecidos os carpinteiros Ashanti, construtores de caixões fantasistas talhados em madeira e pintados de cores exuberantes que lembram brinquedos gigantescos (Beckwith 1994; Burns 1974): em forma de fruto de cacau para um rico plantador; um piloto do Togo escolheu um jacto da KLM; um pescador de crustáceos preferiu uma lagosta; um mecânico de barcos optou por um caixão em forma de motor Yamaha 40, o mesmo tipo de motor que ele tinha no seu barco; a família de um ourives escolheu uma urna com o formato de um caranguejo, símbolo do seu clã; um chefe escolheu uma águia, símbolo de proeminência; uma família de criadores de gado enterrou o seu defunto num caixão em forma de vaca. Apesar de muitos clientes serem cristãos esta ideia apela à antiga tradição africana de enterrar junto com o cadáver os objectos pessoais relacionados com a ocupação do morto. Na mesma linha de orientação simbólica estas estruturas sarcóficas são objecto de libações que asseguram a boa transição para o mundo dos antepassados.
46Entre os Akan da Costa do Marfim a representação dos defuntos ocupou sempre um lugar de destaque, sendo conhecidas as suas estatuetas funerárias de terracota (Domowitz 1984). Durante os anos cinquenta quando o aumento dos preços do cacau permitiu excedentes monetários de relevo, surgiram coloridas esculturas em cimento, em tamanho natural, testemunhas de um estatuto social e económico elevado, e que asseguram a boa entrada do defunto no mundo dos antepassados, ao mesmo tempo que a linhagem é imortalizada na memória dos vivos. Os cenários organizados em cada sepultura relacionam o mundo dos vivos e dos mortos: num desses monumentos funerários em Fissa, uma estátua de um carneiro figura ao lado de um leão, como símbolo de virilidade e autoridade real, à semelhança das espadas e bancos reais que também abundam. Os anjos que proliferam nos acrotérios, figuras femininas ou masculinas de raça branca, lado a lado com estátuas de músicos – nomeadamente tocadores de tambor, elementos importantes em toda a vida social e sobretudo nos funerais –, são um bom exemplo da mistura imagética católica e as concepções de vida dos Akan.
47Outros exemplos são conhecidos, sobretudo na África ocidental – nomeadamente entre os Ewe do Ghana (Gilbert 1981) e os Ibibio da Nigéria (Nicklin 1977) – que sugerem uma transferência do fausto e gastos sumptuosos tradicionais das cerimónias fúnebres para o monumento, significando talvez uma transposição da glorificação da linhagem para a do indivíduo (Eschlimann 1983 in Domowitz 1984) e um crescente ênfase no sucesso individual. Se ser esquecido é pior do que a morte, o monumento funerário é o meio por excelência de preservar a memória do defunto e confirmar o sucesso atingido na vida terrena, para além de funcionar como garante da boa entrada na esfera do além.
48Os quatro exemplos angolanos aqui referidos são fruto de uma aculturação de elementos africanos e europeus. Mas parece-nos que esses grupos souberam utilizar os elementos ocidentais e incorporá-los numa estética africana que lhes é própria. Eles podem ser olhados como um retrato da evolução dos monumentos funerários na África ocidental: da originalidade dos antigos monumentos Kibalas ao sincretismo de elementos cristãos e africanos das estelas Solongo e Mbali, dos monumentos dos nobres de Cabinda aos exemplos do Kongo em que se notam as características apontadas para os casos da Costa do Marfim, Ghana e Nigéria: a crescente ênfase posta no sucesso individual e no monumento fúnebre como meio de assegurar a boa passagem para o mundo dos antepassados.
Notas finais: o lugar do enterro e a “boa” morte
49Olhados na sua totalidade, os rituais funerários constituem sistemas de circulação de bens entre os vivos e os mortos, e contribuem para o reforço da relação de continuum entre os dois mundos. Bloch (1982: 15) refere que a noção de “boa morte” se prende com a necessidade humana de controlar a imprevisibilidade da morte biológica, introduzindo protótipos ideais de situações em que a morte é domesticada e transformada num elemento de uma ordem repetitiva cíclica que resultará, em última instância, em regeneração e reprodução da vida. Focando os vários exemplos antes referidos, nomeadamente o dos Merina e o dos Lugbara, Bloch especifica que, sem o enterro no túmulo comunitário ou junto à casa ancestral, não só se perde uma potencial fonte de regeneração para o grupo, mas a morte do indivíduo é terminal. A ênfase posta no lugar de repouso do corpo morto para que haja uma “boa morte” é evidente. Esta premissa está presente nos casos angolanos acima descritos. O que está subentendido nestas construções do lugar de repouso final são as dinâmicas cerimoniais que presidem à construção do ideal de “boa morte” e da relação entre vivos e mortos.
50Os monumentos funerários são projectos empreendedores através do qual se mostra publicamente o prestígio e sucesso económico alcançados. Esse êxito, a concretizar-se, deve ser partilhado com os demais parentes numa lógica de reciprocidade e co-responsabilidade moral (que implica uma ligação com a terra e a família de origem), e que tem consequências nas próprias percepções da morte e do morrer. Os que ascendem (por emigrarem ou, nos casos angolanos, se ocidentalizarem) têm ainda maior obrigação de cuidar dos antepassados, através da realização de determinadas cerimónias para que possam ter uma “boa morte”, e do investimento na sepultura para assim continuar a reproduzir a sua ligação a uma terra.
51A partir destes exemplos patentes no trabalho histórico de Jill Dias e da análise dos testemunhos angolanos do período final do colonialismo português (bem como dos outros mencionados, across space and time) vemos como, num mundo crescentemente globalizado, os lugares não deixaram de existir; eles continuam a ser produzidos no âmbito da vida social (Olwig 2007). Existe uma homologia entre lugares de pertença e noções de relatedness (Carsten 2000), que assume o seu oximoron na morte e no morrer (Saraiva e Mapril 2012).
52Através da territorialização da morte celebra-se uma união com um lugar onde as pessoas têm os seus parentes, amigos e conhecidos, união essa que é uma vitória sobre a divisão e a separação que a morte implica. De facto, mais importante que o local onde se nasce é aquele onde se é enterrado (Ho 2006).
53Retomando a premissa de Bloch sobre a “boa morte” como potencial de regeneração para o grupo, que impede também que a morte de um individuo seja terminal, o que pretendemos aqui mostrar é a forma como, a noção de relatedness actua na construção das dinâmicas telúricas de todo esse processo. Temos aqui presente uma intensa relação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, entre os quais circulam também bens simbólicos e espíritos, e se cumprem deveres que os vivos têm para com os espíritos dos defuntos. Estas dinâmicas reenviam mais uma vez à noção de relatedness, na medida em que a “comunidade” existe na intersecção entre o mundo dos vivos e dos mortos. Isto é, estas “comunidades” são constituídas por vivos e mortos, e o que se espera dos vivos é assegurar que essa continuidade seja mantida, mesmo que eles próprios estejam longe do seu lugar de origem ou tenham alterado as suas práticas ou simbologias originais.
54Ao mesmo tempo, isto revela que a morte de uma pessoa nunca é terminal, e que essa morte funciona como uma verdadeira fonte de regeneração, já que é a própria morte que espoleta a continuidade de todo esse conjunto de relações com o lugar de origem e com o que o indivíduo foi em vida. O colóquio em homenagem a Jill Dias que teve lugar em 2010 e os textos que agora se editam em sua honra são a prova disto, de que ela está viva nas nossas memórias e nos nossos corações.
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Notes de bas de page
1 Esta é uma revisitação de um texto previamente publicado no volume 18-22 da Revista Internacional de Estudos Africanos (Saraiva 1999).
2 Zona correspondente à região de Katanga actualmente.
3 Refiro-me ao conceito elaborado e proposto por Bach, Schiller e Blanc, em 1992 e 1997, que remete para os múltiplos e permanentes laços sustentados entre o país de “origem” e o país de “acolhimento”, nas suas facetas económicas, políticas e culturais.
4 Note-se que as diferenças sociais eram, entre os Bawoyo, assinaladas nomeadamente na forma dos caixões, que deviam ter três proeminências no caso de o defunto ser um chefe de família rica e poderosa, ao contrário dos caixões das pessoas comuns que possuíam apenas um vértice (Martins 1952:162-163; Faik-Nzuji 1993:142).
5 Fotografia reproduzida em Bastin 1994:29.
6 Que se encontram hoje no Museu Nacional de Antropologia de Luanda, no Museu de Etnografia de Leiden, no Afrika Museum em Berg en Dal, e no Museu Nacional de Etnologia de Lisboa.
7 A estela aqui representada, da colecção do Museu Nacional de Antropologia de Luanda, é em tudo similar à do Museu Nacional de Etnologia de Lisboa (retratada em Bastin 1994:80) que é mais simples, incluindo apenas a figura da maternidade.
8 Tal como aconteceu com a arte congolesa resultante dos contactos com os missionários europeus, em que os artistas locais souberam, usando uma expressão de Georges Balandier “Kongolisar as imagens cristãs” (Balandier 1965:240), criando uma iconologia extremamente inventiva.
Auteur
Instituto de Investigação Científica Tropical
Centro em Rede de Investigação em Antropologia
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa
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