Usos e saberes lá do Sul. Gestão de cereais armazenados em Angola
p. 154-170
Texte intégral
Introdução
1Tenciono, neste artigo, abordar aspectos que se prendem com as técnicas e saberes tradicionais relativos à produção, conservação e armazenamento de mantimentos no Sul de Angola e também o modo como, sobretudo nos meios rurais, as famílias se distribuem, repartem e organizam as suas actividades1. Pretendo, igualmente, reflectir sobre o confronto entre as práticas locais de cultivo e armazenamento e a introdução de práticas ditas tecnologicamente mais avançadas, com vista a alcançar melhorias na saúde e no bem-estar geral da população. Os dados aqui trazidos resultam de um estudo de caso desenvolvido entre os Handa, no Sul de Angola (províncias da Huila e do Namibe), que abordou tópicos como a nutrição, os saberes e práticas medicinais tradicionais, a etnofarmacologia, sendo igualmente sensível às questões do género. Os laços criados com os interlocutores no terreno de trabalho e os métodos de pesquisa utilizados (as entrevistas informais e a observação participante) permitiram, por um lado, entrar no quotidiano de diversas famílias e, por outro, recolher dados de interesse para a compreensão do seu modo de vida, da relação entre géneros, gestão de mantimentos e ainda dos condicionalismos que afectam a base de segurança alimentar, interferindo na saúde e bem-estar das populações em questão.
Huila e Namibe. Caracterização social e fitogeográfica
2Não obstante ambas se situarem no Sul de Angola, as províncias da Huila e do Namibe apresentam características fitogeográficas distintas. Na província da Huila, região com um nível alto de precipitação, a vegetação vai desde o tipo miombo, de savana e ongote submontanos, até ao tipo prados de altitude e anharas do alto (Barbosa 1970). Ao contrário, a província do Namibe apresenta uma média baixa de precipitação anual e, na faixa litoral, detém valores elevados de humidade relativa do ar. Nesta província a vegetação também é irregular, podendo-se encontrar, nalgumas áreas, formações estepóides, sublitorais arbustivas e herbosas e noutras formações estepóides e estepes litorais ralas, descontínuas, de ciclo vegetativo efémero (Barbosa 1970; Melo e Conceição 2008). Em ambas as províncias o clima é variado. Se nalgumas zonas da Huila é húmido e seco e em geral quente, ou mesmo muito quente, na província do Namibe o clima é temperado e húmido junto à costa, noutras regiões semi-árido e, mais para o interior, tropical de altitude.
3Essas duas províncias do Sul de Angola albergam diversos grupos identitários. Alguns têm como território mater estas províncias – são, por exemplo, os Handa, os Ngambwe, os Muila, os Nyaneka e, também, os Umbundu e os Kuvale; outros, como os Kimbundu, os Kwanyama e os Kikongo, embora identifiquem o seu território de origem noutras regiões do país, adoptam a Huila e o Namibe como terras de oportunidade; outros ainda, são oriundos de países europeus e aqui encontram, igualmente, recursos que promovem o seu bem-estar familiar, profissional e social. Não obstante partilharem o mesmo espaço, todos estes grupos têm características culturais específicas, que se evidenciam particularmente entre os Handa, Ngambwe, Muila, Nyaneka e os Nkhumbi, que habitam áreas contíguas. No entanto incidirei a minha reflexão sobre os Handa, cuja caracterização a seguir explicito.
Sobre os Handa
4Handa ou Vahanda é a designação de um dos diversos grupos étnicos localizados no Sul de Angola. Este grupo tem como matriz de localização determinadas áreas abrangidas pelas províncias da Huila e do Namibe, como sejam a Matala, o Cipungu, a Kakula, Cilenge, a Lola e o Kamukuiyu. Outros grupos identitários como os Vamuila, Vangambwe, Vakuvale e Ovimbundu ocupam áreas contíguas. Note-se que, tal como os Vahanda, nenhum dos membros dos outros grupos étnicos mencionados se limita a estas duas províncias. Aliás, de modo geral, é cada vez mais notória a crescente mobilidade estimulada pelos desafios socio-económicos do país, para além de factores matrimoniais e outros afectos à colonização, às guerras e às crises económico-sociais daqui advindas.
5Entre os Handa as questões de sucessão e de herança obedecem às regras impostas pela matrilinearidade. Neste capítulo – não obstante as tendências, influenciadas por factores como a colonização, a influência da igreja católica e, posteriormente, as guerras pós-independência, as crises sucessivas daqui advindas, o alargado contacto com outras culturas – a questão da matrilinearidade, sobretudo nos casos de herança, será progressivamente levantada e discutida; trata-se de uma discussão que, embora ainda inconsistente e avulsa, se vai tornando mais acesa entre indivíduos e famílias dos meios urbanos. Em situações de conflito e discórdia, o recurso a compensações simbólicas, à margem da norma consuetudinária, começa a apresentar-se como uma solução possível.
6A sobrevivência dos Handa, particularmente nos meios rurais, depende da agricultura e da pastorícia. Cultivam produtos como a abóbora, a omatila (um vegetal da família das curcubitas), a jinguba (Arachis hypogaea L.), o ovingomene (Vigna subterranea (L) verdc.) e o feijão de espécies diversas, entre as quais o omakunde (Vigna unguiculata ssp.). Mas a produção de cereais como o milho (Zea mays L.), o massango (Pennisetum spicatum) e a massambala (Andropogon sorghum) constitui o centro das suas preocupações agrícolas. De entre os cereais, o milho detém uma importância primordial. Aliás, é dele que deriva o ofunde (farinha) com o qual os Handa confeccionam ohita (uma espécie de papa endurecida) que constitui a base da sua alimentação. É também com o milho que se confeccionam outros manjares, já que o mesmo pode ser usado, também, em grão, torrado, fervido ou mesmo triturado depois de torrado. O massango, transformado em farinha é, igualmente usado na culinária handa para a confecção de ohita. Sendo a produção deste cereal efectuada em menor escala do que a do milho, o seu uso culinário é, também, diminuto. O gado bovino é a principal riqueza dos Handa.
7O comércio é uma prática que entre os Handa não atinge grandes proporções. Intensificado durante a guerra, o comércio é levado a cabo sobretudo por mulheres, constituindo um recurso importante, tanto nos meios urbanos como rurais, para garantir a sobrevivência das famílias e atenuar o seu sofrimento, tal como é perceptível neste comentário:
Estar com as outras na praça também é diversão, né? Você se esquece um bocado dos problemas que tem em casa2.
8Nas praças, não só não existe um tipo específico de produtos para venda como também não existe rigor quanto aos locais de venda. Os lugares de venda podem, simplesmente, ser o exíguo espaço do quintal, a entrada de casa ou ainda a berma das estradas. Esse rigor é coisa que, aos poucos, vai sendo introduzido pelas administrações locais, com a construção de mercados murados (como o mercado do peixe e o do 5 de Abril, na cidade do Namibe), apetrechados de bancadas e estruturados com base em normas que sujeitam os vendedores a pagamentos de taxas e a regras de higiene específicas. Mas poucos são os que se disponibilizam a vender nesses mercados, alegando existirem constrangimentos que se reflectem negativamente no andamento do negócio.
As pessoas que vêm comprar é que são culpadas disso. Porque preferem comprar mesmo lá fora. Não entram nas bancadas porque aqui é mais caro. É mais caro como, se temos que também tirar lá um bocado e se temos que pagar taxa? Aí é que está o problema. Se os de lá fora vendem barato é porque não pagam taxa3.
Terra. Conceitos e significações
9O termo “terra” encerra diferentes acepções as quais, em oluhanda (língua dos Handa), correspondem a vocábulos específicos e diferenciados. Quando terra designa o chão, o solo, por exemplo, traduz-se por oofi; ao designar território, lugar de nascimento e de origem ou circunscrições administrativas, traduz-se por ocilongo, do mesmo modo que entre os diferentes grupos vizinhos (Freike 2004). No primeiro sentido, oofiencerra em si mesmo um poder místico, cujo expoente é suku, kalunga, ndjambi (Deus). No segundo sentido, contrastando com os espaços inabitados, agrestes, desregrados e selvagens, designados por ofuka, o vocábulo ocilongo expressa a noção de lugares marcados pela acção dos grupos sociais que os constroem e reconstroem, sistematicamente, delimitando-os e instituindo neles normas de comportamento e de convivência. Ou seja, enquanto as expressões oofie ofuka enfatizam as potencialidades da natureza, o ocilongo ressalta a dinâmica sócio-cultural. Nessa conformidade, a terra que os Handa habitam e onde desenvolvem as suas actividades agrícolas e pastoris é tomada como propriedade comunitária; uma propriedade legada pelos seus antepassados e organizada, distribuída e protegida pelo hamba (rei) que detém essa prerrogativa, para além do poder de intercessão ritual e da implementação da lei. Tal como em diferentes outros grupos sociais africanos (Cf. Lentz 2003), a terra é aqui tomada como uma entidade distinta e indivisível. A demarcação dos lugares emerge do contexto, e é expressa através de elementos naturais como árvores, rochas, montanhas ou lagos (Lentz 2003:275). As delimitações físicas construídas, nomeadamente vedações e muros, colidem com a perspectiva local da concepção da terra. Colidem igualmente com a lógica tradicional, com a dinâmica sociocultural dos Handa e de outros grupos locais, seus vizinhos nos espaços rurais, e também com a estrutura organizacional de sociedades agro pastoris e com a livre circulação do gado para os pontos de água e de pasto. Causadoras de memoráveis querelas entre autóctones e colonos, ou entre aqueles e os novos ditos proprietários de terras, os limites físicos agora impostos administrativamente, separam uns e outros. As demarcações expressas através de referências naturais, pelo contrário, proporcionam a criação de pontos de contacto entre os diferentes grupos sociais.
10Por conseguinte, entende-se que a terra não é objecto de apropriação individual. Como património dos antepassados, ela é usufruída por todos e partilhada pelas diferentes famílias, discriminadas por matrilinhagem (ombunda). Por via da tradição oral, estas reconhecem os símbolos que estabelecem os marcos, os beneficiários, os fundadores – referências essas transmitidas de geração em geração (ver Melo 2001; 2005). Dentro dos parâmetros da legalidade – que exige anuência dos ovakulu (os mais velhos) – os não residentes (sejam estes membros ou não do grupo) têm, inclusivamente, direito a usufruir da terra, nomeadamente para a pastagem, o cultivo e a edificação de residências. Isso não inclui, contudo, o direito de comprá-la ou privatizá-la.
11Um facto que parece ser extensível a outros contextos africanos (Goody 1976), é que não existe entre os Handa a relação entre proprietário de terra e locatário. Como um bem colectivo, a terra não pode ser objecto de compra e venda, nem de privatização. Toda a actividade agrícola, bem como outras relacionadas com a terra, obedece a este tipo de organização que se perpetuou, e em função do qual se demarcaram os espaços, no território, e os diferentes núcleos familiares se foram dispersando e ocupando terrenos de pastagem e de cultivo. Os proprietários eminentes são, como em quase toda a África rural, a família ou a comunidade da chefia tradicional, e “a propriedade real […é] de facto um usufruto […] e não […] uma propriedade à romana, usus, fructus, abusus, isto é, o uso, o fruto e a propriedade afectada a uma única pessoa até ao abuso” (Ki-Zerbo 2006). Trata-se, na perspectiva de Étienne Le Roy, de uma concepção pré-colonial que “ignorant la propriété privée de la terre, parce qu’inutile dans une société non capitaliste, repose sur le principe de l’affectation des espaces et des usages particuliers, en reconnaissant autant de droits sur l’espace et les ressources que d’usages acceptés” (1996: 8). Uma tal concepção permeia, hoje ainda, a ideologia handa, assim como a dos grupos agro-pastores seus vizinhos – nomeadamente, os Ngambwe, os Nkhumbi, os Muila e os Nyaneka – razão pela qual se vão levantando reivindicações populares concernentes às apropriações de terra, tidas como indevidas, por indivíduos estranhos às famílias e aos grupos. Estas reivindicações, acentuadas após o termo da guerra são, na opinião dos autóctones, uma reacção às ocupações irreverentes e destruidoras por parte de agentes exteriores, que sob a capa de empresários, novos-ricos, se apresentaram como proprietários legais (porque documentados) das terras. Porém, tais factos avivaram, de algum modo, sentimentos de revolta e de impotência das populações lesadas face às determinações dos novos proprietários e às ambiguidades dos agentes do poder político-administrativo.
12Para os Handa, como para diversos outros grupos africanos, a terra que trabalham e onde fundam as suas habitações, encerra uma força mística, razão porque procuram estabelecer com a mesma uma relação harmoniosa. Por conseguinte, alguma dessa harmonia, traduzida na boa colheita, na redução ou expulsão de doenças, na profusão de fontes de água e na ausência de pestes agrícolas ou outras, é obtida através de rituais religiosos de âmbito familiar ou social para os quais de convoca a presença e participação dos espíritos ancestrais e a sua intervenção na garantia do bem-estar familiar e social. A força da relação dos Handa e dos seus vizinhos com a terra e com os antepassados é expressa através de gestos aparentemente simples, nomeadamente em momentos de exultação. No caso dos Handa, refiram-se como exemplo, o gesto das mulheres que espalham cinza ou carvão no rosto, quando dos rituais de iniciação4; o gesto de presentear os espíritos ancestrais com produtos da terra, após uma adversidade nos terrenos agrícolas; o gesto de derramar omakao (cerveja tradicional) ou água, no chão – um acto acompanhado ou não de elocuções verbais – antes ou durante determinadas cerimónias privadas ou públicas. Tais gestos, expressando a religiosidade das pessoas implicadas e dos Vahanda, em geral revelam, também, o lugar dos espíritos ancestrais na vida das pessoas.
13Convém notar que uma concepção evidenciada nas discussões relativas à questão da apropriação da terra em África, prende-se com uma acepção introduzida pelo colonialismo e que se perpetua no período pós-colonial: a condensação de “une représentation “géométrique” [do capitalismo mercantil que considera que] la propriété est, selon la declaration des droits de l’homme et des citoyens de 1789, “inviolable et sacrée” (Le Roy 1996: 8). A esta concepção se junta, ainda na opinião de Étienne Le Roy, “une idéologie de la valeur et de la régulation de l’économie par le marché” (Idem). Se se considerar que os direitos de propriedade nas comunidades rurais africanas, particularmente nas de Angola, se regem mormente pelas normas consuetudinárias que ajudam a dirimir querelas de vária ordem, as reivindicações mencionadas respondem aos interesses de preservação dos direitos adquiridos e transmitidos por via da tradição oral ao longo de séculos. A imposição da força emanada do poder político, económico ou das diligências do direito positivo, numa sociedade com mais de 80% de iletrados e recém-saído da guerra, resulta incongruente.
14Entretanto, se nos ativermos à ideologia de valor e de regulamentação económica, propagada desde o período colonial, relativa às concepções e aos modos de apropriação de terras, não parece difícil inferir que tais concepções se terão propagado sobretudo na região Norte de Angola. Isto porque aqui, ao contrário da região agro-pastoril do Sul, onde se desenvolve uma agricultura de subsistência, a produção agrícola dominou os mercados com o desenvolvimento de culturas permanentes (palma, algodão e café), tendo enormes e múltiplas extensões de terra sido privatizadas e ampliando a possibilidade de se alugar terrenos agricultáveis ou de pagar mão-de-obra, de se ser proprietário de terras e de investir neste sector. Com a ajuda desta mercantilização progressiva criou-se uma nova categoria de trabalhadores, praticamente inexistente nas sociedades tradicionais agro-pastoris do Sul de Angola, mas observável também nos contextos adjacentes. Nestes cenários de frequente gestão corrupta ou mesmo mafiosa dos bens públicos (parafraseando Ki-Zerbo, 2006) e perante os constrangimentos da guerra pós-independência, foram construídas fortunas individuais.
15Tradicionalmente, nos meios rurais, não sendo a terra objecto de apropriação privada, ao contrário do gado bovino, ela não confere riqueza ou elevação estatutária. O que conta, na perspectiva dos Handa, é o número de filhos (biológicos ou não) para trabalhar, bem como o número e a qualidade de cabeças de gado, mais do que a extensão de terra disponível para agricultar; o que conta é a quantidade e a qualidade dos produtos agrícolas resultantes da acção do homem sobre a terra, e a quantidade de pessoas que, com o seu trabalho, um dado indivíduo pode sustentar. A dispersão dos seus eumbo (conjunto residencial), a estrutura destes, bem como a constituição do grupo doméstico demonstram, claramente, a relação gado/terra estabelecida na vida e cultura Handa, assim como na dos vizinhos Nkhumbi, Muila, Ngambwe, Nyaneka e outros (Idem). Contudo, as mudanças económicas no país, assim como as novas correlações políticas, o crescimento e a elevada concentração populacional em determinadas localidades e regiões – fruto da prolongada guerra – são factos que, se de algum modo contribuíram para a degradação de determinados lugares, também estimularam as populações a baterem-se pela defesa das suas terras. Por outro lado, incitaram grupos de indivíduos à apropriação privada das mesmas para fins lucrativos. As terras, agricultáveis ou não, localizadas em meios rurais ou urbanos, são todas importantes e, sobretudo nos meios rurais, criou-se alguma animosidade entre os que as perderam e os que as adquiriram. Fruto dessa corrida desenfreada à ocupação de terras, agudizam-se as querelas familiares e não só. Entre os Handa, não obstante as inúmeras dificuldades nos meios rurais, o baixo nível de produção e a escassez de produtos produzidos, os hóspedes e necessitados continuam a poder ocupar pedaços de terra cultivável para a sua sobrevivência, sem que para tal lhe seja cobrado qualquer taxa.
Estrutura e relações. Poder e gestão no eumbo
16Os Handa definem a família como uma estrutura que vai além dos parentes consanguíneos de ambas as linhagens (paterna e materna). Incluem, na sua concepção, os parentes colaterais, os parentes afins (cuja relação pode advir, por exemplo da vizinhança, da amizade, da passagem pelos rituais de iniciação, etc.) e os parentes por via da eanda – termo que designa um conjunto de denominações de origem animal ou vegetal que caracterizam linhagens, e através da qual as pessoas estabelecem diferentes laços entre si5. Com efeito, é comum, quer nos meios rurais quer nos urbanos, os grupos domésticos6 integrarem parentes cujos laços ultrapassam os de sangue. Isto é visível na organização espacial das suas habitações, que reflecte o princípio poligínico: o grupo doméstico partilha um mesmo recinto habitacional, integrando este um conjunto de diferentes constituintes, designado por eumbo.
17Cada uma das peças do conjunto habitacional dos Handa tem uma função e designação específicas7. Numa perspectiva de conjunto, a peça principal é o ocoto – um lugar sagrado destinado ao mwene weumbo (dono do eumbo ou chefe de família8). Contudo, o recinto no qual se instala a cozinha, a elimba, cujo comando pertence às mulheres, constitui, igualmente, uma peça residencial importante. Ou seja, no caso de um matrimónio poligínico, existirão, no eumbo, mais do que uma elimba, e cada uma delas é atribuída a uma das co-esposas com a respectiva especificação. No caso da primeira esposa, designa-se por elimba ya tembo yeumbo; na segunda, por elimba yopokati; e, para a terceira (o mesmo que para a última esposa), designa-se por elimba ya citunda. É em cada uma das elimba que se reúnem os respectivos núcleos encabeçados pelas mães, nomeadamente para as refeições, e é aqui que são armazenados os cereais produzidos e secos. Estes são depositados, conforme a espécie, em celeiros próprios. Há casos em que também aqui se guardam alguns dos celeiros do marido, mas, em geral, estes são conservados num espaço próprio sob a sua tutela, que se designa por kasapi.
18A gestão e a distribuição dos mantimentos para o grupo doméstico estão a cargo da mulher. Ao homem cabe a gestão directa do ocoto. Em termos gerais, o homem faz a supervisão dessa gestão, detém o controle do eumbo e zela pelo gado. Note-se que a importância da elimba é tanto maior porque, além de servir de despensa, é o lugar de dormir da mulher e dos filhos menores, podendo também albergar as visitas, quando isso não acontece no kasapi (peça residencial atribuída ao chefe de família). Ou seja, nos matrimónios monogâmicos, a elimba, a servir de quarto, aloja, normalmente, o casal e filhos menores, pernoitando os filhos mais velhos noutros recintos do conjunto residencial. Porém, no caso de matrimónios poligínicos, não obstante cada co-esposa possuir a sua elimba, elas dormem com o marido no kasapi. Fazem-no, cada uma, num período de tempo específico; são portanto as mulheres que se deslocam, à vez, para se juntarem ao homem, apesar de durante o dia elas desempenharem as suas tarefas no eumbo e na sua elimba.
19O grupo doméstico é, em geral, constituído por diferentes núcleos encabeçados pelas mães (co-esposas) e dirigidos pelo mwene weumbo9. É sob a sua tutela que se encontram todos os membros do eumbo, e todas as decisões de grupo e problemas familiares passam por ele. Entretanto, pelas particularidades que configuram o grupo doméstico num dado eumbo, o mwene weumbo pode não ser o mais idoso do grupo. Mas, ainda assim, é ele o responsável pela organização de todo o conjunto residencial e pelo gado, assim como pelas cerimónias de pequeno vulto.
20Sendo o tipo de residência patrilocal e/ou avunculocal, outros núcleos familiares constituídos pelos filhos adultos casados com suas esposas e filhos podem, entretanto, integrar-se, alargando assim a extensão numérica dos grupos domésticos e a dimensão física do eumbo. Tais núcleos actuam como grupos independentes de produção, sem prejuízo de eventuais cooperações entre si, ou com os membros dos outros eumbo.10 Eles não constituem grupos isolados, pois, estabelecem, entre si, uma rede de relações estreitas que permite actuarem como unidade familiar, dentro do eumbo (por exemplo, nos rituais, nos momentos de crise provocados pela fome, pela guerra, pela ausência de chuvas e existência de pragas, assim como nos momentos difíceis de dor, de luto e de doenças) e fora do eumbo, isto é, no contacto com o exterior, designadamente, com os vizinhos, com as entidades governativas, com os agentes dotados de poder de cura e de adivinhação, etc.
21Podendo albergar mais de 15 pessoas de diferentes gerações, o eumbo constitui o centro para o qual converge um conjunto de relações estabelecidas pelos diferentes núcleos, entre si e com os outros, e que vão desde as relações de produção, distribuição e consumo, passando pelas familiares, até às de carácter religioso e político-social.
22No interior do eumbo, cada núcleo familiar possui celeiros próprios (ovindi), um lugar de cozinha (designado de omafua, que se caracteriza como um lugar de brasido com três ou quatro pedras, sobre as quais se colocam as panelas para cozinhar), assim como distintas peças habitacionais particulares. Na sua estrutura, o eumbo engloba igualmente elementos comuns para usufruto de todos os membros do grupo doméstico. Cite-se o ocoto familiar, o lugar sagrado destinado ao homem como chefe de família, situado no recinto do eumbo, ao ar livre: um lugar que o dono do eumbo chefia e onde preside às mais diversas cerimónias tradicionais, e o ondjuwo yokomeso11, o ociwnda12 e o omwombelo13.
Produção agrícola. Estratégias e relações
23Como se viu, na cultura tradicional handa, a vida familiar organiza-se no seio do eumbo, cuja extensão varia de acordo com o número de indivíduos e de núcleos familiares discriminados pelas omafua14, de modo particular, ou pelas omalimba15 que constituem espaços residências multifuncionais do domínio da mulher no qual está incluída a cozinha. Vivendo, sobretudo, da agricultura e da pastorícia, cada uma das mulheres (casadas, solteiras ou viúvas) possui as suas lavras pessoais e trabalha nelas de modo independente, individual ou colectivamente, conforme tenha pouco ou muito trabalho. Os homens, sejam estes casados ou solteiros (com uma ou mais mulheres), possuem lavras individuais nas quais trabalham sozinhos, com a colaboração das mulheres ou de outros membros do eumbo, ou ainda dos vizinhos. Não obstante o carácter individualizado dos meios de produção, assim como das lavras, dos produtos produzidos e dos celeiros, é comum a participação dos membros do grupo doméstico, dos demais membros da família, bem como do grupo de amigos e de vizinhos na execução dos trabalhos agrícolas (ceifa, corte de restolhos, sementeiras, sacha e remoção das pragas) da responsabilidade de um dado indivíduo (homem ou mulher). Este tipo de trabalho cooperativo e solidário, designado entre os Handa, ondjuluka ou ondjambi, termina com beberete oferecido pelo beneficiário. Da mesma maneira que as co-esposas aprimoram o seu desempenho, apoiando os maridos na execução de trabalhos agrícolas, os maridos também apoiam cada uma das mulheres nos seus respectivos terrenos de cultivo. Mas num matrimónio poligínico, este apoio do homem torna-se praticamente inexequível, sob pena de este ser acusado de beneficiar mais uma do que outra. Quando são as co-esposas a organizar-se, semanalmente, para, em conjunto, trabalharem na lavra do marido, isso ultrapassa o simples acto de solidariedade: trata-se também de um acto de manifesto carinho. A solução para o homem poligínico passa pela sua colaboração e direcção dos trabalhos de preparação da terra para o plantio e semeadura com os bois em canga, nos terrenos de cada uma das co-esposas. De resto, a sua participação nas lavras das co-esposas resume-se aos momentos de ondjambi. Tal como acontece com os restantes membros do grupo doméstico, também existe uma permanente colaboração entre as co-esposas nesse tipo de actividade. Gerando um incremento de produção, esta participação contribui para o reforço das suas relações e interacção, bem como para a produção de excedente.
24Note-se que, não obstante a proliferação da poliginia nos meios urbanos, muitos dos matrimónios tradicionais poligínicos têm sido destruídos, por influência da religião cristã – fortemente enraizada em Angola – com a conversão das famílias. A imposição directa ou indirecta da comunhão de bens, nos casos de matrimónio religioso cristão, tem alterado, também entre os Handa do meio rural, o regime de propriedade dos bens; vão-se registando casos de cônjuges a cultivarem uma mesma lavra e a partilharem o resultado da sua produção.
25Uma experiência local para a melhoria dos produtos produzidos prende-se com a prática agrícola em terrenos fertilizados com o estrume produzido pelo gado bovino, pela deslocação periódica do curral de gado bovino. Essa deslocação permite um melhor acondicionamento do gado, que se livra da humidade do esterco misturado com a urina e terra molhada pelas águas das chuvas, e mantém várias extensões de terra estrumada, tornando-as mais produtivas.
26O uso de tractores e sistemas de regadios é uma prática que, embora se esteja a expandir nessas regiões, está apenas nas mãos dos grandes detentores de terra e dos chamados “novos-ricos” surgidos no pós-guerra. Com efeito, para os pequenos agricultores, na falta de chuva, tudo se perde, exceptuando-se as culturas em terrenos situados nas baixas ou junto aos rios. As pragas de insectos destroem plantações inteiras, já que também não existem mecanismos tradicionais de protecção, nem medidas estatais periódicas e dirigidas que previnam tais situações e garantam segurança aos pequenos camponeses.
27Note-se igualmente que após a guerra as populações nos meios rurais têm sido incentivadas pelas administrações locais a organizarem-se em cooperativas para o desenvolvimento da prática agrícola. Trata-se de uma forma de fazer face aos condicionalismos do momento, marcados por carências de vária ordem, que vão desde a falta de gado à falta de força de trabalho, de aumentar a produtividade e de ajudar as famílias a enfrentar períodos de estiagem. Não obstante não se registar ainda uma forte adesão a essas cooperativas que obrigam a mudanças na concepção dos terrenos agricultáveis e de propriedade, os benefícios concedidos pelas administrações locais aos seus membros – como facilidade na aquisição dos instrumentos de produção –, constitui um chamariz importante. A doação às cooperativas de sementes de milho com um período de maturação mais curto que o normal locais constitui outro dos incentivos para a organização dos pequenos agricultores em cooperativas atenuando as resistências ainda existentes.
Mulheres, produção colectiva e processo de armazenamento
28Dona dos seus instrumentos, a mulher, casada ou solteira, é igualmente dona dos produtos que produz. Gere-os com autonomia, o que lhe dá a liberdade de agraciar alguém com os seus mantimentos e de sustentar os seus hóspedes, sem reprimendas do homem. Obviamente que este, fazendo uma dupla gestão, isto é, a dos seus bens particulares e, a dos diferentes núcleos familiares encabeçados pelas co-esposas, controla os mantimentos e por vezes aprovisiona os celeiros das esposas com víveres para o reforço dos mesmos e garantia da sustentabilidade do grupo doméstico. Quando uma mulher, por qualquer razão, não possui instrumentos próprios (como enxadas) conta com o apoio dos homens da família, particularmente do mwene weumbo, isto é, do proprietário do eumbo onde reside. Este põe as suas charruas ao serviço dos membros activos do seu grupo doméstico para acelerar os seus trabalhos agrícolas e garantir a sua sustentabilidade.
29Não obstante estar instituída a prática de participação colectiva na execução de tarefas agrícolas, na construção de habitações e na preparação de cerimónias festivas – consubstanciada no que, localmente, se designa de ondjambi ou ondjuluka – o armazenamento dos produtos não se processa de modo colectivo. Ou seja, cada um armazena, individualmente ou de modo mais restrito, os seus mantimentos em celeiros tradicionais, designados, conforme o modelo, de omutala, ocindi e oshila. Alguns dos celeiros, como o primeiro, são celeiros abertos e, outros, como os dois últimos, são fechados. Enquanto uns são usados mais como dispositivos de secagem, outros cumprem, integralmente, a função de armazenamento. O tempo de armazenamento dos mantimentos também varia consoante o tipo de celeiro. É nos celeiros fechados, sejam estes de interior ou de exterior, que este é mais prolongado. Entretanto, ao contrário do massango16, o milho é dos cereais cujo tempo de armazenamento é menos extenso. Isto não só pela facilidade com que pode ser atacado pelos insectos, mas também por constituir, depois do gado, uma das principais moedas de troca. O massango é dos cereais cujo tempo de armazenamento é mais longo, podendo estender-se por duas ou três colheitas. Isso deve-se ao facto de ser mais resistente ao ataque dos insectos, o que lhe permite acudir as populações nas épocas de estiagem.
30Os mantimentos perecíveis são produzidos em muito menor escala. O feijão e ovingomene (vigna subterranea (L) verdc.), por exemplo, são conservados em recipientes como ovimbala, cabaças, panelas de barro, etc. e mantidos em ambiente seco e fresco. As abóboras e outras curcubitáceas, com um grau maior de perecimento, são armazenadas ao ar livre, no chão, no interior das habitações até serem consumidas. Alguns produtos são primeiro transformados para se manterem conservados por mais tempo. É o caso da batata-doce, às vezes transformada em makoka17, e de algumas folhas de vegetais comestíveis (onombi) que são trituradas antes de serem postas a secar ao sol18.
31Os celeiros podem ser de interior, designados de ovindi19 – localizando-se dentro de uma das peças do conjunto, ou de exterior, como ovitala20 e oshila, localizando-se em espaço aberto, no recinto do eumbo. A confecção dos primeiros é da responsabilidade das mulheres e exige perspicácia, delicadeza e paciência. Tal como aprendem a cozinhar e a comportar-se, as raparigas aprendem, desde cedo, a confeccionar artigos de uso doméstico como os ovimbala e ovindi e a dominar esta prática, transmitida de mães para filhas. Em Cilenge dão-lhe uma forma quase perfeita de dois comes invertidos, não fosse a extremidade superior terminada em orifício mais ou menos largo, o que lhe retira o bico. Nessa extremidade é, depois, colocada uma ocimbala (espécie de cesto) invertida, que serve de tampa removível. Com um fundo com estas características, estes ovindi são depois acondicionados em estruturas próprias, permitindo-lhes fixar-se na vertical, com o vértice junto ao solo. Em Cipungu, fazem-no com a base plana. Nestes casos, distanciados do solo, os ovindi são assentes numa omutala¸ montada no interior da habitação, servindo esta última também para guardar outros utensílios, como panelas, ovimbala, malas de roupa, etc. Note-se que ambos os modelos se podem encontrar em todas as regiões dos Handa. Pela sua utilidade, e não obstante as diferenças entre si, ambos são artigos imprescindíveis no quotidiano das famílias e dos grupos domésticos, sobretudo nos meios rurais. Mas são também objectos ornamentais com motivos variados que revelam criatividade e sentido estético. São feitos manualmente, usando as fibras da casca de determinadas árvores, envolvendo e atando tiras de capim que circundam o centro e se estendem de acordo com o uso que se pretende dar ao objecto.
32Situando-se fora das habitações, as ovitala (sing. omutala) e oshila compõem o conjunto das peças habitacionais, no eumbo. A sua construção é do domínio dos homens, e são necessários troncos de árvores para a sua edificação, pelo que se exige a sua força braçal. Não obstante ambos serem celeiros de exterior, distinguem-se pela estrutura e formato. Enquanto a omutala é uma espécie de estrado assente sobre troncos para impedir o contacto com o chão, e o acesso dos animais domésticos e crianças aos cereais nela contidos, a oshila tem o formato de uma pequena casa mais ou menos suspensa, com cobertura em capim. É, em geral, barreada nas paredes com pequenas aberturas para arejamento interior.
33Normalmente a quantidade dos celeiros de exterior depende da diversidade de núcleos familiares que compõem o grupo doméstico no eumbo. A compactação das ovitala – que pressupõe uma estruturação que inclui divisões em compartimentos contíguos, pertencendo cada um a um dado núcleo – costuma ser uma estratégia para o aproveitamento e organização do espaço.
34Os celeiros de interior são comummente usados para armazenar cereais já debulhados. Contrariamente, as ovitala são utilizadas para o armazenamento de espigas de milho com sabugo e de outros cereais como o massango e a massambala21 ainda não debulhados, permitindo dar continuidade ao processo de secagem dos cereais.
35É de referir que as ovitala podem ser erguidas no interior das habitações, com acabamentos diferenciados, dependendo dos objectivos. Podem servir de base para assentar utensílios, pendurar objectos e guardar artigos diversos. Já a oshila pode armazenar os cereais em espiga ou granulados.
36A convivência dos Handa com os Ovimbundu, não só pela sua proximidade geográfica, mas sobretudo pelas circunstâncias da prolongada guerra civil, explica o uso por algumas famílias Handa do ocimbangu como celeiro – um recipiente largo, de base plana com paredes relativamente altas, em forma de selha, confeccionado a partir da casca da árvore de omuhamba (Brachystegia tamarindoides Welw. ex. Benth). De qualquer modo, esta peça, destoando do conjunto dos celeiros de interior, não só não é extensível aos Vahanda mas é usada como mais um recipiente, não substituindo os tradicionais22.
Mecanismos de conservação dos produtos
37Os Handa contam com os recursos biológicos e mecânicos para a preservação da qualidade dos produtos armazenados e prevenir a sua infestação, já que não existe nenhuma política nacional ou do poder local de prevenção periódica e colectiva das infestações.
38Antes da colheita, as crianças são as principais zeladoras desses produtos cultivados. Incumbe-se-lhes uma permanência mais ou menos longa junto dos campos de cultivo, emitindo sons com a voz ou com objectos sonantes para afugentarem os pássaros ou impedirem os transeuntes vadios de se apoderarem do alheio. O uso de ovingumanguma (espantalhos) reforça a sua acção.
39Entretanto, a exposição solar, antes e depois da colheita, constitui um mecanismo de conservação de que os Handa também fazem uso. Essa técnica é usada para secar feijões e cereais. “Produtos como estes são, normalmente, mantidos na própria planta, isto é, entre as brácteas e vagens, respectivamente, após a maturação fisiológica, com vista à redução do seu teor de água.” (Melo e Conceição 2005:4), e só depois são depositados nas estruturas de armazenamento.
40No armazenamento em silos fechados, recorrem comummente à cinza e ao ondungu23 (Capsicuns frutescens L.), em pó, para proteger os cereais contra as infestações de gorgulhos (Sitophilus spp), traça (Plodia spp), ácaros e roedores. Tais produtos são aplicados na base das estruturas de armazenamento e intercalados com os cereais (Melo e Conceição 2005). O sal, assim como as espécies vegetais com teor pesticida, nomeadamente o ombungululu (Ptaeroxylon Obliquum Radlk/Rh Unb) são também usados com a mesma finalidade. A suspensão da base dos celeiros, a confecção de celeiros com bases planas, o seu assentamento sobre estrados e o uso de estrados como objectos de armazenamento constituem estratégias de luta contra infestações. A reforçar essas estratégias cite-se a prática de colocar objectos mais pesados sobre a tampa dos celeiros de interior, a fumigação dos aposentos e o uso de animais predadores como o gato.
Quantificar perdas e produção
41Em suma, entre os Handa as sinergias de grupo num eumbo, garantem a produção de bens que podem ultrapassar as quantidades previstas para a subsistência quotidiana. De modo geral, esse vigor e dinamismo de grupo contrasta com os resultados da produção. Tais resultados são muitas vezes exíguos, comparativamente ao esforço empreendido, devido à inexistência de recursos que os rentabilizem ou que atenuem a dependência da produção dos desígnios da natureza. Apesar da perda de produção ser sempre iminente, ela raramente é quantificada nos moldes ocidentais. Cada agricultor tem uma noção do seu nível de produção a partir da quantidade de celeiros que consegue atestar ao longo da colheita. Normalmente, as referências de produções anteriores constituem a base de comparação. Se, durante a lavoura, o agricultor pode ter a percepção da quantidade produzida – por exemplo, a partir do número de réguas que conseguir semear – já a quantidade de perdas é avaliada de acordo com a quantidade de cereais usado no cultivo. Mais difícil é calcular perdas de produtos armazenados provocadas por roedores, insectos e térmitas, particularmente quando os estragos são feitos nos mesmos celeiros cujos mantimentos estão a ser usados para alimentar a família.
42A introdução e uso de novos instrumentos de produção, de mecanismos de controle, o aperfeiçoamento das tecnologias de armazenamento, o progressivo aumento de pesticidas naturais e o melhoramento das condições do seu uso, podem levar a um incremento e controle da produção, das condições de conservação e também à introdução de novas dinâmicas no seio das famílias e da comunidade. Mas não só. Como foi mencionado, nas sociedades agro-pastoris do Sul de Angola, nomeadamente os Handa, tal como acontece em muitas outras sociedades africanas (Temudo e Barros 1998), as precauções contra as infestações são tomadas apenas após as semeaduras, o que leva muitas vezes à perda dos produtos, quando as pestes atacam os terrenos. Portanto, a fragilidade maior não está na produção, mas sim na protecção das culturas e na prevenção24, antes e depois das semeaduras. As comunidades rurais como a dos Handa são comunidades pobres e, na sua maioria, iletradas, pelo que se torna imperioso o desencorajamento de usos de pesticidas químicos e a introdução de programas básicos de protecção integrada das culturas, visando o aumento da produção e da qualidade dos produtos, as melhorias na gestão pós colheita, assim como a garantia da segurança alimentar. Um processo que pode ser conduzido através da aplicação de medidas preventivas, como a rotação de culturas, o melhoramento das próprias plantas e da fertilização, da monitorização das culturas e da gestão integrada da exploração através do controle físico e cultural, biotécnico, biológico e químico25.
43Mas para uma boa implementação dessas medidas, os modos tradicionais de transmissão do saber, de circulação de informação, de aprendizagem e de troca intergeracional, incluindo os diversos rituais, as igrejas e os mercados, não podem ser descorados.
Bibliographie
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Notes de bas de page
1 Os dados trazidos para este artigo derivam das pesquisas desenvolvidas no âmbito do projecto de Pós-doutoramento intitulado “Doenças, Nutrição e Terapêuticas Tradicionais. Relações de Poder e Práticas Sociais em Contexto de Mudança no Sul de Angola”, financiado pela Fundação Portuguesa para a Ciência e Tecnologia (FCT), sob a responsabilidade de Jill Dias.
2 Entrevista com S., no Namibe (2008).
3 Entrevista com A., Namibe (2008).
4 Para a compreensão dos gestos das mulheres em momentos rituais, ver Melo 2001 e 2005.
5 Para detalhes sobre o parentesco por via da eanda, ver Melo (2001 e 2005).
6 O grupo doméstico handa apresenta características peculiares do ponto de vista de concepção, de constituição, de actuação e de vivência que deve ser entendida para se perceber, nomeadamente a natureza das relações interpessoais, familiares e sociais. Para a compreensão deste conceito no grupo mencionado, ver Melo 2001 e 2005.
7 Sobre a estruturação do eumbo, importância e especificações de cada uma das peças do conjunto habitacional dos Handa, ver Melo 2001 e 2005.
8 Note-se que, aqui, a família é tomada no sentido lato do termo.
9 Mwene weumbo é designação atribuída ao chefe de família ou ao dono do eumbo.
10 Outros grupos, em África, foram identificados com características semelhantes às dos Handa, relativas ao grupo doméstico. Ver Goody (([1972] 1978).
11 Ondjuwo yokomeso é uma peça do conjunto residencial dos Handa construída ligeiramente afastada do círculo e onde se desenvolvem, entre outros, rituais específicos, nomeadamente os de iniciação feminina. (Melo 2001 e 2005).
12 Ocywnda designa o curral, onde os Handa reúnem o gado bovino, à noite, após o pasto.
13 Omwombelo é um espaço do conjunto habitacional dos Handa vocacionado para o lazer e para a recepção de visitas.
14 Lugar de cozinha.
15 Plural de elimba.
16 Pennisetum spicatum.
17 Designa-se de makoka à batata descascada, cortada em lasquinhas e seca ao Sol até perder toda a humidade. Pode ser comida crua ou cozida como acompanhante de molhos de peixe fresco ou seco.
18 Melo e Conceição (2005).
19 Ovindi é um termo que constitui o plural de ocindi, na língua dos Handa.
20 Ovitala é um termo que, na língua dos Handa, constitui o plural de omutala.
21 Andropogon sorghum.
22 Consta, no entanto, que o ocimbangu é mais duradoiro que os tradicionais celeiros de interior dos Handa.
23 Nos meios urbanos, o ndungu é vulgarmente conhecido por jindungu.
24 De entre os inimigos da cultura apontam-se, nomeadamente, as doenças, as pragas, os infestantes, além das plantas que atacam outras, provocando estragos consideráveis.
25 Cf. http://www.selectis.pt/integrada.htm (consultado a 16 de Junho de 2009).
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Ministério do Ensino Superior e Ciência e Tecnologia Luanda
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