Apresentação
p. 13-18
Texte intégral
JILL DIAS (1944-2008)
1Jill Rosemary Reaney Dias nasceu no Reino Unido, em Março de 1944, e obteve o seu doutoramento em Oxford em 1973. Depois casou-se com Alberto Romão Dias e nacionalizou-se portuguesa, embora continuasse a assinar Rosemary em vez de Rosamaria como a nacionalização lhe impusera. Denunciaria isso já a renitência, que depois evidenciou, contra categorias estanques e constrangedoras da vida e do pensamento?
2Desde o início do seu trabalho tutelado por instituições portuguesas – encetado com a pesquisa arquivística das fontes relativas à História do século XIX em Angola – que se rebelou, pioneira mas sempre discreta, contra constrangimentos disciplinares. Na verdade, simplesmente se mantinha alheada desses limites, como dos que formalmente separam nacionalidades, instituições, estatutos ou idades.
3Foi também a marca dessa tranquila renitência que deixou nos cargos que exerceu no Departamento de Antropologia da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, que integrou em 1982 e a que presidiu empenhada durante vários anos, assumindo o lugar de Professora Catedrática em 1996. Aí leccionou disciplinas como História da Antropologia, História de África, Contextos Etnográficos Africanos, Colonialismo e Pós-Colonialismo e Temas do Pensamento Antropológico, atraindo colegas e estudantes, desse e de outros departamentos, por quem era particularmente querida. As suas aulas foram espaços de exemplar convivência da sensibilidade com a Ciência.
4Terá sido o mesmo espírito que a levou a estimular e agregar jovens investigadores de diferentes áreas, a criar o Centro de Estudos Africanos e Asiáticos do Instituto de Investigação Científica e Tropical, que dirigiu desde 1986, e a fundar a Revista Internacional de Estudos Africanos. Mais recentemente integrara o CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia –, trazendo com ela o entusiasmo discreto mas cintilante que levava para cada novo desafio.
5Traços raros de carácter, como a sua discrição e, eventualmente mais ainda, a sua inesgotável generosidade e disponibilidade profissional e pessoal, poderiam ter ofuscado o seu enorme talento e produção criativa e diversificada. Mas antes se aclararam mutuamente, para melhor ainda nos iluminarem.
6É difícil escrever sobre Jill Dias. Primeiro porque isso convoca a sua ausência: já não nos cruzaremos com ela nos corredores, não invadiremos o seu gabinete à procura de conselho, não usufruiremos das suas aulas meticulosamente preparadas, não a poderemos procurar para encontrar um consenso, desdramatizar uma situação ou recorrer, avassaladoramente, como por vezes fazíamos, a um imenso lago tranquilo de saber que discretamente guardava para quem lá quisesse ir. E depois porque, precisamente a força dessa sua presença assim inscrita nas relações com os outros, e a elegante desatenção que sempre votava a grandes formalidades e exibições, desviavam os nossos olhares do brilho da sua produção académica mais canónica, que é o que costuma inscrever alguém nas memórias institucionais. Mas sei que, apesar do seu curriculum, Jill Dias não se magoaria com isso, nem se sentiria injustiçada: também para ela o valor dos académicos se media pelo que faziam enquanto pessoas inteiras, e não apenas pelo número de artigos que publicavam em revistas científicas com referees1.
7Era generosa, Jill Dias. E por isso, apesar do seu desagrado pelos empecilhos institucionais e formais, nunca deixou de os confrontar. No Departamento de Antropologia da FCSH-UNL expôs-se voluntariosamente a cargos de coordenação e outros com investimento pessoal. Com o mesmo empenho e energia assumiu a coordenação de projectos e orientações infindáveis de teses (de muitos dos que participam neste livro, para além de outros mais), preparou invariavelmente cada uma das suas múltiplas aulas, ouviu dedicadamente filas intermináveis de estudantes, fossem de licenciatura, mestrado ou doutoramento, produziu inúmeros pareceres, apoiou infinitas candidaturas. Distribuía generosamente ideias, que eram suas, e confiança, porque sabia que essa é a primeira condição para o êxito de qualquer propósito de investigação numa academia cada vez mais competitiva e ansiosa.
8Inspirada pela sua extraordinária capacidade de actualização científica, entusiasmou-se com projectos de reestruturação académica e disciplinar, sabendo que alguns seriam utopias.
9A sua obra, reconhecida nacional e internacionalmente, inspirou de modo decisivo a investigação contemporânea na Antropologia Colonial e Pós-Colonial e na História da África Lusófona. O seu incentivo e apoio absoluto a todos os que ambicionavam pesquisar nessas áreas, multiplicou-a. A dimensão do seu impacto só se revelou nos seus mais amplos e verdadeiros limites quando, com ela, morreu a sua discrição e até nós chegaram tantas manifestações de dor vindas de muitos diferentes lugares do mundo e do saber.
10A sua energia límpida corria assim alheia a irrisórias hierarquias, fronteiras nacionais e disciplinares e pardos bloqueios institucionais. Isso tirava-lhe muito tempo, mas também lhe diminuía a idade. Por isso morreu ainda muito mais nova do que era.
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11O profícuo legado documental, bibliográfico e fotográfico de Jill Dias foi doado pela família à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas de Lisboa, que delegou no CRIA a sua gestão. O CRIA empenhou-se na sua inventariação, catalogação e divulgação com o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia que subsidiou o projecto que submeteu – Jill Rosemary Dias: acervo documental, bibliográfico e fotográfico – com vista à concretização desses objectivos. Desse projecto resultou o catálogo Cadernos de Jill Dias. Inventário de um Arquivo / The Jill Dias Notebook. Archive Inventory (CRIA, 2010). No âmbito do mesmo projecto, e com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, realizou-se, também, em 17 e 18 de Fevereiro de 2010, o Colóquio as Lições de Jill Dias. Antropologia, História, África, Academia. Este livro reúne a maior parte das comunicações então apresentadas, às quais se juntam as de outros que quiseram homenagear Jill Dias, mas dificilmente espelhará a emoção que acompanhou o encontro, de forma discreta mas eloquente2.
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12O livro abre com um belíssimo poema de Landeg White e duas keynotes que, relembrando Jill Dias, a sua personalidade e o seu trabalho, lançam o mote para os textos que se seguem. Jeanne Penvenne, lembrando Jill como todos nós, com sua “radiant English complexion, confidence tempered by modesty, blue eyes sparkling with fun, mischief, intelligence and compassion […] actually seeming to know what she was doing and how to approach the staffso they did not treat her like a cockroach”, sublinha as suas excepcionais capacidades como sensível pesquisadora de arquivos e identificadora de um vasto leque de personalidades, jornais e associações políticas presentes nas três primeiras décadas do século XX em Lisboa e em outras capitais coloniais, relevando a importante contribuição científica de Jill Dias nomeadamente para o projecto Marcus Garvey. Grata pelo seu trabalho inspirado e inspirador, Penvenne termina sublinhando o pioneirismo e perenidade do trabalho de Jill particularmente no reconhecimento da importância da imprensa e da fotografia como fontes para a História e Antropologia coloniais. Malyn Newitt relembra, de igual modo, a dedicação de Jill a projectos editoriais e de pesquisa original, o seu papel na fundação do Centro de Estudos Africanos e Asiáticos e na Revista Internacional de Estudos Africanos e discorre sobre o potencial que Jill foi adquirindo ao longo da sua vida para a realização de um dos seus projectos mais queridos, que infelizmente nunca chegou a realizar: a escrita de uma História de Angola.
13As secções seguintes organizam-se em torno de tópicos queridos a Jill Dias, e sobre os quais deixou marca evidente. A primeira inclui dois textos sob a temática “História com Antropologia” que pretendem homenagear a sua dupla qualidade como historiadora e antropóloga, mas sobretudo a articulação que conseguia entre as duas disciplinas, dissolvendo-as a bem do conhecimento. Esta secção inicia-se com o texto de José da Silva Horta e Francisco Freire (um historiador e um antropólogo) que se debruçam sobre os contactos remotos entre portugueses e habitantes do oeste saariano, ensaiando a articulação entre textos coevos europeus que descreveram o litoral e tradições orais contemporâneas (recolhidas entre a actual população biDān). A contribuição de Adel Sidarus, cruza também História e Antropologia, remetendo para outro tema importante para Jill Dias: o das configurações políticas e económicas implicadas no tráfego de escravos. Evocando esse interesse com um tipo de aproximação que agradaria também, certamente, a Jill, Adel Sidarus parte de um pequeno objecto, uma moeda comemorativa da Abolição da Escravatura em 1807 com inscrições em árabe, para perspectivar algo muito mais amplo como as claras conexões entre o Acto da Abolição, o desenvolvimento comercial e a dominação colonial em África.
14Invertendo os termos, na secção seguinte – “Antropologia com História” – a tónica reverte para a Antropologia, com três textos que, de formas diferenciadas, colocam a etnografia em quadro histórico. Alice Viola discorre sobre Larantuka, no extremo oriental da ilha indonésia das Flores que, durante os séculos dezasseis e dezassete, foi um centro de acção comercial e missionária portuguesa. Do convívio prolongado dessas missões com os naturais resultaram efeitos de influência recíproca nos sistemas de representação simbólica em presença (cristianismo e culto dos espíritos dos antepassados) que ainda hoje enformam e caracterizam algumas das tradições religiosas. O texto propõe-se ilustrar esse fenómeno procurando identificar numa prática ritual herdada dos portugueses (a procissão de Sexta-feira Santa na Páscoa) especificidades que traduzam conceitos e ideias indígenas. Por caminhos ainda asiáticos, Brian O’Neill leva-nos, depois, através dos textos de Jack Goody e de John Hobson, para uma re-avaliação do conceito de “Euroasia”. Usando exemplos do seu trabalho de campo em Malaca com a população crioula supostamente descendente de portugueses, O’Neill reflecte sobre aquilo que designa como lusomania. A ilusão e enfatização da existência portuguesa por detrás deste processo só pode ser desconstruída e clarificada através de um trabalho minucioso de colaboração entre Antropologia e História, como Jill proporia. Na mesma linha, e com o mesmo tipo de preocupação estratigráfica em relação aos processos constitutivos de identidades, Frederico Rosa dialoga com Jill Dias relativamente às relações de poder nos sobados do hinterland angolano de Oitocentos que eram, nas suas palavras, um “mosaico de grande complexidade”. Segundo Jill, a abolição da escravatura no século XIX e o ulterior endurecimento da presença colonial portuguesa tiveram um efeito desintegrador dessa Angola “crioula”, mas ainda assim era possível a reconstrução minuciosa de tais microcosmos. Frederico Rosa acompanha e homenageia esse trabalho “de filigrana” pacientemente elaborado por Jill. Num momento da História da Antropologia em que se continua a pôr a ênfase no binómio conhecimento/poder, tomando como objeto preferencial as formas do próprio arquivo, a releitura de Jill Dias aponta direções alternativas de crítica documental. Pode dizer-se que a sua obra encerra um potencial de devolução da História da Antropologia à Antropologia Histórica praticada no século XXI, na medida em que ultrapassa o enfoque foucaultiano e promove um conhecimento empírico das realidades culturais e históricas através do arquivo, mas não em função do mesmo.
15Na secção que se segue, debate-se, de forma crítica como o faria Jill, o par “Colonialismo e Pós-colonialismo”. Philip Havik discute o conceito de brokerage, e como este foi desenvolvido e aplicado por antropólogos e historiadores como Wolf, e a própria Jill, entre outros. Aqui se testemunha como o trabalho de Jill Dias sobre Angola ilustra bem o uso criativo destes conceitos para o estudo das mudanças que afectaram diferentes comunidades no decurso do período colonial, mostrando como podiam ser suas, as palavras de Eric Wolf: “If there are connections everywhere, why do we persist in turning dynamic, interconnected phenomena into static, disconnected things?”. Ainda dentro da secção “Colonialismo e Pós-Colonialismo”, e brincando com o gosto coleccionista de Jill, Maria Cardeira da Silva e Amélia Frazão Moreira partem com um olhar inspirado na sua colecção de fotografias, para outras actividades colecionistas e predatórias, como a caça colonial e o safari fotográfico em Moçambique. Descobrem que, tal como Jill enunciava, a história não pode ser vista como uma sucessão de épocas e atitudes antagónicas, e que assumir dualismos como os que opõe colonialismo ao pós-colonialismo, ou actividades predatórias a posturas conservadoristas e contemplativas, é inútil, porque presume uma coerência que as relações amplas e complexas raramente produzem.
16A secção “Ver e Representar África”, foi assim intitulada em homenagem ao gosto de Jill pela representação e imagem e à inspiração que generosamente distribuiu para uma antropologia crítica sobre os contextos africanos. A partir da figura de Frei Felix del Villar e da sua estadia no Kongo, Carlos de Almeida elabora um estudo que procura sistematizar algumas ideias em torno do lugar da representação visual na produção textual missionária sobre o chamado reino do Kongo e a região Mbundu adjacente, e do papel que ela desempenha na estratégia narrativa sobre o relato da experiência dos missionários. Em registo diferente, e contemporâneo, Rosa Melo fala-nos, depois, dos “Usos e saberes lá do sul…”, a propósito da gestão pós-colheita dos cereais entre os Handa, no Sul de Angola, abordando as técnicas e saberes tradicionais relativos à produção, à conservação e ao armazenamento de mantimentos, e reflectindo sobre o confronto entre as práticas modernas e as tradicionais de cultivo, nas condições actuais de mudança social, política e económica. Sempre em contextos explorados também por Jill Dias, e em mais um exercício de reconstituição histórica, Gehard Seibert apresenta em seguida uma discussão em torno do papel dos Angolares como fundadores de um quilombo no interior de São Tomé. Fá-lo em contraponto com a versão lusotropicalista de José Tenreiro, geógrafo comprometido com o regime de Salazar, que nega a revolta e fuga dos escravos na sua monografia A Ilha de São Tomé. Perseguindo a postura comparativa que Jill igualmente sempre incentivou, Clara Saraiva acompanha, depois, a extrema diversidade e complexidade das conceptualizações da morte e das práticas funerárias entre diferentes grupos africanos, mostrando como a multiplicidade de soluções funerárias encontradas está intimamente ligada às formas de vida e concepções sobre o mundo do além de cada um deles. Partindo da ideia de que a conceptualização da morte como viagem tem como corolário uma série de práticas que propiciam o seu correcto desenrolar e que, simultaneamente, reiteram a ambiguidade posicional do defunto que ainda está muito próximo do mundo terrestre e das mundividências que o rodearam, Clara Saraiva aborda o simbolismo das sepulturas de algumas regiões de Angola, nomeadamente as estelas Solongo da região do maciço de Noqui, as sepulturas em cimento do Kongo, o cemitério dos Punas, da zona de Cabinda, e as estelas Mbali, dos Ovimbali de antigo distrito de Moçamedes.
17Na secção final, iluminam-se algumas das pistas traçadas por Jill Dias, à luz daquilo que é a “Antropologia Hoje”. João Leal recupera de um artigo de Jill sobre os ambakistas (“Novas Identidades Africanas em Angola no Contexto do Comércio Atlântico”, Dias 2002), os temas da etnicidade, da etnogénese e da etnicização para resgatar a dimensão histórica da etnicidade em contextos migratórios contemporâneos. Depois de os retomar para analisar os modos de produção da etnicidade açoriana nas Festa de Espírito Santo no Canadá e nos Estados Unidos, volta a transladá-los, surpreendentemente, num breve desvio, para Angola, onde encontra vestígios de processos idênticos da mesma Festa em São Jorge do Katófe, onde se terá estabelecido um pequeno núcleo de colonos açorianos. Já o texto de Cristiana Bastos encontra no artigo “Famine and Disease in the History of Angola (c. 1830-1930)”, – escrito por Jill Dias em 1981, numa altura em que vigorava ainda em Portugal uma antropologia paratribalista que girava em torno de entidades étnicas essencializadas – uma série de “tesouros escondidos”, sob a forma de antecipações brilhantes de algumas das preocupações da “Antropologia Hoje”: a complexidade de relações que leva à formação e transformações de identidades colectivas; os caminhos da história, as relações de poder, deslocações, confrontos, alianças e outros modos de articulação social que não são alcançáveis no presente etnográfico, mas a espessura do tempo histórico elucida; a reflexão (não determinista) sobre o meio físico e as configurações do social sem expurgar da análise as dimensões materiais da realidade; o cruzamento de pessoas, animais, recursos, fisicalidades, materialidades ou, como se diz hoje, entre humanos e não-humanos... E tudo assenta sobre muita pesquisa, muitos dados, muitas fontes. E, como pergunta ainda Cristiana Bastos “quantos persistem nos trabalhos invisíveis e morosos de contar, medir, calcular, antes e enunciar?”
18O texto, e o livro, terminam com um agradecimento que todos subescrevemos: Thanks, Jill. You gave us a lot.
Notes de bas de page
1 Em homenagem a esse desapego, negligenciámos aqui o perfil académico e científico dos participantes, mantendo apenas as referências das filiações institucionais dos autores, pessoas, amigos e admiradores de Jill Dias e do seu trabalho, que quiseram escrever este livro.
2 Estiveram também presentes, embora aqui não publiquem as suas participações, João Pina Cabral, Miguel Vale de Almeida, Ana Martinho, Beatrix Heintze, José Julião, Pedro Osório, Sarah Paton, para além de uma numerosa assistência que testemunhou a sua admiração por Jill Dias e seu trabalho.
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