Introdução
p. 13-39
Texte intégral
1A despeito da erudição implícita da sua ‘Prefação’, os Contos Populares Portugueses de Adolfo Coelho apresentam-se talvez, a um olhar desprevenido, com débil aparência. Como ele próprio assinala, «em regra, pode considerar-se a tradição dos contos entre nós como assaz obliterada; falta-lhes vida, poesia, muitas feições significativas em versões doutros países tornaram-se aqui ininteligíveis e só pela comparação se explicam. A sua forma em geral é seca, monótona, enumerativa...» . Donde vem, pois, para lá de um tal juízo, a importância fundamental desta obra, diria mesmo o seu fascínio imperecível? Para respondermos à pergunta assim formulada, teremos de situar estes Contos não só na relação que apresenta com a obra global do seu Autor, como expressão da ciência da sua época e dos objectivos essenciais do seu labor de pioneiro, mas mesmo numa perspectiva geral da cultura literária portuguesa. E é isso que tentamos fazer nas linhas que seguem.
2Em Portugal, o gosto e o interesse esclarecido pela tradição popular, entendida como a literatura oral, as crenças e os costumes, manifestam-se de modo expresso no dealbar do Romantismo, coincidente com o advento do Liberalismo, como uma afirmação de puros valores literãrios, nomeadamente em Garrett e em Herculano, cuja actividade se desenrola ao longo da primeira metade do século XIX, reflectindo o que se passava então na Europa em geral e mormente na Inglaterra e na Alemanha, representando uma das linhas de força em que se apoia e que contribuem para a definição daquele movimento, pela sua equiparação com as raízes genuínas da identidade nacional, a exaltação medievalista e a recusa da herança classicista.
3Garrett, numa carta escrita do exílio, em Inglaterra, a Duarte Lessa, em 1824, fala, pela primeira vez entre nós, dessa corrente que ali, a partir das recolhas de velhas baladas e de «popular antiquities» , dominava o gosto da geração de vanguarda, e que vinha ao encontro da feição do seu próprio espírito. E logo após o seu regresso à Pátria, dedicase à colecta de romances e cantigas que corriam na voz do povo, e que publica entre 1842 e 1851 no Romanceiro, acompanhando os textos de comentários, e com uma Introdução que situa a questão, à guisa de manifesto–portanto a mais antiga obra de crítica etnográfica escrita em língua portuguesa.
4Herculano, igualmente do seu exílio em Inglaterra, toma de modo semelhante contacto–e adere, num plano diferente–àquele movimento, que se interessava também pelas origens das nossas instituições; e além de inaugurar aqui o romance histórico, à maneira de Walter Scott (que ali lêra), versando temas que encontra nas fontes da sua historiografia, e que aí explicitará a outro nível, semeia os seus escritos de informes que interessam à Etnografia, nomeadamente sobretudo, os artigos publicados no Panorama sob o título de Crenças Populares Portuguesas.
5Como diz o primeiro destes nossos precursores do Romantismo, «A falsa e ridícula imitação da antiguidade clássica, amaneirada pelas regras francesas, dominava tudo... A Alemanha foi a primeira a sacudir o jugo; quase ao mesmo tempo a Inglaterra, por fim a Itália; e até na própria França se levantou um partido contra esse despotismo que a não avassalava a ela menos do que às nações estrangeiras... No que se refere ao caso português e espanhol, quase se podia dizer destruída toda a nacionalidade, apagados os últimos vestígios originais da poesia, quando, no fim do primeiro quartel deste século XIX, esta influência da renascença alemã se começou a fazer sentir» .
6Sem dúvida, de há muito as manifestações da cultura tradicional das classes rurais e iletradas dos diferentes povos europeus haviam despertado o interesse de alguns curiosos ou eruditos dos respectivos países, que as recolheram fosse como mero passatempo, fosse para utilização literária com fins sobretudo moralizadores, fosse como objecto de estudo. Como escreve Adolfo Coelho, «muitos dos grandes espíritos dos séculos XVI, XVII e XVIII... reconheceram... o valor das tradições populares. Lutero dizia que não se privaria por nenhum ouro do mundo das histórias maravilhosas que ouvira na sua infância; e Leibnitz fala da ajuda e inimitável força de invenção que se acha nos jogos tradicionais» .
7No nosso País, além dos contos edificantes do Orto do Esposo, códice alcobacense medieval (que Teófilo Braga transcreve em parte nos seus Contos), aparecem em 1575 os Contos ou Histórias de Proveito e Exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso, e, no decurso dos séculos XVII e XVIII, várias colectâneas de adágios e provérbios–de Frei Aleixo de Santo António, de1640; de António Delicado, de1651; de Sóror Maria do Céu; a Feira de Anexins, de D. Francisco Manuel de Mello; de Gaspar Lobo; de Fradique Espínola, de1707; de Rolland, de1780–, de adivinhas –o Passatempo, de Francisco Lopes, de1603 –, de jogos–a lista do Indículo Universal, do Padre Francisco Pomey, de 1697 –, sem falar de numerosos exemplos de rimas infantis, costumes e festas, e alusões dispersas do mundo rural em geral, na Côrte na Aldeia, de Francisco Rodrigues Lobo, de1619, no Elucidário, de Viterbo, no Vocabulário, de Bluteau, etc.
8Semelhantemente em França, já na Idade Média se encontram colectâneas de provérbios, rimas, lendas e superstições; e Rabelais, Montaigne, Molière e outros, utilizavam não raro, do mesmo modo e com idêntico espírito, os dizeres, poesias, jogos, do povo nos seus escritos. O século XVII «descobre» em especial os contos de fadas, que conhecem uma grande voga; aparecem vários livros desse género, entre os quais os Contes de ma Mère l’Oye, de Dufresny, e sobretudo as Histoires et Contes du Temps Passé, de Charles Perrault, dados a lume em 1694–histórias, segundo o seu autor, que todas as velhas criadas contavam às crianças, ao serão –, cujo verdadeiro valor passa de resto despercebido no seu tempo, e que Perrault julga dever justificar, extraindo delas conclusões morais, a exemplo dos clássicos.
9Na realidade, porém, todas estas obras constituíam manifestações esporádicas de um gosto pessoal isolado, uma moda, ou quando muito especulações de uma filosofia humanística geral, que testemunham do que era o mundo espiritual e a criação do povo–ou a imagem que deles tinham as classes letradas–mas que não correspondiam a uma orientação global e consciente dos seus próprios valores.
10Em Inglaterra, estes interesses tomam uma feição diversa. Certos estudiosos ocupam-se da tradição oral do povo, que consideram já matéria de especulação científica, como elemento de interpretação filológica e histórica, em que se afirmam as origens mais remotas e os valores próprios da cultura nacional, prenunciando o movimento que acabará por enformar o pensamento literário na Europa. John Aubrey, em 1626, publica a recolha que levara a cabo de superstições e costumes populares tradicionais, que relaciona com a mentalidade dos antigos; na mesma linha, de Henry Bourne aparecem, em 1725, as Antiquitates Vulgaris, em que o Autor proclama o valor histórico das tradições do vulgo, em contraposição às «antiguidades» do humanismo clássico; de Thomas Percy, em 1765, as Reliques of Ancient English Poetry; de Macphersen, em 1760, os Fragments of Ancient Poetry; e enfim, de Walter Scott (que personifica a nova tendência) a Minstrelsy of the Scotish Border, que é a mais consequente de todas estas obras, consagrando o medievalismo do Romantismo incipiente.
11No final do século XVIII e princípios do seguinte, estas preocupações, sobretudo na Alemanha e na Inglaterra, para lá de representarem o estilo e a filosofia da cultura da época em geral e particularmente da literatura, assumem uma feição especulativa e crítica. Na Alemanha, Herder, em 1778, dá a lume uma colectânea de cantares de vários povos, acompanhados dum importante estudo sobre o assunto; na Inglaterra, John Brand, em 1811, publica as Observations on Popular Antiquities (que Adolfo Coelho citará com frequência), que utiliza fontes muito variadas (incluso os escritos de Aubrey e Bourne, cujas Antiquitates Vulgaris lhe sugerem o título da sua própria obra), e onde a descrição das velhas costumeiras inglesas é acompanhada de comentários em que o Autor estabelece a sua comparação com práticas do paganismo. E enfim, coroando todo este período de gestação e instaurando uma nova era nos estudos das tradições antigas europeias, dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm aparecem, na Alemanha, entre 1812 e 1814, os Kinder- und Hausmärchen e, pouco depois, a Deutsche Mythologie, que, além das transcrições dos contos e relatos dos diferentes usos, crenças e cerimónias do mundo campesino, vêm, no estudo que incluem, mostrar com estrito rigor científico que essas formas, até então consideradas apenas como jogos pueris de imaginação e grosseiras práticas de gentes incultas, eram afinal resíduos de um remotíssimo e venerável património–o que restava das complexas cosmo e teogonias e rituais dos povos arianos, celtas e germânicos, obliterados pela cultura latina e pela assimilação cristã. Segundo os irmãos Grimm, nos contos populares «são comuns os restos de uma crença que remonta a remotas eras e se exprime na representação formal de coisas supra-sensíveis. Esse elemento mítico é como os pequenos fragmentos de uma pedra preciosa esmigalhada que estão espalhados num solo coberto de fortes ervas com as suas flores, e que a vista perspicaz descobre. A sua significação, por mais obscurecida que esteja, é ainda sentida, e dá ao conto o seu conteúdo, satisfazendo ao mesmo tempo o amor natural pelo maravilhoso. Nunca ele é um puro jogo de cores e uma vã palavra» .
12Entretanto, em finais do século XVIII, a partir da «descoberta» do sânscrito pelo Ocidente, que se situa nesse período, e do desenvolvimento dos estudos filológicos e gramaticais das várias famílias linguísticas europeias, germânicas, românicas, eslavas, e outras, definira-se disciplinarmente a Gramática Comparada, fundada no postulado de uma origem comum de todas essas línguas–o sânscrito, segundo Schlegel, ou o indo-europeu, segundo Bopp (considerado o criador dessa disciplina). E ao longo do século XIX, com base nesse comparativismo gramatical, toma vulto a Mitologia Comparada, «enquanto extrapolação para a zona da mitologia do corpo de princípios e procedimentos que integravam a Gramática Comparada»–extrapolação «tanto mais tentadora quanto a maioria dos textos disponíveis, nomeadamente no tocante às línguas indo-europeias históricas, eram textos com forte carga mitológica ou religiosa» .
13Na sequência destes estudos, Max Müller, com a revelação dos hinos védicos, enuncia a sua teoria sobre a origem da religião–o naturalismo religioso, segundo o qual os deuses primitivos eram personalizações dos fenómenos naturais, e sobretudo do sol: os mitos solares. As palavras são símbolos, que se identificam com o objecto que é o seu conteúdo. Os deuses eram palavras, e assim como estas evoluem e se degradam, assim também esse conteúdo se transfigura no mito. Por isso Müller considerava o mito como uma «doença da linguagem» .
14De acordo com essa maneira de encarar as «tradições populares» , que recobre já a visão dos irmãos Grimm, estas representam um estádio avançado da transformação desse pensamento originário, e constituem vestígios mais ou menos fragmentários, claros ou deformados, de mitos e conceitos religiosos muito arcaicos, que perduraram na imobilidade do mundo mental do povo, arredado da acção renovadora do progresso racional; e o seu estudo científico, que consiste em procurar identificar em cada uma os fenómenos naturais que se situam na sua origem–o sol, a lua, a aurora, de acordo com Müller, ou certos acontecimentos meteorológicos, como entende preferentemente Adalbert Kühn –, traçando correspondência de raíz sobretudo linguística com os textos védicos, compete à Mitologia Comparada.
15A nova maneira de olhar tais tradições, dentro dos parâmetros mitográficos e comparativistas, aplicada de entrada sobretudo ao estudo do conto e seguidamente também a outras áreas, em breve se divulga, primeiro pela Escandinávia e a Rússia, a seguir, a Itália e França, depois pela Espanha e finalmente Portugal, aparecendo em todos eles inúmeros trabalhos teóricos e colectâneas, em livros e revistas, sobre o conto, as lendas, poesia e romances, costumes, festas e jogos, etc. E na Alemanha, em 1875, Manhardt, com os seus dois trabalhos Der Baum Kultus e Wald- und Feld Külte, ao mesmo tempo que acentua mais uma vez a conexão entre o mito e os contos, costumes e superstições populares, expõe a sua tese dos Espíritos e Demónios da Vegetação na explicação das cerimónias agrárias.
16Em 1846, numa carta publicada no jornal Athenaeum, de Londres, subscrita por Ambrose Merton (pseudónimo do arqueólogo inglês William John Thoms), aparece pela primeira a palavra Folk-Lore–a «sabedoria do povo» –, para significar os materiais até então designados pela expressão antiquitates vulgaris, ou popular antiquities, na terminologia de Bourne e Brand. Nos países de língua alemã, desde 1806 que se usava o termo Volkskunde para designar esses mesmos materiais, e bem assim a disciplina científica que os estuda; mas aí além da literatura oral e cultura espiritual, que coincidem com o conceito de Folk-Lore, sempre se entendeu que Volkskunde abrangia também certas formas da cultura material, casas, alfaias e indústrias e técnicas tradicionais do mundo rural.
17A palavra Folk-Lore teve fulgurante aceitação; em breve passa também a designar a disciplina que estuda aqueles materiais que constituem o seu objectivo: todas as formas da cultura espiritual dos povos europeus; e nessa acepção dominará durante largos decénios –, de facto praticamente até ao advento da crítica evolucionista –, e com o maior fervor, a investigação da tradição oral na Europa.
18Segundo Jorge Dias, Portugal foi o primeiro país latino que a adoptou, e Adolfo Coelho quem primeiro a usou entre nós, num seu artigo sobre Os Elementos Tradicionais da Literatura, publicado no Revista Ocidental, em 1875; este Autor, porém, ao mesmo tempo que, num estudo sobre A Caprificação, que adiante analisaremos, dá ao vocábulo um sentido inusitadamente amplo, de acordo com a sua tradução literal do inglês: «o saber popular em todas as suas ramificações» ou «todas as formas de vida do povo» , que o aproxima do significado do Volkskunde alemão (que Adolfo Coelho certamente conhecia) e do que hoje damos à palavra Etnografia (estabelecendo uma classificação das «formas de vida do povo» que tem em vista «não só a vida do povo entre as nações cultas» mais ainda nos grupos chamados incultos ou selvagens» ), ainda em 1912, no seu Estudo das Tradições Populares nos Países Românicos, publicado na Revista Lusitana, falando da sociedade E1 Folk-Lore Andaluz, de Sevilha, sente a necessidade de esclarecer que «Folklore é a expressão com que os ingleses significam as tradições populares no seu conjunto, o saber popular» , acrescentando, claramente em vista à incompreensão que aqui havia então relativamente à importância desses estudos: «é uma expressão que designa pois, com perfeita clareza, o seu objecto, e não com desprezo, como tantas outras que às vezes se aplicam a essas tradições»; mas, a relatar, comenta: «A falta de uma boa designação correspondente noutras línguas, vai fazendo adoptar essa; em francês vemos até já a expressão, em verdade bárbara, de ‘folkloriste’» .
19A fundação da «Folk-Lore Society» , em Londres, com a revista Folk-Lore (em que os nossos mitógrafos publicarão por vezes os seus trabalhos, nomeadamente Consiglieri Pedroso a primeira versão, em inglês, dos seus contos), vem apoiar e dar coesão aos estudos destes temas na Europa e na América. E no Anuário da Sociedade, de1890, diz-se, fixando uma orientação rica de consequências, que Folk-Lore é a ciência da comparação e identificação, nas idades modernas, de crenças, costumes e tradições arcaicas, implicando assim a limitação do seu campo à cultura antiga do mundo rural das nações chamadas «históricas» ou «civilizadas» , de raízes indo-europeias, únicas em que as construções da mitologia compar ativista tinham cabimento (com exclusão pois dos «primitivos» , cujo estudo cabia, em geral, como vamos ver, a uma Etonografia evolucionista, à qual os mitógrafos eram alheios).
20De facto, o campo específico de aplicação da mitografia compar ativista é o estudo das tradições populares dos povos indo-europeus. O conhecimento progressivo das sociedades ditas «primitivas» e a reflexão sobre as diferenças entre estase as sociedades ocidentais–o homem «branco, cristão, civilizado» –, vai requerer uma outra aparelhagem conceptual; e com efeito, a partir dos meados do século XIX a Antropologia elabora-se decisivamente dentro dos parâmetros das teses evolucionistas de Darwin na Biologia e de Spencer na Sociologia. O seu pressuposto básico é a hipótese da unidade da espécie humana; e os seus postulados são as ideias do progresso natural e do desenvolvimento unilinear: todos os grupos humanos seguem caminhos paralelos, da selvajaria à barbárie e à civilização (Morgan) (ou selvajaria, submissão, liberdade, na terminologia de Klemm)–eco da«lei dos três estados» contiana: teológico, metafísico, científico. Esta Antropologia evolucionista é apresentada da maneira mais acabada na obra de Lewis Morgan sobre a Sociedade Primitiva (1877), centrada na problemática da família e do parentesco na perspectiva evolutiva, que vai da promiscuidade à monogamia; e essa mesma temática, que caracteriza os primeiros tempos desta escola, será retomada por Summer Maine com a Ancient Law, Baschofen com o Der Mutterrecht (o Matriarcado), Mac Lennan, com o Primitive Marriage; e enfim Westermarck que, a par com o estudo da família, propõe, a propósito das festividades cíclicas e crenças marroquinas, as teorias purificatórias em lugar das hipóteses solares manhardtianas na explicação das festas do fogo actuais.
21Em 1865 Edward Tylor publica a sua obra fundamental, sobre a Civilização Primitiva (Primitive Culture); o Autor parte também do postulado da unidade da natureza humana, mas interessa-se sobretudo pelo problema das origens das leis do pensamento humano, e com ele a Antropologia evolucionista alarga o seu campo especulativo a outros aspectos, nomeadamente a religião, substituindo a noção de naturalismo pela de animismo, como forma originária. Tylor usa porém de grande prudência na aplicação dos processos comparativos, recusando o paralelismo ou a convergência como únicas causas das semelhanças culturais, e admitindo contactos históricos (o que leva Mercier a considerá-lo também já como um difusionista). Andrew Lang, por seu turno, nos Customs and Myths assim enuncia os princípios fundamentais deste evolucionismo: «condições de espírito similares produzem práticas similares, independentemente de identidade de raça ou de empréstimo de ideias e maneiras»; e «o nosso método é comparar costumes e maneiras, aparentemente sem sentido, das raças civilizadas, com similares costumes e maneiras que existem entre os não civilizados e que ainda conservam o seu significado» . Enfim Frazer, no seu monumental The Golden Bough–o Ramo de Ouro, o ramo de visgo que crescia no tronco do carvalho guardado pelo sacerdote de Diana, Rei do bosque sagrado de Nemi, que nele depositara a sua alma e que o seu sucessor devia arrancar antes do sacrifício ritual daquela personagem, que assegurava o renovo perene da vida (e que é ainda hoje, para lá de quaisquer deficiências teóricas que se lhe possam porventura assacar, o mais fascinante romance do fabuloso tesouro lendário da Humanidade)–expõe a sua teoria da morte do Deus anual e do totemismo, que aplica ã interpretação das festividades cíclicas dos países europeus, numa óptica estritamente culturológica e comp ar ativista. Frazer era professor de História das Religiões, e dará a alguns tomos da sua obra o subtítulo de Estudo Comparativo de História das Religiões; e outro Autor inglês proclama, na mesma ordem de ideias: «Poucas são as crenças e observâncias entre os camponeses da Europa de que se não possam indicar fontes religiosas, ou cujas formas originárias não acusem funda marca religiosa» .
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23Em 1847 nasce, em Coimbra, Francisco Adolfo Coelho; e toda a sua formação espiritual e escolar é modelada no contexto geral que esboçamos.
24Como dissemos, a elaboração crítica e sistemática propriamente dita da ciência etnográfica portuguesa inaugura-se apenas passado o meado do século XIX (na sequência longínqua dos interesses literários despertados pela primeira geração romântica, que Oliveira Martins contribui para esclarecer), como corolário de uma nova proposição da ideologia nacionalista liberal, fundada na tomada de consciência–que era ao mesmo tempo um profundo e esclarecido amor–dos autênticos valores do nosso génio próprio e da nossa história, e sob o influxo das várias correntes e orientações dominantes no resto da Europa; e fica-se devendo às figuras primordiais, de grande estatura, de Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e enfim Leite de Vasconcelos, em Lisboa, e, um pouco mais tarde, Rocha Peixoto, no Porto–os três primeiros de formação filológico-histórica, os dois últimos mais ecléticos; e Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e Leite de Vasconcelos (de início) voltados exclusiva ou preferentemente para os problemas das tradições populares, na linha do folclorismo europeu, enquanto Adolfo Coelho e mormente Rocha Peixoto se interessam também por aspectos e elementos materiais, tecnológicos e sociológicos da cultura.
25Adolfo Coelho representa o tipo perfeito do erudito oitocentista, firmemente crente nas aquisições da ciência do seu tempo, e designadamente das ciências sociais, caldeadas pelo mais rigoroso criticismo filosófico e histórico. As suas actividades de investigação exerceram-se nos domínios da Glotologia, da Etnologia, da Pedagogia, e da História da Literatura; e em cada um deles «traçou sulcos luminosos» , como dirá Leite de Vasconcelos no seu elogio fúnebre, tendo os seus trabalhos, nas palavras de outro seu biógrafo, sido «apreciados como obra culminante na matéria a que se dedicava» , e «altamente galardoados por algumas universidades»; e em muitos casos foi um pioneiro e um inovador.
26Essas actividades documentadas iniciam-se em 1868, contando o Autor apenas 21 anos, com a publicação de um escrito intitulado A Língua Portuguesa, sobre Gramática Histórica, que instaura entre nós os estudos filológicos e glotológicos numa perspectiva comparativista, e que constitui ainda hoje uma obra de base para tais estudos.
27Nesse mesmo sector, numerosos outros títulos se lhe seguem, sobre a história da língua portuguesa, fundada na análise do latim em idêntica perspectiva, como idioma indo--germãnico; sobre a formação de dialectos crioulos; sobre a gíria (e a etnografia) dos Ciganos; sobre a influência étnica na transformação das línguas, pondo em relação os estudos etnológicos e glotológicos; etc., que o afirmam, nas palavras de Gaidoz, como «un des meilleurs linguistes de notre temps, rompu aux méthodes de la grammaire comparée, au courant de tous les progrès de la Science qu’il aide lui-même à faire progresser...» .
28Nos domínios da Etnografia portuguesa, de acordo com o que ele próprio diz, as suas mais antigas investigações são anteriores ao seu primeiro escrito publicado: «Desde 1864, em virtude de um plano então traçado (dos 17 para os 18 anos de idade) e que até hoje não teve modificações essenciais, temos ido reunindo tudo o que se nos deparou com relação aos costumes, festas e crenças populares do nosso pais, quer nos livros, quer na vida do povo, observados directamente.» Segundo Leite de Vasconcelos, o primeiro trabalho sobre estas matérias por ele dado à estampa, em 1874, é um artigo intitulado Romances sacros, orações e ensalmos populares do Minho, que figura na revista francesa Romania.
29A sua obra etnográfica é também importante e variada, compreendendo escritos sobre contos populares, jogos, festas, costumes, crenças, tradições, sobre a sistemática geral das ciências «étnicas» , sobre os Ciganos, sobre alfaias agrícolas, sobre as relações da Pedagogia com a Etnografia, etc.
30A estrutura teórica do seu pensamento, relativamente às ciências «étnicas» , subjacente a toda a sua investigação e presente na interpretação dos factos, insere-se com cabal coerência e convicção nesse cientismo fundamental dominante; no seu próprio dizer, ele foi decisivamente marcado pela leitura dos escritos de Max Müller sobre a ciência da linguagem, que lhe «revelou o mundo desconhecido da mitologia e da glotologia» .
31De facto, Adolfo Coelho, homem do seu tempo, é um mitógrafo convicto, diremos mesmo doutrinário, e a cada passo, ao longo dos seus trabalhos sobre as tradições orais, se encontram proclamações mitográficas expressas. Assim, por exemplo, a propósito das festividades cíclicas, escreve: «As festas populares em diferentes épocas do ano têm evidentemente origem nos velhos cultos naturalísticos. Elas referem-se principalmente ao giro das estações, às fases diversas do curso aparente do sol, cujos efeitos sobre a natureza impressionaram vivamente os creadores desses cultos. À luta quotidiana da luz e das trevas, do dia e da noite, correspondia a luta das estações, como a representação em ponto grande do mesmo drama, que era simbolizado nos cultos. Com o tempo, as cerimónias, primitivamente claras para todos, foram-se alterando, obscurecendo, confundindo com outras primitivamente distintas, foram sendo interpretadas de modo abusivo, até por fim se perder inteiramente ou quase inteiramente a consciência da sua significação original, e elas permanecerem apenas como provas da tenacidade da tradição.»
32O seu mitografismo é porém estritamente exigente, prudente e crítico; e embora tenha sempre em mente a dimensão histórica dos factos da tradição, contos e costumeiras–a que, baseado na extensa bibliografia que domina, atribue de um modo geral uma origem remota: «os contos em grande parte remontam não só à Idade Média mas mesmo à Antiguidade» –, constantemente nos deparamos com advertências dirigidas àqueles que, sem verdadeira preparação, se ocupavam destes assuntos, nomeadamente no que se refere às explicações que apelam indiscriminadamente para os «mitos solares»; já em 1881 o nosso Autor chama a atenção para a necessidade de se conhecer a língua alemã e a obra dos Grimm, Kühn, Wolf Manhardt e outros, para «... se poder abordar a interpretação mitológica com alguma segurança» , notando que se tem «usado e abusado dos mitos solares» , e que «no mito das mouras encantadas não... parece ter nada que ver com (tais) mitos» . E condena: «a mania de tudo explicar por mitos astronómicos, especialmente solares, leva a ridículos exageros» . Adiante ainda, cita Ottfried Mueller, «um dos fundadores da mitologia científica» , que «escreveu que logo que se reduz um mito à sua forma fundamental, ele se explica por si» . E enfim, a propósito das relações do conto popular com o mito, observa que «essa asserção tem um carácter muito geral, que se deve restringir desde já»; e precisando esta afirmação, põe mesmo em causa, em termos expressos, tal relação: «... não podemos admitir uma origem única para os contos, por exemplo, a origem mítica, considerando o conto e o mito como dois produtos radicalmente diversos, embora no conto entrem muitas vezes elementos míticos» .
33Adolfo Coelho, voltado unicamente para o estudo da tradição–e da língua–portuguesa no contexto geral da cultura europeia, não sofreria directamente o impacto primordial do evolucionismo; mas não podia ficar alheio à atmosfera que impregnava o cientismo do seu tempo, e muitas das suas ideias foram sem dúvida moldadas pelos seus princípios básicos.
34O percurso metodológico preconizado por Adolfo Coelho para o estudo do conto e das demais formas da tradição em geral, que se articula na sua construção mitográfica, deve ordenar-se segundo quatro estádios ou «graus»: grau descritivo–que é a simples coleccionação dos factos, e consiste na recolha de matérias- está ao alcance de toda a gente, requerendo apenas probidade e poder de observação; grau comparativo–que tem como base material as versões do elemento em estudo fornecidas pela bibliografia, e visa fixar dedutivamente o «núcleo essencial» ou a «forma primitiva» de tal elemento, apoiando-se nas ciências étnicas e linguísticas, e no conhecimento das línguas; grau histórico–que corresponde ao estudo da origem ou origens dessa «forma primitiva» que se procurou identificar ou reconstituir, e seguidamente da sua evolução e/ou transmissão no espaço e no tempo, por contados étnicos e históricos; e enfim o grau genético (que muitas vezes se confunde com o anterior) –, que é o estudo da formação da tradição, e que, nas palavras do Autor, «depende do progresso da psicologia aplicada» , verosimilmente, segundo nos parece, para se traçar o processo mental da criação desse facto etnográfico originário: o mito. Estes dois últimos graus, que correspondem ao nível ou estádio explicativo, serão possíveis apenas «dentro dos limites do método prudente e das hipóteses razoáveis, sem os quais estes estudos só servem para desacreditar a mitologia comparada» .
35Sob este esquema metódico, pois, esboça-se a estrutura de um programa total de investigação, assente no pressuposto básico da remota antiguidade das tradições populares em geral, e particularmente do conto, e da sua ocorrência em grande número de povos, por vezes muito afastados uns dos outros; e de facto, como veremos, Adolfo Coelho elaborou os seus trabalhos fundamentais em conformidade com a lógica deste esquema.
36No que se refere aos processos de recolha, embora nos diga que tem ido reunindo tudo o que se lhe depara relativamente aos costumes, festas e crenças populares do nosso país, quer nos livros, quer na vida do povo observada directamente» , Adolfo Coelho, preocupado unicamente com a «démarche» compar ativista que lhe era facultada pela literatura, é um puro investigador de gabinete, que ignorou o trabalho de campo, aliás no seu tempo pouco generalizado–recorde-se que se Morgan e os evolucionistas já o praticavam no estudo dos «primitivos» , Frazer ainda recusava toda a informação que não fosse livresca –; e a seu respeito, Leite de Vasconcelos nota que Adolfo Coelho «tem tido pouca ocasião de percorrer o País para coligir as tradições directamente na fonte; por isso, conquanto publicasse os Contos Populares Portugueses e alguns opúsculos meramente como colecções de materiais, tem-se consagrado em especial ou a explorar a antiga literatura portuguesa, ou a anotar as nossas tradições populares pela comparação com similares tradições estrangeiras...» .
37A Mitografia como ciência foi pois uma maneira de olhar interpretativamente o conteúdo espiritual das tradições populares. Na realidade, ela aplicou-se inicial e essencialmente ao estudo do conto popular, em que esse conteúdo é porventura mais expresso. Entre nós, Teófilo Braga e Consiglieri Pedroso equiparavam mesmo Mitografia e Novelística; Adolfo Coelho, aceitando sem dúvida a proposição básica da Mitografia, parece porém estabelecer uma distinção entre o mito propriamente dito, com a sua dimensão histórica, e um pensar mítico que existe por si. Citamos acima uma frase sua em que afirma serem o conto e o mito dois produtos radicalmente diversos (o itálico é seu)–embora no conto entrem muitas vezes elementos míticos –, e não se poder admitir para os contos apenas a origem mítica. Para o nosso Autor, o objecto da Mitografia–aliás de acordo com o seu método–consiste em «Discriminar o que é criação própria de cada povo, o que se pode explicar por identidade de produção, do que vem de fora; determinar por que canais se operou a transmissão quando a houve, o ponto de partida dela, os elementos primitivos da cousa transmitida, até que ponto reagiram o génio, as condições sociais de cada povo sobre o produto estranho; que leis dominam a produção, a transmissão, a apropriação e a alteração dos contos populares.» Curiosamente, noutra passagem, identifica «Mitologia portuguesa» e «costumes e crenças do povo português» em geral, dando à expressão um significado que corresponde ao do termo Folclore em sentido clássico restrito.
38Dentro desta ideia, o aparecimento de um facto da tradição em vários povos é explicado por Adolfo Coelho seja por «transmissão directa operada de povo a povo» , seja, pelo contrário, por criação independente em todos eles, fundada na «unidade estética elementar» ou num «igual grau de produtividade artística elementar»: «Seremos forçados a admitir necessariamente uma transmissão para todos os contos de que encontramos versões entre diversos povos? Não se poderiam ter reproduzido independentemente as mesmas narrações em diversas épocas, em diversos países? A existência de narrações idênticas pelo fundo ou pela forma na tradição de todas as raças humanas prova já de por si evidentemente uma unidade estética elementar tão completa, pelo menos, enquanto à receptividade, que nada, a priori, nos impede de julgarmos essas raças diversas dotadas de igual grau de produtividade artística elementar, sujeito nas suas manifestações a leis idênticas. Provando-se, como cremos que não é difícil de provar, que pelo que respeita a um grande número de contos populares a transmissão se operou de povo a povo, não se pode deixar de admitir que a condição sine qua non dessa transmissão é a existência, no povo que recebe, de tradições próprias do mesmo género; sem estas, o que se lhes conta seria para ele absolutamente ininteligível ou não lhe despertaria nenhum interesse...» .
39Por outro lado, o nosso Autor parece marcar uma certa distância relativamente ao positivismo do seu tempo–cujo postulado fundamental, no entanto, não deixa de condicionar decisivamente toda a estrutura do seu pensamento científico –, ou pelo menos ao radicalismo positivista de certos sectores nacionais, que consideravam o interesse pela tradição popular como uma exaltação metafísica. Num certo passo, refere-se-lhe de forma visivelmente crítica: «como se ele fosse a suprema verdade»; e, depois de invocar a opinião de Ch. Robin, «um outro positivista da escola de Littré» , que, para as crianças na fase de educação estética, aconselha «a leitura dos fabulistas, dos contistas, dos poetas» , pergunta com ironia: «Que dirão a isto os positivistas de cá?» .
40Nos domínios da Pedagogia–que, dos precursores, Adolfo Coelho foi o único a ocupar-se consequente e consistentemente –, devem-se-lhe igualmente inúmeros trabalhos sobre o ensino e a educação, questões gerais, projectos de reformas, estudos históricos, etc.; a tónica fundamental deste sector da sua obra é a importância que atribue às relações entre a Pedagogia ou Educação e a Etnografia, ou, mais concretamente, ao papel essencial que cabe aos elementos tradicionais na educação, nomeadamente o conto popular e o jogo–e também os provérbios, rimas e outras espécies congéneres –, que são expressões espontâneas da humanidade ou estádios primordiais, que correspondem à mentalidade infantil, e são por isso as formas mais convincentes para o desenvolvimento natural da imaginação e do movimento corpóreo a ter em conta na educação da criança. Nas suas palavras, «o jogo é a forma adequada da actividade da criança–actividade sem finalidade consciente. Quando à criança se faz sentir a finalidade dos seus actos, esses actos perdem a espontaneidade... Nos movimentos, nas obras da sua indústria, nas perguntas sobre os objectos que atraem a sua atenção, ela só busca satisfazer necessidades imperiosas do momento, fisiológicas e psicológicas... O jogo é portanto o instrumento de que a pedagogia tem que se servir nas primeiras fases da educação... A humanidade na sua educação espontânea inventou esse instrumento, ...a pedagogia sente-se impotente para criar um só elemento legítimo novo na educação; todo o seu papel consiste pois em aproveitar os elementos que a tradição dos povos oferece... e por isso... voltou aos jogos tradicionais...» . É neste projecto que se insere a sua Biblioteca de Educação Nacional, da qual, a final, veio a publicar só três volumes, sobre o conto, as rimas infantis e jogos, e a sua posição teórica no problema.
41Adolfo Coelho é em Portugal o primeiro estudioso que, na esteira de Topinard (que foi um dos mentores do pensamento antropológico neste período), se preocupou com a questão da sistemática e a conceptualização básica das ciências «étnicas» ou etnológicas (segundo um esquema que Leite de Vasconcelos e Jorge Dias retomarão e desenvolverão). E, distinguindo entre Antropologia, que estuda as raças, entidades histórico-naturais, e Étnica, que estuda os povos, entidades histórico-sociais, define esta como a ciência geral dos povos, e subdivide-a na Etnografia descritiva (a que, como vimos, o Autor equipara o Folk-Lore: o «saber popular em todas as suas ramificações» ou «todas as formas de vida do povo» considerando este aplicável ao estudo tanto das «nações cultas» com dos grupos «chamados incultos ou selvagens» . Esta posição, de notável originalidade, caracteriza aquilo a que Jorge Dias dará o nome de escola portuguesa de Etnologia), na Etnogenia, que estuda as origens e parentesco do povos, e na Etnologia, que é a particularização da Etnica. E, mais uma vez desbravador de sendas nunca antes dele trilhadas, explicita depois esse esquema com outras classificações e programas de estudos do povo português em todos os seus aspectos, onde se podem articular, no seu lugar certo, todos os trabalhos já feitos ou que venham a sê-lo, por ele próprio ou por outros–sobre o conto e as festas, as alfaias agrícolas, a família e a estrutura social, etc., e até sobre a língua. São vários os escritos em que o assunto é tratado, e a amplitude desse plano é integrada pela articulação do conteúdo fundamental de cada um de tais escritos, que ora se sobrepõem ora se completam. Como esquemas básicos, além da sistemática das ciências étnicas, de que já falámos, no artigo sobre Os conhecimentos étnicos dos Gregos e dos Romanos, tenta, no seu estudo sobre A Caprificação, a que também já aludimos, uma classificação globalizante dos factos «folclóricos» , de acordo com os esquemas psico-sociais da época–«com base na Psicologia e na Étnica» –, ajustando a classificação dos sentimentos de Spencer, Sergi e Wundt (éticos: individuais, indivíduo-sociais, e sociais; estéticos; religiosos; e lógicos) às formas da vida do povo, ou «vida étnica» , que enumera: vida prática, artística, religiosa e especulativa,–que constitui afinal o desenvolvimento da Etnografia da sua sistemática. E anuncia num trabalho especial–que como tantos outros que deveriam integrar-se em programas sistemáticos sobre o conto, os estudos etno-glotológicos, etc., nunca foram completados–tratará de incluir o estudo das tradições populares «tanto das nações cultas» como dos «grupos selvagens» , no quadro geral do saber humano. Nos seus demais escritos sobre o tema, faz uma explicitação de cada alínea, antecipando a visão do que deve ser o estudo etnológico–antropológico diríamos hoje preferentemente–de um grupo humano: o Esboço de um Programa de Estudos de Etnologia Peninsular (com que abre a sua Revista de Etnologia e de Glotologia, valendo como plano da revista e esquema geral onde enquadrar os seus estudos), e que abrange as questões étnicas (quais os povos que habitaram a Península desde a Prehistória, as suas relações com outros povos e com os actuais habitantes), a que responde o estudo dos caracteres físicos e o das línguas; o estudo das origens; o estudo dos costumes, superstições e festas populares, sob o prisma comparativo; o estudo das indústrias do carácter popular e antigo; o estudo da literatura popular, a que também a parte comparativa dá o verdadeiro valor; o estudo da arte popular; o estudo do carácter nacional: as características do espírito peninsular, sob o ponto de vista das tendências religiosas, políticas, afectivas, etc. O Esboço de um programa para o estudo antropológico, patológico e demográfico do povo português, que, na sua parte consagrada à demografia, aborda, entre muitos outros aspectos, questões como a da natalidade, atentando na existência de ilegítimos como componentes da sociedade portuguesa. E enfim o opúsculo sobre uma Exposição Etnográfica Portuguesa (donde se infere o que o Autor entende por Etnográfico, ou folclórico), e que ilustra concreta e exaustivamente as alíneas dos escritos atrás referidos: a literatura oral, costumes e crenças, os elementos materiais da cultura–que situa o primeiro estudo realizado em Portugal sobre esses aspectos; a Alfaia Agrícola Portuguesa –, as tecnologias–a caprificação –, a sociologia e a religiosidade do povo português, nas suas expressões materiais, etc.
42No que se refere especialmente ao conto popular, a colectânea de Adolfo Coelho, dada à estampa em 1879–65 anos portanto depois de os irmãos Grimm haverem revelado o sentido e a importância desse elemento cultural, e quando, na sua esteira, já todas as nações cultas da Europa tinham realizado vultosas recolhas e estudos sobre o tema–é a primeira do género que aparece em língua portuguesa; e graças a ela, finalmente, Portugal deixa de ser uma terra ignota nos domínios do conto popular, e passam a ser possíveis estudos comparativos a um nível mais amplo. Antes deste livro, contudo, algumas espécies dispersas–– e escassas–tinham já sido publicadas: A Cacheirinha, As Três Cidras do Amor, e O Aprendiz do Mago, por Teófilo Braga, em 1870, nos seus Estudos da Idade Média–portanto as com data mais antiga de que temos conhecimento –, e algumas mesmo do nosso Autor.
43À colectânea de Adolfo Coelho seguem-se, a pouca distância, as dos dois outros estudiosos seus contemporâneos–a de Teófilo Braga, em dois tomos, datada de1883 e 1914/1915; e a de Consiglieri Pedroso, datada apenas de1910, mas que foi precedida de outra, parcial, em inglês, editada pela Folk-Lore Society, de Londres, em 1882 (e de outra ainda em francês, publicada por Gaston Paris na Revue Hispanique, de Paris). Vimos já porém, que estes dois colectores, tal aliás como igualmente Adolfo Coelho, muito antes de darem a lume as suas colectâneas, já se dedicavam à recolha e estudo dos contos, e haviam publicado espécies isoladas em várias revistas especializadas.
44Seja como fôr, embora tardia em relação ao resto da Europa ilustrada, a novelística popular portuguesa afirma desde o início a sua excelente qualidade. As três mencionadas colectâneas–a que se seguirão as dos contos algarvios, de Ataíde de Oliveira, de1900 a 1905, as de Tomás Pires, de contos alente]anos, de1919, a de José Leite de Vasconcelos (publicada apenas em 1964), e, em tempos recentes, as de Manuel Viegas Guerreiro, Carlos de Oliveira e José Gomes Ferreira, e outras–foram efectuadas com estrito rigor metodológico, e são todas elas acompanhadas de estudos introdutórios valiosos, quando não mesmo de muito elevado nível científico: sobre a Mitografia e a Novelística (que, como dissemos, Teófilo e Consiglieri Pedroso equiparavam).
45Mais do que uma vez, dos seus escritos, ressalta que Adolfo Coelho tem em mente vir a realizar uma obra global sobre o tema do conto popular em todos os seus aspectos, e que os trabalhos publicados, incluso o próprio volume dos Contos Populares Portugueses, são achegas parcelares, que deveriam integrar-se nessa obra. Na «Prefação» deste livro, o Autor assim fala desse desígnio: «Tencionamos publicar um trabalho consagrado aos contos populares, e particularmente aos contos populares portugueses, estudados nas suas múltiplas relações...» . É sem dúvida a esse projecto que correspondem os seus Materiais para o estudo da origem e transmissão dos contos populares de que publicou apenas um primeiro artigo em O Positivismo), e os Estudos para a História dos Contos tradicionais (na Revista de Etnologia e de Glotologia)–o primeiro sobre o conto do Príncipe com orelhas de burro, o segundo sobre o conto do Justo Juízo. De acordo com o seu método, dá do primeiro desses contos a forma que colheu da nossa tradição oral; e extrai o segundo da obra de Gonçalo Fernandes Trancoso, seguindo-se-lhes, em ambos os casos, versões em diversas línguas, fornecidas pela literatura disponível, que o Autor utiliza na análise comparativa que delas faz detidamente, apoiada por estudos pertinentes. No que respeita ao primeiro caso, essa análise é levada a efeito decompondo o conto nas suas diversas versões, em «episódios» (que prefiguram, numa óptica própria, as «funções» de Vladímir Propp, ou os «motivos» de Anti-Aarne e de Stith Thompson), para, por confronto e comparação desses «episódios» , procurar reconstruir a forma primitiva e determinar a sua origem e posteriores empréstimos, e processo evolutivo, através de contactos e transmissões.
46De um modo geral, Adolfo Coelho não levava os seus estudos até ao nível explicativo, correspondendo aos graus histórico e genético do seu método. Excepcionalmente, nestes dois casos, ele tenta essa abordagem parecendo verosimilmente exemplificar com eles aquilo que deveria ser, a seu ver, um estudo completo.
47De modo semelhante, em relação a outras formas da tradição popular–no artigo sobre Materiais para o Estudo das Festas, Crenças e Costumes Populares Portugueses (na Revista de Etnologia e Glotologia), (do qual, embora extenso, o Autor reconhece o carácter elementar e genérico, valendo sobretudo como um esquema de distribuição de factos, onde os resultados da investigação futura se poderão inserir devida e logicamente) –, Adolfo Coelho divide o texto de cada capítulo ou secção em duas partes: a «parte portuguesa» e o «comentário» , sendo a «parte portuguesa» a descrição enumerativa e por vezes mesmo anedótica das celebrações em causa, não raro com informes colhidos na literatura, em documentos antigos (a dimensão histórica é essencial na explicação dos factos, para o nosso Autor), etc., e os «Comentários» os elementos extraídos de estudos especializados e da bibliografia em geral existente em todo o mundo (que Adolfo Coelho dominava notavelmente), para fins comparativos.
48Como todos os estudiosos que procuraram estabelecer a orgânica fundamental das disciplinas que encaram o homem nos seus comportamentos culturais e sociais, Adolfo Coelho, colocando no topo da pirâmide uma Étnica entendida como a ciência geral dos povos, e cujo sentido essencial penetrava todos os capítulos disciplinares em que se subdivide, dava pois à sua investigação etnológica uma finalidade integrativa. A sua obra, aparentemente tripartida, forma, pelo contrário, um todo coerente; e todas as suas monografias sectoriais eram afinal achegas ou contribuições parcelares que encontravam o seu verdadeiro lugar na sua subordinação especulativa a essa Étnica, que era afinal o conhecimento integral do povo português–o nosso «ser étnico» . E considerada na sua globalidade, ela é afinal a busca incessante, analítica e metódica, da resposta à pergunta fundamental que está presente em todos os seus trabalhos, mesmo se não habitasse claramente o seu espírito: «Quem somos nós?» .
49É nesta perspectiva que temos de situar os Contos de Adolfo Coelho. Visivelmente, eles não se esgotam em si mesmos, não só porque, tais como figuram neste livro, eles são apenas um momento–o primeiro–do percurso completo da investigação sobre o tema, que corresponde ao grau descritivo do seu esquema metodológico, e que deveria completar-se com os graus comparativo e explicativo, histórico e genético, determinando influências e contactos que os situariam na sua ligação com a história da civilização, mas também e acima de tudo, porque, para lá de uma entidade culturológica tomada em si mesma, eles são na realidade ainda um elemento dessa construção totalizante que é, mais uma vez e sempre, o conhecimento do povo português.
50E enfim, para lá dos títulos de suprema honra da sua possível ascendência mítica milenária, do seu valor como documento auxiliar precioso de qualquer pesquisa histórica, sociológica, cultural ou psicológica, o seu verdadeiro e maior prestígio está em que, mau grado o Autor os julgue falhos devida e de poesia, e de uma forma «seca, monótona, enumerativa» , foi graças a eles que passou, duma vez para sempre, a ser possível–que o digam as crianças de todas as idades–em todas as árvores estar escondido um anão que nos revela o segredo da vida, e qualquer peixe trazer na boca a chave do tesouro que buscamos; e que fizeram a sua aparição no imaginário das letras portuguesas a Gata Borralheira, a Carochinha, as fadas e os magos, as bruxas e os gigantes, as Rainhas más e os Príncipes Encantados, as laranjas de ouro e as palavras mágicas, as varinhas de condão e os palácios no fundo do mar onde o tempo é abolido, as pedras que falam e as tripeças que dançam–o maravilhoso.
Lisboa, Março de1985
Notes de fin
i Para esta resenha, a excelente síntese de João Leal in As «Fontes» da obra etnográfica de Consiglieri Pedroso, Revista Lusitana, Nova Série, 2, Lisboa, 1981, de que transcrevemos diversas partes, foi-nos da maior utilidade; e não pudemos deixar de seguir, em relação a Adolfo Coelho, praticamente a ordenação desse trabalho, tal é o paralelismo da trajectória destes dois pioneiros dos estudos da tradição em Portugal.
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