Epílogo. Uma janela partida
p. 319-334
Texte intégral
1Há uns anos, John Comaroff (1996: 164) dizia que se o inquietava a política da diferença, não o inquietava menos a política da indiferença1. É um pouco essa política da indiferença, entendida no sentido mais lato, a que Tires nos devolve, como que num eco. Optei por extravasar de algum modo os limites em que este trabalho evoluiu para tentar captar esse eco, mudando de registo nessa tentativa porque é justamente de ecos – de vários ecos – que aqui se trata. A indiferença de que falo a bem dizer constrói-se sobre ideias de diferença, ou sobre a exasperação dos fantasmas acerca dela, e pode ser vista como um dos avatares dessas ideias. A actual crispação penal e a voracidade da prisão fazem as despesas do que o ar dos tempos entende de novo como uma diferença ameaçadora. De novo, porque na verdade estes enunciados contemporâneos trazem à memória aqueles que marcaram o século passado – precisamente o século que inventou a prisão moderna.
2É certo que a narrativa fundadora da prisão, à qual durante muito tempo se continuaria recorrentemente a reportar a raison-d’être desta instituição, remonta aos projectos humanistas e filantrópicos de redenção, regeneração e reintegração (e que passavam também pela morigeração da própria figura do castigo). Mas, como mostraram historiadores como Patricia O’Brien (1988: 315), a diferença fundamental da prisão oitocentista em relação às instituições que a precederam (por exemplo hospícios e asilos) residiu mais nas suas promessas do que nas suas práticas, que apenas prolongaram anteriores dispositivos de enclausuramento; e, segundo Faugeron e Le Boulaire (1992), residiu na judiciarização de um encarceramento que antes decorria essencialmente de decisões administrativas: ou seja, surge uma modalidade de encarceramento legalizada através da pena, e a pena é por sua vez legitimada através da ideia de regeneração e correcção. Ainda que doravante reconvertida na ordem moral, será porém mantida a vocação básica que institui a prisão como pilar da ordem pública – a vocação de segurança, continuando o dispositivo carceral a visar conter populações flutuantes cada vez mais receadas: os mendigos, os indigentes, os errantes, os operários desempregados, os trabalhadores intermitentes que a industrialização fizera proliferar nas cidades ou que arrancara aos campos, ali vindo procurar trabalho.
[L]e maintien du dispositif carcéral permettant de contenir des populations estimées dangereuses se fait en deux temps : d’un côté la prison est instituée comme lieu d’exécution de la peine, de l’autre certains comportements sont pénalisés ou surpénalisés. La rupture est purement symbolique car, grâce à l’invention de la peine de prison, la prison conserve – élargit ? – sa fonction pratique d’enfermement de sureté. [L]e discours sur les origines de la prison pour peine est nécéssaire [...] à la reconstruction dans l’ordre moral d’une préoccupation socio-politique. Le recours au symbole permet la transformation d’un lieu de súreté em instrument bénéfique (ibidem: 27).
3Além disso, o fulgor da era filantrópica da prisão, anterior à exacerbação do pavor social do crescimento da criminalidade, seria em todo caso breve. Com efeito, por volta de meados do século XIX grassa um pouco por toda a Europa e nos EUA o grande temor das «classes perigosas», que porá fim à ascendência dos filantropos sobre as prisões (Duprat, 1980). Chevalier (1958) mostrou vividamente como as «classes laboriosas» acabaram por ser assimiladas às «classes perigosas», como umas e outras passaram a ser adjectivadas da mesma forma e incluídas nas mesmas formulações discursivas, como, em suma, se procedeu à vilificação dos pobres. Cresce o desassossego das classes médias e das élites face às hordas de desvalidos e, mais do que nunca, a noção de que precisam de ser enquadrados e disciplinados. O instrumento penal será mobilizado nesse enquadramento e nessa disciplina. O século XIX torna-se assim o século por excelência da criminalização da pobreza, um fenómeno apontado por vários autores: além de Faugeron e Le Boulaire (1992), para França, ver por exemplo Ignatieff (1978) para Inglaterra e Rothman (1971) para os EUA. Em Portugal, João Fatela (2000) analisou a criminalização do vadio, personagem que se tornaria no «arquétipo» de «estados perigosos», a drástica «lei de excepção» que lhe foi aplicada – e a propósito da qual Salgado Zenha (citado por Fatela, ibidem: 161) falaria de uma «desigualdade penal verdadeiramente chocante» –, o sentimento de insegurança que se polarizou em torno dele e que conduziu a imprensa a clamar por «medidas enérgicas» contra a vadiagem, a repressão que alastrou aos mendigos desde o momento em que eram vistos como figuras conexas do vadio2. Fatela (ibidem: 152) adianta aliás um sugestivo dado: entre 1890 e 1910, a população reclusa nas cadeias de Lisboa por crime de vadiagem somava 77% no caso masculino e 78% no feminino. Maria João Vaz (1998) refere por seu turno as representações que tinham os desempregados e aqueles que apenas dispunham de trabalho casual por potenciais criminosos, as noções que instituíram as camadas populares, principalmente as urbanas, em alvo privilegiado das suspeitas da polícia e, num outro lugar (Vaz, 2000), as «teses catastrofistas» sobre a progressão incontrolável do crime que galvanizaram a economia repressiva do fim do século e a centraram nos estratos sociais mais baixos da população3. Não admira, pois, que as cadeias deles se compusessem, de uma forma marcadamente homogénea (e. g. Santos, 1999: 116-121). E não admira também que elas acabassem por encerrar indivíduos bem longe de corresponderem aos perfis de perigosidade com que se havia justificado o enérgico accionar da máquina penal, como o revelam as elucidativas vinhetas fornecidas por Fatela (2000: 165-166). David Rothman (1971) mostrou que nesta época o recurso extensivo à prisão não era uma simples e automática resposta ao crime, e que a constituição das populações prisionais nos EUA vinha reflectir o clima ideológico de então. Notando que na segunda metade do século XIX «the state prison population became to a marked degree lower-class and immigrant» (ibidem: 255), enquanto as distinções entre as classes aumentavam, observou também que a transformação da composição carceral se acompanhou da mutação da função da prisão. Esta torna-se sobretudo um método para controlar populações dependentes vistas como ameaçadoras, uma função muito diferente da que lhe haviam atribuído os filantropos. É nesta altura que a tónica se desloca da ideia de regeneração para a ideia de incapacitação (ibidem: 255-261) ou mesmo de expiação (Duprat, 1980).
4Mas é também neste momento que, num movimento paralelo a este, entra em cena a ciência, através da criminologia positivista, inaugurando o paradigma do «tratamento». É certo que esta tendência, apesar de se dizer em contracorrente face ao legado penológico das Luzes, que considerava arcaico e não científico, retomava-lhe na verdade a lógica e de certa maneira levava-a ao extremo. Porém, o ideal de reabilitação singrava agora por outras vias, configurando uma nova racionalidade que David Garland (1995: 186-188) caracterizou por «modernismo penal». Mais do que uma questão moral, o crime será olhado como uma questão técnica, como assunto de especialistas. Encarado agora como sintoma de patologias individuais e sociais, o seu controlo deveria passar por uma intervenção aprofundada, fosse ela definida através do estudo psicológico e do tratamento comportamental do delinquente, fosse através de políticas de regulação social. Este projecto modernista estender-se-ia pelo século seguinte, que longamente lhe conservaria as grandes balizas. Como sustenta Garland (ibidem: 188-189), um tal programa foi frequentemente subvertido no curso da sua execução, algumas das suas aplicações foram benignas e produtivas, outras desumanizadoras e minuciosamente intrusivas; mas o escopo deste projecto entrosava-se bem num quadro ideológico mais genérico que enfatizava as noções de universalização da cidadania e de integração social – pense-se por exemplo no investimento na expansão do Estado-providência.
5Por volta dos anos 70 entram todavia em declínio os ideais de reabilitação cometidos à prisão (cf. Allen, 1981). A cadeia afinal reformava menos do que prometera, e é na medida deste desencanto que ela se des-ideologizará, zelando quando muito pela dignidade das condições de detenção e orientando-se para pragmáticas mais neutras (cf. supra: 26-29). Procura-se substituir as penas curtas de prisão por medidas alternativas, a serem executadas em meio aberto (o que começará a resultar no processo de bifurcação referido no capítulo 1), aspira-se a um uso parcimonioso e excepcional da cadeia e haverá mesmo quem lhe anuncie um curto futuro. Só na aparência, portanto, se recua aos momentos pessimistas de oitocentos, já que a descrença quanto às capacidades recuperadoras do método-prisão evoluía lado a lado com um optimismo penal que acreditava caminhar para a redução do seu emprego. O que sucedeu em breve, já o sabemos, foi precisamente o inverso. A maioria dos países ocidentais conheceu não o desencarceramento, mas uma expansão verdadeiramente vertiginosa do universo carceral. E o exemplo dos EUA, onde a população prisional viria a triplicar num período em que a criminalidade se mantinha globalmente estável (cf. Wacquant, 2000: 76), aconselha-nos de novo a daí não inferir única e inevitavelmente um disparo nos índices de delinquência. Havia crescido, em contrapartida, o apelo repressivo. O alongamento da duração das penas (a outra via que compõe o processo de bifurcação, e um dos factores que inflaciona a demografia carceral) é uma das respostas a este apelo, continuando ao mesmo tempo a dar aparente guarida à ideia de que a cadeia se reserva para os delinquentes perigosos, violentos, ou para a grande criminalidade. Na verdade, assim não é. As reclusas que Tires alberga constituem uma das múltiplas ilustrações do tipo de populações que as prisões vieram a encerrar neste fim de século: traficantes de baixo patamar, toxicómanos, pequenos delinquentes contra a propriedade ou versões contemporâneas dos «pilha-galinhas», sem deixar de incluir, em muitos casos, banais perturbações da ordem pública. Vários autores assinalam, especialmente para os anos 90, não só a dilatação pletórica dos montantes das populações de reclusos e os irrisórios perfis criminais da maior fatia, mas ainda uma viragem acentuada no seu perfil sociológico, uniformizado pela presença maciça de pobres, imigrados, minorias étnicas/«raciais» (e. g. Salas, 1995; Godefroy, 1996; Moccia, 1997; Wacquant, 2000). Wacquant (2000: 95) vê por isso na prisão actual um lugar central no governo da miséria e é precisamente a este propósito que invocará, por analogia, a prisão de meados do século XIX4; Faugeron (1996: 122; 124) alude a um paralelo da mesma ordem, reportando aspectos da presente dinâmica de encarceramento às formas de regulação da vadiagem no século passado:
As the crisis in the labour market intensifies the prison is increasingly being used to deal with and absorb the growing social tensions in many western countries. In many respects the present situation is reminiscent of the regulation of vagrancy in the last century. [...] As in the nineteenth century the penal sanction lent legitimacy to the use of confinement for problem populations.5
6Trata-se aqui de uma conjuntura, não de uma conjura, embora nesta conjuntura haja que relevar a consistência de um padrão repressivo que não se produz no vazio, mas num clima discursivo particular a que os diversos intervenientes nos sistemas de justiça não deixam de ser sensíveis, por vezes mau grado eles próprios. Como bem o colocou Dario Melossi,
While it may be that higher imprisonment rates are influenced by the unintended consequences of a set of micro decisions [...] it is also true that these micro decisions (not only by court personnel but also by police officers, lawmakers, moral entrepreneurs, etc.) are not made in a vacuum. They have to be accounted for, on both legal and moral grounds, within a hegemonic discourse, a discourse toward which those who administer the criminal and penal justice systems feel particularly responsible (whether or not they share the wisdom of the contingent political arrangements of those systems). The concept of a changing hegemonic «vocabulary of punitive motives» may help us explain the consistent character of all these micro decisions avoiding at the same time the assumption of conspiratorial intentionality assigned to those who are entrusted with making these decisions (1993: 273-274)6.
7O eixo criminal da droga em boa medida protagoniza esta conjuntura ao dar forma às ansiedades do fim de século e ao federar muitos dos seus medos, sendo um operador-chave na cadeia discursiva onde se desliza de difusos sentimentos de insegurança e de crise moral para demandas punitivas bem mais focalizadas. Sobretudo, a julgar pelos dispositivos legislativos de excepção (cf. supra: 46-49) e pelo tipo de práticas repressivas de que o tráfico é objecto, a figura do traficante parece ter-se constituído no protótipo das ameaças sociais e dos estados perigosos – à maneira do vadio oitocentista, de quem se tornou como que o equivalente simbólico. Interrogado sobre a actual pertinência das teses que viram na fundação dos instrumentos penais um meio de gestão da pobreza e de contenção das «massas laboriosas», o penalista Robert Roth discordava através do seguinte raciocínio:
Les cibles privilégiées de la répression sont-elles les masses laborieuses? Je ne le crois pas, car les cibles privilégiées du projet répressif, sur lesquelles on sent aujourd’hui peser un véritable acharnement, sont plutôt les individus concernés par le trafic de stupéfiants (in Porret e Winiger, 1994: 192).
8Sucede porém que em lugar da disjunção e do deslocamento sugerido por Roth, os dois alvos privilegiados de que fala – um do passado, outro do presente, um de ordem social, outro de ordem penal, se quisermos – justapõem-se novamente e, sobretudo, maciçamente. O exame das populações prisionais indica-nos que tal «encarniçamento» não se exerce propriamente sobre «traficantes» tout court, mas concretamente sobre os traficantes das ditas «massas laboriosas». Na verdade, o dispositivo penitenciário instalado no século XIX não as encerrava directamente enquanto tais, mas por via de infracções como a vadiagem e a mendicidade. A justaposição dos dois alvos traduziu-se então na homogeneidade dos universos carcerais, uma homogeneidade quase perfeita que se reeditaria um século mais tarde, quando um e outro voltaram a resultar conjugados numa idêntica sintonia. É assim que vários autores referem o carácter estratificado de uma «guerra contra a droga» que não é combatida socialmente ao acaso, tendo as suas baterias sido essencialmente assestadas contra populações julgadas ameaçadoras, ou seja, aquelas onde a pobreza se concentra (e. g. Goode e Ben-Yehuda, 1994; Tonry, 1995). Sampson e Laub (1993), por exemplo, mostraram que as circunscrições americanas onde se verifica maior desigualdade racial e uma maior concentração da chamada underclass são à partida encaradas como contendo populações perigosas, e em consequência enfrentam quer um controlo superior, quer uma maior punitividade no processamento judicial. Quer isto dizer que mesmo que as discriminações a nível individual possam ser insignificantes, um outro padrão emerge quando elas são aferidas à grande escala das populações e dos seus territórios. É também ao nível macro que Wacquant (2000: 97-100) disseca nos EUA os mecanismos de controlo da miséria que passam pela actual «simbiose estrutural e funcional entre o gueto e a prisão»:
As duas instituições conjugam-se e completam-se pelo facto de servirem cada uma à sua maneira para assegurarem o pôr de parte (segregare) de uma categoria indesejável que é percebida como fazendo pesar sobre a cidade uma dupla ameaça, inseparavelmente física e moral (ibidem: 98).
9Os capítulos 5 e 6 evidenciaram uma outra ordem de continuidades entre o interior e o exterior, a das vivências quotidianas e a dos sentidos locais, e também aqui vimos que, em apenas dez anos, a prisão se tornou inteiramente uma instanciação do bairro. Sob este prisma, a longa controvérsia acerca dos eventuais efeitos criminogéneos da cadeia, bem como o não menos longo debate em torno do cardápio ortopédico mais apropriado, parecem agora deslocados, e os seus termos, de certo modo, caducos. A prisão já não se recorta do mundo exterior como outrora. Antes se inclui num recorte mais vasto que em simultâneo separa do tecido social os bairros depauperados com os quais ela veio a fundir-se. Por isso, antes de exprimir um desvio – os crimes individuais daqueles que encerra –, ela exprime acima de tudo, com uma crua clareza porventura só reconhecível nos seus primórdios, uma ampla brecha social; antes de por hipótese reproduzir o desvio, a cadeia renova e consolida uma distância. É agora, em suma, produto e produtor de uma fractura colectiva e talvez o sinal de que as mediações de fundo deixaram de ser tentadas, ou imaginadas.
10Foi principalmente pela via do tráfico que tiveram lugar os trajectos em massa entre o bairro e a prisão, em boa parte em razão das rotinas colectivizadoras pelas quais se exerce a sua repressão e se delimita assim espacialmente o perímetro das «classes perigosas», consubstanciadas de novo com as fracções mais precarizadas das «classes laboriosas». Aqui como noutras paragens o eixo da droga destaca-se num apelo securitário que tem menos por objecto indivíduos do que populações, e num clima de emergência que já levou a inflexões legislativas no sentido do que alguns autores consideram uma regressão histórica na filosofia dos sistemas penais (cf. supra:47-48). Mas ao mesmo tempo ele não é senão um dos componentes de um «alarme social» que não cessa de conhecer novos avatares, sem todavia mudar de alvo: antes pelo contrário, salientando-o. Vem isto a propósito de uma recente tendência internacional nas políticas repressivas que, desta feita, ganha corpo a partir de opções explícitas e centralizadas. Inicialmente circunscrita à cidade de Nova Iorque e a princípio comentada em inner-circles europeus como uma excentricidade longínqua, cedo porém atravessaria continentes e receberia o assentimento de um largo espectro de responsáveis políticos e governamentais do lado de cá do Atlântico, cujas declarações em matéria de crime e de insegurança parecem afinar crescentemente pelo mesmo diapasão 7. A estratégia, nos termos em que foi exportada de origem, radica na tese das «janelas partidas», sustentada por James Wilson e George Kelling (1982), segundo a qual signos de desordem tais como graffitti, lixo, etc. – e janelas partidas – criam por si próprias insegurança e além disso um contexto de incentivo à criminalidade mais grave. A polícia deveria por isso reconsiderar as suas prioridades e deixar de negligenciar as infracções menores ou de concentrar os seus esforços nas maiores, já que o combate intransigente às primeiras, sendo um fim em si mesmo, é também um meio de dissuadir as segundas8. O desenvolvimento prático destas ideias em Nova Iorque traduziu-se num policiamento fero e intensivo (o que implicou um crescimento exponencial dos recursos e dos contingentes policiais) perseguindo não só os pequenos crimes, mas ainda a embriaguez de rua, os pedintes, os «arrumadores» informais de carros, os que procuram a mesma gorjeta com a lavagem de para-brisas, entre outros de mesma monta. Tais comportamentos passaram a ser explicitamente caracterizados, por autoridades públicas e especialistas, como «associados aos sem-abrigo» ou, mais desassombradamente ainda, «underclass behavior», isto é, como uma exsudação directa de determinadas populações (na Europa, apesar do endurecimento do discurso público para com a pequena criminalidade e as «incivilidades», também aqui cada vez mais enunciadas como um problema capital, ainda se constata uma genérica cautela em empregar iguais atalhos descritivos9).
11Estas noções não relevam apenas da espuma demagógica inevitavelmente produzida nas vagas das democracias contemporâneas e das disputas eleitorais. Reflectem também uma tendência criminológica de fundo, por vezes integrando directamente o corpo de ideias que foi apelidado de pós-modernismo penal, por vezes embrechando-se involuntária mas coerentemente nas suas dobras. O alvo último da penologia modernista era o indivíduo delinquente, fosse como objecto de tratamento, fosse como objecto de punição – sempre, porém, como objecto de conhecimento. A «nova penologia», segundo Jonathan Simon e Malcom Feeley (1995: 165-167), parte ao invés do pressuposto que existe uma «subpopulação perigosa» representando «um risco permanente»: a «underclass», ou seja, «um grupo de pessoas mergulhadas na pobreza e na marginalidade social». Por outras palavras,
[T]here is an entire class that is no longer capable of maintaining basic order among its members, and needs police and other agents of the state to intervene not just to deal with crime, but to maintain order (ibidem: 166).
12Uma tal população convidará então a uma «resposta agregada». De que natureza deverá ser essa resposta? A ideia não é tratar, ou punir mais severamente (punir sim, mas «inteligentemente», o que significa, no novo entendimento criminológico, com o menor custo económico possível para quem pune), nem tão-pouco conhecer, no sentido de explicar ou compreender. Visa-se antes estabelecer o que os autores chamam de «managerial control over disorderly populations», ou «coherent risk management strategies» dirigidas a essas populações (ibidem: 166). Com efeito, a questão do controlo do crime é inteiramente reformulada em termos de mero cálculo e gestão de riscos, seguindo de certo modo a lógica empresarial das companhias de seguros, razão pela qual Simon (1988) fala em «actuarial practices». Abandona-se por um lado o projecto de conhecer os personagens do desvio na sua espessura biográfica, psicológica e social, as causas da delinquência ou as condições em que se produz, às quais a nova penologia é indiferente; e, por outro, o projecto «normalizador» que pretendia transformar os indivíduos, o qual considera dispendioso e difícil. A tarefa a que se propõe é bem mais simples:
Disciplinary practices focus on the distribution of behavior within a limited population. [...] This distribution is around a norm, and power operates with the goal of closing the gap, narrowing the deviation, and moving subjects towards uniformity [...].
Actuarial practices seek instead to maximize the efficiency of the population as it stands. Rather than seeking to change people an actuarial regime seeks to manage them in place (Simon, 1988: 773).
13As estratégias criminológicas actuais são essencialmente de cariz defensivo e de prevenção situacional, centrando-se no apuramento dos dispositivos de segurança, em técnicas de evitamento da vitimização, na diminuição da vulnerabilidade de pessoas, coisas, edifícios e áreas a incidentes criminais, em aumentar os obstáculos e os riscos para os delinquentes ou em reduzir concreta e localizadamente as oportunidades para delinquir10 – o que, mesmo que não baixe a prevalência geral do crime, sempre vai obtendo a sua transferência para outras zonas (cf. Taylor, 1997: 294). E assim como se desloca para a superfície a questão do controlo, através da assumida indiferença teórica acima referida, é também à superfície que se mede a eficiência económica dos sistemas de controlo, calculando por exemplo os custos-benefícios da expansão do aparelho policial e carceral contra os custos do crime, ambos definidos de maneira restrita e alheia à orientação ideológica subjacente às próprias formas de computação utilizadas, tão estruturadas pela desigualdade como o é o modo de operar desses mesmos sistemas11.
14Contra os abusos do projecto normalizador modernista, a nova penologia apresenta-se como ideologicamente neutra e amoral. Como o coloca Garland,
[T]he critique of the treatment model has made in-depth approaches problematic in principle as well as in practice. In these perspectives, the category of the criminal shifts from deep subject to shallow opportunist, from psychological man to situational actor, from a specific individual with a history that has to be explored to a universalized decision-maker whose behavior can be statistically predicted. [...] Using the penal process to impose values upon inmates and clients is now viewed as morally suspect. The moral authority of the system is contested and uncertain. The idea of a mainstream moral community into which offenders must be integrated appears dangerously outmoded in the age of multiculturalism, moral disestablishment, and the deification of «difference» (1995: 194-195).
15Na mesma linha, a punição constitui um fim em si, realçando-se o seu valor expressivo, e vem a assentar não na ideia de «reforma», mas nas de dissuasão, incapacitação e retribuição. Simplesmente, a despeito das intenções iniciais da nova penologia, das quais não constava punir forçosamente mais, esta concepção casa-se bastante bem com a injunção repressiva que dilatou extraordinariamente o universo carceral. Citando de novo Garland,
[A]lthough much of this retributive theorizing emerged as a liberal reaction to the excesses of the therapeutic state, the new respectability it has led to punishment would seem to have encouraged more punitive government discourses and policies. What was originally intended as a liberal critique of modernist reasoning [...] has been taken up by a more punitive anti-modernism, which emphasizes the importance of punishment as a symbol of sovereign power and social authority (ibidem: 192).
16De modo semelhante, a ênfase na desordem – nas pequenas desordens –, onde a janela partida surge como indício e metáfora do caos, em lugar de o prevenir da maneira mais económica acicata o desejo de ordem, afinal bem perdulário, como o exemplificou a experiência do «estado policial» nova-iorquino; apontar populações e designá-las, a priori e colectivamente, de desordeiras e perigosas cauciona a estigmatização de que já são objecto e legitima a sua perseguição indiferenciada, por muito que a intenção se limite a «gerir estrategicamente» o «risco permanente» que supostamente representam. Por isso, porque se casa bem com o populismo penal – e têm razão Simon e Feeley (1995: 169) ao alegar que os discursos nacionais sobre o crime são hoje populistas, exclusivos e centrados no medo, enquanto os da era modernista eram inclusivos e reflectiam sobretudo os medos e as aspirações das élites –, a nova penologia teve de facto sucesso no discurso público e impacte nas políticas institucionais, ao invés do que os mesmos autores sustentam12. Neste quadro penológico a indiferença teórica de que falei redobra-se aliás de uma indiferença cívica, casando-se bem, por fim, com vulgares pressupostos de uma diferença fundamental e inultrapassável entre populações, e sublinhando as linhas divisórias, reais e imaginadas, que as separam. Nas sugestivas palavras de, mais uma vez, Simon e Feeley:
In the early twentieth century, the problem of crime constituted a powerful reason to expand the role of government in fostering welfare in order to integrate marginal members of society into the mainstream. But by the end of the century it has become the opposite. The new penology divorces crime policy from concern with social welfare. Increasingly, crime policy is conceived of as a process for classification and management of populations ranked by risk; in need of segregation, not integration. Indeed this new direction may reflect [...] «the decline of a politics of remedy» (ibidem: 168),
17... e o advento de uma política da indiferença, poder-se-ia acrescentar, apenas sensível aos signos da ordem e da desordem. Estes, de resto, transformaram-se na medida em que o limiar entre ambas não só se deslocou, recuando para «janelas partidas» – e, ao deslocar-se, foi simultaneamente traçado com clareza –, como ganharia um rosto, indicado com igual precisão: o rosto da pobreza, da underclass; ou do ghetto, da cité, dos bairros deserdados. A despeito de todas as diferenças nacionais e das respectivas modulações políticas e repressivas (e tais diferenças ainda são grandes), elas não deixam de acusar uma atmosfera comum, chamando por sua vez à memória aquela que envolveu os finais do século passado. Certos aspectos, em todo o caso, assemelham-se: além de as cadeias serem de novo basicamente um lugar de segurança e de acantonamento de «classes perigosas» – é de facto mais de «classes» do que de «indivíduos» que se trata –, hoje como outrora é menos incisiva a fronteira entre os que se acham presos e os que estão em liberdade do que entre as populações que têm a prisão no horizonte e as que a não têm13. Para lá da sua complexidade e com todas as suas especificidades, Tires e as reclusas que encerra são disso um sinal e um exemplo.
Notes de bas de page
1 (Itálicos no original.) Referia-se concretamente, no primeiro caso, a modos de representação implicados na etnicidade e no nacionalismo e, no segundo, aos que deixam na sombra a pobreza e as materialidades do poder.
2 Susana Pereira Bastos (1997) mostrou como ambas as figuras, que desempenhavam funções rituais importantes junto das classes populares, foram por esta altura «dessacralizadas» pelas élites. Mesmo assim, quando mais tarde, por altura dos anos 30, estes personagens voltam a ser causticados com redobrado vigor atribuindo-se-lhes um potencial contaminador, tais classes continuaram pouco permeáveis às representações dominantes de então.
3 Note-se de passagem que assim como nesta economia repressiva se manifesta em vários contextos diluída a distinção entre «classes perigosas» e «classes laboriosas», é também nela que por esta altura se mostra especialmente periclitante a velha destrinça entre pobres merecedores e não-merecedores, entre inaptos para o trabalho e ociosos – uma destrinça moral já de si alheada das condições laborais instáveis que então a relativizavam (Castel, 1991; Morris, 1994).
4 Para o autor, em boa medida a prisão gere hoje os segmentos inferiores do mercado de trabalho mais afectados pelas mutações da sociedade industrial e da relação salarial. Assim é a vários níveis, começando pelo nível micro quando, para infracção igual, tendem a ser mais severamente sancionados pelos tribunais os indivíduos sem trabalho ou com trabalho precário e irregular (ibidem: 108-110). No caso dos EUA, a desmesura do encarceramento teria feito baixar em dois pontos percentuais a taxa de desemprego. Sem esta compressão artificial, que subtrai milhões de pessoas a esse mercado, os níveis de desemprego americanos em quase todo o período 1974-1994 foram afinal superiores aos da União Europeia (uma vez estatisticamente controlado nos mesmos termos o efeito carceral), ao contrário do que correntemente se supôs (ibidem: 96). Em contrapartida, o boom do sector carceral e a correlativa necessidade de recrutar pessoal penitenciário – como guardas, por exemplo – tornaram-no no terceiro maior empregador daquele país (ibidem: 83).
5 É de precisar, não divergindo mas antes convergindo ao fim e ao cabo com as asserções de Wacquant e de Faugeron, que a relação entre níveis de desemprego e de encarceramento não é linear – ao invés do que parece decorrer do argumento há muito desenvolvido por Georg Rusche e Otto Kirchheimer (1939), segundo quem a prisão participaria directamente no controlo do mercado de trabalho, enchendo-se para responder ao excesso de mão-de-obra e esvaziando-se quando ela é escassa, razão pela qual os índices prisionais e de desemprego variam no mesmo sentido. Se variam conjuntamente, contrapõem outros autores (e. g. Box e Hale, 1982), é por interposta atmosfera ideológica, que tende a mudar em ciclos económicos onde se verifica um alargamento substancial das populações economicamente marginais. Essa resposta é assim ideologicamente motivada pelo receio de um disparo da delinquência face a essa expansão (ibidem: 22).
6 (Itálicos no original.)
7 Baptizada de «tolerância zero» pelo presidente de câmara nova-iorquino Rudolph Giuliani, seria aliás directamente difundida nas capitais europeias (Lisboa incluída, sendo raras as teorias que usufruem de cobertura televisiva em prime-time, como então sucedeu) pelos seus coadjuvantes policiais entretanto tornados consultores internacionais num bem sucedido circuito descrito em detalhe por Wacquant (2000: 18-67). As razões deste sucesso derivam do facto de à doutrina assim intitulada se ter imputado o mérito da descida dos índices de criminalidade em Nova Iorque – uma atribuição apressada já que tal descida se havia iniciado antes da sua aplicação; foi igualmente abrupta em contextos que a não conheceram (ibidem: 17) ou mesmo naqueles onde baixou o número de agentes policiais (Young, 1999: 125); e foi ainda mais significativa numa cidade como S. Francisco, que enveredou por uma via nos antípodas daquela, tendo para mais reduzido, em lugar de aumentado, o recurso à prisão – uma excepção, portanto, no panorama geral (cf. Austin, 1999). Terão sido factores estruturais vários, e não formas leoninas de policiamento, os principais responsáveis pela queda daqueles índices, factores aos quais Hamid (1998: 133-134; 173-184) acrescenta um dado tanto mais inesperado quanto é precisamente para Nova Iorque que é referido: a subterrânea reconversão interna de gangs que, a par de instituições religiosas e outras instâncias, se empenharam na revitalização das comunidades locais a que pertenciam, desenvolvendo acções cívicas e programas de cariz comunitário. Assim, resume Hamid,
[Mayor Rudolph Giuliani and his police commissioners] claimed that their unrelenting prosecution of “quality of life” misdemeanors such as panhandling on the subway or drinking a beer in public have deterred more serious offending. But gangs may have helped more than the police to produce this outcome (ibidem: 181-182).
8 A medida da difusão da tese das «janelas partidas» pode ser apreciada, a título de exemplo, nas declarações de um candidato à Câmara Municipal do Porto em visita a um bairro degradado da cidade, declarações essas onde a teoria parece ser subscrita. Depois de sustentar que «o principal problema do [Bairro do] Aleixo é a droga», terminava defendendo que «os vidros partidos trazem droga». Na mesma visita asseverara ainda que «[t]amanha degradação é má não só para quem vive nos bairros mas também para o resto da população, porque cria focos de insegurança que se alastram para toda a cidade» (in jornal Público, 16 de Maio de 2001).
9 Tal não impede contudo que os atalhos se manifestem nas medidas tomadas: veja-se por exemplo o recentíssimo recolher obrigatório para menores de treze anos decretado por câmaras municipais francesas para alguns bairros das respectivas circunscrições, uma decisão justificada tanto com a intenção de proteger os menores como dos menores. A medida entrou em vigor após uma breve celeuma suscitada pelo facto de se destinar a ser aplicada não de acordo com princípios universalistas e a indivíduos, mas selectivamente e a populações.
10 Este é o denominador comum de várias teorias, conhecidas pelas designações de «escolha racional» (Cornish e Clarke, 1986), «controlo situacional», «actividades de rotina» (Clarke e Felson, 1993) e «espaço defensável» (Coleman, 1985).
11 Além de mostrar o enviesamento dessas usuais contabilizações, em última instância em detrimento de populações desmunidas ao deixarem de lado variáveis e comparações relevantes, Ian Taylor (1997: 295-297) refere trabalhos que evidenciam, num outro âmbito, um exercício amplamente estratificado do controlo e uma repressão diferencial: apertada, eficiente e draconiana para as fraudes no domínio das prestações sociais (de que aquelas populações usufruem); lassa, ineficiente e de resultado magnânime para as fraudes e evasões fiscais, cujos «custos» são infinitamente superiores.
12 Simon e Feeley afirmam que mau-grado ter vindo instilar racionalidade na administração dos recursos e o sucesso que obteve junto dos profissionais da justiça e na comunidade académica, a nova penologia não logrou penetrar na retórica pública e emergir como estratégia hegemónica na política criminal (apesar de os próprios autores providenciarem abundantes exemplos do contrário, muito embora lamentem a sua incorporação, que penso não ser surpreendente, na deriva punitiva). Todo o artigo tem por objecto este problema, isto é, as razões pelas quais a mensagem não passou. E de acordo com Simon e Feeley não teria passado porque a penologia pós-moderna não tem para oferecer ao público uma narrativa cultural satisfatória acerca da delinquência, os seus porquês, uma «verdade acerca do crime» (ibidem: 150), na qual deliberadamente não está interessada. Creio que a mensagem passou, com algumas distorções é certo, mas com uma rapidez fulgurante, porventura porque também o público não estará já interessado na «verdade acerca do crime», mas tão-só em mantê-lo à distância. Creio sobretudo, tal como Young, que a tendência punitiva não é uma anomalia face ao desenvolvimento da tendência «actuarial»; mas diversamente deste autor não o atribuo apenas a uma mera co-existência das duas, em que uma e outra como que se afirmariam autonomamente e de costas voltadas entre si. A definição de alvos colectivos parece-me constituir uma matriz comum decisiva para permitir toda a sorte de pontes que se têm estabelecido entre ambas:
From an actuarial point of view the management of the underclass is clearly a problem of hiving them off, creating gates and barriers which keep them in their own reserves, causing problems for themselves and minimizing problems for others. From the point of view of essentialism and the demonization of the underclass, however, it is necessary that the forces of law and order enter their territory and hand out justice often in a draconian and indiscriminate fashion. Both of these tendencies occur in late modern societies (1999: 119).
13 Agradeço a este propósito um comentário de Cristiana Bastos.
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