Capítulo 6. A integração na exclusão
p. 241-305
Texte intégral
As criminosas e as outras: a categoria por droga
1No capítulo precedente focou-se a erosão da fronteira prisional. Examinada de perto, esta fronteira revelou-se, afinal, uma membrana porosa onde se desvaneceu o sentido de ruptura entre o interior e o exterior: não só a prisão se situa no prolongamento do bairro, como uma e outro se constituem mutuamente. Ora, a dissolução desta linha simbólica acompanhar-se-ia de uma diluição das fronteiras internas que atravessavam Tires no passado, linha essa da qual eram, em boa parte, tributárias: veja-se, a contrario, o caso das reclusas ciganas, a cuja união não eram alheios os laços de parentesco e de interconhecimento que as ligavam antes da reclusão. Para a maioria das reclusas de então, referi já alguns dos processos de diferenciação e de oposição recíproca pelos quais se procurava, como que num jogo de espelhos, esconjurar o estigma.
2Um dos domínios de representação onde esta dinâmica do contraste se manifestava mais vivaz e crispada era o crime na origem da detenção. Se cada reclusa se pronunciava sobre o seu próprio crime como um percalço na vida, um episódio isolado e justificável, no caso dos perpetrados pelas co-reclusas ele descreveria, porém, a pessoa e emanaria de uma natureza delinquente (São delinquentes por tendência; Têm más vísceras), ainda que esta representação genérica de uma essência criminosa pudesse ser pontualmente revista quando se estabelecia uma relação de amizade. O crime da amiga, de uma reclusa concreta, era então humanizado, ganhava uma história e um contexto, mas o mesmo acto permanecia vituperado nas restantes, não ocorrendo uma reformulação semelhante. Por outro lado, é certo que a reprovação mútua era modulada pela gravidade do tipo de crime. Todavia, e salvo o infanticídio, que ainda hoje continua a concitar o repúdio geral, a hierarquização do desvalor dos crimes variava consoante o ponto de vista de quem os avaliava. E esta perspectiva encontrava-se vinculada ao crime que cada uma havia cometido, pelo que os modos de escalonamento eram múltiplos e não coincidentes com o da ordenação jurídico-penal. Assim, as traficantes-consumidoras desculpabilizavam-se com a dependência que diziam compelidas, uma «atenuante» de que não usufruiriam, por conseguinte, as traficantes não-consumidoras. Por sua vez, estas consideravam-se redimidas e, sobretudo, redimíveis, uma possibilidade de reabilitação que negavam às primeiras, supostamente condenadas ad eternum a delinquir por via da sua compulsão. Ambas condenavam as homicidas, face a quem se diziam infinitamente menos recrimináveis, para verem retorquir-lhes pelas visadas que não viviam do crime, como aquelas: alegavam ter agido não por avidez (por ganância), mas por desespero (a maioria dos crimes de homicídio havia vitimado maridos, de quem as reclusas haviam sofrido maus tratos prolongados) e, de qualquer forma, as traficantes matariam mais pessoas, só que mais devagar. Por fim, se as recluídas por burla e furto entendiam inofensivo o seu próprio delito no panorama geral, eram em contrapartida invectivadas respectivamente de trafulhas ou aldrabonas e de ladras, e era-lhes atribuída uma propensão intrínseca para delinquir (uma espécie de «mentalidade criminal») que não se deteria na cadeia. Representariam por isso, em acréscimo, um risco quotidiano na vida prisional (sobre elas impendiam, de facto, frequentes suspeitas e acusações de roubo por parte das co-reclusas).
3Hoje reduziu-se drasticamente, em proporção, a variedade dos crimes que figuram em Tires. Como referi no capítulo 2, mais de ¾ respeitam ao tráfico, e a maioria dos crimes cometidos contra o património correlaciona-se com o consumo de estupefacientes. A droga homogeneizou, assim, o perfil criminal desta população. Aliás, a chegada de uma reclusa não consumidora ou não condenada/acusada por tráfico suscita invariavelmente no pessoal penitenciário a curiosidade devida a uma avis rara. Olha, uma que não vem por droga... Quem será ela? – indagava-se um grupo de guardas; e em ocasiões diferentes dois técnicos asseguravam-me:
Quando chega uma que não é do tráfico, a gente vai logo ver quem é.
As reclusas estão um bocado cansadas de gente de fora que vem cá fazer trabalhos. São estagiárias ou jornalistas que querem fazer trabalhos que são sempre sobre os mesmos crimes: homicídios, infanticídios, crimes passionais. Então nós temos que ir espiolhar nas fichas [das reclusas] a ver se encontramos alguém para lhes indicar. As presas por esses crimes são tão poucas, quase não há. Por isso é que são sempre as mesmas, coitadas, estão cansadas de contar muitas vezes a sua história.
4Por seu turno, referindo-se a uma população uniformizada, maciçamente ligada à droga e, por outro lado, intuindo a marginalização estrutural de que ela releva, uma guarda sénior, que eu já conhecera há uma década, comentava a radicalidade da mudança que testemunhara:
Meu Deus, isto antes não era assim. Isto está a atingir proporções que até assusta. E não vai parar. Não se vai resolver. Às vezes é a vida, é a miséria que as leva a isto... E há mulheres inteligentes, que podiam ser alguém na vida... Que pena. Que desperdício...
5Com algumas excepções, são justamente aquelas avis raras – a minoria não ligada ao tráfico/consumo, proveniente de estratos sociais menos desfavorecidos ou, pelo menos, não estigmatizados – quem reproduz sobre as co-reclusas o discurso distanciador e desqualificante tão saliente no passado. As mesmas noções formulam-se, por vezes, nas mesmas palavras, em fraseados que vim reencontrar, quase intactos, dez anos depois:
Queixam-se, mas se calhar vivem melhor aqui que lá fora. Queixam-se da comida, mas lá fora comiam pior. Aqui têm assistência médica, são tratadas com medicamentos caros, lá fora nem sequer tinham hipótese. Isto aqui é gente tão baixa, tão baixa, que eu nem queria acreditar quando cá cheguei. É uma linguagem ordinária, as conversas são ordinárias. São sempre as mesmas conversas: os namoricos, a vida dos outros, estão sempre à coca a querer saber o que se passa. Está tudo metido ao barulhinho, a meter-se, para ir contar tudo a toda a gente. Não há privacidade nenhuma, não se pode escapar. Há roubos, e depois não se passa nada, não são castigadas. As guardas são muito desleixadas na disciplina. Se [as presas] não estiverem vestidas para o conto e não tiverem a cama feita, não se importam. Como as guardas mais velhas não querem saber, as mais novas também seguem o exemplo. E depois dão-lhes muita confiança. Contam-lhes coisas da vida delas e tudo, e depois não têm autoridade quando é preciso dar-se ao respeito. Devia haver mais distância. Isto é do pior. Eu faço a minha vida sozinha, não dou confiança a esta gente. No princípio era muito ingénua, tinha pena de uma que não tinha nada e dava-lhe coisas da visita. Mas depois percebi que isto é tudo por interesse. Amigas, só lá fora. Aqui não há amizade nenhuma, as pessoas são cínicas, mentirosas, contam tudo.
– Caramba, deve ser muito duro não ter nenhuma amiga cá dentro...
– Bem, tenho a Estrela, com quem me dou muito bem, nessa eu posso confiar. Fora isso não.
O que me mais me custou na cadeia foram as pessoas. São umas intriguistas. Eu era muito idealista, muito sensível aos problemas das pessoas. Agora não. Muita coisa aqui é fita, é manipulação. Dizem que não têm nada, mas é para terem as coisas das outras [...]. Eu não sou delinquente. Cometi um crime, é tudo, não foi por apetência, por carreira. A maioria aqui é por isso.
6Este discurso da demarcação recorre também ao tipo de crime, embora limitando-se agora a um conjunto subsumido numa nova categoria local, a saber: por droga. Mas qualquer que seja o crime que assim indicam, não é por via do acto desviante em si mesmo que desclassificam as co-reclusas. É pelo que lhe associam, ou seja, a proveniência social ou étnica de quem o cometeu. Essa gente dos bairros (por vezes seguida da referência a pretas e ciganada) é, com efeito, a fórmula standard pela qual estas detidas me referiam as colegas. Uma delas, de resto, pediu para mudar de pavilhão por causa do ambiente:
Isto é tudo bairro, não dá para aguentar. As de Lisboa queixam-se das do Norte, mas elas também é tudo bairro, ainda é pior a linguagem.
7E uma reclusa veterana, gestora da biblioteca de um dos pavilhões e cuja carreira prisional se iniciara já antes do meu primeiro trabalho de campo, deplorava nos seguintes termos o fosso de literacia que entretanto se cavara entre ela e as colegas:
A população hoje não tem nada a ver com antigamente. Hoje não encontra aqui um grupo de pessoas com ligações culturais. Eu sinto um enorme vazio porque já não tenho com quem conversar. Não lêem. Dantes ainda liam literatura de cordel – a Branca, romances cor-de-rosa – agora nem isso. Vêem as telenovelas. Mandei vir jornais, até aqueles mais populares, mas ninguém lê. Agora é só a traficante do bairro de lata, que não sabe ler nem escrever: põe o dedo [para assinar].
8Conversamente, esclareciam-me duas detidas dos bairros (uma pretendendo responder por toda a população prisional, outra por quase toda): «Estamos aqui todas por droga; Estamos todas juntas com as criminosas» – entendendo por criminosas as condenadas por homicídio. O homicídio sobrevive, de facto, como fronteira no que respeita às representações do crime, mas perdeu importância discursiva na sociabilidade quotidiana. Quase se apagou dada, até, a reduzida fracção de mulheres que aqui cumprem pena por este motivo. Uma delas, co-autora de um mediático homicídio, confiava-me:
Sabe, [as colegas] fazem-me sentir o crime. Estou sempre a ouvir bocas: «Então, achas isso bem?»; «Olha lá, menina, sabes o que tu fizeste? O que tu fizeste é um crime»; «És uma criminosa, isso não se faz». Eu fiz mal, claro que eu fiz mal, e estou mais que arrependida de me ter deixado levar pelo meu marido. Mas então elas também não estão aqui pelos crimes delas? Até parece que não fizeram nada!
9Em todo o caso, o homicídio constitui um dos poucos referentes descritivos do que, em abstracto, significa um crime, ou o tipo de crimes a que a prisão se destina e dos quais seria como que o significante para o exterior, veiculado, por exemplo, pelo uniforme carceral. O tráfico por que a Maria Emília foi condenada não parece ser um deles:
No RAVI já vamos ao hospital sem bata e só somos levadas por guardas até à porta. Às vezes até somos nós que telefonamos para nos virem buscar. Ainda bem, dantes com eles ao lado eu até parecia uma criminosa.
10Em suma, se há uma década as diferentes categorias criminais eram omnipresentes nas conversas prisionais e organizavam as representações sobre o universo das co-reclusas, hoje muitas delas diluíram-se nessa nova macro-categoria emic designada de droga ou por droga, uma designação operando quer dentro, quer fora dela. Será já evidente que ela engloba não só os crimes de tráfico, como todos os outros cometidos por toxicodependentes. Dela se auto-exclui, porém, a esparsíssima franja de detidas que traficava e consumia drogas sintéticas, como o ecstasy. Por um lado, trata-se de pessoas que não provêm dos mesmos segmentos sócio-espaciais: não só integram camadas sociais mais afluentes como os circuitos desse tráfico não são os dos bairros desfavorecidos, mas os dos bares, discotecas e festas rave; por outro lado, se estas reclusas se assumem como consumidoras – querendo com isto significar um consumo recreativo e ocasional – não se consideram, como outras, toxicodependentes. Uma destas jovens, dizendo-se chocada quando à entrada em Tires lhe foi receitada medicação para a ressaca, alegava:
Eu não sou toxicodependente. O ecstasy não cria dependência. É cá uma ignorância... O ecstasy não é bem uma droga, é uma cena de fim-de-semana, de estar com os amigos, é curtir o prazer da dança, da música. Não se anda aí caído, temos uma vida normalíssima. Toxicodependente é a minha mãe, que não passa sem os calmantes.
11À semelhança destas reclusas, aliás, a minoria alheia ao eixo da droga exprime as mesmas noções quanto às práticas de prescrição medicamentosa na cadeia, receando ver-se assimilada por esta via à generalidade da população recluída. De modo indirecto, o nivelamento criminal desta população suporta nestas detidas a percepção de que todos os medicamentos são, por um lado, potenciais sucedâneos da droga e que, por outro, mais não seriam do que um obscuro colete de forças químico destinado a mantê-la controlada:
Quem não souber ler [a bula] anda drunfado. Se tem dor de estômago, vem comprimido. Se tem dor de cabeça, vem o mesmo comprimido. É tudo igual para toda a gente. Andamos todas a tomar comprimidos para as drogadas.
Quando entrei tinha um problema no fígado. O médico diagnosticou-me uma cefaleia nervosa e receitou-me nove comprimidos de manhã, cinco ao meio do dia e seis à noite. Quando tomei tudo ia caindo para o lado. Aí pedi para falar com a psiquiatra, que me perguntou há quanto tempo eu consumia. Eu disse que nunca tinha tido nada a ver com droga. Tá a ver? Ela deu-me a entender que aquilo era medicação para ressacadas. Nunca mais tomei nada. O médico põe tudo a comprimidos para elas ficarem sossegadas.
12Exceptuando então este pequeno grupo e as jovens consumidoras de ecstasy (que preferem, de resto, o convívio com reclusas bastante mais velhas mas de mesma extracção social), muitas das distinções entre crimes, outrora muito vincadas, apagaram-se. Por exemplo, a linha divisória entre traficantes e traficantes-consumidoras. Vistas de fora, por elementos exteriores à categoria por droga, estas tornar-se-iam equivalentes através da equiparação do tráfico – e já não só do consumo – a um vício:
Têm que ir à droga. O tráfico é um vício maior do que a droga. É mais fácil recuperar toxicodependentes do que traficantes. É um vício, aquele dinheiro fácil. Mesmo que tenham uma profissão, é muito difícil resistir àquilo.
13Esta representação do tráfico como vício, por vezes visto como um comportamento mais adictivo do que o consumo de droga, é aliás comum nalguns membros do pessoal penitenciário: O tráfico é um vício. Depois de traficar ninguém vai viver da venda ambulante. Ainda quanto ao staff, é de referir que se membros do pessoal terapêutico, relevando de um saber técnico, especializado, padronizam as consumidoras, atribuindo-lhes características de personalidade e traços comportamentais específicos (a manipulação, por exemplo, não seria um traço idiossincrático ou circunstancial de um indivíduo, mas uma propriedade imanente a toda uma classe), o pessoal leigo, sobretudo as guardas, tende menos a uniformizar as toxicodependentes e, por conseguinte, não as contrasta com as restantes prisioneiras1. Duas guardas seniores defendiam:
As toxicodependentes é como o resto, é igual. São muito diferentes umas das outras. Cá da minha experiência é assim. [Os técnicos em geral], por elas terem aquele rótulo, «toxicodependentes», cortam-lhes logo [o acesso a] certos trabalhos. Eu não acho bem. Acho que a partir de certa altura temos de lhes dar um voto de confiança. Temos de lhes dar mais responsabilidade, elas são capazes. Havia uma muito revoltada, partia tudo, só causava distúrbios. Aos bocadinhos fui-a pondo em coisas de mais responsabilidade – ela até ficava muito admirada por eu confiar nela. Eu dizia-lhe assim: «Vamos fazer uma experiência. Ficas aqui, continuas assim, devagarinho. Vais-te portando bem, e depois a gente vê». Eu vi que estava a correr bem e depois fui fazer pressão na direcção para ela ser supervisora. Pensavam que eu estava doida. Mas lá consegui. E olhe, foi um sucesso.
Eu sou liberal com elas na maneira de falar. Brinco com elas, entro no jogo delas e elas confiam em mim porque sentem que eu as apoio. As toxicodependentes são normais. Para [alguns técnicos] é como se fossem diferentes, até parece que são um bicho de sete cabeças. Mudou muito a minha maneira de pensar, estar com estas presas. Até em casa, com os meus filhos, falo mais abertamente. Há muitas que conseguem sair disto, vê-se que têm força de vontade. Chegam aqui todas desmazeladas, com piolhos, a fazer chichi na cama. Depois andam melhor. Já encontrei umas lá fora, todas arranjadas. Outras dão-me notícias. Como vê, isto da toxicodependência nas cadeias não é assim tão mau como pintam. Há esperança: há aí umas 10% que se curam. Eu mostro que tenho confiança nelas, e elas ficam muito espantadas por encontrar alguém que lhes dá uma oportunidade. Elas dizem-me isso, dizem-me que isso as faz sentir bem.
14Regressando à destrinça do passado entre traficantes e traficantes-consumidoras (que corresponde, de resto, a uma destrinça penal, uma vez que umas e outras configuram categorias jurídicas distintas), deixaria também de ser actuante no interior da categoria por droga. Na dinâmica de oposições recíprocas vigente em 1987, tal fronteira alimentava-se de recorrentes polarizações discursivas em torno do tráfico e do consumo. Nesta representação dicotómica, o consumidor surge como figura doente, carecendo de tratamento, frágil e à mercê da figura complementar – o perverso, todo-poderoso e implacável traficante, carecendo de (cada vez mais) cadeia. Assim o notaram, de igual modo, Dorn et al analisando as metamorfoses que se insinuaram a partir dos anos 70, e se fixaram na década seguinte, na percepção pública das duas realidades:
Drug users became described as weak personalities, typically trapped in deprived environments, who had been led astray by misguided peers and unscrupulous drug pushers. They were sick or immature, and required treatment, counselling, or simply a safe space to grow as people. Drug dealers, on the other hand, come to be perceived as belonging to a quite different category. One word suffices to describe them: “bad” and, as reaction hardened, “evil” (1992: 178)2.
15Ora, Valentim (1997: 88-89) referiu, para Portugal, não só a circulação de papéis entre tráfico e consumo, ou a sobreposição de estatutos nas populações alvo do aparelho policial, como ainda, a partir da década de 90, a homogeneização do perfil sociográfico de traficantes, traficantes-consumidores e consumidores, todos eles igualmente desqualificados. Esta similaridade ou justaposição sociológica não é, porém, suficiente para compreender como, do ponto de vista emic, se esbateram as fronteiras entre tais categorias na prisão, deixando de fazer sentido para as reclusas. Afinal, apesar de no passado aqueles papéis se revelarem menos intermutáveis e de muitas traficantes serem estrangeiras e correios internacionais, as discrepâncias sociológicas entre aquelas categorias de representação não eram de grande relevo. Chaves (1999a: 289-295) proporciona-nos alguns dados etnográficos esclarecedores a propósito da clivagem representacional entre tráfico e consumo no interior do Casal Ventoso. Segundo o autor, se os consumidores não autóctones que frequentam ou se transferiram para o bairro são inferiorizados e estigmatizados pelos seus habitantes, o mesmo não se verifica com os consumidores autóctones, que usufruem de um estatuto semelhante ao de qualquer outro filho do Bairro. Na verdade, a subalternidade e dominação interna dos primeiros parece decorrer principalmente do facto de serem representados como fonte de insegurança e como propagando má-fama ao conjunto dos residentes. Não se colocando tal problema em Tires, os laços de parentesco, amizade e vizinhança que unem reclusas traficantes e traficantes-consumidoras tornaram irrelevante o jogo da distinção ancorado na dicotomia tráfico/consumo, uma irrelevância que, por extensão, é transversal a todo o universo prisional, ainda que por diferentes razões: o círculo dos próximos tornou íntimas, familiares estas categorias de representação, desestigmatizando-as reciprocamente antes e durante a prisão; e a proximidade sociológica e interpessoal entre elas é por sua vez bem perceptível aos olhos das detidas extrabairros, levadas também elas a diluí-las quer na categoria por droga, quer ainda na noção de vício.
16Por um processo similar, esboroaram-se outras barreiras criminais e simbólicas que não apenas aquelas que se erigiam a partir da dicotomia tráfico/consumo. Recapitulemos as razões pelas quais perdeu localmente pertinência a maior parte das distinções entre crimes que vigorava no passado. Em primeiro lugar, uma razão de número e escala: a esmagadora maioria da população de Tires encontra-se presa por tráfico e, nesta classe, as reclusas deixaram, sequer, de se arrumar respectivamente em traficantes e traficantes-consumidoras. Em seguida, há uma convergência entre tipos de crime que têm como denominador comum uma conexão à droga, levando a que sejam incluídas na macro-categoria por droga mesmo a maior parte das condenadas por crimes como furto, roubo e cheques sem provisão. De resto, assegurava-me uma natural do Casal Ventoso,
No geral é tudo igual, damo-nos todas bem. Antigamente acho que faziam as diferenças, eu cheguei a ouvir isso lá fora. Eu cheguei aqui, não dei por nada. Tanto se junta a que vendia [droga], a que passou cheques, a que roubava para consumir... Cada qual tem o seu defeito.
17Uma terceira ordem de razões, por fim, parece ter conduzido à reformulação de todas estas fronteiras entre as reclusas, diluindo-as. Com efeito, na sua vida pré-prisional tais categorias encontravam-se já misturadas – para começar, logo no contexto da família ou do agregado doméstico. Assim, e para citar um dos cenários combinatórios mais frequentes, uma traficante não consumidora terá um marido consumidor (ou traficante-consumidor) e um filho heroinómano que furtou valores e objectos de casa para vendê-los alhures.
Corpos solidários
18Ora, esta conjunção pré-carceral de categorias prisionais é também homóloga e coerente com a que se verifica num outro domínio da vida penitenciária. Em absoluto, a situação de reclusão é em si própria propícia à exacerbação do receio de contrair doenças transmissíveis várias, ao implicar a coabitação forçada dos internados, a participação conjunta nas actividades quotidianas e a utilização comum das mesmas instalações e utensílios, sendo difícil furtar-se a uma e a outra, ao que se poderá adicionar os eventuais efeitos psicológicos do huit-clos. Há uma década, porém, o enfático temor do contágio, sobretudo relativo a síndromes e doenças como a sida e a hepatite B, era em acréscimo especialmente apropriado para exprimir física e metaforicamente a distância e a não identificação entre as reclusas. A tensão entre a dissolução dos limites interpessoais operada todos os dias pelo dispositivo prisional (pense-se na ausência de privacidade) e o ensejo de reposição de fronteiras identitárias e simbólicas parecia encontrar aqui um campo de explicitação particularmente adequado. A pronunciada demarcação higiénica, declinada, por exemplo, quer nas manifestações privadas quer na ostentação pública do receio de sentar-se nas cadeiras utilizadas pelas co-detidas, decorria da noção de uma ameaça difusa e omnipresente – que estas representariam. O mal, como me dizia uma reclusa, pode vir de qualquer lado. Este mal era, por assim dizer, de largo espectro uma vez que não se limitava à referência microbiana, mas comportava, também, uma dimensão moral. De facto, circulava o medo da contaminação deliberada, provocada intencionalmente. Por isso, mesmo as reclusas que defendiam para o mundo exterior o princípio da não segregação de pessoas afectadas por problemas infecto-contagiosos solicitavam em contrapartida a criação, na prisão, de unidades separadas para uma variedade de afecções, desde as doenças venéreas à sida. No caso do HIV, desenvolvia-se uma suspeição generalizada entre as detidas, que empreendiam então um processo de identificação das seropositivas através da interpretação de vários sinais: uma reclusa que obtinha uma libertação considerada demasiado fácil dada a sua situação jurídica; certas outras que sofriam uma revista pessoal quotidiana mais ligeira (ou que numa determinada ocasião não haviam sido de todo revistadas); cuja cela era objecto de inspecções menos rigorosas por parte do pessoal de vigilância; outras ainda que eram pouco importunadas pelas guardas no dia-a-dia prisional (porque teria sido, decerto, a doença que lhes inspirara sentimentos de compaixão, Cunha, 1996: 81).
19Hoje, assim não acontece. Tal é tanto mais significativo quanto a prevalência das doenças que as reclusas mais receavam terá aumentado substancialmente. Um membro do staff informou-me que a percentagem de detidas infectadas, por exemplo, com o HIV se situava acima dos 20%3 – enquanto esta seroprevalência em Tires não era, há dez anos, superior à da população em geral; em segundo lugar, se há uma década a automutilação era uma realidade ausente de Tires, actualmente pontua o seu quotidiano4. Poder-se-ia supor, por isso, ampliadas as inquietações do passado face a estas usuais incisões nas pernas, braços e antebraços a que procedem as co-reclusas. Aliás, a frequência de tais práticas acabou por impacientar o pessoal penitenciário, que, de resto, as desvaloriza:
Corta-se na medicação – elas cortam-se; os amores não vão bem – cortam-se; a chefe não lhe deu atenção – corta-se; até uma, que não conseguiu fazer um telefonema porque já estava na hora do fecho: «Não posso telefonar? Então corto-me»! Isto devia ser assim: cortam-se, pagam o tratamento. [Na verdade as reclusas submetem-se muitas vezes a uma espera interminável, amontoadas junto ao gradão, para poderem telefonar. O particular telefonema de que fala esta guarda era, além disso, de uma importância fulcral para a detida em causa.]
20Num quadro da direcção a exasperação não era menor:
Isto é por ciclos e por imitação. Começa uma e seguem-se as outras. É mais para chamar a atenção. Também muitas têm problemas de desordem mental. Agora a política é não estar com mais contemplações. Castiga-se e fecha-se, pronto5.
21Sucede então que em vez de se avivarem num terreno que os potenciaria, os espectros do contágio atenuaram-se. Diversamente do passado, além disso, as precauções tomadas – quando são tomadas – são de ordem estritamente sanitária e não se desdobram em quaisquer reverberações morais. Assim, nunca me deparei com a mise-en-scène distanciadora, fosse através de palavras ou de comportamentos. Constata-se mesmo uma preocupação de sentido inverso: não contaminar (com uma constipação, uma gripe, uma micose, por exemplo) uma reclusa seropositiva ou com sida, com o sistema imunitário fragilizado. Mais uma vez, trata-se de uma realidade muitas vezes próxima antes da prisão: um primo, um irmão, um filho com o HIV. Por outro lado, no que respeita às consumidoras, várias comunicaram-me terem partilhado drogas e seringas com parentes, amigos e vizinhos, embora conhecessem os factos básicos sobre as vias de transmissão do HIV, pelo que a questão do contágio não se lhes punha de maneira premente já antes da reclusão (para este tipo de partilha entre os próximos ver também Viadro e Earp, 1991: 15). Mas mesmo que não se dêem ambos os casos, restam proximidades de outra ordem e, de qualquer modo, a distanciação deixou de operar em sistema. Uma detida do Casal Ventoso, ex-toxicodependente, deu-me conta do único episódio de discriminação que testemunhara na cadeia, procedendo a um inesperado desvio explicativo pelas populares virtudes «desinfectantes» da água fria:
As seropositivas aprenderam muito com esta vida. Foram elas que me deram os melhores conselhos: «Não tomes calmantes, olha para mim. Tu tens filhos, não te metas na droga. A mim o bicho está cá dentro a roer-me toda. Não é por ti, é pelos teus filhos. Eles é que choram com a tua morte». A gente tem muito respeito por elas, e elas têm cuidado connosco. Só uma vez é que houve aí uma discussão de uma presa com uma. Havia um problema com a água – há muitas vezes falta de água, só para os jardins é que nunca falta – e só estava um duche a funcionar. A água vinha a escaldar. Estava uma a lavar-se e a seropositiva começou a ter hemorragias. A outra ficou com medo e começou a discutir. Mas também era porque a água estava muito quente. Se fosse água fria, o bicho só vivia uns segundos. Mas como era quente, o bicho ficava mais activo.
22Por sua vez, uma bem impressionada guarda, já contemporânea do meu primeiro trabalho de campo, contava-me da sua relativa surpresa pela ausência de resistência que encontrou o seu cuidado de integração das reclusas seropositivas, um acolhimento de onde diz, de resto, ter colhido um exemplo6:
Eu tenho cuidado para elas não estarem à parte, integro-as sempre com as outras. Pensava que ia ser difícil, mas não. Há uma grande solidariedade das presas, não as põem de parte. Bebem água do mesmo copo, não se põem com coisas com a louça... Para mim foi uma lição. É uma lição para toda a gente. Olhe que também as seropositivas merecem. São pessoas muito lutadoras, querem fazer tudo como as outras, até mesmo em fase terminal. Às vezes ficam muito cansadas, têm que se sentar, mas tentam trabalhar como as outras até ao fim. Querem mostrar que são capazes. Havia uma já muito doente, que foi para o hospital e gostava muito de mim. Não tinha família, parece que tinha muita gente presa. Passei muito tempo com ela. Os médicos e os enfermeiros usavam luvas, mas eu não, dava-lhe água e tudo sem luvas. Via que isso lhe fazia bem. Quando eu me vim embora, não falou com mais ninguém de tristeza, até morrer.
23Lembrando, todavia, as disposições do passado resta a pequena minoria de reclusas extrabairros, não abrangida na local transversalidade sócio-criminal da droga. Agora a uma escala residual, são essencialmente estas detidas quem traz ao presente, no mesmo registo, os anteriores regimes de percepção e discurso neste domínio:
Eu para o banho levo sempre uma bacia e uns chinelos. O meu maior medo até nem é da sida, é da hepatite B, que contagia mais facilmente. As outras não ligam, não querem saber. Parece que não têm consciência do perigo. Digo-lhe, uma pessoa até fica parva. A princípio fiquei intrigada, achava um bocado estranho, porque as pessoas assim mais do povo assustam-se muito com esta coisa da sida porque estão menos informadas. E então pensei, isto até é gente esclarecida. Mas não. Com a hepatite e as doenças que se pegam com facilidade é a mesma coisa. Não ligam. Quase nem falam nisso. Ou é por inconsciência ou é por ignorância. Só pode.
24Esta e outras reclusas do mesmo estrato social preferem, aliás, utilizar o balde sanitário do que recorrer aos WC comuns – quando no passado o balde era considerado degradante e reservava-se apenas para uso nocturno, durante o período em que as celas se encontravam encerradas:
– Olá Ziza, não esperava encontrá-la aqui a esta hora!
– É. Eu tenho mais tempo livre, não trabalho. Estou à espera que me encontrem um trabalho de acordo com as minhas habilitações. Mas eu entretenho-me: leio, escrevo, faço crochet. Agora ia ali fazer umas arrumações e desinfectar umas coisas...
– Desinfectar? Há algum problema?
– Não, não. É o balde. Antes quero usar o balde do que a casa de banho. Não é que não seja limpa, mas nem sempre é desinfectada. Eu prefiro o balde. Despejo, desinfecto com creolina, é mais seguro. Aqui há muitas doenças contagiosas: hepatite, sida... A sida ainda é o menos, mas acho incrível porem pessoas dessas na copa e na cozinha. Essas pessoas não deviam estar aqui, deviam ir para um sítio onde sejam mais bem tratadas. Aqui são as colegas que tratam delas. Estava aí uma que já não se levantava, cheia de feridas... Eram as colegas que tratavam dela. Depois insistimos para a levarem para o hospital e no dia seguinte morreu. Isto aqui com esta gente nunca se sabe, é preciso ter muito cuidado. Eu e mais umas usamos o nosso balde, a nossa louça, usamos chinelos no banho – temos que nos proteger.
25Por seu turno, uma detida do círculo da Ziza, a quem havia sido destinada a coabitação com uma jovem seropositiva, logrou trocar de cela com uma outra reclusa, pretextuando que, sendo esta do mesmo meio, poderia cuidar daquela e que, seguramente, se entenderiam melhor:
A miúda era seropositiva. Era muito arriscado porque era muito instável. Estava deprimida, fazia estragos... Pedi à Natália para trocar comigo porque ela também é do Casal Ventoso. Acho que já se conheciam lá de fora. São do mesmo meio, assim pode tratar dela. Fica muito melhor do que comigo.
26Este pedido de troca foi atendido sem a menor reserva pela Natália, que passou, com efeito, a «tratar» da colega, inclusive lavando-a e alimentando-a. Este tipo de assistência é, aliás, frequente, prestando-se também a toxicodependentes que entram na cadeia em síndrome de abstinência. São então ajudadas por algumas guardas experientes, mas sobretudo por colegas, entre as quais aquelas que passaram pelo mesmo, e reproduzirão mais tarde, por sua vez, estes gestos, oferecendo a ajuda que receberam a outras recém-entradas.
Entrei aqui a ressacar, não me aguentava em pé. Eram as colegas que me obrigavam a comer, que me limpavam, tiveram que me levar em braços para me lavar. Se não fossem elas... Ajudaram-me muito. Vinham ver como é que eu estava, davam-me tabaco, diziam-me o que é que eu devia fazer. Eu também faço isso porque temos que ser umas para as outras não é?
Eu soube que estava grávida na cadeia. Não dei por nada porque já não tinha menstruação há um ano, por causa da droga. Comecei a sentir uma coisa a mexer na barriga e disse à guarda. Ela pensava que era da medicação e disse-me «Oh, isso é cirrose!» – eu já estava de quatro meses. Depois uma colega foi-me dar banho para ir a julgamento e quando me estava a ensaboar a barriga disse-me «Ai aqui há pezinhos...» Comecei a ter muita fome. As colegas davam-me comida e começaram a desconfiar que eu estava grávida. E não é que estava?
27De resto, a entreajuda que vigora é de ordem mais genérica, por um lado, e, quando comparada ao passado, mais generalizada, fazendo com que a noção de amizade venha a ser localmente formulada pela primeira vez em modo directo, plural e abstracto, e não apenas indirectamente, a partir de uma relação individual e concreta (lembre-se que outrora ainda se admitia fazer corresponder uma determinada reclusa à noção de «amiga», para mais uma noção em certa medida sugerida por mim, mas o conceito de amizade carceral era definitivamente uma «tradução» do investigador):
Também não [me] foi difícil sobreviver aqui. Tive muito apoio das colegas. Eu não tenho visitas, mas elas repartem tudo comigo. Se não tenho tabaco dão-me, ou pago depois. Há muita ajuda aqui. Conheci aqui uma coisa que não conhecia lá fora, sabe? A amizade. As colegas são cinco estrelas.
28Dez anos atrás, este tipo de interajuda confinava-se aos pares de amigas preferenciais ou aos dois microgrupos de locatárias que cumpriam pena na enfermaria e no campo – assim eram designadas duas pequenas secções prisionais separadas do pavilhão, adaptadas para alojamento. É certo que na altura eu atribuí principalmente a afinidades sociológicas e penais a maior solidariedade no seio destas secções: numa, diziam-me as próprias reclusas, Temos níveis de vida e níveis intelectuais não muito diferentes; noutra, tratava-se de internadas de meios rurais, condenadas, na sua maioria, por homicídio. Mas ocorreu-me também, numa espécie de ingénuo determinismo ecológico, que a menor dimensão espacial destas unidades não seria alheia a uma tal proximidade. Embora equivalentes em escala àquelas secções, os actuais edifícios de RAVI congregam agora uma maior diversidade sócio-penal de detidas do que os maciços pavilhões principais – e o espaço reduzido vem precisamente evidenciar e realçar essas diferenças, que nas grandes unidades se diluem, por minoritárias. É assim que a Mina, transferida para RAVI, apesar de ter consigo uma amiga do bairro comunicava-me uma percepção bem contrastante com a que trouxera do pavilhão:
Isto aqui é mais luxuoso, mas havia muito mais união no pavilhão [a amiga assente enfaticamente]. As pessoas ajudavam-se muito, repartiam umas com as outras. Aqui não repartem, até bons restos deitam fora. Há para aí umas cheias de manias, mas estão sempre a controlar, a meter-se na vida da gente. No pavilhão nunca me faltou um bolo, um café. Desde que vim para aqui nem uma bolacha!
29Talvez estas razões ajudem a esclarecer a renitência das detidas em aceitar transitar dos pavilhões centrais para estas unidades, uma transferência muitas vezes necessária para descongestionar os primeiros, já repletos. A Direcção queixa-se da resistência ao que até seria uma promoção nas condições de alojamento, vendo nela apenas o receio de uma perda de privacidade, e pressiona à transferência informando que só ela permitirá aceder a um regime de execução da pena mais aberto. Nos pavilhões deparei-me, além disso, com manifestações de solidariedade organizada e à grande escala: cotizações inter-reclusas a favor de colegas particularmente desmunidas na iminência de sair, cujo magro fundo de reserva não lhes permitiria fazer face aos primeiros tempos de liberdade: abaixo-assinados intercedendo por detidas alvo de castigos considerados injustos ou excessivos. Num pavilhão, dois deles foram assinados por 250 reclusas (num total de 298). Um dizia respeito a uma altercação entre duas internadas, da qual resultou uma agressão: a punição inicialmente decretada foi suavizada em duração e no regime (do manco ou cela disciplinar passou-se a encerramento em cela de habitação); outro objectava à acusação de insulto a uma guarda, acabando a detida acusada por ser absolvida. Refira-se, de passagem, que há dez anos apenas testemunhei duas acções concertadas de amplitude análoga. A primeira mobilizou as prisioneiras na subscrição colectiva de um texto dirigido a várias instâncias, onde se exigia a divulgação dos resultados dos rastreios efectuados na prisão e o isolamento das co-reclusas afectadas por qualquer doença transmissível: a segunda, de menor escala, envolveu as estrangeiras num protesto contra as condições específicas a que eram sujeitas em razão da sua nacionalidade.
30Actualmente, a mais popular organizadora destas e de outras iniciativas é a Violeta. De resto, a biblioteca que gere regista todos os dias um verdadeiro corrupio – em torno da sua pessoa, que não dos livros – ao contrário das bibliotecas dos restantes pavilhões, invariavelmente desertas. Sucede que além de popular, a Violeta provém de classes populares, possuindo contudo um capital escolar (9.º ano) superior ao da maioria de reclusas de mesma extracção, pelo que também se presta a redigir-lhes pedidos e cartas. No pavilhão ao lado não têm idêntico sucesso as iniciativas empreendidas pela Maria Luísa, uma outra «bibliotecária» de igual militância cívica e empenhamento solidário – e envolvida ainda no associativismo recluso interprisional. Esta ex-líder, que situaria abreviadamente na classe média, deplorava agora o aparente facto de ninguém [querer] arriscar e recordava profusa e nostalgicamente os volvidos tempos gloriosos em que o seu activismo teria mobilizado as massas locais7. Descreveu-me uma destas acções de protesto, ocorrida, segundo ela, pouco depois de eu ter terminado o meu primeiro trabalho de campo. É de notar, porém, o grão de areia desta coesão, uma coesão de superfície que rapidamente degenerou na confusão e no caos:
Foi uma altura muito problemática. Houve uma série de suicídios, faziam falta psicólogos e psiquiatras, começavam a chegar as drogadas sem assistência nenhuma, que precisavam de uma assistência profissional... No dia em que se suicidou uma argentina, estávamos no refeitório e eu disse que nós não jantávamos enquanto a senhora, directora não viesse falar connosco. Só que há uma cigana que olha para o subchefe e diz «Tenho fome...» E ele disse: «Então venha buscar o prato». Eu, muito democraticamente, acho que se as pessoas não querem aderir não faz mal. Mas uma que não gramava a cigana – já tinha tido uma pega com ela – foi buscar o termos e quando vem agarra no prato e dá com ele na cara da cigana. Aí o chefe vai para bater nela, ela vai com o termos para bater no chefe... Bom, só lhe digo uma coisa: foi um charivari tão grande naquele refeitório que andavam panelas pelo ar. E eu calma e tranquila. Às tantas chamam as outras guardas todas e uma chega ao pé de mim e diz assim: «Ó Maria Luísa, contenha-me estas mulheres». – «Ai eu é que tenho de conter estas mulheres?» E eu disse: «Ó meninas, elas não querem exercer violência sobre vocês. Já fizemos o protesto, vamos para a cela».
31É verdade que as actuais reclusas permanecem alheadas das iniciativas da Maria Luísa – tanto quanto se investem, em contrapartida, nas da Violeta. A diferença parece residir quer nos objectos de protesto escolhidos por uma e por outra, quer no espaço social de inserção das respectivas proponentes. A Violeta propõe uma solidariedade para com um nome e um rosto que, em acréscimo, é frequentemente uma de nós – definindo esta expressão uma zona de identificação elástica, mas excluindo uma parcela minoritária da população prisional, quase sempre as reclusas extrabairros; a Maria Luísa propõe uma causa que envolve menos pessoas do que as condições permanentes que as afectam, ou categorias de pessoas com as quais a identificação é muito remota (por exemplo, as estrangeiras que solicitam a transferência para o Funchal, onde é mais fácil à família visitá-las dado a cidade se encontrar mais bem servida de voos directos e económicos a partir dos seus países de origem). Em segundo lugar, ao contrário da Maria Luísa, a Violeta é considerada uma entre iguais, susceptível de sofrer o mesmo tipo de consequências, de as medir e de as enfrentar, oferecendo, nesse sentido, maior confiança. Veja-se o perfil da Maria Luísa, corrosivamente traçado por uma detida do Casal Ventoso:
É a revolucionária. A gente chama-lhe a Doutora. Está sempre a querer fazer revoluções, abaixo-assinados, mas se for preciso na hora de rebentar a bomba encolhe-se, não dá a cara, são as outras coitadas que têm represálias. Sobra sempre para nós, a maralha. Eu já lhe disse que tenho muita pena, mas dali não assino nada. Tenho uma pena muito longa, tenho de pensar nos meus filhos.
32A minoria de detidas extrabairros, não por droga, é normalmente excluída deste círculo de práticas e percepções de solidariedade alargada, mas ela própria se exclui desse todo, em relação ao qual se demarca e vinca distâncias. Referi já aquelas que se exprimem através do temor do contágio físico relativo a afecções de colegas, ou seja, a doenças que são, em si mesmas, pegadiças. Mas a utilização de toda a sorte de recipientes próprios não decorre apenas desse receio. São estas reclusas que se munem de tupperwares com os quais vão buscar comida ao refeitório, tomando depois a refeição na cela, ou que, não dispondo deles, para lá convergem mais tarde, quando não há tanta mistura de gente. Quando perguntei a um destes grupos-tupperware se era costume que pratos e marmitas fossem mal lavados, a resposta foi unânime: que não, mas tinham nojo de servir-se da louça usada por toda a gente8. Além disso, acrescentaram, nem assim se sentiam menos humilhadas já que tinham de pedir comida às presas da copa. Por outro lado, são ainda estas detidas que quotidianamente se manifestam incomodadas – dir-se-ia, com mais propriedade, acossadas – pelos barulhos da prisão: os do movimento de portas, gradões e ferrolhos, e sobretudo os das vozes; não de quaisquer vozes, mas de uma altissonante vozearia popular, que a acústica carceral amplia (São pessoas habituadas a falar assim, está-lhes no sangue. Não conseguem falar baixo). Principalmente dizem-se perseguidas pelos cheiros. Mais uma vez, porém, não qualquer cheiro. Se as minhas narinas se sentiam particularmente perturbadas pelos penetrantes odores do estrume da quinta prisional, dos restos de comida das marmitas vazias, da omnipresente lixívia e quejandos desinfectantes generosamente derramados por todos os recintos (partilhando pelo menos as duas últimas incomodidades olfactivas com a maioria das reclusas, que também as referem), as detidas da minoria queixam-se acima de tudo dos odores das outras, mais propriamente do odor do «outro»: É este cheiro a suor, a catinga, as drogadas que vomitam... É um cheiro que se entranha na cadeia, entranha-se na gente9. A partir da asserção desta reclusa pode-se falar, então, de «osmologia» (osmos, de odor, osmé, de infiltração, pese o artifício homofónico, que não a etimologia). Na verdade, o olfacto põe em jogo categorias e seus limites10. Os odores possuem precisamente essa qualidade de se desprender dos corpos e de atravessar fronteiras. São por isso especialmente apropriados para exprimir a ideia de contágio ou de acção à distância. Assim o notou David Howes (1991) a propósito do papel que eles desempenham nos ritos de passagem e da recorrente conexão cultural entre odores e configurações liminares, um ponto igualmente observado por Gell (1977), para quem o olfacto seria mesmo o sentido por excelência da liminaridade11. Por outro lado, aliás, não terá sido por acaso que as prisões, como avançou Alain Corbin (1986), se assumiram no século XVIII como laboratórios de experimentação da ventilação, da desodorização e de outras técnicas sanitárias que, de seguida, se generalizaram às habitações familiares: a ambição higienista encontrava-se então declaradamente cometida a uma preocupação moralizadora e ao ensejo de evitar o contágio criminogéneo. Às reclusas de que falei preocupa-as, como há uma década, um outro contágio, um outro nivelamento: aquele que dissolve as fronteiras entre os corpos, que esgaça os limites entre pessoas e categorias de pessoas12. Onde se queria distância, impermeabilidade e diferença, o odor homogeneíza e sincroniza (Howes, 1991: 5).
33Sabemos já que no passado a vida na prisão se traduzia, em grande parte, num exercício de delimitação de fronteiras, exercício esse agora quase imperceptível e limitado a uma discreta minoria de detidas. Nesse sentido, assim como a globalidade da população reclusa deixou de se pautar pelo obsidiante pavor da contaminação microbiana e de o subsumir no mais amplo receio da insalubridade natural das co-prisioneiras (que, por na verdade se tratar de uma poluição simbólica, se propagaria às coisas e resistiria a qualquer lavagem ordinária), também não se vê ontologicamente afectada por certos barulhos e certos odores. Quando muito, a incomodidade que provocam será da mesma natureza da induzida pelos restantes. Não se lhes atribui, como algumas internadas, uma propriedade distinta por emanarem de uma categoria particular de pessoas que os tornaria especialmente intoleráveis. Emanam genericamente, como todos os outros, do ambiente físico e humano da prisão. Assim, apesar de se partilhar uma exposição sonora e olfactiva comum, não se fala do mesmo modo o idioma dos ruídos e dos cheiros. No que toca à maioria da população reclusa, alijado da sua sobrecarga de sentido, ele deixaria, acima de tudo, de ser falado. Hoje como ontem, por conseguinte, as ordens sensorial, cognitiva e social esclarecem-se reciprocamente, sendo no corpo e pelo corpo que elas se intersectam.
34Começámos por ver que o sentido da experiência corporal é mediado pelas práticas e relações sociais. Ora, o corpo constitui com efeito uma importante cena performativa dos jogos identitários da prisão. Terence Turner (1994) aludiu ao estatuto do corpo no Ocidente, onde é a base de enraizamento e de produção da noção de pessoa. Sucede que no contexto ocidental a noção de pessoa é marcadamente individuada, e o corpo é o suporte e a expressão desta individuação. Diga-se que o conteúdo destas definições não é universal. O próprio T. Turner (1995) mostraria como entre os Kayapo da Amazónia o conceito de sujeito não delimita uma entidade íntegra (de algum modo é também neste sentido que Marylin Strathern, 1988, contraporá aos «indivíduos» ocidentais os «divíduos» melanésios, ou seja, o sujeito é localmente entendido como consubstancial às relações sociais), tal como o conceito de corpo não recorta uma entidade unitária. Aliás, ainda quanto aos Kayapo, o corpo não seria em si mesmo um objecto de representação. Sê-lo-iam sim os diversos aspectos da corporalidade, pelos quais se manifesta. E Thomas Csordas (1994) refere ainda o exemplo dos Canacas da nova Caledónia estudados por Maurice Leenhardt, onde pessoas e coisas se subsumiam numa ordem sociomítica global. A ideia de individuação ter-se-ia desenvolvido no contacto com os europeus e, significativamente, acompanhou-se da explicitação da noção de corpo como totalidade física discreta. No caso das reclusas de Tires, dado o sistema de oposições recíprocas e a dinâmica da distanciação que no passado – e residualmente no presente – estruturavam a identidade na prisão, por maioria de razão se manifestava de modo mais enfático essa matriz cultural ocidental, tornando-se particularmente nítido o elo entre o sentido individuado do eu e o corpo. Tal equivale a dizer que se reificavam ainda mais os contornos justapostos de um e de outro. De resto, não é por acaso que estas instituições atingem o primeiro através de uma acção sobre o segundo (pense-se no nivelamento dos corpos e da aparência pelo porte de amplos e informes uniformes prisionais); tal como não é acidental que a resistência à prisão tivesse passado há uma década por um sobreinvestimento na aparência (por relação à vida antecarceral) e por uma extrema focalização no corpo (ver Cunha 1996). Como defendeu Drew Leder, (1990: 90-91), um corpo mudo e ausente no dia-a-dia reimpõe-se à consciência aquando das suas disfunções ou de anomalias que o implicam. Neste caso, a consciência aguda da corporalidade ia de par com a sua alienação por via de um controlo exercido do exterior. E numa situação de clausura está-se permanentemente à escuta dos sinais do corpo já que a resolução de um eventual problema de saúde não depende apenas da iniciativa das reclusas e da disponibilidade do médico. Entre ambos interpõe-se um processo burocrático extramédico cujo desenlace, do ponto de vista daquelas, é incerto. Daí que, hoje como outrora, d(ec)upliquem os pedidos para a marcação da mesma consulta e que o staff as encare como irredutíveis hipocondríacas. Mas ontem, em acréscimo, a consciência exacerbada do corpo era também a consciência do esboroar das barreiras entre corpos e entre indivíduos, pelo que se procurava preservar as fronteiras do sujeito através da protecção de uma impermeabilidade corpórea.
35Não era apenas o acotovelamento constante com as co-detidas que era vivido como invasivo da esfera individual: trata-se aqui de um efeito da sobrelotação sobre esse para-sentido que é a proxémia – quer dizer, a relação social, culturalmente definida, com o espaço (Hall, 196913). A exposição permanente ao olhar de outrem resultava particularmente intrusiva na esfera privada. Várias reclusas sofriam de problemas metabólicos (obstipação, cálculos renais) em consequência de inibições decorrentes da coabitação celular, dado o forte sentimento de pudor e opróbrio face às manifestações e excreções corporais. Na senda de Norbert Elias (1973: 193-204), que situa estes sentimentos na História (ou mais precisamente em etapas de um particular «processo civilizacional»), David Le Breton vê-os como um avatar de uma não muito longínqua «privatização do corpo», que iria «encerrar as funções corporais no estrito domínio da intimidade» (1991: 115). No presente, todavia, é frequente que as colegas de cela se encontrem precisamente no círculo dos íntimos, ou dos próximos. Parentes, amigas e vizinhas não atentam criticamente contra esta integridade pessoal – assim o parece quando este aspecto deixou, sequer, de constar como tema local. Em contrapartida mostram-se mais vulneráveis as reclusas da minoria. Uma delas, depois de me dizer não frequentar o recreio por lhe fazer confusão ver as presas demasiado à vontade (meio desnudadas) em banhos de sol e por recear ficar com má-fama junto do staff, que a poderia associar à malta dos bairros e da droga, contava-me ainda que:
Para me despir na cela ponho uma cadeira e uma toalha à frente e peço [à colega] para se virar. Quando preciso de ir ao balde, a mesma coisa. Isso é que custa. Quando vou tomar banho, só ao entrar no duche é que tiro o roupão e a toalha. Um dia ouvi bocas, porque quando ia a começar entraram duas presas, e eu saí logo. Puseram-se: «Ai que esquisita!» E eu disse que não era obrigada a ver as outras e que entrava depois.
36Ora, várias vezes me deparei com o qualificativo de esquisita, invariavelmente invectivante, e em todas elas se tratava de causticar o comportamento distanciador (ou entendido como introduzindo uma distância) por parte de alguém, reconduzindo esse alguém à condição do comum dos mortais – neste caso, do comum das prisioneiras, cuja comunidade se traduz, já o sabemos, na categoria por droga. É bom de ver que as visadas são quase sempre as reclusas extrabairros, sobretudo no início, quando ainda não estão claramente identificadas como tal e a sua conduta é considerada intrigante.
37Não se punha nesses termos a questão com a Mina, uma cabo-verdiana condenada por tráfico. Mas, justamente por ser vista como uma igual, a sua atitude tornou-se mais conspícua e foi considerada ainda mais ofensiva. O que acentua o carácter revelador dos seguintes episódios é que a única falta da Mina foi a de não pedir, sendo certo que, dentro da categoria por droga, a oferta não é geralmente nem agonística nem caridosa, exercendo-se antes como uma simples partilha. Vejamos um entendimento verdadeiramente maussiano da dádiva:
Estão-me sempre a acusar que eu sou esquisita, porque eu não peço nada a ninguém, mesmo se não tenho. «Não pede, é esquisita»; «Ai, é esquisita, pensa que somos menos que ela». Não imagina o que é... Estou a ficar com os nervos em pé por causa disto. Não é por mal, é que eu não quero ficar a dever favores. Quem dá, fica por cima dos outros e eu não quero ficar por baixo.
38Num momento bem posterior, a Mina produziria o entusiástico relato atrás mencionado (supra: 266) sobre a solidariedade do pavilhão, uma solidariedade que acabou por abraçar e aceitar sem reservas. Quer dizer que, onde ontem o desvinculamento ostentatório era a norma, hoje é desvio; onde o que perturbava eram os signos e processos de homogeneização, no presente são os signos e processos de distinção; onde se tentava conservar a diferença, procura-se agora preservar a semelhança. Acontece que no passado a interposição de fronteiras era situável basicamente no plano interpessoal, tratando-se de enjeitar o nivelamento estigmatizante pela condição reclusa. Hoje, porém, a demarcação que subsiste de maneira muito limitada e quase imperceptível no quadro geral comporta ainda uma acentuada dimensão de classe. As prisioneiras da minoria não se distanciam tão somente das co-prisioneiras. Distanciam-se, também, da malta dos bairros e da droga. De facto, a clivagem social é demasiado cavada para ser mascarada por quaisquer outras hierarquias intraprisionais, quando há uma década estas pouco repercutiam a estratificação pré-carceral. Exercidas no interior da categoria por droga, as raras veleidades distanciadoras são sistemática e vivamente censuradas e, como vimos a propósito da Mina, consideradas ilegítimas: não se vendo como menos que ela, as colegas escarneceram das pretensões que lhe atribuíram e rapidamente a reabsorveram numa comunidade através da dádiva. E ao contrário do que a Mina vaticinava, a dádiva não a inferiorizou, apenas a realinhou pelos iguais.
39A categoria por droga parece, na verdade, definir na prisão uma zona de identidade e agencialidade colectiva bem menos circunstancial do que as que pontualmente se geravam no passado, de resto então virtualmente inexistentes. Ela constrói-se, é certo, contra as reclusas fora dela, mas também por via do parentesco, da amizade e da vizinhança, por um lado, e, por outro, por via da classe e dos comuns estigmas pré-prisionais. Relevo nesta identidade quer a acepção processual de «identificação», quer a acepção mais depurada do termo, relativa a «idêntico». É nesse sentido que se poderá ainda falar de uma «comunidade», comunidade esta que tem, aliás, uma tradução tanto nas práticas (tome-se como exemplo as várias formas de solidariedade e entreajuda atrás referidas) quanto nas representações. É assim que, enquanto outrora as co-reclusas não eram dignas, sequer, de serem designadas por colegas (uma designação que só ouviria pela primeira vez em Tires no segundo trabalho de campo), são agora constantes as reiterações do género Estamos todas no mesmo barco. Há, de facto, um sentimento de comunhão e pertença que não existia no passado. A comunidade é produzida e afirmada espontaneamente, não imposta pelo dispositivo penitenciário e vivida como uma ameaça pelas detidas. Por isso deixou de se enaltecer e, por assim dizer, patrulhar com o mesmo vigor a fronteira corporal como forma de salvaguardar a integridade individual. E se era com e pelo corpo que se lutava pela individualidade, também é com e pelo corpo que hoje se exprime a comunidade.
40É neste âmbito que podemos pensar algumas das versões actuais dos ataques, atribuídas pelas reclusas aos nervos. Trata-se de episódios de prostração ou paralisia parcial pelos quais uma internada tomba inerte no chão. Desmaiando ou sem verdadeiramente desfalecer, queda-se imóvel, podendo queixar-se de não sentir as pernas ou de ficar descaída, sendo então necessário arrastá-la14. Pontuando o quotidiano prisional, tais episódios ocorriam no passado na sequência, por exemplo, de altercações e tensões com outras presas ou com membros do pessoal. Apesar da sua espectacularidade, eram acolhidos por guardas e detidas com uma relativa fleuma e apenas suscitavam um leve burburinho. O staff subsumia-os na expedita noção de histeria e as co-reclusas tendiam a desdenhá-los como tentativas de protagonismo (É para chamar a atenção). Embora estes fenómenos continuem hoje a veicular infortúnios privados ou a comunicar problemas que afectam individualmente uma determinada detida, assumem também de tempos a tempos uma dimensão expressiva para-colectiva. Assim, registam-se por vezes ataques simultâneos, uma sintonia dos corpos demonstrativa – e (per)formativa – da sintonia das almas15. Um grave problema de uma é vivido como um problema de todas. É, mais uma vez, um sentido de comunidade que deste modo se exprime, sendo irrelevante destrinçar o sentimento de solidariedade para com a colega da percepção de que a infelicidade que a atingiu poderá vir a ser a infelicidade de cada uma. Foi esse o caso com a Encarnação:
A Encarnação está de regresso a Tires. Tem dois filhos. O de 5 anos estava com uma irmã. Agora a irmã veio presa e o miúdo foi transferido para a cunhada, com quem a Encarnação não queria em absoluto que ficasse. Mas não é esse o maior dos seus problemas. Desta vez apanhou uma pena de 20 anos (por tráfico) e dificilmente acederá à liberdade condicional. Tem 34 anos. Foi esta notícia que pôs todo o pavilhão em alvoroço. Mal as reclusas souberam, foi um clamor geral. Umas exclamavam com a mão no peito, outras gritavam, várias tombaram ou desmaiaram. Até as guardas ficaram estupefactas. Deve ser por isso que a deixaram em paz e não a repreenderam quando foi de pijama para o convívio, o que é proibidíssimo. [Caderno de campo.]
Os corpos e os bairros
41Vimos que no que toca à quase totalidade da população de Tires se diluíram as fronteiras entre crimes e entre corpos, uns e outros tornados fungíveis em boa parte em razão dos vários avatares da erosão da fronteira prisional. Não é o menor deles o facto de a prisão não ser mais o que claramente desencadeia, inaugura e assinala às reclusas o seu estigma. Como tal, os crimes e os corpos deixaram localmente de ser bons para manobrá-lo e combatê-lo, permitindo multiplicar as barricadas internas. Se findou o combate individual que se iniciava com e por causa da prisão, como actuam formulações da identidade anteriores e alheias a ela, como as que se radicam no bairro, na «raça» ou na etnicidade? Tal questão é tanto mais pertinente quanto, ao contrário do que acontece com os crimes, é a co-presença na diversidade que impera. Gerará tal diversidade alinhamentos sociais e representações da diferença?
42Falemos previamente da repartição Norte-Sul (o Sul é emicamente traduzido pelas nortenhas em Lisboa, apesar de muitas das colegas aqui incluídas provirem de distritos bem mais meridionais). A julgar pela sua recorrência discursiva, um olhar apressado poderia ver na dicotomia Norte-Lisboa uma clivagem maior da vida prisional – além do que a proveniência geográfica da população reclusa se reparte maioritariamente, com efeito, nestas duas grandes categorias. Todavia, para as do Sul as do Norte apenas existem como tal quando delas troçam e as arreliam a propósito do sotaque e do uso liberal que dão às obscenidades linguísticas. É certo que algumas – as «lisboetas» extrabairros – dizem-se chocadas com o que se lhes afigura uma repugnante manifestação do popular. Mas a maioria limita-se a ver naquele vernáculo um pitoresco motivo de divertimento e a tomar os profusos palavrões por aquilo que são: não um insulto, mas um bordão de linguagem. Quanto às do Norte, apenas assim se dizem quando esta distante origem residencial as une na maior dificuldade que enfrentam para receber visitas e para usufruir plenamente das precárias, dispendendo grande parte do tempo e dinheiro em viagens. Por contraposição, é na medida do seu privilégio neste âmbito que ganham existência as de Lisboa, uma categoria que não é mais do que uma referência comparativa usada pelas nortenhas para sublinhar a terceiros a desvantagem em que se encontram, sem que isso veicule qualquer implícita depreciação das colegas. Trata-se tão-só de condenar o sistema prisional. A tal se resume o recorte Norte-Lisboa, não se repercutindo em nenhuma outra área da vida carceral, e muito menos na convivialidade local, onde as detidas de ambos os lados se entrosam.
43O bairro, esse sim, é um referente identitário importante e é investido como lugar de pertença. Esta pertença pode ser codificada por uma tatuagem específica. Assim mo assegurou uma detida, que me explicou serem os pontos que marcara na face a assinatura do seu bairro (É porque sou da Musgueira). Porém, outras reclusas, de outros bairros, ostentam o mesmo sinal: um ponto ao cimo de uma face e um outro na face oposta, no canto inferior da boca. Usa-se assim, ou Agora vê-se muito, foi o que, por sua vez, me informaram. A sua valência parece ser, por conseguinte, essencialmente decorativa. Gadget simbólico ou não – ou, como muitos símbolos, plurívoco –, pode ostentar para algumas uma pertença, mas não pretende delimitar uma fronteira já que, sendo amplamente emprestado e partilhado por muitas, não tem um carácter distintivo e portanto não terá, nesse sentido, eficácia. Não se trata então, como as tatuagens de uma prisão americana estudadas por Margo Demello (1993), de traçar limites e significar diferenças (de bairro, de gang ou étnicas) entre categorias de pessoas. O mesmo se passa com outros ícones que, à semelhança do que sustenta Demello, poderiam exprimir de igual modo em Tires o estatuto recluso. Contam-se entre eles a quina de pontos entre o indicador e o polegar (dizendo, segundo algumas detidas, o cerco das grades ou da cela) e o trevo, os vértices de um triângulo numa mão. O trevo é um voto de que a carreira prisional se interrompa a breve trecho (É para cortar a cadeia às que já levam muitos anos disto), mas também o signo de que essa carreira é longa, de acordo com a Rosário (Já sou castarola). Adoptado nesta acepção, o trevo limita-se a inscrever no corpo uma história, uma história para evidentemente ser lida, por si e por outros, mas que não confere um especial prestígio, por exemplo promovendo as veteranas e distanciando-as das novatas. Era aliás com displicência, e não com orgulho, que a Rosário acedia a mostrar de perto o seu trevo às colegas que por vezes queriam comparar técnicas e tamanhos. Quanto à quina, não se reveste de um particular valor iniciático assinalando a entrada na cadeia. Várias reclusas já a traziam desenhada previamente, inspiradas, segundo contam, nas tatuagens de parentes, amigos e vizinhos que enfrentaram a detenção antes delas. É certo, por outro lado, que este símbolo é usado por uma grande variedade de pessoas no mundo livre e não se esgota na valência do cárcere (conheço quem lhe chame, simplesmente, «o solitário»), tal como o trevo será, para muitos, o signo da felicidade. No contexto destes bairros, contudo, um e outro situam-se, de facto, na órbita da prisão, estreitando-lhes o sentido e vergando-o a ela. Também aqui se trata, mais uma vez, da incorporação da prisão no bairro, literalmente inscrita, agora, na pele. É ainda uma história e uma pertença que se redige no corpo – de novo, não uma fronteira – quando nele se faz figurar o nome do companheiro e dos filhos, antecedido de um coração ou de Amor de..., embora o companheiro não venha a ser, afinal, eterno e essa história se queira rasurada, utilizando-se então um produto abrasivo ou uma colher incandescida no fogo.
44Mas se não é assim que se afirmam diferenças, é assim que se constata uma distância. Quando é questão de decorar o corpo, recorre-se a uma gama iconográfica variada, desde rosas e morangos a sereias, passando pelos motivos dos signos do Zodíaco e do yin-yang. No entanto, num mesmo motivo decifraremos coisas diversas, nomeadamente a enorme disparidade social entre a minoria de detidas extra-droga (nela incluídas as do tráfico/consumo de ecstasy) e a maioria das reclusas dos bairros. De um lado, por exemplo, vemos uma sofisticada rosa colorida, de traço fino e discretamente disposta no ombro; do outro, uma rudimentar rosa monocromática, de traço grosso e impreciso, desenhada em grande formato numa zona mais pública (o braço ou a perna). Esta diferença estilística parece decorrer, porém, menos do gosto do que de constrangimentos técnicos, que resultam, por sua vez, de discrepâncias sócio-económicas. O recurso a um tatuador profissional permite aceder a uma outra qualidade que não a das tatuagens artesanais, feitas com molas de roupa, agulhas de coser e tinta-da-china. Realizadas pela própria (ainda que nalguns casos ajudada pelas colegas), dispõem-se em locais mais acessíveis – e expostos; realizadas à mão, e não à máquina, o traço é inevitavelmente tosco e o processo especialmente doloroso (a agulha terá de passar repetidamente na pele). Além de grosseiras tropeça-se, por isso, em tatuagens incompletas, pedaços de figuras e de nomes que não se teve a coragem e o afinco de levar até ao fim (Queria pôr o nome do meu marido, mas doía muito. Só consegui fazer duas letras). Deste modo, se já não vinham marcar fronteiras entre bairros, as tatuagens reúnem-nos numa mesma imperfeição, ao mesmo tempo que reconhecivelmente os separam da minoria de reclusas mais afluentes. O fosso social cavou-se, também ele, à superfície do corpo. De resto, esta distância cruza-se com uma divergência nas representações e práticas de género. Uma destas últimas detidas (significativamente uma dona-de-casa, algo a que, recordo, a maioria das reclusas não acede, ou não pode aceder) falava-me não só de corpos demasiado legíveis e demasiado marcados, mas ainda de corpos que se situariam nos antípodas das suas noções de feminilidade:
Meu Deus, aquilo é tão feio. Ainda p’ra mais numa mulher. Numa mulher já acho mal, mas há umas [tatuagens] bonitinhas, não estão assim TÃO à mostra. Agora aquilo tudo torto, tudo mal feito... Dá cá um mau aspecto... Depois, já viu, querem arranjar emprego e têm aquilo nos braços, mais as cicatrizes dos cortes [das auto-mutilações]. Depois essa gente dos bairros admira-se de não sair da cepa torta!
45Ora, assim como uma tatuagem poderá inicialmente sublinhar, quanto muito, o apego ao lugar de origem (mas rapidamente, como vimos, ela se generaliza), é também nos primeiros tempos da reclusão que a pertença comum a um bairro se revela um importante instrumento de integração. Uma recém-chegada é imediatamente amparada e iniciada pela vizinhança nas regras formais e informais de funcionamento da instituição, independentemente de se conhecerem ou não antes da prisão – num entendimento lato, portanto, da noção de vizinhança. Uma reclusa da Pedreira dos Húngaros, traficante, não consumidora, recordava a sua chegada a Tires:
Quando cheguei senti-me tão desorientada que nem queria ir p’ró pé das outras. Só queria ficar sozinha. Mas depois vieram aqui ter comigo uma data de pessoas do meu bairro. Umas eu já conhecia lá de fora. Disseram-me o que é que eu podia fazer, o que é que é proibido, o que não é, as pessoas que não interessava falar: «Olha, aquela é esquisita, é assim e assado». Eu dizia bom-dia a uma que não conhecia, elas aconselhavam-me: «Olha que aquela não vale a pena, é toda não-me-toques, tem a mania que é mais que as outras [...]» Também me davam cigarros e assim, lá isso é verdade, não me deixaram faltar nada. Noutro dia entrou aí uma do meu bairro a curar a frio e eu também a apoiei muito. Dou-lhe fruta, comida, obrigo-a a comer. Só estou a fazer o mesmo, não é por ser nenhuma otária [refere-se aos comentários de duas reclusas extra-droga, segundo os quais ela se deixaria explorar pelas colegas].
46Tomadas sem contexto, as palavras desta detida induzir-nos-iam a pensar que o bairro opera quer uma filtragem na sociabilidade, fornecendo o mapa das pessoas que não interessa falar, quer um alinhamento da solidariedade. O mesmo se poderia concluir da apreciação de uma outra prisioneira extrabairros: Não deixam passar fome às do bairro. O bairro é tudo. Todavia, se a primeira reclusa vê de demasiado perto (por um lado reportando-se a um momento específico e por outro ao seu próprio acto de reciprocidade para com o bairro, na forma da ajuda que prestou a uma vizinha), a segunda vê de demasiado longe: não frequentando os círculos populares da sociabilidade dada a distância social que a separa deles, resume-os no princípio da solidariedade de bairro. Nas práticas sociais locais este princípio, de facto, funciona, mas actua sobretudo no início da reclusão e, principalmente, como bússola, como princípio de repérage. O alinhamento social por bairros rapidamente se esbaterá, não porque a solidariedade intrabairro se desvalorize, mas porque entretanto ganhou valor a solidariedade alargada (pense-se nas suas manifestações colectivas que atrás referi, bem como na que se vota a toxicodependentes recém-chegadas, muitas vezes independentemente da proveniência destas). Os grupos passarão então a constituir-se segundo uma lógica que leva menos em conta tal categoria de inserção. De resto, os círculos interbairros desenham-se não raro logo à entrada, por via do interconhecimento prévio.
47Na verdade, e saindo de novo da prisão para o exterior através dos trajectos narrados pelas reclusas, estes bairros peri-urbanos não são ghettos sociais e identitários. Existe entre eles uma forte circulação de pessoas, não para sulcar apenas os circuitos da economia ilegal, mas antes de tudo para percorrer os do parentesco, da amizade e do trabalho. Parcelas de parentes, amigos e vizinhos são deslocadas em processos de realojamento para outros lugares, passando de bairros de barracas para bairros de habitação social – que em breve, aliás, verão improvisar-se acampamentos e por vezes novas barracas em seu redor, não só de alguns dos parentes, amigos e ex-vizinhos que haviam ficado para trás, como também de parentes e amigos provenientes de outros bairros ainda. Quanto ao trabalho, promove, em primeiro lugar, o interconhecimento através dos circuitos da venda, comuns a vários bairros, sejam eles os das feiras ou dos mercados; em segundo lugar activa, em consequência da criação desses laços, a circulação entre bairros, procurando-se por exemplo contactos ou uma palavrinha para um emprego nas limpezas, numa casa particular ou numa empresa onde uma conhecida haja trabalhado. Além disso, dá-se até o caso de coincidirem laços laborais e familiares, que assim unem diversas áreas residenciais. Pode-se por isso falar de bairros articulados em rede16. Mas são também os mesmos bairros que se encontram, não o esqueçamos, conjuntamente nivelados numa comum exclusão. De resto, a transferência para um bairro de realojamento não a altera, nem traduz necessariamente um movimento inverso, mesmo que possa representar uma melhoria nas condições de habitabilidade. Como o notaram Cardoso e Perista (1994: 102-103; 108-110), a lógica urbanística que preside à criação de zonas residenciais destinadas a absorver as populações dos bairros de barracas prolonga e acentua a expressão espacial da segregação social face ao contexto urbano envolvente. E são ainda todos estes bairros que se encontram conjuntamente nivelados numa comum repressão, que os vem igualmente articular em rede na prisão. Assim uma reclusa cigana, quando se me queixava da actuação incorrecta de um agente policial, deparou-se com o assentimento solidário e indignado de uma colega não cigana ali perto que ela não conhecia, também residente num bairro do distrito de Lisboa, mas distando bastante do seu: Aposto que foi o Sidónio, não foi? – Foi ele, foi... – Pois é, só podia ser ele! Partiriam depois as duas numa conversa animada. Regressaremos, em breve, ao bairro.
«Raça»/etnicidade e classe
48Se o bairro não produz na prisão recortes simbólicos nítidos e perenes nem alinhamentos sociais monolíticos, vejamos como jogam outros possíveis referentes identitários, como os étnico-«raciais». Aparentemente, o glossário local vem contemplá-los em termos como branca, preta, africana, cabo-verdiana, angolana, cigana e corrilha (as não-ciganas). No entanto, a saliência quotidiana destas categorias discursivas é praticamente nula, ao invés do que sucedia há uma década, quando eram constantemente activadas. Tratava-se então de denegrir colectivamente um conjunto de reclusas, manobrando-se neste processo essencialmente dois termos: ciganas e cabo-verdianas. A categoria cabo-verdianas era alvo de uma definição particularmente elástica por parte das detidas não africanas, para quem pareciam ser irrelevantes para o efeito os factos da nacionalidade, origem ou naturalidade. A cor da pele era critério suficiente para uma tal delimitação, sendo por conseguinte remetidas para a «cabo-verdianidade» a maioria das reclusas provenientes de países africanos. Porquê esta subsunção da cor na categoria cabo-verdianas, quando seria mais previsível a relação de englobamento inversa, ou seja, que angolanas, guineenses, são-tomenses, etc. – e cabo-verdianas – fossem designadas, por exemplo, por negras ou pretas? Porque, creio, a noção de cabo-verdiano era na altura boa para estigmatizar, ou, em todo o caso, melhor do que as que codificavam a cor da pele. A atribuição que tornava aquela categoria especialmente centrípeta e inclusiva não era certamente alheia às representações hegemónicas que à época isolavam a comunidade cabo-verdiana em Portugal como «problema» e lhe colavam a propensão para a violência, a delinquência e o desvio (cf. Rodrigues, 1990: 63; Saint-Maurice, 1997: xii). Tendo em conta as lógicas intramuros então prevalecentes, o termo cabo-verdianas prestava-se a reforçar as estratégias locais de demarcação e foi prontamente integrado nelas já que carregava em si mesmo um epíteto. É possível, aliás, destrinçar nestas construções discursivas alguns pontos de contacto com os processos de criminalização analisados na Grã-Bretanha por Michael Keith (1993) enquanto discursos racializadores. Nestes processos o termo black não se reporta de maneira exclusiva e invariável a uma parcela concreta da população, que seria assim, «apenas», objecto de racismo. Tratar-se-ia também, em parte, de um sujeito flutuante criado pelo discurso da criminalização. As formações raciais que daqui resultam seriam extremamente mutáveis e contextuais e, por outro lado, coexistiriam com as que decorrem de outros campos discursivos, interagindo com eles. Keith distancia-se por isso das clássicas teorias da etiquetagem e do desvio (e. g. Becker, 1963; Goffman, 1975; Schur, 1971):
[I]t is important to differentiate between the notion of criminalization advanced here and standard labelling theory. A demographic fraction of society is not picked out and victimized. It is not so straightforward. A construction of criminality which draws on the glossary of racial difference is applied to define the varying subject positions of black communities at particular times and places (Keith, 1993: 196)17.
49Mas assim como no passado os/as cabo-verdianos/as emergiram, fora e dentro da cadeia, como sujeito discursivo destacado e distinto, assim eles/elas imergiriam depois, dissolvendo-se. Fora, hoje, são outras as «classes perigosas» – para tomar de empréstimo uma expressão de Louis Chevalier (1984) – e não se ouve mais falar em «criminalidade cabo-verdiana». Dentro, hoje, os referentes étnico-«raciais» são manejados no modo desqualificante pelas esparsas detidas da pequena burguesia branca e cujo crime não tem conexão alguma com a droga. São estas que, convocando representações emergentes no exterior, procedem a uma categorização que amalgama pretos (entre os quais, os cabo-verdianos), ciganos, droga, degradação e bairro-ghetto. A globalidade das reclusas, porém, não só não os repercute nas práticas de sociabilidade (uma categoria étnica ou «racial» não gera associações preferenciais, a não ser por via dos laços de parentesco ou de interconhecimento prévio), como deixou de manipulá-los enquanto instrumento de combate identitário. Tais referentes têm uma pregnância reduzida e a sua espessura resume-se a um valor indicativo que parece ser localmente entendido como relativamente neutro. Aliás, os únicos contextos em que esta valência indicativa entrava em acção eram aqueles em que eu tomava parte como interlocutora – se quisermos, numa situação de «entrevista» e não de observação – e a meu propósito. Falando de uma colega ou amiga poderiam então, a dada altura, referir que É branca como você ou É da sua raça. À excepção deste contexto de interacção com alguém exterior a um universo misturado (continuo a excluir dele, evidentemente, as reclusas extrabairros), registei apenas um episódio onde se avançou um referente étnico. Uma detida da Musgueira interpelou de longe uma colega deste modo: Ó cigana, chamas-me aí a subchefe? Ao que esta respondeu, desafiadora, ainda que meio rindo: Cigana? Ouve lá, eu tenho nome! Não sabendo o nome da segunda, a primeira designou-a pelo que aqui surge como um seu sucedâneo. À superfície, a reacção da outra prisioneira comunica que ela terá vislumbrado na designação escolhida (cigana) um lastro, um subtexto que não apreciou, ou algo mais do que um indicativo. Todavia, respostas análogas (Eu cá tenho nome!) serão amiúde dadas, no mesmo tom, a interpelações semelhantes (Ó tu ou Ó tu aí de puxo, passa-me a tesoura!), pelo que todas elas podem ser reenviadas a um quadro interpretativo comum que prescinda de implicações identitárias mais vastas.
50Ao invés do que sucedia em Tires no passado, e do que sucede noutras paragens prisionais, «raça» e etnicidade não são assim categorias fortes de identidade e discurso18. Antes de procurar discernir porquê, importa frisar que há dez anos eram-no ao mesmo título que várias outras – ou seja, um dos múltiplos materiais disponíveis com os quais era possível erigir fronteiras –, tal como hoje deixaram de o ser na exacta medida em que se desvaneceram outras ainda. Procedamos de novo a um exercício comparativo, começando por desminar algum terreno tentando ver até que ponto a «raça» e a etnicidade enquanto etno-teorias poderão ter moldado as perspectivas de análise de temáticas nesta órbita. Referindo-se às categorias nacionais de pensamento dos investigadores, Loïc Wacquant alegava, a propósito da sua dupla filiação biográfica nos dois lados do Atlântico:
Les sociologues américains ont le plus grand mal à concevoir comment l’identité sociale peut s’établir sans référence « ethnique », tandis que leurs collègues européens ne perçoivent pas la force et les significations multiples des catégories « raciales » dans la vie sociale étasunienne (in Vaugrand, 1996: 215).
51Por outro lado, num artigo sugestivamente subtitulado «The hidden life of class», Shirley Ortner (1998) debruça-se sobre a organização semântica e ideológica das categorias culturais através das quais é pensada a diferença no discurso «americano» – leigo, principalmente, mas também académico. Segundo a autora, existiria uma tendência para traduzir a condição de classe na «raça» e na etnicidade, categorias discursivas aí dominantes e que nos EUA têm uma enorme saliência. Ao nível do que para o efeito chama de «pensamento cultural americano», portanto,
[T]here is no class in America that is not always already racialized and ethnicized, or to turn the point around, racial and ethnic categories are already class categories (ibidem: 10).
52Esta subsunção de uma na outra tem consequências. De ordem identitária, em primeiro lugar, resultando a favor de uns grupos e em desfavor de outros na medida em que ambos implicam a sua identidade de classe na identidade étnico-«racial» e pensam-na em função dela:
If to be Jewish is to be, in deepest essence, middle class (whether one is “in reality” or not), then to be [...] African-American is to be seen/felt to be, in deepest essence — and whether one is in reality or not — lower class. African-Americaness carries a more or less automatic lower class identity in the eyes of others; this much we know. But it also apparently carries a lower-class identity in terms of self-image (ibidem: 13).
53Em segundo lugar, o escamoteamento genérico da classe faz com que esta seja «o último factor introduzido como explicação quer do privilégio e do poder, quer da pobreza e da impotência social» (ibidem: 13).
54Ora, como iremos ver, esta percepção não deixa de ter importantes zonas de contacto com certas realidades americanas em que classe e «raça»/etnicidade, de facto, coincidem, podendo a primeira passar despercebida face à pregnância da segunda. Outros problemas surgem quando estas categorias nacionais de pensamento são transportadas para a análise de outros contextos, dimensionando ângulos de leitura. O trabalho – de resto admirável – de Kesha Fikes (1998) sobre as cabo-verdianas em Portugal é em alguns aspectos um exemplo, creio, desse problema de perspectiva.
55Defende Fikes que o Estado e a sociedade cooperam na vigilância e na canalização das cabo-verdianas para o trabalho de limpeza (em casas particulares ou em empresas), decorrendo esse constrangimento activo de noções portuguesas sobre o que devem ser as mulheres negras e participando esse ensejo disciplinador de um projecto nacional – ou de uma ideia de nação. Só nessa condição «domesticizada» seriam elas admitidas nesse projecto, o que pressupõe a eliminação de «formas de expressão cultural alternativas» que desafiam o discurso público acerca dessas mulheres, como seria o caso da venda ambulante de peixe. A ideologia subscrita pelo Estado que assim racializaria o trabalho doméstico assalariado consolidar-se-ia através das imagens de subservientes criadas negras nas telenovelas (mas, questionaria eu, não figuram nelas criadas brancas, tantas vezes caricaturadas por um cerrado sotaque nortenho ou alentejano?); nos anúncios publicitando café e açúcar (mas não certificarão eles a «genuinidade» exótica destes produtos, tanto quanto atestam daquela subserviência?); e da visibilidade pública das mulheres negras nos uniformes da limpeza (mas não vestirão eles também empregadas brancas, empregadas estas que não são todas superiores hierárquicas das negras, ocupando de igual modo as posições de base mais subordinadas?). Dando de barato que existe um discurso nacional prêt-à-porter organizado específica e autonomamente em torno de polaridades «raciais» (branco/negro) tout court – e não estou segura de que assim seja, ou existirá porventura em termos bem mais nebulosos do que, justamente, nos EUA –, pergunto-me se as categorias analíticas de «raça»/etnicidade utilizadas por Fikes não estarão imbuídas de uma excessiva voltagem que acaba por curto-circuitar as dimensões de classe. Não será antes através das últimas, e não de um desígnio ideológico nacional, que se procede à canalização das mulheres negras para a limpeza? Talvez esta ocupação seja, em boa verdade, a única via que se lhes abre. Todavia, é muitas vezes também a única via aberta a mulheres brancas pobres. Deste modo, as mulheres negras são seguramente «domesticizadas», mas a limpeza não é racializada. Quando muito, aventarei, haverá uma etnicização da venda ambulante de peixe dado o estereótipo lisboeta que assimila as cabo-verdianas às peixeiras, e tal poderá contribuir para a repressão desta actividade informal. E no entanto, quantas reclusas (brancas) se queixaram da mesma repressão, exercida sobre esta e outras actividades não licenciadas (cf. supra: 169)... Aliás, Fikes faz dois apontamentos etnográficos que revelam uma solidariedade de portuguesas brancas pobres (clientes e vendedoras de fruta, flores ou doces na mesma área) para com as cabo-verdianas, condenando colectivamente a agressividade policial para com elas. Num deles (ibidem: 12-13), foi este mesmo público quem, depois de aplaudir com gritos de Bem feita, bem feita! o gesto da filha de uma peixeira (que resolveu lançar ao chão o peixe para levar a polícia que o vinha confiscar a sujar as mãos), provocou uma tal comoção quando um agente finalmente agarrou a rapariga que este, furiosamente invectivado pela pequena multidão, acabou por libertá-la e afastou-se a praguejar. Creio que a autora não explora todas as potencialidades destes episódios, que apenas lhe suscitam muito adiante um breve e único comentário, diluído numa análise de um projecto disciplinador nacional onde este parece visar, exclusivamente e segundo uma lógica particular, as mulheres negras:
If poor Portuguese women have not been included in the project of surveillance, and more importantly, if they do not feel inclined to do so, they become the victims of a national project whose patriarchal overtones deem them «useless» (ibidem: 14).
56Exit, pois, ao quadro interpretativo cujo eixo é a «raça»/etnicidade, possivelmente porque terá sido perturbado pela atitude das portuguesas brancas e pobres, para dar entrada ao género, através do projecto de cariz patriarcal de que estas seriam vítimas. A autora não especifica os termos desse projecto, mas não creio que ele venha resolver analiticamente o que a «raça»/etnicidade não resolveu. Afinal, haverá homens «vitimados» em modalidades não muito divergentes das que se abatem sobre aquelas mulheres (e penso nomeadamente nos parentes, amigos e vizinhos masculinos das reclusas de Tires, encarcerados ou não). E se é certo que um «projecto patriarcal» terá coarctado oportunidades económicas a mulheres desfavorecidas nos EUA, terá sido bem menos sucedido nas camadas femininas pobres em Portugal (cf supra: 158-162). Por conseguinte, há que preservar a priori uma descontinuidade conceptual entre género, «raça»/etnicidade e classe (e só depois conjugá-los à prova do empírico) de modo a poder captar as propriedades específicas que o seu jogo assume em diferentes contextos. Para tentar delineá-las para a realidade portuguesa que estudo, sou levada de volta a outras paragens. Tendo já noutro capítulo abordado comparativamente a intervenção do género, centro-me agora na equação restante, mas acrescentando-lhe porém o bairro.
O ghetto, a cité e o bairro
57Sucede que nos EUA se constatam sobreposições sistemáticas entre bairro, «raça»/etnicidade e classe. Trata-se do complexo topográfico do ghetto, que se traduz na homogeneidade social e étnica/«racial» dos bairros pobres das inner-cities, zonas urbanas economicamente devastadas pela desindustrialização e desertadas pelas instituições públicas e pelo Estado (excepto na sua vertente repressiva)19. É por isso de relembrar a este propósito Sampson e Lauritsen (cf. supra: 114):
[S]ingle comparisons between poor whites and poor blacks are confounded with the finding that poor whites reside in areas which are ecologically and economically very different from those of poor blacks.
58O bairro-ghetto compacta assim uma desclassificação que já opera através da justaposição entre clivagens económicas e étnicas (cf. Short, 1997: 120-122). Foi esta justaposição, aliás, que levou Giddens (1973) a cunhar há muito a noção de underclass. Em coordenadas europeias a situação é globalmente diversa, ressalvando-se porventura o caso de certos centros urbanos do Reino Unido. Também neste país, de acordo com Marco Oberti, se registam recortes étnicos que dividem residencialmente populações desfavorecidas:
On assiste à une différentiation entre les cités populaires de logements sociaux pour une classe ouvrière «nationale» largement touchée par le chômage, et les centres-villes où se concentrent les habitants originaires des pays du Commonwealth (1996: 245)20.
59Ora, com esta possível excepção, portanto, noutros países europeus a pobreza tende a aglutinar nas mesmas zonas residenciais populações etnicamente heterogéneas. No caso da França, por exemplo, tal deve-se não apenas ao puro jogo do mercado imobiliário – que atira conjuntamente para as periferias famílias de baixos recursos, sejam elas nacionais ou imigradas –, mas também a políticas urbanísticas do Estado, que investe ideologicamente nesta integração administrativa receando precisamente o fantasma do ghetto (Wacquant, 1993)21. Esta política, que se reclama de valores republicanos universalistas identificados com a unidade nacional, gere pormenorizadamente a mistura através da atribuição do alojamento social, dispersando e repartindo as famílias pobres de origem estrangeira (magrebina sobretudo) não só por diferentes bairros, mas ainda por diferentes prédios dentro de cada bairro. Salpicando quer de inquilinos imigrantes, quer de famílias francesas ditas «problemáticas» bairros cuja composição social de origem é nacional e operária ou classe média baixa, tal intervenção assenta na ideia (já desmentida por Jean-Claude Chamboredon e Madeleine Lemaire, 1970) de que a proximidade espacial absorve a distância social. Porém, esta minuciosa engenharia de gabinete, chamemos-lhe assim, trava por outro lado mecanismos «espontâneos» de agrupamento, quando não fragmenta redes sociais informais de entreajuda que frequentemente são o único capital de que dispõem populações pauperizadas. Vários urbanistas criticariam por conseguinte a violência desta assimilação forçada, que não leva em conta as sedimentadas comunidades de vizinhança e conduz não raro a uma atomização social (e. g. Genestier, 1992; P. Simon, 1992):
[L]es politiques de « recomposition sociale » et de « mixité de peuplement » des grands ensembles ont de grandes chances d’aboutir au résultat inverse de celui attendu. Si l’on suit le raisonnement du législateur, la construction d’immeubles de catégories différentes dans un même espace [...] devrait permettre une plus grande intégration des uns et des autres par contacts. Cela revient à dire que la connaissance de l’autre par proximité facilite les rapports sociaux. [...] Au contraire, ce type de rapprochement artificiel conduit souvent à radicaliser les comportements d’évitement et par la suite d’hostilité réciproque. [I]l se produit une sorte de compétition pour la définition symbolique de l’espace (Simon, 1992: 60-61).
60Patrick Simon contrapõe às cités da cintura urbana o exemplo da sociabilidade densa e da coabitação sem dificuldades de maior num bairro parisiense pobre, tanto mais assinalável, segundo o autor, quanto avizinha comunidades judaicas sefarditas e muçulmanas magrebinas. Trata-se aqui de uma agregação espacial «natural» ou, melhor dito, de um «bairro social de facto», característico de zonas degradadas de velhos centros urbanos em processo de reabilitação ou demolição. Acrescente-se que a composição social do bairro é relativamente uniforme (ibidem: 62-63). Porém este tipo sociológico de habitat tende a desaparecer para dar lugar a outras constelações residenciais, marcadas pela tensão. Ecoando aparentemente Chamboredon e Lemaire, Bourdieu sustenta que:
Si 1’habitat contribue à faire l’habitus, l’habitus contribue aussi à faire l’habitat, à travers les usages sociaux, plus ou moins adéquats, qu’il incline à en faire. On est ainsi conduit à mettre en doute la croyance que le rapprochement spatial d’agents très éloignés dans l’espace social peut, par soi, avoir un effet de rapprochement social: en fait, rien n’est plus intolérable que la proximité physique (vécue comme prosmicuité) de gens socialement éloignés (1993: 166).
61Ora, acontece que apesar de globalmente precarizados, os habitantes destas cités periféricas ou aglomerados HLM (Habitations à Loyer Modéré) não o são todos da mesma maneira – ou pensam que o não são da mesma maneira. A tensão nascerá da coabitação entre fracções nacionais de classes médias baixas ou operárias em declínio e famílias imigradas, manifestando-se frequentemente em atitudes xenófobas por parte de uns e de revolta por parte de outros. Como defende Wacquant (1994, 1995), portanto, enquanto o ghetto sofre da segregação (ou seja, da distância social entre um subproletariado «étnico-racial» e o resto da população, branca e não-branca), a cité sofre da agregação forçada. Uma abundante bibliografia francesa documenta precisamente as infra-hierarquias – ou as estratificações entre pobres – que obsessivamente se vincam nas cités. Não se trata apenas da competição por recursos colectivos (equipamentos, serviços, espaços). Trata-se também de uma competição simbólica ligada à crise estatutária de pequenos funcionários e colarinhos azuis, que vêem na proximidade espacial com imigrantes um dos signos de despromoção social – e sabemos já quanto o espectro da «queda» e o tema da «exclusão» se tornaram angústias difusas em França (cf. supra: 177) –, ou um obstáculo à promoção social. É assim que confusamente lhes atribuirão a marca infamante que pesa sobre o bairro, perante o qual, de resto, se colocarão como testemunhas críticas de primeira linha. Além disso, as famílias imigradas são fixadas a um «pólo negativo de substituição» (Althabe, 1993: 37-42; Sélim, 1993) que ao mesmo tempo proporciona aos desclassificados a derradeira garantia simbólica contra a expulsão total do campo social: a última fronteira, se quisermos, contra o descrédito é aqui etno-nacional dado que os autóctones pelo menos não correm o risco de se tornarem estrangeiros.
62Simplesmente, a devolução do estigma não se limita a focar-se nos habitantes de origem estrangeira. Ela dirige-se de igual forma às famílias nacionais «assistidas» e aos «casos sociais» alvo da atenção directa do Estado, ambos signo de inferioridade e objecto de inferiorização interna. Ou seja, não é exclusivamente na diferença étnica que assenta o modo de comunicação antagónico e a ausência de identificação com o bairro de residência que dão o tom a estes territórios. Como sugere Louis Gruel (1985), em contextos populares franceses de outrora tal diferença não obstou a sentimentos de pertença e de identidade colectiva. Tal como na prisão de Tires há dez anos, a pluralidade étnico-«racial» não engendra por si mesma a economia da estigmatização mútua. Vem apenas tomar parte nela, quer dizer, combinar-se em algo que, em lógica, lhe pré-existe:
[L]a démarcation éthnique est un niveau ou moment de la négociation du statut personnel. [...] A vrai dire, il semble bien que si les distances ethniques s’incorporent, parfois violemment, à l’économie de « détournement » qui régit les cités de transit, c’est parce que cette économie est toujours déjà présente, comme en attente urgente de différences à exploiter (ibidem: 1985: 448).
63Gruel oporá justamente as formas de representação colectiva deste tipo de aglomerados (cités de transit) às das cités d’urgence, bairros fortemente marcados pela insolvência e pela penúria, e socialmente homogéneos. Há que salientar, porém, que se os primeiros se encontram em expansão, os segundos estão francamente em recuo, sendo hoje bastantes raros. Independentemente da real densidade e extensão das redes de convivialidade e dos cachos de afinidade que emergirão numa e noutra, enquanto na cité de transit prevalece a distanciação ideológica, o discurso entrecruzado da traição à norma, na cité d’urgence vigora a simbólica da reciprocidade, a retórica da integração e da solidariedade comunitária, do enraizamento protector no bairro. A crer noutros estudos, esta oposição entre ordens de representações parece ter, aliás, alguma correspondência com as respectivas ordens de práticas. Monique Sélim destacará assim, para um habitat do último tipo, a sociabilidade e a solidariedade alargadas, as redes de troca e entreajuda de que se faz a economia da sobrevivência. É de resto de referir a representação que os seus habitantes faziam da sua condição comum:
[U]ne pauvreté extrême leur semble être leur lot « normal » et détermine un mode de vie dont ils affirment avec force la valeur intrinsèque sans en éprouver de ressentiment ni exprimer de revendication. [...] Une même misère, référence quasi positive autant que sort pénalisant, unit les uns et les autres, et les pousse à défendre ceux qui par leurs actes ont fait porter sur le quartier un blâme général (1989: 78).
64Mas do lado das cités periféricas infra-estratificadas, onde «L’enjeu est de convaincre, et d’abord de se convaincre, que l’on n’est pas ‘pareil que ces gens-lá’» (ver também a este propósito Pétonnet, 1982) e onde se trata de evitar as relações «degradantes» com os vizinhos, Agnès Villechaise (1997) destacará, por um lado, a solidão, a desconfiança e o entrincheiramento defensivo no espaço privado – uma versão de cocooning bem diversa, portanto, da das classes médias, onde se apresenta como uma modalidade de lazer – e, por outro, a hostilidade de «petits blancs» contra os imigrantes que faz das cités um espaço de recrutamento privilegiado de votantes no partido de extrema-direita Front National (ver ainda Dubet e Lapeyronnie, 1992; Sayad, 1993; Champagne, 1993a, 1993b). Perante o contraste entre estes dois tipos de territórios, é em alguma medida pertinente o que sustenta Paugam:
En réalité, l’émergence de liens communautaires et le besoin d’appartenir à un milieu financièrement démuni ne sont observables que lorsque plusieurs conditions sont réunies, notamment l’homogénéité sociale du groupe, l’appropriation symbolique d’un espace doté d’une histoire et d’une mémoire et le renoncement, au moins à court terme, à l’élaboration d’une stratégie d’ascension sociale (1991: 204).
65Ora, é precisamente a heterogeneidade social dos residentes que ressalta no estudo de Paugam e dos outros autores sobre as cités da cintura urbana, bem como as trajectórias de declínio de fracções nacionais do operariado e da pequena burguesia ou os projectos de ascensão social de que esses bairros são o cenário. Por isso as diferenças sociais objectivas entre os seus habitantes, mesmo quando se dá o caso de serem pequenas, são subjectivamente sublinhadas e ampliadas pela dinâmica da distinção. Por isso, também, as políticas estatais de recomposição social através da estratégia das «micro-quotas» são localmente mal vividas.
66À homogeneidade social e étnica do ghetto americano contrapõe-se, portanto, a heterogeneidade social e étnica da cité francesa; nesta, as distâncias sociais e etno-nacionais conjugam-se, num jogo hierarquizador que produz micro-segregações e clivagens internas. Grosso modo, os bairros estigmatizados das periferias e semiperiferias urbanas portuguesas parecem apresentar em relação a estas duas ordens de constelações sócio-espaciais propriedades específicas, constituindo, por assim dizer, uma terceira variante: em termos igualmente esquemáticos, a heterogeneidade étnica entrelaça-se com a homogeneidade social. Saliente-se previamente uma especificidade estrutural da sociedade portuguesa. Segundo Fernando Machado, uma das principais razões pelas quais a etnicidade não atingiu em Portugal o mesmo relevo do que noutros contextos europeus radica na reduzida amplitude das dimensões de contraste social entre as «minorias» e a população portuguesa:
Comparativamente com [outros países europeus], os contrastes sociais entre as minorias imigrantes oriundas do «terceiro mundo» e a população nacional são menores, não tanto pela homogeneidade da composição de classe das minorias, homogeneidade que nas minorias fixadas naqueles países também não existe, mas, sobretudo, por em Portugal ser menor o peso das minorias étnicas no conjunto das categorias sociais que têm uma condição social desprivilegiada. As pesadas insuficiências do desenvolvimento da própria estrutura social portuguesa e as assimetrias sociais marcantes que elas têm gerado, remetem uma parte significativa da população portuguesa para uma condição social que pouco a distingue dos membros mais desfavorecidos das minorias étnicas, e que, pelo contrário, até estabelece um contraste, mas agora para baixo, com o subconjunto dos membros dessas minorias que detêm uma posição privilegiada (1992: 128-129).
67Quer quanto a níveis de pobreza, quer quanto à relação com o mercado de trabalho (uma posição semimarginal e instabilizada no sistema de emprego), quer ainda no que diz respeito à localização residencial, os segmentos mais desfavorecidos destas «minorias» partilham com largos sectores da população de origem autóctone uma similar situação de precaridade (ibidem: 128-131)22.
68No caso do habitat, ocupam zonas de habitação degradada juntamente com contingentes nacionais pobres, muitas vezes «migrantes rurais mal sucedidos» na sua inserção urbana. Os bairros de barracas ou de alvenaria abarracada que nos anos 50 e 60 eram habitados sobretudo por portugueses tornam-se deste modo pluri-étnicos, ainda que os mais recentes e periféricos registem uma maior concentração de imigrantes (Cardoso e Perista: 1994: 103). Quanto à forte apropriação do espaço, à intensidade da vida comunitária e à densidade das redes locais de sociabilidade, Machado (1992: 129-130) não as encara, mais uma vez, como traços distintivos das «minorias» e elementos de contraste face à «maioria», já que um semelhante centramento no bairro caracterizaria também segmentos significativos da população autóctone. Tal parece ser, com efeito, corroborado por vários estudos em bairros desqualificados, todos eles não deixando de referir a homogeneidade social dos seus habitantes. Assim, para os bairros degradados da zona de Lisboa, Cardoso e Perista (1994: 106-111) relevam que mau grado a extrema precaridade das condições de alojamento, a maioria dos residentes inquiridos, nacionais e imigrantes, afirma gostar de morar no seu bairro, alegando apreciar o «bom ambiente» e o facto de aí «ter amigos»; as autoras realçam ainda a solidez das redes de solidariedade familiar e vicinal: elevadas percentagens tanto de nacionais quanto de imigrantes declararam poder contar incondicionalmente ou em certas situações com a ajuda dos vizinhos. O mesmo detalha Maria João Freitas (1990) para a Musgueira (ver também Soczka et al, 1988) e o Bairro do Relógio, onde os vizinhos representam uma importante estrutura de apoio, a par da família23. Sem tal estrutura, de resto, o trabalho feminino mediante o qual se equilibram os orçamentos familiares não poderia ter a expressão que localmente tem. A entreajuda exerce-se no bairro, já que o recurso a colegas de trabalho ou amigos exteriores é insignificante. Por outro lado, é especialmente pertinente falar-se em «unidade de vizinhança», dados os altos níveis de interacção entre os seus habitantes. Ao contrário do fechamento no espaço privado, na casa para onde se recua, e da sociabilidade contratual, por assim dizer, do «bom dia-boa tarde» apontados por Villechaise (1997) para a cité, a rua é aqui um espaço privilegiado de um relacionamento intenso, sendo um lugar fundamental das dinâmicas sociais do bairro.
69Neste contexto relacional marcado, como frisei, pela homogeneidade social, a fronteira étnico-«racial» não parece ser, de facto, decisiva ou criticamente manipulada. É assim que Ana de Saint-Maurice (1997), ao contrário do que sugerira Walter Rodrigues (1990), mostra como a proximidade espacial e social entre os cabo-verdianos e os portugueses que habitam nos mesmos bairros degradados se repercute positivamente nas relações de vizinhança. Como a autora cuida de precisar, a interacção regular entre ambos ao nível do bairro não decorre de «uma integração mais bem conseguida» daqueles caboverdianos no espaço nacional, mas sim «das próprias características dos bairros» (ibidem: 106). Neste sentido uma informante sua assegurava, Morar junto com branco ou preto é igual. Se precisar de açúcar, vou buscar ao vizinho preto ou ao branco, tal como me dizia a Iolanda (uma cabo-verdiana do Alto da Damaia condenada por tráfico), na sequência de um comentário sobre o tom racista usado por uma guarda: Quando fui de precária, pensei que as vizinhas brancas não [me] iam aceitar. Mas aceitaram, fizeram-me uma festa, disseram-me que sentiram a minha falta. Se esta foi uma atitude de vizinhas portuguesas igualmente pobres, Saint-Maurice situa por referência à condição de classe as atitudes e representações de diferentes estratos de cabo-verdianos em Portugal, indicando que as mais «universalistas» e «tolerantes em relação ao ‘outro’» provinham daqueles com menores recursos económicos e escolares (ibidem: 155).
70Na prisão é significativa a ausência de clivagens práticas entre categorias étnico-«raciais», não entrando estas categorias em linha de conta, por exemplo, no recrutamento de comadres (o parentesco ritual é frequentemente interétnico) e na formação de grupos ou de amizades24. Mas tão ou mais significativo é essa ausência ser afirmada e declarada. A propósito das ciganas, porventura uma das categorias actualmente mais estigmatizadas da sociedade portuguesa (mas ver justamente um exemplo contrário numa coabitação de bairro em A. Castro, 1995), sustentava uma reclusa, «branca», do Casal Ventoso, presa por droga:
As ciganas são fixes e elas até gostam muito das corrilhas [as não ciganas]. Damo-nos todas bem, as ciganas, as pretas... Há uma ou outra que é mais imperialista. Isso é como tudo, é ou não é? É cada qual! (Para uma similar representação prisional da relação ciganas-não-ciganas ver D. Rodrigues et al, 2000: 125; 133).
71Antes se assiste de quando em quando a formas de estigmatização interna e, no sentido gramsciano, verdadeiramente hegemónica, isto é, à participação activa e convergente dos dominados nas representações dominantes, que assim acabam por moldar as representações que constroem sobre si próprios. Talvez porque integram uma categoria ainda mais causticada no exterior do que as restantes, são precisamente as reclusas ciganas quem reproduz face aos ciganos em geral ideias e estereótipos como Os ciganos não têm civilização, ou Os ciganos não são de confiança. Na verdade, tais noções são a maior parte das vezes usadas para comentar diferenças geracionais ou de modo de vida (nómada/sedentário). Veja-se a Maria Emília, uma cigana lisboeta que me disse ter pedido para mudar de quarto porque estava lá uma cigana (nómada):
É gente esquisita, é dessas dos acampamentos, que andam de campo em campo. Não me dou muito com ciganos. A minha irmã mais nova que saiu há pouco de Tires morreu da droga [de overdose]. Também sabem que a minha mãe morreu, e não me dão aquele carinho... Já não há aquela tradição do cigano. Agora estas novas é só cantar, pintar-se, vestir-se... Não, eu se quero desabafar é com portuguesas. O cigano ouve aqui e vai logo contar acolá. Grita muito, discute, sai tudo boca fora. Quando vim presa, uns ciganos alentejanos que tinham a família presa puseram-se lá no nosso bocadinho de terreno pegado à barraca. O meu marido ainda foi à polícia, mas a polícia convenceu-o a deixá-los ficar lá uns tempos: «Veja lá, não têm para onde ir...». Só que eu quando vou de precária não falo assim muito com eles. É mais com os vizinhos portugueses e uns ciganos de lá.
72Lembre-se que a Maria Emília, agudamente pobre em parte por via da escolha marital que fez no passado, provém de uma família, segundo ela, rica e experimentou portanto uma trajectória descendente (cf. supra: 145). Mas a generalidade das reclusas sempre se manteve estável na pobreza, por um lado, e, por outro, não se inscreve objectiva ou subjectivamente numa trajectória social ascendente – ao contrário, por conseguinte, de muitos dos habitantes da cité. Em segundo lugar, a pobreza que as afecta é aqui muito mais severa (a maioria das famílias dos bairros degradados de Lisboa, por exemplo, apresenta níveis de despesa abaixo do limiar da pobreza absoluta: Cardoso e Perista, 1994: 108) e com frequência toca de maneira igualmente extrema as diferentes categorias étnicas habitando nos mesmos bairros. De certa forma, nivela-as. E se estes bairros se distanciam do ghetto pela diversidade étnica e «racial», distanciam-se dele num outro aspecto ainda. Recordo que nos EUA a espacialização etnicizada/racializada da pobreza foi depois compactada pela racialização de drogas como o crack, que proveio a ser associado a populações de minorias nos baixos estratos sociais (cf. supra: 114-115). Por isso Pern Buck (1994: 336-341) aponta ainda a racialização das populações prisionais subsequente à intensificação da repressão dos crimes de droga. Se esta repressão não se tivesse focalizado essencialmente no ghetto, a uniformização étnico-«racial» das prisões não teria ocorrido. E chamo de novo a asserção de Sampson e Lauritsen, segundo quem nos anos 90 «raça», classe e drogas passaram a justapor-se sistematicamente, sendo «difícil, senão impossível, destrinçar os vários elementos do problema» (1997: 400). Em lugar desta tripla sobreposição, em Portugal delineiam-se cruzamentos parciais. De resto, estas intersecções que se cosem ao nível do bairro desenham mais uma vez uma configuração específica, não só em relação aos EUA, mas também a outros países europeus. Sabemos já que em contextos americanos se verifica uma vincada estratificação étnica dos narcomercados retalhistas (cf. supra: 151-152). Ruggiero e South (1995, 1996) referirão por seu turno, para um bairro desfavorecido londrino, uma economia da droga marcada por «uma divisão do trabalho claramente racial» (idem: 1996: 325) e, para vários contextos europeus, o preenchimento crescente da figura do «mass criminal» (cf. supra: 184) por imigrantes que operam nessa economia (idem, 1995: 200). Se é possível que também em Portugal os lugares de topo das cadeias de distribuição de droga sejam vedados a membros de minorias étnicas/«raciais», os segmentos retalhistas mais baixos são indistintamente ocupados por populações pobres da «maioria» e das «minorias». Na base do mercado, portanto, o tráfico tornou-se um dos avatares – e talvez até um vector – do nivelamento étnico. O mesmo se pode dizer, em certa medida, do consumo, ou mais precisamente das vias da sua cura. Geoffrey Pearson e Kamlesh Patel (1998) observaram na Grã-Bretanha que os padrões de narcoconsumo de brancos e asiáticos são similares (apesar das respectivas «subculturas da droga» se manterem separadas quer quanto à localização territorial, quer quanto às redes de tráfico). Todavia, o Estado e correntes percepções britânicas presumem que a «epidemia de consumo de heroína» é «branca». Tal decorre do facto de os heroinómanos de minorias étnicas verem as estruturas de recuperação de toxicodependentes como remotas e inacessíveis. É assim branca, mesmo quando pobre, a clientela dos serviços de saúde – assim como é asiática a clientela dos serviços judiciários:
Health service contacts with drug users and police arrests for drug offences were, thus, starkly divided along racial lines (ibidem: 229).
73Ora, vimos atrás (cf. supra: 211-212) que em Portugal o contraste entre os dispositivos institucionais de controlo da droga não é étnico, mas social. Por outras palavras, o policial-judiciário dirige-se às classes baixas enquanto o médico-psicológico é interpelado por um leque socialmente variado de consumidores. Que a prisão se destinaria à cura é uma noção igualmente corroborada pelas reclusas, porém todas as inserções étnicas confundidas.
74Antes da reclusão, detidas de diferentes categorias étnicas/«raciais», «minorias» e «maioria» – mas, como sublinhei, comummente pobres – partilhavam trajectórias e modos de vida semelhantes; ocupavam posições similares na economia formal e informal, desempenhavam papéis análogos na economia criminal; viviam nos mesmos bairros e frequentemente enfileiravam nas mesmas redes de vizinhança. Como se viessem, enfim, integradas numa mesma exclusão25. Resolutamente subscrevendo a linha teórica segundo a qual a «raça» e a etnicidade são categorias culturais de identidade e experiência com alguma autonomia e relevo próprio, não podendo por conseguinte ser inteiramente reduzidas à classe seja por que via for (cf. Vale de Almeida, 2000: 44-46 e Ortner, 1998 para um balanço), elas comunicam sempre com a estrutura social, da qual são, aliás, uma das dimensões. Se «a consciência étnica é um produto de contradições incorporadas em relações de desigualdade estruturada» (Comaroff in Wilmsen, 1996: 4), a identidade étnica surge por seu turno «quando – e se – se intersectam [dois] processos», isto é, a consciência étnica e a classe (Wilmsen, 1996: 6). A «integração na exclusão» de que falei não é decerto alheia à especificidade do modo de intervenção da «raça»/etnicidade na prisão – e é válida, de resto, para entender a diluição de outras fronteiras intraprisionais que não as étnicas. «Raça» e etnicidade não se apresentam localmente como categorias críticas de representação e discurso, nem com o potencial suficiente para organizar relações sociais. Dadas as balizas do percurso comparativo atrás detalhado tal deve-se, creio, às formas particulares que em contextos portugueses assume o jogo cruzado entre a «raça»/etnicidade e a classe, mediado por condições ecológicas tais como o bairro e pela economia ilegal dos mercados retalhistas de droga.
«Medir as distâncias»: a questão da orientação para o presente
75A etnicidade será sim crítica no que respeita a outros níveis sociais na cadeia, como que confirmando a contrario estas disposições. Do passado ao presente cavou-se uma clivagem social entre as reclusas, separando a quase totalidade da população encarcerada de um contingente residual de detidas brancas de classe média e média-baixa; e entre as reclusas e o staff, principalmente o pessoal técnico, inteiramente renovado, profissionalizado e com graus de licenciatura (cf. supra: 30). Estas duas grandes clivagens internas reflectem em parte o fosso social que entretanto se cavou, também, no exterior. Como indica Luís Capucha (1998), entre 1980 e 1995 aprofundou-se significativamente uma desigualdade genérica entre as camadas mais desmunidas da população e as mais favorecidas, quer porque estas se tornaram mais abastadas, quer porque a pobreza daquelas aumentou em extensão (é maior a proporção de pessoas que ela toca) e em intensidade (é maior a escassez de recursos dos que já eram pobres). Quanto à primeira clivagem prisional, vimos já que é o pequeno número de reclusas extra-droga que manipula discursivamente os referentes étnico-«raciais» através da amálgama desqualificante pretos-ciganos-bairro-droga. A etnicidade figurará de outro modo, mas não menos crucial, na segunda clivagem. Socialmente muito mais distante da globalidade das reclusas do que no passado, o pessoal penitenciário, e em particular o staff técnico, tende a procurar fazer sentido desta diferença social – uma vez que tal fosso manifestamente o interpela – subsumindo-a numa diferença étnica, ou transformando-a numa diferença cultural. Assim, uma técnica, evocando a simpatia que sentia pelas detidas ciganas, testemunhava-me em simultâneo da sua perplexidade, perguntando-se «Por que é que eles – os ciganos – vivem sempre em barracas?» Intrigada por se obstinarem a habitar deste modo, concluiu que, seguramente, Deve ser cultural. Assiste-se aqui por conseguinte a uma leitura essencializadora da «diferença», subtraindo-se-lhe os factores sócio-económicos que afunilam as opções e aparentemente atribuindo um estatuto distinto e particular a uma «escolha» que é igualmente imposta a muitas reclusas não-ciganas. Poder-se-ia pois falar a este propósito da edificação de «novas classes culturais», transpondo para este quadro de leitura uma expressão que T. Fradique (1998: 123) e Vale de Almeida (2000: 198-199), que a cita, utilizaram para outros contextos e com outros fins analíticos, relativos às políticas de representação cultural. Trata-se de categorias contemporâneas de representação construídas a partir de uma ambígua mistura de etnia, desigualdade social e cultura. Convocadas pelo staff, etnia e cultura tornam-se também pré-noções que elidem os meandros individuais das motivações das reclusas e os termos do que comunicam: uma enumeração das razões de um pedido de saída precária foi recebida com o comentário «Está bem que é de etnia cigana, gostam de fazer o choradinho, mas oferece-me alguma confiança» (o pedido seria no entanto indeferido em Conselho Técnico, uma vez que a detida em causa não revelara ter interiorizado o sentido da pena).
76Se a etnicidade constitui assim uma via pela qual membros do pessoal penitenciário amplificam a distância social que o separa das reclusas, a exotização da pobreza é uma outra. À pobreza corresponderia, de novo, uma cultura muito própria – que entre outras coisas explicaria que se trouxesse droga a um irmão, a um filho, a um companheiro toxicodependente – ou uma mentalidade específica e enigmática, uma noção que se exprime, por exemplo, através da recorrente questão Como é que se pode traficar droga quando se tem um filho toxicodependente? Segundo estes membros do staff, tais detidas não poderiam compreender porque se acham na prisão, porque foram condenadas a penas tão pesadas, e dificilmente alcançariam, pois, o sentido da pena. No caso das toxicómanas, não lhes seria mesmo possível atingir o sentido dos castigos de que são objecto na cadeia, continuando estes a ser infligidos apenas para gerir imparcialmente a disciplina, ou seja, para que outras reclusas, punidas por motivos semelhantes, não os entendam como injustos. A distância de que falei é então representada como incomensurabilidade. De quando em quando, porém, procura-se penetrar e traduzir esta suposta obscura mentalidade dos pobres, polvilhando um discurso sobre a miséria moral e mental com a atribuição de traços psicosociais (que de resto teriam lavrado o terreno ao seu crime) como a baixa resistência à frustração, a necessidade da gratificação imediata e a correlativa incapacidade de diferir o prazer (vulgo, o dinheiro fácil), enfim, a orientação para o presente. Eis-nos portanto perante o que poderia ser uma das destilações da «cultura da pobreza», posto que «a orientação para o presente» figura precisamente como um dos componentes proeminentes da caracterização que dela fez Oscar Lewis (1979 [1961]: 27). Um conjunto particular de comportamentos, valores e ideias ter-se-ia inicialmente gerado, segundo Lewis, como resposta adaptativa à marginalidade económica mas, uma vez constituída, uma tal cultura perpetuar-se-ia de forma auto-sustentada, imune à mudança e encerrando por si mesma os pobres na miséria, reproduzindo-a. A despeito das intenções de Lewis, a «cultura da pobreza» abriu caminho à exclusiva responsabilização dos pobres pela sua subalternidade (e em nome da existência de comportamentos e valores «contraproducentes», por assim dizer, chegou-se a julgar inútil qualquer intervenção no sentido de melhorar a sua condição, eliminando-se, por exemplo, programas sociais), tornando-se porventura no paradigma da já extensa galeria de conceitos-golem26. Bourgois (1998) aponta, aliás, a enorme polarização ideológica em torno dos estudos sobre a pobreza nos EUA. Mas apesar desta apropriação transvia, é verdade que o desenho da noção de «cultura da pobreza» encerrava problemas analíticos fundamentais, entre os quais o de acabar por desconectar por completo os processos culturais dos processos económicos e políticos, e o de não levar em conta as influências constitutivas de valores sociais envolventes-emanando, se quisermos, do «centro». Seguir-se-ia, pois, uma opulenta bateria de críticas. Algumas (e. g. Valentine, 1961; Leeds, 1971; Perlman, 1976) cairiam no extremo simétrico, parecendo encarar a reprodução das relações de classe apenas como o efeito mecânico, directo e sobredeterminado das estruturas de desigualdade (quando as etnografias de Howe, 1990, 1998, sobre os desempregados, e de Willis, 1977, sobre os jovens de classes trabalhadoras, são um claro exemplo de que o não é). E quer Ulf Hannerz (1969), quer Leo Howe (1998) apontaram que a distinção analítica entre «cultura» e «resposta situacional», introduzida pelos críticos de Lewis para explicar comportamentos ligados à pobreza (com quem, de resto, os autores concordam parcialmente27), cria uma falsa dicotomia uma vez que a cultura não deve ser entendida como um arcano núcleo duro de valores, sendo também ela em grande medida «situacional»; ou seja, transmitida sim, mas processual, usada especificamente pelos actores, (re)criada continuamente na prática, tecida através de várias mediações – escusado é discorrer mais sobre uma perspectiva da cultura que há já muito faz parte do abecedário da antropologia. Dito isto, nem todos os gatos são pardos e a ideia de cultura, operando em múltiplas arenas públicas, carrega um potencial reificante, como aquele com que o discurso de membros do staff de Tires me confrontou. Por isso, tal como o tema da orientação para o presente, deve ser tratada com pinças. Somos pois reconduzidos ao domínio da política da representação do «outro».
77Uma das mais recentes – e brilhantes – elaborações em torno da «orientação para o presente» é o volume colectivo Lilies of the field. Marginal people who live for the moment (Day, Papataxiarchis, Stewart, 1999). Prostitutas londrinas, camponeses gregos, ciganos húngaros, assalariados japoneses – e outros – seriam neste aspecto como que as versões modernas dos caçadores-recolectores tanzanianos estudados por Woodburn, uma referência central na introdução da obra: uni-los-ia uma comum aposta cultural activa no curto prazo, um resoluto e celebrado engajamento «antieconómico» no presente, que, em última instância, constituiria um poderoso instrumento de resistência a grupos vizinhos e instituições, e uma eficaz crítica cultural e política (ibidem: 3; 4). Opõem-se do seguinte modo duas ordens de representação ou dois modelos de comportamento que, adiante (ibidem: 11), serão apresentados como contraditórios:
[I]nstead of adopting mainstream notions of work, productivity, and long-term economic planning, [these people] appear to take a «natural» abundance for granted and to forage for their subsistence [...] In these cases foraging depends upon an idea of plenty; it is taken for granted that whatever you need is available more or less whenever you want it – there is no need to store, or to do without so as to hoard for the future (ibidem: 1).
78Os autores partilham das críticas dirigidas a Lewis e convocam o quadro económico da marginalidade – mas contra-objectando à posição igualmente veiculada por algumas delas de que não existiria uma «cultura distinta» entre as camadas pobres. Pretendem, na verdade, realçar o conteúdo positivo desse modo de vida, não o vendo como uma mera resposta passiva a constrangimentos estruturais:
One of the sharpest critiques made of the «culture of poverty» literature was that it blamed the poor for their situation. In response to this criticism ethnographers might be tempted to invert conventional rhetoric and attribute «marginality» exclusively to global processes. But this perspective would suffer the same problems as the one it attacks, since it makes it difficult to acknowledge that the way of life of Aegean Greeks, day laborers or prostitutes may exacerbate a structurally imposed marginality. In some situations, marginal people may celebrate their «feckless», «irresponsible», or «spendthrift» behavior for the very real freedom it confers. For much of the time, a present orientation works, in the sense that it is more enjoyable, pleasurable, and sociable (productive of happiness) than life in the long term (ibidem: 118).
79Subsidiária e pontualmente referirão que a orientação para o presente é um aspecto da vida das pessoas, e S. Day (ibidem: 154), já no final do seu artigo, reporta-se aos riscos de reificação em que esta abordagem incorre, dizendo que nas ideologias sobre o trabalho as prostitutas londrinas «mudam de uma orientação para outra e frequentemente ocupam uma posição apenas transitoriamente»: afinal, como os próprios dados etnográficos avançados por Day indicam, elas também economizam e fazem planos para o futuro, embora os seus investimentos saiam não raro gorados. Talvez porque me tivesse deparado em Tires com as derivas da fórmula orientação para o presente e com a desconcertante facilidade com que ela é usada para resumir a conduta das reclusas e as definir como indivíduos, ocorre-me perguntar porquê então subsumir nela pessoas e modos de vida – dos quais é pois um aspecto oscilante e tanto mais quanto são avulsos os contextos contemplados –, e elevar a epitome comparativa a ideia de «gratificação imediata»? Porque também os autores não parecem presumir que ela paira no vácuo através do planeta, a pobreza e a posição de marginalidade permanecerão decerto circunstâncias fundamentais para compreendê-la, designadamente mediante a extrema instabilidade do futuro que desenham, mesmo que tais pobres possam fazer da necessidade virtude. As modulações de sentido que produzem poderão por isso ser alternativamente entendidas no quadro que há várias décadas nos propôs Elliot Liebow, justificando-se citá-lo extensivamente:
The man appears to treat the job in a cavalier fashion [...], as if all that matters is the immediate satisfaction of his present appetites, the surrender to present moods, and the indulgence of whims with no thought for the cost, the consequences, the future. To the middle-class observer, this behavior reflects a «present-time orientation» – an «inability to defer gratification» [...] But from the inside looking out, what appears [as such] is, to the man experiencing it, as much a future orientation as that of his middle-class counterpart. The difference between the two men lies not so much in their different orientations to time as in their different orientations to future time or, more specifically, to their different futures. The future orientation of the middle-class person presumes a surplus of resources to be invested in the future and a belief that the future will be sufficiently stable both to justify his investment and to permit its consumption at a time, place and manner of his own choosing [...]. Living on the edge of both economic and psychological subsistence, the streetcorner man is obliged to expend all his resources on maintaining himself from moment to moment. And if he does sometimes have more money than he chooses to spend or more food than he wants to eat, he is pressed to spend it and eat it anyway since his friends, neighbors, kinsmen, or acquaintances will beg or borrow whatever surplus he has [...] Thus, it is not because, like an animal or a child, he is «present-time oriented», unaware of or unconcerned with his future. He does so precisely because he is aware of the future and the hopelessness of it all. [...] There is no mystically intrinsic connexion between «present-time» orientation and lower-class persons. Whenever people of whatever class have been uncertain, skeptical or downright pessimistic about the future this is one characteristic response. It is the streetcorner man orientation to the future — but to a future loaded with «trouble»-which contributes [...] to the general transient quality of daily life (1967: 63-69).
80As reclusas de Tires vivem também no curto prazo mas, tal como Liebow, creio que o fazem menos por opção – ao invés do que parece implícito no leit-motiv «commitment to the present» empregue por Day, Papataxiarchis e Stewart – do que pela dificuldade de projectar a vida para o futuro, não raro um projecto vão. E onde os autores entrevêem no consumo imediato de bens e recursos a noção cultural quer de um futuro garantido quer, correlativamente, de um meio abundante, bastando «colher» dele, para o contexto que estudo eu entreveria nessa atitude carpe diem precisamente o contrário: a representação de um futuro demasiado incerto e incontrolável para se tentar, sequer, «assegurá-lo» (uma veleidade que de resto implicaria recursos suficientes para pôr de lado, o que nem sempre acontece caso se viva no limiar da sobrevivência) e de um meio demasiado escasso para arriscar deixar fugir as migalhas que providencia. As reclusas de Tires não parecem fazer gala da liberdade de viver no imediato, e provavelmente de bom grado prescindiriam dela, embora reconheça que alguma liberdade existirá no desprendimento que revelam ao partilharem o pouco que têm – uma partilha que, conforme perspicazmente sugerem os autores, se localiza por vezes para lá de códigos de reciprocidade. No que respeita às detidas, em todo o caso não situaria adequadamente estas formas culturais se as descrevesse como lógicas de resistência e protesto, ou comentários de «crítica cultural». Certo é que estas mulheres não se quedam apáticas, passivas e exânimes perante a adversidade e cilindradas por estruturas de dominação múltipla. Na impossibilidade de «segurar a vida», para usar mais uma vez do feliz tropo de K. Wall, «vão à vida», com tenacidade e criatividade28. Mas em vez de «resistência», falaria antes de «resiliência», quer por me parecer caracterizar de maneira mais aproximada a sua agencialidade – quanto muito, a resistência seria um subproduto desta agencialidade, não a sua forma (cf. Ortner, 1995: 185) –, quer para não exaurir ainda mais um conceito cuja valia analítica tem vindo a ser diluída por um uso arbitrário e ideológico. Como recentemente sugeriu Marshall Sahlins, o par dominação-resistência tornou-se (como outrora o conceito de identidade, cf. Bromberger, 1993) uma encantatória chave que abre qualquer porta, «a no-lose strategy since the two characterizations, dominance and resistence, are contradictory and in some combination will cover any and every historical eventuality», além do que cauciona pela via moral qualquer argumento: imputando-se resistência ao «outro», «the true and the good become one» (1999b: v). Sahlins adverte que este tipo de abordagem por vezes conduz a utilizar outras sociedades como álibis para o que nos perturba, como se os seus membros tivessem construído as suas vidas em função das nossas preocupações. Assim, continua o autor no mesmo tom vitriólico, quaisquer que sejam as formas culturais em questão,
[They] are accounted for [...] by their moral-political implications. It is enough to show that they are effects of or reactions to [...] domination, as if their supposed hegemonic or counterhegemonic functions could specify their cultural contents. An acid bath of instrumentality, the procedure dissolves worlds of cultural diversity into the one indeterminate meaning [...] So nowadays all culture is power. It used to be that everything maintained the social solidarity. Then for a while everything was economic or adaptively advantageous. We seem to be on a great spiritual quest for the purpose of cultural things (ibidem: vi)29.
81Levou-nos à política da representação a fronteira cultural que o staff traça entre si e as reclusas, mediante a qual exprime e simultaneamente amplia a distância social que o separa delas. Mas se a distância social é assim convertida em distância cultural e inteiramente retraduzida no seu idioma, uma tendência oposta coexiste com esta, embora na verdade se trate de duas indissociáveis faces de uma mesma moeda, do verso e do reverso de uma mesma lógica. Se com efeito a fronteira cultural é constantemente reafirmada, tal não será porventura alheio ao facto de se intuir em risco de colapso outras fronteiras, nomeadamente as que implicam a identidade profissional. O fosso estrutural que separa o staff das detidas é em muitos momentos transcendido pelo que ao primeiro surge como uma perturbadora identificação com as segundas, mais precisamente por uma projecção do tipo Se eu estivesse no seu lugar... Comparando o pessoal penitenciário actual com o de outrora esta projecção é inédita, sobretudo nas proporções que atinge entre os seus membros. Muitos, com filhos ou idosos a seu cargo, imaginam-se de súbito transportados para a situação de profunda pobreza e marginalização das reclusas e perguntam-se se não vacilariam perante as oportunidades oferecidas por uma economia ilegal tão omnipresente e de tão fácil acesso. No entanto, esta identificação não se repercute no desempenho profissional, em particular no do pessoal técnico, designadamente quando se trata de emitir pareceres sobre pedidos relativos a saídas precárias ou à liberdade condicional. Não colherá então o papel de vítima, a revolta, a desculpabilização ou o exercício de justificação do crime, todos eles bastante desfavoráveis às detidas. E é precisamente aqui que entram em cena os temas da baixa tolerância à frustração, a gratificação imediata, a orientação para o presente, etc., através dos quais as reclusas são colectiva e peremptoriamente responsabilizadas pela situação em que se encontram. A dissonância entre as duas disposições referidas é tanto mais flagrante quanto ambas, ao contrário do que sucedia no passado, são salientes e emanam dos mesmos actores. Um tal desdobramento é possível fazendo accionar a fronteira cultural, que impede que a projecção na posição estrutural das reclusas contamine o exercício e a identidade profissional. Uma outra projecção, não menos perturbadora, terá sim repercussões, mas de ordem pessoal e privada. É desta feita do tipo Pode-me calhar a mim, e prende-se com os dispositivos policiais e judiciários de colectivização examinados no capítulo 3 – dos quais, lembro, resultam em parte as fileiras de parentes, amigos e vizinhos que convergem para a prisão. Confrontados diariamente com os seus efeitos, membros do staff exprimem de quando em vez o receio de Apanhar por tabela: quando, por exemplo, um vizinho é alvo de investigações policiais (foi o caso de uma técnica que assim manifestou o seu temor), mas principalmente quando estão em causa os filhos. O controlo apertado que sobre eles dizem exercer decorre menos do difuso pânico contemporâneo de que venham a drogar-se, do que de um outro, que o supera: o de que frequentem companhias em resultado das quais possam vir a Apanhar por tabela, isto é, a ser presos. Escapa porém a estes elementos do staff que a massificação repressiva que intuem, e acerca da qual fantasmam, não se distribui social e espacialmente ao acaso. O lugar dela é o bairro – um certo tipo de bairros – um lugar ao qual, seguramente (em todos os sentidos do advérbio), não pertencem.
82Vimos neste capítulo de que modo se dissolveram as fronteiras internas entre as detidas, uma dissolução que ocorreu em paralelo à erosão da fronteira prisional e da qual é tributária. Apagaram-se categorias que outrora organizavam as representações sobre o universo das co-reclusas, para emergir em seu lugar uma noção de comunidade. Tal infunde, aliás, conteúdos diversos a algumas configurações práticas aparentemente semelhantes às de há uma década. De facto, se no passado como no presente não se constatam recortes grupais nítidos, as razões subjacentes são opostas: ontem operavam lógicas de atomização, centrífugas, se quisermos, hoje actuam lógicas de comunidade – comunidade de sentido, de origem, de destino. E se os seus efeitos centrípetos certamente iluminam o aparecimento de formas de solidariedade incomparavelmente mais alargadas, de vocação colectiva e não apenas interindividual, neles relevaria sobretudo o comprazimento no discurso comunitário, o de que Estamos todas juntas, Estamos no mesmo barco. A solidariedade, a partilha, a entreajuda não se acantonam meramente na ordem afectiva e electiva. São em boa medida encenações tanto práticas quanto retóricas deste discurso, onde ele se enaltece e reconfirma. O discurso comunitário camufla, de resto, a existência de núcleos de sociabilidade afastados entre si e de placas descontínuas de solidariedade, para os dar a ambos num continuum que uniria todas as reclusas (ou quase todas, posto que dele se encontram excluídas as detidas extrabairros). Como terá ficado patente no capítulo anterior, as tensões e os conflitos abundam, e são até mais agudos no que no passado. Mas geram-se entre parentes, amigos e vizinhos, e porque se trata de parentes, amigos e vizinhos. Todavia, a mesma malha de relações de proximidade que tece o conflito é também aquela por via da qual se desarrumaram todas as categorias e fronteiras de outrora. Se existem, portanto, lutas, não existem mais lutas simbólicas. A «integração na exclusão» que configurava já no exterior o quadro social de inserção das reclusas consuma-se deste modo na prisão, onde vem, também, fortalecer um quadro comum de sentido.
Notes de bas de page
1 Esta dissonância de representações entre diversos estratos do staff não deixa de me sugerir, em parte, um paralelo com o que pude constatar numa investigação de terreno no hospital psiquiátrico Júlio de Matos (Cunha, 1988: 471). Grosso modo, quanto mais elevado ou especializado era o estrato profissional do pessoal, maior era o poder centrípeto e objectivizante das etiquetas patológicas na definição do sujeito internado. Deste modo, toda a sua conduta se constituía num comportamento clínico: qualquer altercação, qualquer episódio entre doentes era subtraído à dinâmica e ao contexto relacional em que se inseria para ser de imediato reinscrito como sintoma. No caso das heroinómanas de Tires, os especialistas reenviam a sua conduta à toxicodependência, que lhes teria inculcado uma personalidade própria – «típica», se quisermos.
2 (Em itálico no original.) Esta polarização em torno das duas figuras ganhou recentemente em Portugal uma nova tradução na lei com a descriminalização do consumo de drogas, entrada em vigor em 2001. Consoante as modalidades do consumo, este passa a ser penalizado com coimas ou com uma variedade de sanções não pecuniárias. No caso dos toxicodependentes, a sanção poderá ser suspensa caso se submetam voluntariamente a tratamento.
3 Este dado é consentâneo com os avançados pela DGSP no ano de 1997 para a totalidade do universo prisional português (17,3%). Quanto às hepatites B e C, afectariam mais de metade desta população.
4 Os danos físicos auto-infligidos não se constatavam no passado em Tires, mas eram nessa altura correntes em prisões masculinas (e. g. Moreira, 1994: 149-155). Tal contradiz a afirmação de Lucia Zedner (1995: 360) segundo a qual a tendência para a automutilação seria quase que endémica nas prisões femininas, sem que se verificasse um equivalente autodestrutivo na versão masculina.
5 É justamente contra estes diagnósticos comuns que se coloca Alison Liebling (1994: 5-7), adiantando também que, embora tais práticas configurem uma «síndrome» específica e não correspondam a impulsos suicidas, representariam a transposição de um limiar de vulnerabilidade e, nesse sentido, uma maior probabilidade de suicídio:
[W]omen injuring themselves repeatedly attract pseudo-psychiatric diagnosis such as “sociopathic disorder”, “personality disorder”, hysterical, attention-seeking behaviour”. These labels are unhelpful [...] and they contribute to a dangerous and false assumption that the behaviour is irrational, meaningless, and unrelated to suicide [...]. In fact, the behaviour may have a very clear meaning (ibidem: 5).
Este sentido seria menos o de um «grito por ajuda» do que um «grito de dor» (ibidem: 8). E se a automutilação exprimiria esta dor, constituiria uma forma algo paradoxal de a controlar: a dor exterior, física, seria mais facilmente controlável do que a dor interior, emocional. Por outras palavras, a interposição deste ecrã faria destas práticas um meio de aliviar a dor e a revolta em situações críticas de stress (ver ainda Wilkins e Coid, 1991; Coid, Wilkins e Everitt, 1992).
6 Diga-se, na verdade, que se trata de uma das guardas mais queridas pelas detidas, quer no passado, quer no presente, o que poderá ter também contribuído para a boa recepção dos seus esforços.
7 A Maria Luísa reivindica ter estado na origem do encerramento da cadeia das Mónicas em Lisboa (após uma sua tumultuosa greve de fome contra as condições carcerais, que teria atraído a atenção de alguns deputados) e do fim da gestão do EPT por parte das religiosas da Ordem do Bom Pastor, que remontava a 1954:
Fui eu que corri com elas. A madre – não tinha um metro de altura, era uma minhotazinha – olhou para mim e achou que eu era perigosa. Então fechou-me na cela, isto foi no mês de Julho, e eu só saí para ir à Missa do Galo, na noite de Natal. E nessa noite eu entro e é a primeira vez que tenho contacto com as minhas companheiras, que eram as tais prostitutas. Pois eu senti vontade de dar qualquer coisa àquelas mulheres e pedi à madre directora para ler dois poemas. Um da Alda Lara... «À prostituta mais jovem do bairro frio e escuro deixo os meus brincos talhados no cristal mais límpido e puro»... A madre mais razão tem para achar que eu era perigosa e fecha-me até à preparação para a Páscoa. E veio o padre falar connosco, a dizer que era preciso solidariedade. «Olhe senhor padre, isso é muito bonito, só que a madre não deixa pôr em prática». Eu tinha pedido à madre para olhar por uma companheira minha que andava com muitos problemas. E ela: «Sempre preocupada com os outros, olhe mas é por si e pela sua filha». E eu disse-lhe: «A senhora não é digna da cruz que traz ao peito. E não vou à missa porque quando a vir comungar ainda grito ‘sacrilégio’». As minhas companheiras vinham ter comigo a chorar – «Ó Sr.a D. Maria Luísa, o meu azeiteiro [o proxeneta] não me escreve!» E a madre, sabe o que é que ela fazia? Juntava as cartas, escondia e mandava-as queimar. Era aquela maldade. Havia uma freira que era muito boazinha, a desgraçada andava sempre com úlceras no estômago de ver as maldades que a outra fazia, mas não podia fazer nada. «Cristo não passou do portão da cadeia» – dizia-lhe eu. Aí escrevi um artigo para o jornal a denunciar o que se passava aqui. E o Sr. Cardeal Patriarca deve ter dito «Isto há aqui qualquer coisa que não está bem» – e elas foram obrigadas a ir embora. Saíram primeiro elas que eu!
8 Ao escrever esta passagem percorreu-me uma vaga sensação de embaraço, que porvim a localizar na memória. Numa deslocação de campo a uma aldeia terei insultado a hospitalidade local quando, no final de um longo circuito de visitas, um estômago já pletórico me levou a recusar, polida mas firmemente, a oferta de mais um lanche, de mais um copo. Coma, que é limpinho, ou Pode beber, o copo é limpinho: urbana e de classe média eu pensaria assim que os aldeões, «pobres» e «do campo», seriam gente suja. Imediatamente fiz lugar para mais um gole e umas bolachas, mas desde então nunca mais deixou de me ocorrer tirar da manga a velha «úlcera» para justificar satisfatoriamente a recusa.
9 Não pretendi colocar a minha experiência sensorial no mesmo plano da das prisioneiras, tanto mais que, como o mostrou a psicologia ambiental, o limiar de tolerância face a uma agressão dos sentidos eleva-se quando aumenta a capacidade de intervenção por parte dos indivíduos: no meu caso, passava pela possibilidade de me furtar a ela, abandonando o local. A minha sensorialidade também não foi aqui chamada em nome de um qualquer subjectivismo radical, a partir do qual projectaria as experiências do «outro». Diz Vale de Almeida (1996:11) que «nunca se percepciona de ‘nenhures’, percepciona-se sempre de algum lado» e, como escreve Martin de la Soudière:
Soit l’expérience du froid. Prétendre par postulat être à même d’éprouver soit-même ce qu’éprouve autrui est un leurre. Toute sensation est éminemment individualisée. [...] En comparant ma réaction au froid à la leur, je suis à même de voir en quoi elle diffère de la mienne, ce qu’elle a de spécifique culturellement et psychologiquement. Le froid se partage, mais jusqu’à un certain point, et c’est ce certain point qui constitue l’intérêt d’une telle enquête, les zones de recouvrement et de différenciation entre expériences d’un même phénomène (1988: 101-102; em itálico no original).
10 Abordado em mais detalhe em Cunha e Durand (1999).
11 Howes recupera e transpõe o célebre artigo de Needham (1967) sobre a utilização quase universal de percussões nos rituais de transição, e remete-nos ainda para a associação dos odores aos processos de comunicação entre realidades de diversa ordem.
12 Georg Simmel (1986: 237) apontara já a relação sociológica entre odor e intimidade e Corbin (1986: 6), por sua vez, a relação histórica entre os limiares de tolerância olfactiva e as noções de pessoa.
13 É também nesta acepção que o autor utiliza as noções de espaço olfactivo, visual, auditivo e táctil, entendendo-os como universos culturalmente definidos e estreitamente ligados ao sentido do self (Hall, 1969: 41-63).
14 Nervos e ataques como os referidos têm sido abundantemente analisados como performances culturais e subjectivas corporizando uma fragmentação do sentido do eu (Low, 1994), mas também formas de resistência e protesto por parte de seres socialmente vulneráveis (e. g. Ong, 1988; Lock, 1993).
15 A propósito de sintonia das almas – porém, de uma outra ordem – é de citar os desmaios colectivos nas celebrações locais da Igreja Maná, o que estaria na origem, segundo uma guarda, das reservas e dos obstáculos levantados pelo pessoal aos seus oficiantes: Era um grande espalhafato, causavam muita instabilidade. Agora não vêm mais. AIURD é mais calminha. É mais cantar em grupo no refeitório. É assinalável, de resto, o sucesso junto das reclusas de uma grande variedade de igrejas evangélicas e pentecostais (IURD, Logos Comunhão Cristã, Centro Cristão Vida Abundante, Testemunhas de Jeová, bem como estruturas a elas ligadas de apoio a jovens e de recuperação de toxicodependentes, como o Desafio Jovem). Saliente-se que é também no domínio religioso que se desenha uma clivagem sociológica com as detidas da minoria. Dizia-me uma delas, acólita do sacerdote e organizadora da missa católica (missas estas que são frequentadas por 20 prisioneiras, entre as quais se contam sobretudo sul-americanas e algumas portuguesas mais idosas):
As ciganas não frequentam muito. Eu tentei explicar que não sendo baptizadas não podiam comungar. Depois havia um problema com as presas, mas está resolvido: a maioria vive em união de facto, e portanto não podiam comungar. Mas como estão presas, estão equiparadas a uma situação de celibato, logo podem.
É de crer que as outras Igrejas sejam menos rigorosas nos preceitos e requisitos que exigem aos fiéis e se encontrem mais próximas das preocupações das detidas. Por outro lado, as modalidades de culto parecem ajustar-se à estreita sociabilidade vigente na prisão e contribuir para reforçá-la. Alega a Maria, uma cabo-verdiana fiel da IURD:
O que me ajuda é a minha Bíblia e o meu Deus. Antes de vir era católica. Agora vim para a Igreja Universal [do Reino de Deus] porque nos fazem muito bem. As ciganas, as cabo-verdianas e as consumidoras andavam para aí perdidas e agora estão muito calmas. Dizem para nos portarmos bem, para tratarmos bem as guardas e não fazermos asneiras. Esta fé dá muito resultado. Eu já vi que dá, houve pessoas que conseguiram a condicional e já saíram da cadeia. Dá-nos muita força. Lemos a Bíblia umas com as outras, cantamos, ficamos muito unidas. Agora é a semana de Jericó, quem quiser faz jejum das 6 da tarde às 6 da manhã. Nós fazemos, damos força umas às outras.
A Iolanda, da mesma congregação, queixava-se de intoleráveis dores de cabeça que lhe toldavam a visão. Exames médicos indicaram a necessidade de uma intervenção cirúrgica, que recusou: «Mandei vir um óleo, um elixir da Igreja do Reino de Deus, passei na vista e nunca mais tive nada. Eu sou muito religiosa, leio a Bíblia com as minhas colegas.» Por sua vez a Lavínia, uma outra seguidora da IURD, informava-me: «São muito bonzinhos, trazem sacos para as que não têm visitas... Eu tive muitos sacos assim, gosto muito deles.»
16 O mesmo se discerne, ainda, nas formas de apropriação do espaço (sub)urbano e nas trajectórias juvenis referidas por Teresa Fradique no âmbito da cultura hip-hop:
Esta experiência não significa apenas uma relação com o local físico onde se habita, mas também, e sobretudo, uma forma de organização quotidiana e mapeamento das relações pessoais e de grupo que se baseia na criação de um mapa alternativo da cidade e dos seus arredores. Este mapa serve para re-orientar fluxos que contrariam as direcções convencionais – periferia-centro-periferia – traçadas pelas administrações do território urbano e cumpridas por grande parte dos citadinos (trabalhadores/adultos). A circulação da cultura hip-hop percorre bairro a bairro, numa espécie de expedição que reserva o centro para ocasiões especiais (1999: 124; [itálicos no original]).
17 As teorias da etiquetagem a que o autor alude descreviam o desvio não como uma propriedade inerente a um acto ou comportamento, mas como uma consequência da aplicação das regras que o definem enquanto tal a uma pessoa ou categoria de pessoas. Assim, o mesmo acto ou comportamento pode ou não ser qualificado de desviante, tal como «desviantes» são apenas os indivíduos a quem o rótulo foi aplicado com sucesso. Ora, é certo que Keith complexifica estas perspectivas ao introduzir os processos de racialização e ao analisar as categorias como sujeitos de discurso e não só como objectos de reacção social. Porém, faça-se justiça aos interaccionistas, a contingência e a variabilidade que o autor releva haviam sido há muito sublinhadas. Veja-se, por exemplo, Edwin Lemert (1951: cap. 4) e, em especial, John Kitsuse (1969):
A sociological theory of deviance must focus specifically upon the interactions which not only define behaviors as deviant but also organize and activate the applications of sanctions by individuals, groups, or agencies. For in modern society, the socially significant differentiation of deviants from the non-deviant population is increasingly contingent upon circumstances of situation, place, social and personal biography, and the bureaucratically organized activities of agencies of control (Kitsuse, 1969:602).
18 Estes recortes intervêm de forma decisiva em prisões americanas, como adiantei no capítulo anterior, embora a extensão das tensões que engendram pareça variar segundo o género. Nas prisões femininas estas clivagens são nítidas, mas a violência inter-«racial»/étnica é menor (cf. Kruttschnitt, 1983; Díaz-Cotto, 1996).
19 O termo ghetto não parece, na verdade, desajustado quando os índices de segregação étnico-«racial» destas constelações sócio-espaciais se aproximam por vezes da separação absoluta: Wacquant (1993: 271) refere para bairros de Chigago índices de segregação de 92%. Adiante-se no entanto que nalguns contextos urbanos certas inner-cities começaram recentemente a passar por um processo de «gentrificação», que diversifica um pouco mais a sua composição: devido aos elevados preços em vigor no mercado imobiliário, alguns membros da classe média branca optam por instalar-se nessas zonas: ver por exemplo J. Abu-Lughod, 1994, para o nova-iorquino Lower East Side; é também situável neste âmbito o recente fait-divers (noticiado pela imprensa em 2001) da instalação do escritório do ex-presidente Bill Clinton no igualmente nova-iorquino Harlem, depois de ter renunciado à dispendiosíssima renda que lhe era exigida numa zona nobre da cidade. A decisão foi contraditoriamente acolhida pelos habitantes de Harlem: uns viram nela um sinal da ressurreição do bairro, outros uma ameaça de expulsão. Com efeito, logo que a decisão foi conhecida, vários senhorios restauraram prédios, as rendas quadruplicaram e sucedeu-se um movimento de despejo de famílias mais pobres.
20 Esta particularidade da Grã-Bretanha face a países do continente dever-se-ia segundo o autor a modalidades divergentes de industrialização e de urbanização, por um lado (que explicariam por seu turno que a precaridade tenha aqui atingido os centros urbanos enquanto noutros contextos afecta sobretudo as periferias), e por outro, a diferentes modos de intervenção do Estado-providência.
21 É verdade que a concentração de minorias étnicas no parque periférico de alojamento aumentou (Lepoutre, 1997: 25); contudo, como notou Wacquant (ibidem: 271-272), salvo atípicos casos pontuais, o recrutamento etno-nacional e social destas zonas residenciais continua a ser extremamente diversificado (o autor fala mesmo de uma «surpreendente diversidade»), pelo que seria apenas superficial e aparente qualquer semelhança com o ghetto, uma realidade de natureza ecológica, estrutural e sócio-histórica distinta.
22 A localização residencial é aqui referida ao nível do bairro, uma vez que os padrões de distribuição espacial da imigração no país apontam para um forte desequilíbrio entre, por um lado, a área metropolitana de Lisboa e o Algarve (onde a heterogeneidade étnica e «racial» é grande) e, por outro, o resto do país (desse ponto de vista mais uniforme), como o autor indica noutro lugar (Machado, 1999). Acrescentará por isso a este propósito que, assim como Portugal não é um país de imigração, mas sim um país com regiões de imigração, também não se poderá considerar a sociedade portuguesa como multicultural (ibidem: 60).
23 Estas redes seriam igualmente densas em ambos os contextos, mas de menor extensão no bairro do Relógio. A particular morfologia deste espaço faria também com que a identificação com o bairro como um todo fosse menor (Freitas, 1990: 33-36). A vizinhança é contudo muito valorizada, tendo os inquiridos manifestado a sua inquietação quanto ao processo de realojamento, na medida em que poder-se-ia não vir a reproduzir ama ambiência relacional que prezam. Nesse sentido, manifestariam de igual modo o desejo de vir a ter por futuros vizinhos os actuais. Este capital social pode de facto vir a ser amputado por processos estatais de realojamento mal conduzidos. Como referem Cardoso e Perista (1994: 110), enquanto nos bairros de habitat espontâneo, que crescem por via das relações de parentesco e amizade, prevalece a noção de se ter «escolhido» o local de residência, nos bairros de realojamento ela encontra-se mais diluída, dando lugar à percepção de uma mera imposição económica.
24 Estas amizades podem ser bastante estreitas e profundas, como a que une a Rosário a uma detida não cigana:
– A Rosário hoje parece que está um bocado em baixo. Costuma estar sempre tão bem disposta...
– É. Não, eu estou triste porque eu tenho uma colega, que é da vossa raça, ela foi ontem p’ró Porto a julgamento e essa rapariga dá-me muito apoio. Hoje foi um castigo p’ra dormir, a pensar se ia correr tudo bem... Sinto muito a falta dela. Tenho mais amigas, falo com elas, mas não é tanto como essa aí do Porto. As da minha cela são umas velhotas, eu não me achego muito a elas. A última vez que ela foi ao Porto por causa de outro processo foi quatro meses, eu nem comia nem nada. É por isso que eu tou assim, é por causa dela. Tou desejando que venha ela porque eu não gosto de estar assim. Ela foi segunda-feira e disse-me que na quinta-feira tava aqui...
25 Para que a noção de integração não se entenda aqui na sua conotação funcionalista, sublinho que me refiro com ela a um quadro de inserção social, não à mecânica de sustentação de um sistema.
26 Tomo de empréstimo uma expressão de Christian Bromberger e Jean-Yves Durand (2001) que cunha a atribulada vida própria ganha por conceitos que escapam assim aos desígnios dos seus criadores.
27 É deste modo que Howe (1998: 69) defende que a teoria de Lewis é largamente uma elaboração académica de uma perspectiva ideológica sobre os desmunidos que tem uma longa tradição na classe média.
28 Não pretendo com isto sublinhar especificamente o tráfico. Este é apenas o último expediente de sobrevivência entre os múltiplos nichos que inventivamente cavaram nos interstícios de uma economia de margem e que combinam entre si numa lógica de pluriactividade.
29 Esta é uma crítica que não dirigiria a Day et al, cujas etnografias são densas e nos fazem penetrar noutros mundos, não enfermando de um óbice também apontado por Ortner (1995) a etnografias onde se tematiza a questão da resistência.
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