Capítulo 1. Trajectos de uma instituição: 1987-1997
p. 29-58
Texte intégral
Primeiro retrato: do rasto de uma reforma à des-ideologização da prisão
1Uma espinha de três pavilhões imponentes, de volumetria compacta e traça austera, destaca-se nos trinta e quatro hectares onde em 1954 se implantou, a 20 km a oeste de Lisboa (mais exactamente na localidade de Tires, freguesia de S. Domingos de Rana), a «cidadela» então designada de Cadeia Central de Mulheres. Uma rede de arruamentos, árvores e relvados, jardins e hortas envolvem vários outros edifícios, de típica arquitectura «Estado Novo», destinados a serviços: administrativos, culto, enfermaria, creche, cozinha e lavandaria. Dissonantes, e indiciando outro tempo, figuram dois pequenos pavilhões prisionais acrescentados recentemente ao complexo – a isso obrigou a expansão da população reclusa. De materiais leves e estilo acolhedor e ameno, sugerem as cottages há muito em voga na arquitectura penitenciária feminina anglo-saxónica. Concentra-se aqui a maioria das reclusas em etapas avançadas do cumprimento da pena e cuja trajectória prisional as fez aceder a regimes menos severos e mais flexíveis1. Os restantes três pavilhões – os de origem – acolhem, também eles, tipos diferenciados de reclusas: respectivamente, as condenadas a penas mais longas e as que optaram por manter os filhos junto de si2; as condenadas a curtas penas e algumas em regimes de confiança ou aberto para o interior (RAVI); e, por fim, as sujeitas a prisão preventiva (aguardando julgamento ou decisão do recurso da sentença), à excepção daquelas com crianças no estabelecimento ou com parentes igualmente presos, transitando neste caso para outros pavilhões. É assim permitido o agrupamento familiar, independentemente da situação jurídica.
2Esta especialização pavilhonar (que pressupõe a triagem e a constituição da população reclusa em tipos específicos), a diferenciação correspondente em regimes distintos e, enfim, a ideia de progressividade no percurso penal (que os pavilhões de RAVI e RAVE materializam), parecem retomar parcialmente a herança da reforma prisional de 19363. Foram, aliás, os princípios programáticos desta reforma que estiveram na origem da criação de vários estabelecimentos prisionais – entre os quais o de Tires – e que constituíram em sistema o parque penitenciário nacional. Muito sucintamente, tais princípios entroncavam na noção dos supostos efeitos criminogéneos da aglomeração indiscriminada de diferentes tipos de delinquentes4. Por consequência, era preciso classificá-los, separá-los, encaminhá-los para instituições especializadas e submetê-los a tratamento diferenciado – com vista, evidentemente, à sua «reabilitação social». A reforma modernizava assim, na altura entusiasticamente, as «tecnologias de correcção» (Foucault, 1975) portuguesas5.
3No caso masculino, alargar-se-ia de facto o leque de estabelecimentos, de acordo com a racionalidade reformista. O universo recluso feminino era, porém, muito mais reduzido, e o investimento recíproco não se justificava. Entre 1937 e 1941 (o período que antecede a construção da Cadeia Central de Mulheres) o número de condenadas a penas de prisão superiores a três meses, às quais este estabelecimento se destinava, era de 934. O montante correspondente de condenados era de 11 538. Grande parte do universo feminino foi assim concentrado num único estabelecimento (as cadeias regionais absorveriam o restante: as reclusas preventivas e as condenadas a penas inferiores a três meses). Desmultiplicá-lo em três pavilhões com a autonomia suficiente para não misturar na rotina prisional os diferentes tipos de reclusas afectos a cada um deles (o que implicava o respectivo refeitório, local de trabalho e instalações recreativas) foi, se quisermos, a solução «três-em-um» que permitia o exercício dos métodos da reforma.
4Em 1987, quando iniciei o primeiro trabalho de campo no EPT (Estabelecimento Prisional de Tires), esta lógica havia já sido inteiramente subvertida. Apenas um pavilhão – sobrelotado – estava ocupado por reclusas. Os dois restantes destinavam-se respectivamente à formação de guardas e a uma população de reclusos. Circunstâncias anteriores levaram à desafectação progressiva destes edifícios da sua vocação original: um deles fora já previamente disponibilizado para acolher refugiados das ex-colónias. E, após 1980, na sequência do abandono do estabelecimento por parte das religiosas que até aí asseguravam a sua gestão e vigilância, todas as reclusas transitaram para um só edifício. A sobreocupação do pavilhão feminino acabou também por retirar sentido ao sistema celular – uma reclusa, uma cela – que era suposto, à pequena escala, afinar o propósito programático de minimizar os ditos contactos criminogéneos entre prisioneiras (existiam à data 177 mulheres para 130 celas). Finalmente, este pavilhão concentrava doravante não só todos os tipos de condenadas que antes se distribuíam por três edifícios, como recebia agora as únicas categorias jurídicas que a vocação original do estabelecimento excluía: as preventivas e as sujeitas a curtas penas de prisão. Este agrupamento compósito de uma população de heterogeneidade máxima reeditava assim a situação que a reforma de 1936 visava combater – e cuja filosofia, aliás, a própria administração do estabelecimento continuava em 1987 a proclamar.
5Dez anos depois, como referi, as práticas de distribuição da população reclusa feminina (à qual foi entretanto devolvida a totalidade dos pavilhões) parecem traduzir um regresso às directrizes originais. Trata-se, porém, de um regresso parcial e de conteúdo algo diverso. A sobrelotação pereniza-se e as reclusas preventivas continuam, mais abundantemente do que nunca, a afluir ao estabelecimento: em finais de Janeiro de 1997 existem 820 reclusas para uma lotação de 435, e o número de preventivas (356) não se distancia muito do de condenadas (464). Esta situação de sobrelotação não é, de resto, única no parque prisional português. O relatório da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais relativo ao mesmo ano aponta para uma taxa global de ocupação de 134%, a mais alta da União Europeia. Para além destes montantes e tipos suplementares de reclusas, que a cadeia de 1954 não recebia, internamente os critérios de repartição pavilhonar procuram ainda centrar-se na situação jurídica das reclusas (preventivas/condenadas e, dentro das últimas, tipo de pena e estádio do seu cumprimento). Tais critérios, no entanto, entram agora em compromisso com outros, extrajurídicos: a existência de filhos ou de parentes no estabelecimento, mediante a qual, recordo, as reclusas podem transitar de pavilhão.
6Na verdade, estes dez anos saldaram-se numa evolução duplamente paradoxal. Em 1987, o princípio da compartimentação da população enclausurada, radicando, em última instância, no objectivo da sua reabilitação, era vivamente reafirmado a contrario na retórica do pessoal penitenciário, quando lamentava os supostos efeitos desastrosos da mistura de todo o tipo de presas. Totalmente negada nas práticas de ocupação do estabelecimento, a repartição espacial dessa população teria sido, todavia, especialmente coerente nessa época, sobretudo quando olhada retrospectivamente: a heterogeneidade de algumas das categorias jurídico-penais que a ela presidiriam (tipo de pena e, via este, tipo de crime) recobria também, ainda que grosso modo, uma relativa heterogeneidade sociológica (de estratos sócio-profissionais, de estilos de vida, entre outros traços).
7Hoje (refiro-me a 1997, o ano deste «presente etnográfico»), que a letra da reforma, impressa na classificação pavilhonar, foi recuperada – mesmo se imperfeitamente –, em parte o seu espírito já não pode acompanhá-la. Se proporciona alguma racionalidade gestionária, separando horários e rotinas (em alguns casos forçosamente diversos, como os de preventivas e RAVE, noutros, limitando-se a serem distribuídos por diferentes corpos do pessoal de vigilância), já não separa outras diferenças. Como se esclarecerá nos capítulos seguintes, a população que agora desemboca no EPT é caracterizada por uma inesperada homogeneidade penal e sociológica, maior ainda, de resto, do que aquela que a actual repartição das etiquetas jurídicas deixa supôr. Que as diferenças jurídicas são, em certa medida, formais (embora, como é óbvio, tenham um enorme peso na vida prisional das reclusas), parece constatar-se no facto de não mais se ouvir ao pessoal penitenciário o discurso, outrora tão recorrente, da nefasta «mistura» de diversos tipos de delinquentes. Não porque o staff, entretanto renovado, tenha deixado de crer nos seus efeitos criminogéneos, mas porque a «mistura» – uma noção que por definição pressupõe a variedade daquilo que se congrega – deixou de facto de ocorrer quando à partida é mais o que assemelha as reclusas do que aquilo que as diferencia.
8Por outro lado, embora na realidade o estabelecimento ofereça no presente mais oportunidades de formação escolar e profissional do que no passado (em graus para a primeira, em diversidade para a segunda), as ambições que o discurso institucional veicula são mais modestas. Sem explicitamente enjeitar o legado reformador, caiu o tom grandiloquente – ou pelo menos convicto – com que em 1987 circulava prolixamente a expressão «reinserção social». Confrontado recorrentemente com ex-reclusas que regressam, tornou-se mais prosaico e comedido. Ontem, como hoje, os dados estatísticos locais sobre a reincidência são em absoluto não fiáveis. Entre outros problemas, o seu preenchimento é irregular e uma mesma pessoa pode figurar sob apelidos diferentes. O trabalho de campo, contudo, permitiu-me assistir a esses regressos, e sobretudo aos inúmeros comentários que pontuam a rotina prisional acerca de quem cá está outra vez (o trabalho anterior apenas me havia confrontado com duas dessas situações). Os processos discursivos legitimadores da prisão centram-se agora nas preocupações de equidade, legalidade e consistência das decisões respeitantes às reclusas, e na melhoria das condições de detenção (cf. Sparks e Bottoms, 1995: 45-62, para outros contextos): além das próprias instalações físicas dos edifícios de RAVI e RAVE testemunharem a melhoria das condições prisionais, foram também introduzidos nos restantes pavilhões telefones públicos, construídos recintos desportivos, remodelados bares e cantinas, e previa-se para breve a instalação de sanitários nas celas; o sentido desta evolução não é, no entanto, unívoco (nos pavilhões mais vetustos acumulam-se sinais de degradação, como humidade e fendas nas paredes, a pintura descascada em grades e corrimões, o chão de betão irregularmente comido) e para as detidas surge por vezes como contraditório (questionando, por exemplo, a inovação que são os campos desportivos face ao mau funcionamento de chuveiros e casas de banho comuns). No caso concreto do EPT esta mudança de ênfase ocorreu sem que estas recentes práticas discursivas se reportem a uma nova filosofia da execução da pena. De facto nenhuma veio, explicitamente, substituir a anterior – a qual aliás subsiste em pano de fundo, como recurso prêt-à-porter que justifica perante o exterior a missão da prisão. Mas esta mudança parece corresponder à deslocação, essa sim assumida, de uma ideologia de tratamento e reabilitação para uma outra, mais neutra, de humane containement e de positive custody (cf. Morgan, 1997: 1137-1151; Salas, 1995: 104-116; Faugeron e Le Boulaire, 1992: 3-32), que no mundo ocidental se observa desde os anos 70. Trata-se apenas de humanizar a prisão, diminuindo a distância que a separa do mundo exterior no que respeita à prestação de bens e serviços, e de minimizar os seus aspectos destrutivos (embora seja ainda muito popular extramuros o princípio de less eligibility, que defende precisamente o inverso: as diferenças entre o mundo livre e o mundo carceral deveriam ser acentuadas para que o último permaneça devidamente punitivo e dissuasor). A própria disciplina «des-ideologizou-se», e não parece mais adequar-se ao modelo de Foucault (1975). Como sustenta Claude Faugeron:
«[S]i discipline il y a, elle n’a pas, à la différence de l’école notamment, un objectif de modelage des corps et des esprits mais, beaucoup plus prosaïquement, un objectif de maintien de l’ordre, c’est à dire dépourvu de contenu, ne pouvant s’apprécier qu’avec des critères de pure opportunité et d’efficacité immédiate et certainement pas en termes de changement des individus à moyen ou long terme» (1996a: 31).
9E se se mantém a disciplina apenas porque é necessária à gestão ordeira do quotidiano da instituição, mantém-se o trabalho porque é necessário assegurar meios de consumo aos prisioneiros, que, à semelhança dos cidadãos no exterior, se tornaram «consumidores». Nesta perspectiva, mais do que um dever ou uma técnica disciplinar, o trabalho transmuta-se num direito (perspectiva esta, aliás, que as reclusas de Tires parecem hoje partilhar, em contraste com as do passado, como se verá no capítulo 5, tanto mais que se são agora bastante mais pobres, expandiu-se por outro lado a panóplia de produtos à venda no estabelecimento). É isto mesmo que nota Faugeron num outro texto:
[T]he issue of penal work is evaluated more and more (...) in terms of the ability to provide the inmates with an income, allowing them to buy consumer goods. Because they have become consumers, the inmates today have a more complex relationship to prison labour (...) Nowadays it is no longer a matter of disciplining the body and the soul, but of ensuring that the inmates keep their means to consume: a right to which every citizen is entitled (1996b: 133).
10A prisão mudou, deste modo, de objectivos ou, melhor dizendo, não tem já objectivo próprio, excepto o da manutenção da ordem interna – que é, aliás, cada vez mais árduo. Dificilmente seria de outra forma quando é chamada, como será questão adiante, a gerir penas cada vez mais longas, às quais são submetidas populações cada vez mais desmunidas e afectadas por novos problemas. O «penitenciário», para retomar os termos da formulação foucaultiana, deixou assim de se distinguir do «judiciário», ou de lhe suceder numa outra empreitada, e esta é, em si mesma, uma inflexão de peso. A prisão talvez nunca tenha existido de facto como Foucault a descreveu, como uma perfeita instituição disciplinar; talvez nunca tenha fabricado «corpos dóceis» (veja-se a questão da resistência dos encarcerados, abordada por Garland, 1990: 173); seguramente que sempre foi longa a distância entre a teoria da punição que a fundou e a sua tradução prática (a este respeito os críticos são particularmente abundantes: e. g. Rothman, 1980: 11; Pisciotta, 1994: 75-80; para Cohen, 1985:29, a obra de Foucault construiu-se somente com base em «stories, visions, plans»). Mas não foi menos real a «visão» que mal ou bem a prisão pôs em cena, o tipo de racionalidade que ostentou e pelo qual – muito imperfeitamente, é certo – se guiou6. É esse programa – e não apenas a sua execução – que deixou de ter lugar.
Preâmbulo a dois modelos de gestão: profissionalização, especialização, burocratização
11Paralela a esta mudança ocorreu em Tires, ao longo destes dez anos, uma outra, que evidencia modelos distintos de gestão. Os protagonistas destes modelos também já não são os mesmos. Sucederam-se as directoras do estabelecimento, tal como se sucederam os directores-gerais dos Serviços Prisionais, de quem respectivamente dependiam. Antes de abordar estes tipos de gestão, é necessário porém referir alguns factos a que não serão porventura alheios e com os quais fazem corpo.
12A escala do universo humano da instituição mudou durante a década em questão. De 177 reclusas passou-se a 820; de menos de 50 guardas, ao seu triplo. E cresceu, inevitavelmente, o pessoal técnico e administrativo. A mudança de escala acompanhou-se também da profissionalização do staff. No caso do pessoal de vigilância, para além de se terem elevado globalmente os níveis de instrução à entrada, ele não se faz mais na tarimba, como antes acontecia com a maioria, mas passa pelo crivo prévio de um curso de formação específica (em 1987 mais de metade das guardas não havia atingido o 12.º ano de escolaridade ou equivalente. Eram de resto as guardas recém-entradas quem possuía este grau, que na altura era já condição para admissão na profissão, via um curso de formação de guardas prisionais). Uma situação análoga verifica-se com os membros do pessoal técnico, entretanto quase totalmente renovado. À excepção de um (o único que permanece do passado), todos são actualmente licenciados, apagando a clivagem outrora existente entre os minoritários doutores, por um lado, e os então toes (técnicos de orientação escolar e social), que invocavam a experiência como princípio legitimador da sua função. A estruturação da profissão nesta área acompanhou-se, aliás, da afirmação de um campo discursivo próprio que, agrupando saberes especializados e académicos, se manifesta localmente na abundante circulação de expressões como evolução psico-social, interiorização do sentido da pena (ou do desvalor do acto), capacidade de resistência à frustração, orientação para o presente, entre outras formulações pré-codificadas.
13Ora, esta transformação do estatuto escolar e profissional do staff acompanhou-se, em contraponto, de idêntica alteração na população reclusa – só que no sentido inverso. Se a primeira representou um movimento no sentido ascendente, a segunda, como se constatará, saldou-se numa desclassificação notável. Cavou-se, assim, um abismo sociológico pela deslocação de ambos os pólos. Previsivelmente, este fosso não deixa de ter consequências. Entre outras, que adiante abordarei, o pessoal técnico corporiza perante as reclusas novas lógicas e exigências, de que entretanto lhe competiu fazer-se portador, tantas vezes formuladas num opaco idioma burocrático. Veja-se o caso da elaboração do «plano de readaptação», a que toda a reclusa condenada a uma pena superior a cinco anos, e candidata à liberdade condicional, terá de proceder. Dados os capitais escolares da esmagadora maioria das reclusas (cf. infra: 68-69), a execução de tal projecto afigura-se-lhes à partida como uma intimidante prova, governada por misteriosos códigos. «As reclusas não têm ideias», dizia-me, a este propósito, uma técnica. Na verdade têm-nas, mas intraduzidas nos códigos discursivos apropriados e não formatadas nas categorias institucionais disponíveis. O staff acaba por intervir, sendo ele na verdade quem inicia, conduz e padroniza o processo, fazendo-o entrar nos devidos canais burocráticos. Estes podem envolver, por exemplo, contactos com autarquias (para questões de alojamento), serviços de emprego e instituições de tratamento da toxicodependência.
14A par da mudança de escala e da profissionalização, um outro aspecto marcaria esta viragem ocorrida no estabelecimento: a especialização. Todos os serviços e departamentos viram mais vincada e formalizada a distribuição de tarefas e competências, quer entre si, quer no interior de cada um. O caso da área da reinserção social é paradigmático. Os técnicos que em 1987 trabalhavam no EPT haviam já sido recentemente transferidos da tutela administrativa dos Serviços Prisionais para a do Instituto de Reinserção Social (IRS). Porém, na altura essa alteração era meramente formal e não produziu outras consequências. Estes técnicos continuavam a ver-se e a funcionar como «pessoal da cadeia». Nas palavras de um deles, existia uma cultura de contacto com os restantes membros do estabelecimento, e em especial com a sua directora. De facto, no discurso, nas rotinas e nas práticas de relacionamento apagava-se a linha administrativa que separava uns e outros em diferentes pertenças institucionais, e as próprias reclusas não os situavam como relevando de organismos distintos.
15Hoje é nítida a demarcação e a distância entre, por exemplo, o sector da educação (além de competências várias relativas ao acompanhamento das reclusas, este sector coordena e supervisiona as actividades de ensino e formação profissional, bem como de animação cultural e desportiva) e o da reinserção social (os respectivos gabinetes passaram, inclusive, a situar-se em edifícios separados), embora esta distância possa ser quebrada episódica e individualmente. Acresce que enquanto o primeiro se encontra adstrito à cadeia, o último autonomizou-se inteiramente e apenas se subordina às directrizes e filosofia do IRS. Ou seja, passou a depender do exterior, sem qualquer mediação interna. Aliás, os próprios relatórios que estes técnicos elaboram sobre os pedidos de liberdade condicional seguem agora directamente para o tribunal de execução de penas, sem passar pela directora do estabelecimento.
16Por outro lado, a especialização progrediu não só entre sectores, mas no interior de cada um deles. Ainda no que concerne ao serviço de reinserção social (mas tal mudança tem paralelos noutros serviços), cada técnico deixou de acompanhar o percurso individual de cada reclusa, da entrada à saída da instituição. Este percurso é agora compartimentado, e os fragmentos são distribuídos pelos técnicos respectivos: uns ocupar-se-ão de reclusas preventivas, e neste caso especializam-se na elaboração de relatórios para o julgamento; outros acompanham as condenadas, centrando-se na realização de relatórios para apreciação da liberdade condicional. Mas a «linha de montagem» afina-se ainda mais7. Estes últimos já não se deslocam ao exterior para avaliar no terreno as condições familiares e, em geral, de acolhimento das reclusas. Tal avaliação fica agora a cargo de equipas externas do IRS a que cada círculo judicial recorre. Quanto muito os membros sediados na cadeia contactam com as famílias das reclusas no próprio estabelecimento, por altura das visitas, e um deles limitar-se-á a sair para supervisionar o contexto de trabalho das reclusas em RAVE (não, portanto, no quadro dos processos de liberdade condicional).
17Esta acentuada repartição de tarefas parece de resto acompanhar-se de uma viragem na própria forma como estes técnicos de reinserção social concebem as suas funções. Um deles, referindo-se a um «mal-entendido» que se aplicava a desfazer, dizia-me: «as reclusas pensam que nós somos as assistentes sociais delas: não somos, nós assessoramos e damos apoio técnico ao tribunal de execução de penas»8. Uma outra técnica, esta relembrando nostálgica outros tempos e outros procedimentos, queixava-se do seu actual trabalho de gabinete, em que quase já não vemos as reclusas. A brigada da caneta seria aliás, segundo ela, o epíteto que resume hoje o estatuto e a reputação burocrática dos membros deste serviço no estabelecimento. A outro propósito, referiria também a distância e a rigidez que marcariam o relacionamento no interior do staff, sendo a informalidade mal-vista e em que tudo tem de ser por escrito e através dos canais hierárquicos. Na verdade, a burocratização é transversal aos aspectos acima mencionados – mudança de escala, profissionalização, especialização – e vem fazer corpo com eles para configurar um novo modelo de gestão.
O modelo «doméstico-autoritário»
18Israel Barak-Glantz (1981) identificou quatro modelos de gestão das prisões (não programáticos, mas históricos). Apesar de terem sido delineados a partir do contexto americano – mas Jean-Hervé Syr (1996) não deixou de reconhecer a sua valia analítica para a compreensão da evolução das prisões europeias –, dois dos modelos podem dar conta de características centrais da organização do EPT ontem e hoje, ainda que um deles, como se verá, muito parcialmente: são eles o modelo «autoritário» e o modelo «burocrático-legal»9. O primeiro, na sua forma pura, é o que mais se aproxima do estereótipo da Prisão, ou dos seus clichés cinematográficos, embora também descreva adequadamente certas realidades históricas e empíricas. Corresponde a uma situação em que o director da prisão concentra amplos poderes, que exerce de forma mais ou menos discricionária quer sobre o staff, quer sobre os reclusos. A ordem é mantida não só por esta via, mas ainda pela emergência de uma estrutura de autoridade paralela e informal entre os detidos, cujos líderes, possuindo por definição um elevado potencial de controlo e influência sobre os co-detidos, são por esta razão usados subsidiariamente pelos poderes formais (director e guardas) na manutenção da ordem, quando não favorecidos ou protegidos por estes.
19Laivos deste modelo encontravam-se ainda em 1987. O poder da directora, apesar de já consideravelmente limitado na letra da lei por instâncias exteriores de controlo (a instância judiciária, por via do tribunal de execução de penas, e a administrativa, através da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais), era bastante abrangente, com uma vocação centralizadora e omnipresente que cobria, até, os detalhes da gestão rotineira da prisão: era a directora quem procedia, por exemplo, à triagem das detidas que autorizava a frequentar as aulas de ginástica. Recordado pelas actuais reclusas que permanecem desse tempo, esse poder é retrospectivamente – e, por algumas delas, saudosamente – qualificado de mão de ferro. Visto no passado pelas reclusas de então, proliferavam as imputações de favoritismo e as denúncias acerca das queridinhas da directora, acusações que hoje se fazem, comparativamente, muito mais raras. Tal terá porventura menos a ver com os méritos e os deméritos dos respectivos estilos pessoais de direcção do que com a complexificação, especialização e sobretudo codificação crescente dos procedimentos e da organização penitenciária; mutatis mutandis, e ainda que esta observação pareça quase desnecessária, o adjectivo «autoritário» com que refiro o passado modelo de gestão qualifica menos as idiossincrasias do exercício do poder do que o tipo de organização que o enquadra. Por fim, nesse passado e em coerência com esse modelo, salientava-se a influência de duas líderes (ver Cunha, 1994:128-130), quer junto das co-reclusas, quer – et pour cause – junto da direcção, perante quem eram interlocutoras, directa ou indirectamente (via as subchefes de guardas com quem respectivamente se alinhavam). Precise-se que se tratava de interlocutoras informais visto que não existiam então, como ainda não existem hoje, estruturas formais locais de representação da população reclusa.
20Todavia, certas características da instituição conferiam a esse modelo de gestão uma tonalidade particular, levando-me a inflectir a designação proposta por Barak-Glantz e a nomeá-lo antes de «doméstico-autoritário». Para além de aspectos a que já aludi, como a pequena escala do universo humano, a fraca especialização e a relativa informalidade das relações institucionais, a prisão assemelhava-se a uma quinta rural, com uma gestão doméstica e quase-familiar. E penso a este propósito no membro do staff que recordava nestes termos a directora de então: era uma mãe de braços abertos que nos integrava a todos. Era, porém, mais «paternal» do que «maternal» o tom que regia Tires, pois não só a matriz doméstica não dispensava a mão de ferro, como, por outro lado, o adjectivo «paternalista» não está longe de qualificar adequadamente toda a filosofia de tratamento penitenciário de mulheres que esteve na origem da própria criação do estabelecimento. Não foi, aliás, um acaso que a condução de uma instituição para delinquentes adultas tivesse sido entregue (desde o início e até 1980) à mesma entidade que geria reformatórios juvenis: a Congregação da Nossa Senhora da Caridade do Bom Pastor. O desvio feminino era associado, entre outras coisas, a uma ausência de amparo e protecção, assim como a perturbações na esfera do lar (ver, por exemplo, Pinto, 1969). E recuperar as desviantes significava reconduzi-las aos eixos da construção ideológica que se fazia daquele género. Várias décadas depois, em 1987, estas concepções cristalizavam ainda em disposições institucionais que investiam sobretudo no desenvolvimento das competências maternais e domésticas das reclusas10.
21Conjugada com esta ambiência de domesticidade que envolvia em vários registos a cadeia, a sua faceta de quinta rural permitia ao staff esboçar certas continuidades entre o seu próprio espaço doméstico e o local de trabalho, ou propiciava a mistura das ordens de que um e outro relevam11. Usufruindo de preços especiais na aquisição de artigos manufacturados pelas reclusas (como os tapetes de Arraiolos), os funcionários também se abasteciam mais ou menos informalmente de géneros e produtos da agro-pecuária. Hoje, esses hábitos entram em conflito com novos modos de condução do estabelecimento. Dizia-me um membro superior do pessoal – receando a impressão de injustiça que tais hábitos causariam nas reclusas – que as maiores dificuldades que enfrenta são as de fazer cumprir regras neste âmbito aos funcionários administrativos (justamente o sector menos renovado em relação há dez anos atrás) e de gerir as desavenças entre eles. Sem que eu alcançasse que tipo de desvios, problemas e conflitos referia, percebi que, a existirem, mais facilmente me falaria de «desvios financeiros», disputas salariais e incompetência do que daquilo que visivelmente embaraçava um gestor «moderno». De facto, a natureza dessas dificuldades e quezílias tem uma ressonância inapelavelmente paroquial e doméstica. Acabaria assim por me falar da inveja, porque uma levou mais dois ovos que a dúzia, ou outra um frango, uma perna de porco, e até tomei conhecimento de restos de comida cozinhada e sopa que levam para casa.
O modelo «burocrático-legal» e a desfocagem da prisão goffmaniana
22O modelo de gestão que hoje se afirma no EPT é o modelo dominante das instituições prisionais do pós-guerra, principalmente das europeias. Trata-se, para retomar a terminologia de Barak-Glantz (1981), do modelo «burocrático-legal». Além de enquadrar as características que anteriormente tratei (cf. 29-33), e que convergirão noutras ainda, ele pressupõe a atomização da população reclusa pela aplicação estrita, universal e equitativa de princípios e regras comuns. Aliás, no caso de Tires, o receio de arbitrariedade é tal que anula por vezes a necessária flexibilidade para atender à diversidade das situações individuais, nomeadamente em sede de apreciação de concessões de liberdades condicionais e saídas precárias. Autolegitimando-se mais, pode dizer-se, pelo modo neutral e imparcial como aplica princípios do que pelos princípios que aplica, tende por isso a dispensar a colaboração e o compromisso com lideranças informais para a manutenção da ordem, não sendo assim de estranhar que as duas líderes da década anterior não tenham encontrado sucessoras de dimensão equivalente – ou outras, tout court. Hoje, uma ex-líder lamentava justamente a perda da capacidade de mobilização e de fazer frente, que ela e outras exerceram em épocas passadas. Por esta razão a sua actual estada na prisão pautava-se por algum desnorte, já que esta não correspondia mais ao quadro de referências que constituíra ao longo de extensas e sucessivas penas.
23Em segundo lugar, e correlativa a esta inflexão, a acção gestionária do director local passa neste modelo a decorrer menos directamente da sua personalidade e estilo pessoal, sendo a figura do «governador solitário» substituída pela do «administrador da prisão» (Syr, 1996: 250-251). Enquanto a autoridade do primeiro assenta na maior margem de manobra quanto à interpretação e aplicação da regulamentação penitenciária, a do segundo está mais circunscrita por um corpo de directivas e normas de procedimento superiormente estabelecido. A proporção de regras locais e supralocais parece, até, inverter-se. No caso concreto do EPT, estes dez anos separaram diferentes conteúdos e modos de produção da regulamentação interna. No passado, esta expandia alguns princípios comuns da administração penitenciária central quer num regulamento próprio, quer em inúmeras circulares e ordens de serviço que, por sua vez, o desmultiplicavam casuisticamente em novas regras. Estas regras, de resto, tinham uma vocação verdadeiramente telescópica, pronunciando-se por exemplo sobre a existência ou inexistência de botões nas peças de vestuário que as reclusas envergavam sob o uniforme. Hoje, para além das normas deste tipo se encontrarem na sua maioria agrupadas num regulamento único e estável, o conteúdo deste limita-se a transpor o estipulado pelo Ministério da Justiça, e por outro lado, vem apenas regular os items que este expressamente delega nas competências locais (horários, regime de visitas, etc.)12.
24Em suma, uma boa parte das competências que na prática outrora relevavam da direcção, encontram-se hoje desconcentradas para cima, para instâncias superiores e autoridades centrais, sendo assim, de certa forma, hetero-determinadas e menos autónomas. Aliás, esta hetero-determinação não se refere apenas à legislação e às instituições nacionais, mas também a instâncias supra-nacionais. Veja-se o caso das Regras Penitenciárias Europeias (in Temas Penitenciários, n.º 1, 1988), que formal e detalhadamente orientam, desde 1987, as administrações penitenciárias dos países membros do Conselho da Europa. Por outro lado, outras competências ainda acham-se desconcentradas, como vimos, para baixo – para os escalões intermédios dos serviços especializados.
25Em acréscimo, a prisão tornou-se menos «autárcica». Certos sectores foram inteiramente subtraídos ao seu quadro, como o caso já descrito do sector de reinserção social13. Além disso, a sua mudança de escala e a sua complexificação tornaram inevitável um maior recurso ao exterior para a prestação de bens e serviços (que o modelo anterior procurava assegurar internamente): no sector da saúde, em que cresce o apelo a especialistas e instituições externas (o Serviço Nacional de Saúde e as Administrações Regionais de Saúde, de resto, constituíram-se como parceiros formais dos serviços prisionais); no sector do trabalho, com a celebração de protocolos com empresas e autarquias para empregar mão-de-obra reclusa quer no interior (por exemplo, através da modalidade do trabalho pago à peça), quer no exterior (no caso dos RAVE); no sector do ensino e formação profissional, colaborando com instituições públicas; e, por fim, na hotelaria, com a malograda experiência de fornecimento das refeições das reclusas por uma empresa privada14.
26Mais controlada do exterior e dele estruturalmente dependente, menos fechada sobre si própria, com fluxos de toda a ordem atravessando os seus limites materiais, a prisão deveio, por consequência, menos «total». É sobretudo a propósito da multiplicação deste tipo de trocas entre o interior e o exterior que a pertinência do modelo de Erving Goffman (1968) para a leitura destas instituições tem vindo a ser questionada (ver, por exemplo, Lemire, 1990, e Farrington, 1992). Porém, porosidades menos evidentes e de outra ordem têm vindo a desenhar-se na cadeia de Tires, e é nelas que incidirá parte deste trabalho. Debruçar-me-ei, pois, mais tarde sobre a proposta deste autor.
27Por outro lado, disposições internas que outrora claramente tipificavam «a mortificação do eu» (Goffman, 1986: 56-57), característica das instituições totais, sofreram algumas alterações relevantes. A correspondência (expedida e recebida) e os telefonemas são agora confidenciais, furtando-se assim a práticas censórias que antes exerciam não só um controlo securitário como também moral (cf. Cunha, 1994: 41-43), embora o princípio, rotineiramente aplicado, da confidencialidade possa ser suspenso caso haja a suspeita de crime. A correspondência é ainda fiscalizada aleatoriamente, mas na presença da reclusa e visando materiais ilegais, estando portanto excluída a leitura do seu conteúdo por parte dos funcionários. O ensejo moralizador é também menor quando já não se veta visitantes e correspondentes com o argumento de que configurariam uma ligação «extraconjugal», ou ainda de que mais do que um [namorado] não pode ser.
28A autonomia individual, ainda que permaneça severamente restringida pelos mecanismos próprios da reclusão, ganhou pequenas mas significativas margens: é agora autorizada a televisão nas celas (e já não só na sala de convívio), permitindo deste modo às reclusas não estarem tão dependentes da variável condescendência das guardas como no passado, quando se lhes suplicava o adiamento da hora do fecho nocturno para assistir ao fim do episódio da telenovela15; efeitos menos infantilizantes teve também a instalação de interruptores internos nas celas da maioria dos pavilhões – quando anteriormente a sua iluminação era exclusivamente comandada do exterior, pelo pessoal de vigilância. As prisioneiras podem assim dispor individualmente de electricidade para lá da hora regulamentar do colectivo fecho das luzes e silêncio.
29No campo da apresentação pessoal, apesar de se manter a obrigatoriedade do porte de uniforme, que ainda assim exclui as reclusas preventivas, o modo como ele é usado deixaria de ser regulamentado a um nível de detalhe que outrora visava a estandardização máxima (cf. Cunha, 1994: 43-44). Para mais, além de normas e rotinas se terem diversificado de acordo com as modalidades de reclusão a que são submetidos diferentes tipos de reclusas, reduziu-se a arregimentação das actividades e movimentações quotidianas respeitante a cada um destes tipos16.O horário continua, é certo, a escandir colectivamente a rotina prisional. Mas na sua aplicação ganhou-se em certos casos alguma flexibilidade individual na execução das mini ou subsequências desta rotina (como na ordem das tarefas de arranjo da cama, vestir, banhos, despejos, etc. Neste último caso deixou mesmo de vigorar a regra horária em alguns pavilhões).
30Enfim, essa correntíssima modalidade de «mortificação do eu» que no passado era a aprendizagem da humildade e da deferência solícita extrema para com os superiores tende hoje a dar lugar a relações mais «contratuais» e limitadas à exigência de respeito. Por exemplo, a formulação dos pedidos escritos das reclusas aos serviços técnicos e à direcção tornou-se mais breve e enxuta, comparada com o tom implorativo e autodesqualificante dos intermináveis prólogos que antes caracterizavam a sua redacção. Tal não obsta a que o mesmo pedido continue, como anteriormente, a ser dirigido a múltiplos destinatários, encharcando os serviços e criando neles alguma confusão: com efeito, a estratégia da redundância parece conferir às reclusas uma garantia psicológica de que a solicitação que fizeram será atendida. A humildade continua a ser apreciada, mas como qualidade que naturalmente se tem ou se não tem, e não como requisito incontornável das relações internas e objecto de uma aprendizagem que, ao mesmo tempo, seria indicador de um processo de «domesticação» e componente de um projecto disciplinador.
31Tudo isto não significa que não se reencontrem aspectos dessa «mortificação» típica das instituições totais, conclusão passível de ser induzida por um efeito de contraste na comparação que tenho vindo a fazer entre o passado e o presente. Essa e outras continuidades existem. Subsistem contudo de forma atenuada, prendem-se, nas suas manifestações mais características, com as idiossincrasias dos seus vários agentes (o tratamento por «tu» das reclusas por algumas guardas é apenas um exemplo menor) e, sobretudo, não configuram já um todo coerente e avalizado pelas disposições formais do estabelecimento.
O contexto do contexto: os novos meandros da lei e o novo «alarme social»
32Sustentei acima que a prisão, na esteira da tendência contemporânea que afecta estas instituições, se tornou mais hetero-determinada em vários aspectos gestionários e, por outro lado, pareceu perder o ímpeto ideológico relativo a missões e objectivos próprios que não sejam os da manutenção da ordem interna ou, como se verá, os da resposta a um crescente apelo securitário externo. Mas mesmo conter populações é hoje uma tarefa radicalmente diversa em comparação com o passado, e é também por esta razão que as margens locais de manobra se estreitaram. De momento, basta mencionar dois elementos caracterizadores da população aqui reclusa, que desenvolverei no capítulo seguinte: a sua dimensão, que quadruplicou, e os períodos de reclusão a que está sujeita, que se alongaram ostensivamente. Estas características, em especial a segunda, exprimem em parte a repercussão que tiveram no estabelecimento inflexões globais de monta que, também nestes dez anos, se produziram no contexto político, legislativo e jurídico – nacional e supranacional. Aliás, é já por si só significativa a sucessão de alterações, num curto espaço de tempo, no domínio da legislação penal, que por vocação é relativamente estável. Entre as mais importantes contam-se as revisões do Código Penal e do Código do Processo Penal e a publicação de uma nova lei da droga (esta especialmente instável, uma vez que viria a ser de novo revista num curto lapso de tempo).
33Na viragem da política criminal que ocorreu nestes anos delineiam-se, grosso modo, duas tendências, correspondentes a uma marcada polarização judiciária na abordagem da «pequena» e «grande» criminalidade – e também aqui se insinua uma crescente dicotomização discursiva. A primeira tendência é para um tratamento mais flexível e aparentemente mais benevolente dos pequenos delinquentes, a quem se procura evitar a aplicação da pena de prisão, substituindo-a por outras medidas. Assim, o novo Código Penal17 visa reforçar o recurso a medidas alternativas às penas curtas de prisão como, entre outras, o regime de prova e a multa. Esta, de resto, vê-lhe consagrada expressamente – aqui como em legislação penal avulsa, no caso da nova lei da droga – uma vocação substitutiva e não cumulativa às penas de prisão, como sucedia anteriormente. Em certos casos, até, houve uma des-judiciarização de delitos como a emissão de cheques sem provisão até cinco mil escudos18.
34Contudo, se é certo que esta tendência configura um outro modo de lidar com tipos menores de criminalidade, este não redunda sempre e necessariamente em resultados menos severos. Quando antes as práticas judiciárias optavam «sem mais» pela simples suspensão da pena de prisão, elas são agora reencaminhadas para a aplicação de sanções mais discerníveis e «concretas» para o transgressor. A pena de multa, aliás, agravou-se, e o regime de prova passou a ser uma modalidade daquela suspensão, implicando, diversamente da multa, mais controlo e vigilância. Este é apenas um dos exemplos enquadráveis numa inflexão europeia relativa ao tratamento dos pequenos delinquentes: menos penas de prisão mas, como referem a este propósito J. Sim, V. Ruggiero e M. Ryan (1995: 4), «[a] more regulatory network of disciplinary power». Na mesma linha, Thomas Blomberg (1995) descreve para os EUA um processo semelhante, onde se teria alargado a rede deste tipo de controlo. Estas análises entroncam, em parte, na clássica tese de Stanley Cohen (1985), que sustentara já encontrar-se em extensão a rede do controlo penal. Contudo, Cohen não viu contido na expansão das penas executadas no exterior um movimento de desencarceramento. Defendeu, muito pelo contrário, que também o encarceramento aumentava, isto é, que ambos os sistemas se expandiam. Se o movimento de desinstitucionalização ocorreu, isso sim, com doentes mentais, não teria sido esse o caso com os delinquentes. Como reconheceu Andrew Scull (1984), e diversamente do que previra na primeira edição da mesma obra, o tratamento das duas figuras neste aspecto divergia, em vez de convergir.
35Uma segunda tendência, paralela à que descrevi – a que procura desviar da cadeia os pequenos delinquentes –, segue em sentido oposto: o do agravamento e endurecimento das penas de prisão para transgressões definidas como graves ou, para utilizar uma fórmula recorrente deste campo discursivo, que mais «alarme social» provocam19. A própria pena máxima passaria de 20 para 25 anos de prisão. O Código Penal de 1995 elevou consideravelmente as penas para os crimes contra as pessoas e o mesmo aconteceria para a maioria dos crimes de tráfico de estupefacientes previstos na nova lei da droga, de 199320: se é certo que nela baixaram em alguns casos os limites mínimos das molduras penais, na generalidade aumentaram os máximos, podendo atingir, nas modalidades agravadas, 20 anos de prisão. Mesmo a figura menor do traficante-consumidor vê agora ser-lhe aplicável uma pena mais austera (passando de até 1 ano de prisão para até 3, embora substituível por medida alternativa). Para uma noção mais clara da aspereza de que na específica lei da droga é alvo esta esfera criminal, compare-se a moldura penal do crime básico de tráfico (entre 4 a 12 anos) – sem considerar as outras modalidades agravadas ou atenuadas – com a prevista no Código Penal para a tentativa de homicídio (a pena compreender-se-á entre 1 ano e 8 meses, e 10 anos e 8 meses); a do tráfico agravado, essa, quase atinge a do homicídio consumado.
36Os estrangeiros, residentes ou não em território nacional, são também tratados pela lei com maior dureza, uma vez que a pena acessória de expulsão que lhes é aplicável passou de 5 para 10 anos21. Saliento que a pena de expulsão, que se reveste de especial dramatismo para quem tem família constituída em Portugal e podendo assim assemelhar-se agora a um verdadeiro degredo, tem também efeitos subsidiários no modo como a pena de prisão é cumprida: as saídas precárias são frequentemente recusadas com o argumento de que representariam um risco agudo de fuga, motivada menos pela tentativa de escapar à prisão do que à pena de expulsão.
37Realço, ainda, a criação do crime específico de «associação criminosa» relativo ao tráfico, ou seja, diferenciado do crime de mesma designação na lei penal geral: enquanto a participação nas associações criminosas previstas no Código Penal é punível com penas compreendidas entre 1 e 8 anos de prisão, o envolvimento nas mesmas, mas ligadas ao tráfico (previstas em sede da lei da droga), incorre em penas entre 5 e 20 anos. Tal crime no quadro do tráfico é, de resto, sancionado com penas mais duras do que as destinadas, no Código Penal, às organizações terroristas (e, não resisto a acrescentar, dada a sua sugestividade e valor simbólico, aos atentados contra o Presidente da República). Esta referência é especialmente relevante já que uma inovação da recente lei da droga é precisamente a completa equiparação, para efeitos processuais, de situações de tráfico de droga a «casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada» (n.º 1 do art. 51.º). Por outras palavras, aquelas situações ficam abrangidas pelo «regime especial de dispensa de autorização judicial prévia para buscas domiciliárias, revistas, apreensões e detenções fora do flagrante delito» (Lourenço Martins, 1994: 252)22. É também esta equiparação que permite compreender a introdução da figura do «arrependido», que, através da delação e da colaboração com os investigadores, poderá beneficiar de uma atenuação ou dispensa da pena.
38Por fim, esta lei inclui um artigo novo (54.º) que redunda, por duas vias, num maior rigor na aplicação da prisão preventiva: em primeiro lugar, quando for imputado o crime de tráfico de droga, por exemplo, o juiz deve justificar as razões da não aplicação da prisão preventiva, invertendo assim implicitamente o princípio geral de que esta é uma medida de coacção excepcional e de último recurso; em segundo lugar, para este e outros crimes, e ainda quando o processo é complexo pelo número de arguidos envolvidos, são aumentados os prazos máximos de duração da prisão preventiva.
39Estes e outros aspectos, como a consagração do meio de obtenção de prova que é o «homem de confiança» (o agente infiltrado ou o agente provocador, que podem aceitar droga ou proceder à sua «entrega controlada») – medida esta relativamente polémica por só subtilmente não colidir com princípios constitucionais – inscrevem-se em tendências europeias e internacionais convergentes no endurecimento do combate à criminalidade, especialmente a que releva da economia da droga. Aliás, esta nova lei vem transpor para o contexto nacional muito do preconizado na Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, de 1988 – um texto que declara uma política de «guerra total» às drogas23.
40Mas são também estes novos aspectos legislativos que, reclamando-se de um objectivo de eficácia e dando corpo na lei a um clima de «emergência» (um clima difuso, mas tantas vezes epitomizado nas instâncias política e mediática), levam alguns autores (ver, entre outros, Moccia, 1997; Ibanez, 1995; Copello, 1995) a concluir pelo regresso dos sistemas penais a parâmetros pré-modernos. Para Portugal, Eduardo Maia Costa identifica uma contradição fundamental entre a concepção do direito penal da droga – que se pautaria pela «prevenção geral de intimidação» e pelo privilegiar «dos valores da ordem e da segurança», e a concepção do direito penal geral, «assente na prevenção geral positiva, que estabelece como limite à pena a culpa do agente, independentemente das necessidades de prevenção do crime» (1998: 104).
41Ainda segundo aqueles autores, este recuo histórico dos sistemas penais em consequência destas inovações legislativas seria operado por uma espécie de contaminação geral que se geraria a partir delas e que debilitaria princípios garantísticos fundamentais dos estados de direito. Além disso, como mostrou Massimo Pavarini (1994), um dos efeitos espúrios do alastramento e da exaltação repressiva seria o de acabar por atingir outros alvos que não os visados pelas alterações legislativas (os «grandes» traficantes, os «grandes» corruptos, os «grandes» mafiosos são os principais exemplos das figuras que originalmente estavam na sua mira). Em suma, tais inovações seriam em parte produtos e produtoras de um apelo social, cada vez mais estridente, à prisão.
42Entre a letra da lei e o seu exercício há, no entanto, um intervalo, onde figuram os magistrados. Ora, a orientação global da jurisprudência não tende a suavizá-la. A actuação dos tribunais é, ao invés, draconiana – aliás, as metáforas bélicas polvilham recorrentemente os acórdãos proferidos. Examinando esta jurisprudência, Maia Costa (1998) refere vários dos avatares do seu pendor intimidatório, desde a apreciação da prova até à opção pela pena de prisão quando a lei possibilita uma pena alternativa, passando por uma interpretação restritiva das formas atenuadas – o que levaria por exemplo a remeter para o crime puro de tráfico a generalidade das situações. Por outro lado, nela se assume a intenção de responder «às expectativas da sociedade» (cit. in ibidem: 113), e de «participar no imperativo nacional [de combate à droga] que os tribunais não podem nem devem ignorar» (cit. in ibidem: 112). A severidade crescente com que em mais de uma frente é travado este combate ficou, aliás, bem patente no episódio do perdão parcial de penas aprovado pela Assembleia da República em 1999. Dele foram excluídos todos os condenados por crimes de tráfico (inclusive, portanto, os traficantes-consumidores, perfazendo assim uma grande fatia do universo prisional), quando cinco anos antes tais crimes não haviam ainda deixado de ser abrangidos por idêntica medida de clemência, aprovada em mesma sede.
43Dada a «cultura de emergência» que é a verdadeira tela em que se inscreve a viragem da política criminal, as consequentes alterações legislativas e a jurisprudência, não é assim surpreendente que, por todo o lado, à escala nacional e internacional, disparem as estatísticas prisionais, sem que necessariamente correspondam a uma espiral de criminalidade ou a uma maior eficácia policial na sua detecção24.
44Referi acima a dupla tendência que tem marcado a evolução recente do tratamento legislativo da criminalidade, em Portugal como noutros países: a saber, por um lado a redução do recurso às penas curtas de prisão, substituindo-as por medidas alternativas (quando os tribunais cumprem essa intenção); e, por outro, o aumento e o agravamento das longas penas. Esta tendência tem sido designada como «processo de bifurcação» (Bottoms, 1983), ou caracterizada como uma «economia repressiva dual» (Godefroy, 1996; Tubex e Snaken, 1995). Poder-se-ia pensar que as duas faces deste processo se compensariam mutuamente para resultar num equilíbrio nos índices de encarceramento. Assim não aconteceu, dado o peso desproporcionado das consequências da segunda, que gera um efeito cumulativo nos montantes das populações reclusas: estas renovam-se menos, porque permanecem mais tempo na prisão, prisão essa que por sua vez continua a acolher cada vez mais condenados a penas longas. É de notar que Portugal ocupa, neste como noutros aspectos demonstrativos do rigor penal, um lugar de destaque no quadro da Europa comunitária. Assim, o relatório do Conselho da Europa sobre os sistemas penais europeus relativo ao último trimestre de 1996 refere Portugal não só como recordista na sobrelotação penitenciária e segundo na taxa de presos preventivos, como seria ainda o país da União Europeia onde em média se cumprem penas mais elevadas.
45Ora, a hipertrofia prisional seria ainda potenciada por um terceiro factor, decorrente de uma última modificação legislativa. Não só as penas sentenciadas são mais longas, como são, de facto, cumpridas mais extensamente. Assim, para os casos de penas superiores a 5 anos, o Código Penal de 1995 veio alterar os pressupostos da concessão da liberdade condicional, passando esta a poder ser atribuída apenas após o cumprimento de dois terços da pena – quando antes esta exigência se limitava a metade da pena. Então, depreende-se desta intenção programática, quanto mais curta a sentença, menor o tempo cumprido; quanto mais longa, maior a estada, quer dada a pena sentenciada, quer a pena efectivamente executada. Na verdade, a prática dos tribunais de execução de penas, em especial o de Lisboa – que na cadeia de Tires, sob a sua alçada, tem uma reputação rigorista –, parece corroborar apenas a segunda parte desta asserção. Porventura pelo mesmo efeito de contágio a que já aludi, em que a severidade punitiva se generaliza a partir do seu alvo ou objecto original, estes tribunais são agora mais restritivos e parcimoniosos na concessão da liberdade condicional à globalidade da população reclusa, quaisquer que sejam as penas aplicadas.
46Deste modo, desapareceram em Tires as libertações condicionais a meio da pena, seja esta superior ou inferior a 5 anos. Mas, em acréscimo, dificilmente são já concedidas aos dois terços. No tom neutro de quem já não espera surpresas, as reclusas podem assim dizer que ainda vou no primeiro corte [da liberdade condicional], ou já faltou mais, levei agora o segundo corte, como quem fala de formalidades institucionais por que têm forçosamente que passar. De facto, os cortes parecem constituir hoje novas etapas ritualísticas que marcam a progressão da detenção, e muitas reclusas acabam por ser libertadas condicionalmente aos cinco sextos da pena, mas agora por força da lei (ou seja, tal como prevê o Código Penal) e não tanto em resultado de uma apreciação da sua situação individual.
47É também por esta via, como atrás apontei, que se estreitaram as margens de manobra na gestão local do estabelecimento, tocando agora instrumentos básicos e clássicos da manutenção da ordem prisional. Como me confidenciava um dos seus responsáveis, como gerir a cadeia sem poder oferecer a liberdade condicional como incentivo para o bom comportamento? Este seria a seu ver um dos grandes problemas que dificultariam a gestão da disciplina. A estratégia alternativa encontrada é o investimento em saídas precárias de curta duração, na oferta de RAVI e RAVE, medidas que, independentemente do seu intrínseco valor «ressocializador», surgem assim como sucedâneos ao serviço da ordem interna.
48Esta severidade acrescida demonstrada na prática de agentes judiciais – neste caso do tribunal de execução de penas – decorre do facto de também funcionarem como intérpretes de um sentimento difuso de insegurança, muitas vezes vendo nele um apelo repressivo ao qual deverão dar resposta25. Na memória estava ainda fresco o «caso do gang do multibanco» (os seus protagonistas, entre os quais se contava um casal, coagiam as suas vítimas a revelar os códigos dos cartões MB que lhes eram extorquidos, tendo terminado pelo homicídio de uma sequestrada) e durante o trabalho de campo ocorreria o do «incêndio da discoteca de Amarante» (cujas consequências mortíferas, como aliás mais tarde se veio a verificar, ficaram em parte a dever-se mais ao amadorismo dos seus perpetrantes do que ao carácter «organizado» da criminalidade de que relevariam)26. Este episódio despoletou num juiz de execução de penas, em Tires, a seguinte cadeia discursiva:
É bom que nos preparemos mentalmente para este tipo de criminalidade em Portugal. Com a abertura de fronteiras, agora já não é uma coisa pequena, com a prata da casa. É tráfico internacional, redes de prostituição, as mulheres a participarem na criminalidade organizada, é uma nova criminalidade.
49É sempre difícil, como será óbvio, diagnosticar a partir de casos esporádicos tendências que só retrospectivamente se confirmarão. Por isso, a propósito desta presumida tendência presente para a «organização» ou mutação da natureza da criminalidade, ocorreu-me no momento dessa conversa o muito relativizador caso dos corrécios – certamente lembrado pelos nortenhos, que ainda hoje empregam o termo como um substantivo equivalente ao de terrorista, e o aplicam às crianças turbulentas. Tratava-se de uma – essa sim – «organização» bastante estruturada, de criminalidade multifacetada e violenta, que há cerca de três décadas e durante longos anos operou no norte do país, encontrando-se agora extinta. Viria por acaso a encontrar em Tires a, chamemos-lhe, Salomé, viúva de um dos cabeças do grupo, que dele me falaria nestes termos:
Olhe, eu vim condenada por uma coisa que não fiz, mas cometi outros crimes bem piores, que até mereciam uma condenação mais pesada. Até foi merecido, porque eu ia mesmo acabar por vir parar à cadeia. Nos corrécios, se nos diziam para matar, matávamos, se nos diziam para roubar, roubávamos [...]. [Quando fui presa], os corrécios disseram que no dia seguinte me iam tirar de Felgueiras, mas eu não quis, disse que me deixassem estar, mas que estivessem descansados que eu não ia entregar ninguém. Ainda disseram que iam tratar do juiz, mas eu disse para não fazerem mais mal a ninguém por minha causa. O tribunal já tinha apanhado o número dois, mas quinze dias depois de estar preso pagaram a um advogado e falsificaram um mandado de soltura [...], e ele saiu calmamente da prisão, a dizer bom dia ao director. Depois da morte do meu marido os corrécios começaram a ir abaixo. O número dois começou a ter filhos e quis desligar-se dessa vida. Os outros começaram a traficar droga – e isso nós nunca quisemos fazer – e acabaram todos por ser presos por tráfico.
50Dois apontamentos breves: a Salomé e o seu envolvimento passado nos crimes a que alude são em absoluto atípicos na população reclusa em Tires, como se verá; não deixa de ser significativo que só se tenha conseguido pôr cobro à actividade dos corrécios a partir do momento em que ela tocou a droga, ou seja, a rede só foi desmantelada enquanto rede de droga.
51Retomo as asserções do juiz de penas, que num outro momento acrescentaria, a propósito da recusa de uma saída precária de longa duração a uma reclusa estrangeira – um pedido que concitara o parecer favorável do conselho técnico, por oferecer um risco mínimo:
É uma questão de prevenção e dissuasão. Não quero estrangeiros a cometer crimes no meu país. O sistema prisional tem que ser duro e o nosso é brandíssimo. Os que por cá passam não devem ficar com vontade de cá voltar.
52Em suma, em todos estes comentários ressurgem de facto, e em amálgama, temas paradigmáticos em que se capitaliza o novo «alarme social»: o tráfico de droga, a criminalidade organizada, as suas supostas origens exógenas e a participação feminina na grande criminalidade. Este último tema, de resto, ressoa com o tema da new female criminal, em voga nos anos 70 e segundo o qual o feminismo teria também libertado as mulheres para o crime – uma tese abundantemente rebatida e de momento enterrada pela criminologia no que diz respeito à criminalidade feminina em geral27. No entanto, foi recentemente exumada – para se ver, de novo, contestada – a propósito da presença de mulheres na economia da droga, como se constatará no capítulo 4.
53Deste modo, tão rapidamente quanto a prisão se «des-ideologizou» e o «penitenciário» deixou de reclamar para si um programa próprio, tão aceleradamente quanto se tornou menos «total» e mais hetero-determinada, assim deviria no mesmo passo espessa a atmosfera ideológica exterior, sintetizada no quadro de representações que acabo de traçar. É este quadro de representações que, à escala nacional e supranacional, em parte moldou – e foi moldado por – o campo político, mediático, legislativo e judiciário, campos estes permeáveis e reagindo entre si. Vistas as figuras que concitadamente visam e que suscitaram a álacre viragem nas formas do castigo, segue-se o encontro com quem desagua, afinal, na prisão.
Notes de bas de page
1 Regime de confiança, regime aberto virado para o interior (RAVI) e regime aberto virado para o exterior (RAVE). Neste último as reclusas trabalham durante o dia fora do estabelecimento.
2 O estabelecimento prisional permite que as crianças aqui possam permanecer até aos 3 anos de idade, dispondo para tal de uma creche com pessoal especializado e coadjuvado por auxiliares reclusas. Recebe ela crianças a partir dos 6 meses, embora dê apoio às de idade inferior, que são supostas permanecer com as mães nas celas. Tal como no exterior, as mães que trabalham usufruem por sua vez de uma licença de parto de quatro meses, remunerada nos termos da legislação geral.
3 Decreto-Lei n.º 26 643, de Maio de 1936: para o texto comentado da reforma ver Pinto e Ferreira (1955). Trata-se, porém, de uma correspondência imperfeita: se todos os pavilhões apresentam maiores ou menores variações quanto a regimes, regras e horários, elas são quase nulas entre aqueles que se destinam respectivamente a penas curtas e longas. Exceptuam-se, naturalmente, as inevitáveis diferenças resultantes da margem de manobra de que cada subchefe de guardas dispõe na gestão do seu pavilhão.
4 Para um tratamento mais detalhado deste ponto ver M. Cunha (1994: 21-34).
5 Segundo Foucault (1975: 251), as tecnologias de correcção ou técnicas disciplinares teriam configurado propriamente o domínio do «penitenciário», isto é, a margem suplementar pela qual a prisão excede o domínio do «judiciário». Punindo, a cadeia deveria operar a transformação dos indivíduos, o que implicava em primeiro lugar conhecê-los, classificá-los e fazer variar em consequência a aplicação da pena. As tecnologias mediante as quais se agia sobre as disposições dos prisioneiros relevariam essencialmente de três matrizes: a «político-moral», com os princípios do isolamento e da hierarquia; a «económica», com o princípio do trabalho, ainda que menos como actividade produtiva do que como indutor de ordem e de regularidade, da disciplina do corpo e da alma; e a matriz de inspiração «terapêutica», com o princípio do tratamento e da normalização.
6 Foucault (1980) responderia implicitamente a esta sorte de objecções dirigindo-se a um historiador fictício e estereotipado com quem o haviam convidado a dialogar: «le grand témoin du Réel», o que defende «les petits faits vrais contre les grandes idées vagues; la poussière défiant le nuage» (ibidem: 29). Riposta o autor que o que pretendeu fazer foi a história da racionalidade de uma prática, acrescentando a este propósito:
Il faut démystifier l’instance globale du réel comme totalité à restituer [...] Un type de rationalité, une manière de penser, un programme, une technique, un ensemble d’efforts rationnels et coordonnés, des objectifs définis et poursuivis, des instruments pour l’atteindre, etc., tout cela c’est du réel, même si ça ne prétend pas être «la réalité» elle-même ni «la» société tout entière [...] C’est ce que l’historien (...] n’entend pas, au sens strict du terme. Pour lui, il n’y a qu’une réalité qui est à la fois «la» réalité et «la» société. [I]l croit faire une objection en disant: mais ces programmes n’ont jamais fonctionné réellement, jamais ils n’ont atteint leurs buts. Comme si jamais autre chose avait jamais été dit; [c]omme si l’histoire de la prison n’était pas justement l’histoire de quelque chose qui n’a jamais marché, du moins si on considère ses fins affirmées. Quand je parle de société «disciplinaire», il ne faut pas entendre «société disciplinée» (ibidem: 34-35, itálicos no original).
7 Utilizo esta metáfora apenas para evocar um modo específico de organização do trabalho e não para veicular o julgamento de valor que lhe é associado. No caso em questão, esta organização do trabalho não tem necessariamente, e por si mesma, efeitos desumanizantes.
8 Os tribunais de execução de penas decidem, depois de ouvidos os pareceres emitidos em conselho técnico (pela directora, pelos serviços de educação e de reinserção social e pelos representantes do pessoal de vigilância), da atribuição da liberdade condicional e das saídas precárias de longa duração. Estas saídas podem ser concedidas semestralmente e têm uma duração de 4 a 8 dias. As de curta duração, trimestrais e por períodos de 48 horas, apenas dependem da autorização da directora – ou seja, a sua decisão é administrativa.
9 Da tipologia de Barak-Glanz constam ainda duas configurações: na dos «poderes partilhados», regida por uma lógica de democratização e marcada pela pressão exercida pelo pessoal terapêutico face ao pessoal de segurança, é reconhecida aos prisioneiros voz activa na gestão da vida prisional; no modelo do «controlo pelos detidos», como o nome indica, a prisão é administrada de facto por grandes blocos de reclusos que, ao contrário da configuração anterior, não precisam sequer de constituir uma frente comum de reivindicação perante o staff dirigente, limitando-se a negociar entre si para aceder aos recursos da instituição.
10 Estes pontos encontram-se já tratados com maior pormenor em Cunha (1994: 61-80).
11 A localização original da cadeia num contexto rural – tornado agora quase suburbano – decorria da intenção programática de afastá-la da cidade, representada como um meio criminogéneo e de perdição. A desconfiança da cidade e o elogio da ruralidade faziam assim convergir uma perspectiva de tratamento penitenciário e elementos ideológicos centrais do Estado Novo (ver Cunha, 1994: 23-28).
12 Ver Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de Agosto.
13 Curiosamente, viria a circular uma proposta de nova lei orgânica do Ministério da Justiça, segundo a qual o acompanhamento dos reclusos que é agora feito pelo IRS deveria regressar «à casa» da Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, ou seja, aos estabelecimentos na sua dependência. Reacções de várias entidades judiciais e do IRS veiculadas pelo jornal Público, de 18 de Março de 2000, criticam o «retrocesso» que a proposta representa e o fechamento das prisões sobre si próprias que ela acarretaria. Por outras palavras, lamentam o desaparecimento de entidades externas ao sistema que informalmente o «fiscalizam» e lhe servem de «contra-peso».
14 Pouco antes de iniciar o presente trabalho de campo, os serviços que essa empresa prestara, durante um ano, haviam já sido dispensados. Uma guarda recorda assim o episódio:
Havia uma boa higiene, as refeições até eram bem confeccionadas e bem embaladas. Só que era poucochinho, e era uma complicação para repetir. reclusas queixavam-se de fome, sobretudo as que trabalhavam no campo, que precisavam de comer bem. Protestaram, houve levantamento de rancho e tudo. A empresa dizia que ficavam bem se comessem tudo, que não precisavam de mais, estava tudo cientificamente controlado. Mas nós já estávamos com muita dificuldade em controlar as reclusas, havia uma grande revolta. Conclusão, voltou tudo ao que era dantes.
15 A vulgarização do televisor nas celas, neste como noutros estabelecimentos, tem-se constituído como o referente material predilecto do popular vitupério da «prisão-como-hotel», logo, insuficientemente punitiva. Sem entrar nas considerações que suscitaria o aqui implícito princípio de less elligibility, e sem me parecer necessário elaborar sobre o facto de que o aparelho deixou há muito de ser um artigo de luxo, apresso-me a adiantar que no caso de Tires as reclusas dispõem dele a expensas suas. Quem não tem meios económicos para tal pode, se assim o quiser, partilhar uma cela com quem o possua.
16 Os regimes que mais se diferenciam são os das reclusas preventivas, e em RAVI e RAVE, nomeadamente na periodicidade ou nas condições em que podem receber visitas (ambas mais favoráveis), e nos períodos de tempo em que se encontram fechadas nas celas (raros no caso das primeiras reclusas e inexistentes para as segundas). Para as detidas em RAVI e RAVE, ainda, apenas se prevêem horários de trabalho e refeições (sem se submeterem à contagem tri-diária, vulgo conto).
17 Decreto-Lei n.º 48/95. Vem substituir o Código Penal de 1982.
18 Decreto-Lei n.º 454/91.
19 «Alarme social» é uma categoria bastante usada entre os agentes do campo judiciário para indicar o modo como interpretam a conjuntura da sensibilidade pública face ao crime em geral ou às suas modalidades particulares. Assim, se a lei, por tendência estável, reflecte esta sensibilidade, mas de maneira mais distante, os magistrados escutam-na mais de perto, por vezes nas flutuações que nela induz, por exemplo, a notícia de um determinado crime, e poderão levá-la em conta nas decisões que tomam dentro da margem de arbítrio que lhes é concedida.
20 Decreto-Lei n.º 15/93. Vem revogar a lei da droga anterior (Decreto-Lei n.º 430/83).
21 Art. 34.º do Decreto-Lei n.º 15/93.
22 Ênfase no original.
23 Esta convenção prevê, por exemplo, a inversão do ónus da prova quanto à origem lícita de bens e produtos passíveis de apreensão e perda para o Estado (art. 5.º, n.º 7), um princípio que o direito nacional não acolheu – ou ainda não acolheu, uma vez que este e outros novos instrumentos de combate ao tráfico encontram-se, no momento em que finalizo a redacção do trabalho, em discussão na Assembleia da República, tendo já o actual Ministro da Justiça declarado ser esta uma medida de grande alcance neste combate (cf. jornal Público, 7 de Julho de 2001: 26).
24 Em Portugal, segundo as Estatísticas da Justiça de 1987 e de 1997, o número de reclusos passaria respectivamente de 7 965 para 14 236. Para a evolução comentada destes índices noutros países ver, por exemplo, para países europeus, todos os artigos contidos em Ruggiero, Ryan e Sim (1995), Wacquant (2000); e, para os Estados Unidos da América, Rothman (1995), Blumstein (1995) e, também, Wacquant (2000).
25 Por sentimento difuso de insegurança não pretendo sugerir que se trata de um medo sem objecto ou sem conexão alguma com as realidades do risco. Porém, como sustenta Jock Young (1999: 74-78), além de a percepção do(s) crime(s) e do risco de vitimização formarem um continuum com a percepção de outros problemas sociais e com outras inquietações urbanas, variam também segundo as categorias sociais e adquirem em cada uma um significado específico (os receios dos idosos serão maiores, por exemplo, e as mulheres recearão especialmente a violência). Por isso:
[B]ecause human behaviour is always a subject of evaluation and assessment there can be no one-to-one relationship between [real] “risk” and “fear”: arguments which are based simply on the level of correlation, for or against, are positivistic blind alleys which lead nowhere (ibidem: 74).
Assim, continua o autor, em vez do vão exercício de procurar averiguar até que ponto o sentimento de insegurança é ou não desproporcionado, seria mais profícuo tentar captar o sentido que adquire dentro das diversas categorias sociais. Por outro lado, alega ainda Young, há que levar em conta o aumento da expectativa ou do nível da exigência social de segurança na modernidade tardia:
To hinge the question on whether [“risk rates”] have actually risen and whether they are phrased in an alarmist fashion fundamentally misses the point. In some instances they have risen, in many cases they are exagerated, but what is important is that the base line of evaluation has increased as has the demand for a higher quality of life [...]. It is not so much that modernity has failed to keep its promise to provide a risk-free society as that late modernity has taken seriously this promise, has demanded more and realized the greater difficulty of its accomplishment (ibidem: 78; em itálico no original).
Para um confronto de perspectivas sobre esta questão em Portugal ver Eduardo V. Ferreira (1998) e a crítica que lhe é dirigida por Pedro M. Ferreira (2001).
26 Ateado por três indivíduos ligados a um estabelecimento rival, o incêndio do Meia Culpa começou pelo recheio da discoteca e tinha por objectivo desestabilizar a concorrência, mas rapidamente fugiu ao controlo dos incendiários – um dos quais, de resto, ficou ferido. A operação saldou-se em 13 mortos e 22 feridos, um resultado para o qual também teria contribuído uma porta de emergência que não funcionou, impedindo a saída dos frequentadores.
27 Pela primeira vez sustentada por Freda Adler (1975) e Rita Simon (1975), esta tese foi desmontada em múltiplas e variadas frentes – razão pela qual mesmo uma resenha de tal controvérsia implicaria um alongamento indevido deste texto. Ficam, por conseguinte, apenas as referências mais representativas: Carol Smart (1977, 1979), Jane Chapman (1980), Meda Chesney-Lind (1986), Edna Erez (1988), Pat Carlen (1988), Darrell Steffensmeier (1980, 1996) e Sally Simpson e Lori Ellis (1995).
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
A Europa é o Cacém
Mobilidades, Género e Sexualidade nos Deslocamentos de Jovens Brasileiros para Portugal
Paula Togni
2022
Mouraria, Retalhos de Um Imaginário: Significados Urbanos de Um Bairro de Lisboa
Marluci Menezes
2023