Capítulo único. Considerações gerais
p. 323-327
Texte intégral
1Cada um dos governos das nações tem por incontestável dever não só conservar, quanto possível for, a saúde pública, mas também proteger a moral ; nunca, porém, será possível conseguir estes dois fins, tão essenciais para manter a ordem pública na socicedade, quando, havendo uma lei de tolerância das prostitutas, estas se não reprimam, quanto possível for, nos males que causam à moral e à saúde pública. São os regulamentos que preenchem este duplo fim, são eles que a lei acima referida ordena se façam. Nestes regulamentos só se tem em única consideração a moral e a saúde pública, devendo conter medidas policiais a que as prostitutas se devem sujeitar e eficazmente cumprir ; e quando, tolerando-se-lhes o seu infame e aviltante ofício, a elas se não queiram sujeitar, o deverão abandonar e seguir o caminho da honestidade ; aliás serão rigorosamente punidas.
2Nunca entre nós tais regulamentos existiram, porque nunca entre nós existiu uma lei de tolerância das prostitutas ; e ainda que pareçam isto indicar, alguns artigos do alvará de 25 de Dezembro de 1608, outros do mesmo alvará lhes parecem ser opostos. Muitos dos ministros que nos diferentes tempos serviram de intendentes-gerais da polícia da Corte e Reino, talvez se persuadissem da necessidade da tolerância das prostitutas ; se assim foi, eles nunca apresentaram algum regulamento em forma, nem este nome se pode dar às diversas medidas consignadas em vários editais e ordens da Intendência que se publicavam ; muitos das quais eram ineptos e mostravam a profunda ignorância neste objecto dos ministros da polícia que as ordenavam. Nada, pois, nós temos aprendido de nós mesmos sobre este assunto, desde os tempos passados até hoje, porque nunca tais medidas em forma existiram ; vemo-nos por isso na precisão de lançar mão do que tem parecido bom nas nações ilustradas da Europa, e que seja acomodável e exequível no nosso país.
3Tenho visto algumas medidas policiais que muitas pessoas, aliás instruídas, do nosso país têm julgado dever-se pôr em prática ; tenho achado alguns destes chamados regulamentos bastante deficientes, outros com medidas inexequíveis. Não pretendo censurar pessoa alguma, nem direi no que eles são defeituosos ; só trato de apresentar um que eu penso abraçar todas as hipóteses, ou pelo menos a maioria, e cuja execução no nosso país é muito possível. Bem sei que deve haver dificuldades a vencer, e poucas não serão num objecto inteiramente novo entre nós, e especialmente quando se trata de alterar ou reprimir antigos hábitos e costumes em pessoas de uma classe tão ciosa da sua liberdade, como já dissemos, e que a muitos respeitos as há-de muitas vezes ferir no seu orgulho e amor-próprio.
4A polícia das prostitutas fica a cargo da Administração Pública pelo Código Administrativo, e o artigo 109.°, parágrafo 6.°, ordena já uma disposição regulamentar que é a proibição da sua residência em certos lugares das povoações. Já em lugar competente tratámos deste assunto e parece-nos que ele, não obstante ter sempre, e em todos os tempos, merecido a atenção dos diferentes governos do Mundo, não se torna tão digno de uma tal consideração, se para ele olharmos como devemos. Pois que as prostitutas não devem de modo algum permitir-se pelas ruas com suas libertinas e desordenadas acções provocadoras, nem com estas elas se devem permitir às janelas ou às portas das suas habitações ; a prostituição deve-se encadear no interior das casas, ela não deve passar nem transcender além dos seus muros, e então elas não escandalizam o público ; em tal caso, habitem onde quiserem ; porque mesmo a exclusão da residência das prostitutas de certos lugares ofende gravemente a moral de muita gente, e com isto não se protege a moral pública. Porque se permitem os mais cultos religiosos em casas sem forma exterior de templos ? Sem distintivo externo, quem dirá que nesta casa habitam prostitutas, se a prostituição estiver encadeada dentro dos seus muros ? Bem se vê, pois, e nós já o dissemos, que, logo que elas não provoquem nem escandalizem, está resolvido o problema quanto à moral pública ; e logo que elas sejam visitadas pelos facultativos e se obriguem a curar-se, resolveu-se também quanto à saúde o pública. Eis ao que se deve atender nas medidas regulamentares.
5Os regulamentos devem ser sempre fundados nas disposições das leis, e contra elas nada podem os mesmos ordenar. Portanto, a polícia das prostitutas deve ficar a cargo da Administração Pública ; mas a Higiene Pública e a Polícia Médica estão a cargo da Repartição de Saúde Pública do Reino pelo Decreto de 3 de Janeiro de 1837, e as medidas de polícia sanitária que se devem consignar nos regulamentos são objectos da competência da Higiene Pública ; deve, por conseguinte, a inspecção e fiscalização policial destas mulheres pertencer às duas repartições do Estado – Administração Pública e Conselho de Saúde Pública do Reino ; à primeira, a polícia geral, e à segunda a sanitária, exclusivamcente a cada uma no seu ramo e a mais ninguém. É esta a expressão das leis, e é por isso sobre tais bases que devem fundar-se os regulamentos das prostitutas. Apar-partando-se destes princípios alguns regulamentos, neles se cometeu uma falta insanável, porque são opostos às leis, ou pelo menos não são a sua expressão.
6Também sem um exacto conhecimento das prostitutas, elas não podem ter a devida e séria fiscalização ; por isso assim todas elas se devem inscrever ou matricular-se na Administração Pública para obterem a devida licença, como igual licença deve obter quem quiser estabelecer tais casas e dirigi-las, como são as chamadas donas de casas. E para o exercício da polícia sanitária deve disto ser sabedor o Conselho de Saúde, e por isso a Administração deve de tudo dar-lhe conhecimento. Portanto, deve no regulamento marcar-se a forma da matrícula assim das casas como das prostitutas, quer queiram viver sós quer colegialmente ; também as obrigações a que tanto elas como as donas de casas ficam sujeitas ; e o serviço interno das mesmas, a que também se deve sujeitar quem as frequentar, pondo sanção penal a todos os transgressores.
7Entendo que, como elas julgam ter o seu cómodo particular em se sujeitarem ao seu aviltante e indigno ofício, devem também ter o incómodo de se sujeitarem a tudo quanto proteja os cómodos gerais da sociedade, e por isso devem elas pagar a quem as fiscalize, contribuindo com uma quota mensal ; devem, pois, elas contribuir, este é o termo próprio, chamem-lhe pagar o bilhete de residência, ou o que quiserem, elas devem contribuir.
8Sei que em alguns países (por exemplo, a França) são os médicos exclusivamente os encarregados da polícia sanitária das prostitutas, mas não acho fundados motivos para que no nosso país não sejam os cirurgiões encarregados deste serviço, a quem se deve dar um ordenado anual suficiente e equivalente a tão penoso serviço, os quais, entendo eu, devem ser propostos pela Repartição Central de Saúde Pública, na conformidade das leis, e aprovados pelo Governo. Para que com tal serviço se consigam todos os fins úteis, que é atalhar quanto possível for a propagação do Virus venereo, devem todos estes facultativos formar duas juntas de igual número dos cirurgiões, cada uma delas presidida por um facultativo médico ou cirurgião, como delegado do Conselho de Saúde Pública, a quem devem estas juntas dar conta dos seus trabalhos não só para a formação da estatística médica, mas para quaisquer providências que for preciso dar-se, etc., e bem assim para a formação da junta permanente de consultas gratuitas ; o que tudo deve ser expresso no regulamento.
9Além disso, as vagabundas pelas ruas e as casas a que chamamos de passe ou de alcouce devem ser rigorosamente proibidas ; são duas pestes da sociedade, são muito nocivas à moral e prejudiciais à saúde pública ; se se quiserem, porém, admitir as casas de passe, devem elas ter uma fiscalização sanitária, sem a qual não podem nem devem tolerar-se. O exército, a navegação e o charlatanismo muito concorrem para propagação do mal venéreo, por isso devem no regulamento ser consignadas medidas policiais a seu respeito, como também deve ele conter as medidas mais enérgicas possíveis contra a charlatanaria nestas moléstias, que é ainda mais nociva do que o próprio Virus venereo.
10Ora estas últimas medidas que é preciso tomar-se são contra as causas que influem na propagação da sífilis ; mas como há causas que obstam à sua propagação, devem existir no regulamento medidas que favoreçam estas últimas, como são as relativas aos hospitais para as moléstias venéreas, para as juntas de consultas gratuitas, casas de correcção para as prostitutas, casas de refúgio ou das mulheres convertidas1, que todas têm uma directa influência na diminuição do Virus venereo.
11Tenho dado uma ideia mui geral dos principais objectos que há a fixar no projecto de regulamento que apresento e que deve descer a muitas especialidades ; não será possível talvez apresentar a todas, mas poderá a experiência mostrar quais das medidas nele prescritas são exequíveis e quais as inexequíveis, bem como as que faltam e que nele devem ser consignadas. Uma fiscalização policial, inteiramente nova entre nós, só o tempo poderá mostrar o que mais lhe convém, mas na realidade a estas medidas estão sujeitas as prostitutas de muitas nações, e a Administração não julga dever mudá-las, por delas ter tirado os melhores resultados.
Notes de bas de page
1 Por ocasião de tratar das casas de refúgio das prostitutas convertidas, na segunda parte desta obra, demos uma ideia de uma nova casa desta espécie existente em Lisboa e intitulada as Servitas ou Convertidas de Nossa Senhora das Dores : esta casa não está autorizada legalmente, mais está tolerada, e o governo tem dela conhecimento, como também a Administração, e a autoridade superior eclesiástica. Estas convertidas existiam no Campo Grande num palácio do Ex.mo Marquês de Valença ; entretanto, pela entrada do exército constitucional em Lisboa, pela saída do realista quando este pretendeu acometer a cidade e se construíram as linhas de fortificação, elas se retiraram do Campo Grande para um palácio do Ex.mo Marquês de Penalva, sito na Rua de Rilhafoles, quase ao pé de um recolhimento que ali há e onde existem actualmente.
Estas mulheres diz-se serem hoje vinte e tantas, e estão ainda debaixo da direcção da sua mãe e fundadora, Maria do Carmo. Estas mulheres nenhuns fundos têm para a sua sustentação e vivem somente de esmolas, para as quais muito concorre o seu actual padre capelão, o Sr. P.e Manuel Carvalho. Noutro tempo já existiam quarenta e tantas no recolhimento, hoje há só o número referido, nem mais podem admitir, porque não têm com que passar. É muito pouca a mortalidade nesta casa, comparada com a do Bom Pastor em Paris; o que dependerá não tanto do local, sustento e rigor da disciplina, como da idade da sua entrada, ao que se não atendia. Agora, porém, me dizem que existem as referidas e que são de 30 a 35 anos e só há duas de 50 e tantos.
O P.e Leonardo Brandão foi quem deu os regulamentos a estas Servitas ; e me consta que eles só prescrevem a regra para os exercícios religiosos, as horas de levantar, de jantar, de trabalho, de recreio e de deitar ; elas fazem algum serviço para fora, de que recebem muito módicas quantias. Têm um capelão, um médico e cirurgião, tudo gratuito.
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