Prefácio
p. 13-15
Texte intégral
1Este livro é o resultado de um percurso de pesquisa com contornos raros entre nós - e, infelizmente, cada vez menos comuns na prática antropológica. Refiro-me à dedicação prolongada e aprofundada a um objecto e temática de pesquisa. Há cerca de uma década, Manuela Cunha iniciava o seu trabalho de campo no Estabelecimento Prisional de Tires, do qual resultou a publicação «Malhas que a reclusão tece: questões de identidade numa prisão feminina» (Lisboa, Cadernos do CEJ, 1994). Hoje apresenta-nos os resultados da pesquisa realizada durante o seu regresso àquela instituição, num livro que, mais do que uma excelente tese de doutoramento, é um ponto de viragem na antropologia portuguesa e no nosso entendimento da criminalidade, do que poderíamos chamar o sistema da droga e, num âmbito mais vasto, das estruturas de desigualdade na nossa sociedade.
2Ao contrário de muitos antropólogos, Manuela Cunha não se refugiava, há uma década - nem o fez agora - no conforto da pesquisa estritamente bibliográfica e arquivística que tem vindo a caracterizar práticas disciplinares confrontadas com a falta de tempo e disponibilidade para o trabalho de campo com observação participante. Mas tão pouco procurou a autora o ilusório idílio de uma estadia de um ou dois anos em local exótico e aprazível. A prisão deve-lhe ter surgido como o exemplo acabado da alteridade no seio da nossa sociedade. Afinal, que há de mais diferente - mais ainda do que códigos culturais estranhos ou exóticos - do que a privação da liberdade, a ausência de convívio com o sexo oposto, a imposição de uma disciplina sobre o quotidiano, a vigilância e o controlo sobre e do corpo, ou o estigma da punição? Manuela Cunha enveredava, há uma década atrás, por um percurso difícil e desafiador. Todavia, não o fazia motivada por um qualquer espírito de missão, por dedicação militante a uma causa, ou por vontade em demonstrar capacidade de sacrifício. Ela procurava - creio eu - a alteridade na «mesmidade», isto é, compreender e dar a compreender como a vida de qualquer um de nós pode ser radicalmente alterada, obrigando à reconstituição de códigos e hábitos.
3Dez anos depois da primeira estadia no Estabelecimento Prisional de Tires, a antropóloga decidiu enveredar pelo que parecia, à primeira vista, ser um re-study: a verificação das alterações que o tempo e as circunstâncias geram no objecto de estudo. Deparou-se, de certo modo, com o reverso: a prisão mostrou-lhe o que havia mudado no país. No microcosmo da prisão foi exposta ao concentrado social e cultural de uma transformação que perpassou a sociedade portuguesa nos últimos anos: a instituição de uma economia, ou mesmo de um sistema da droga. Ora, uma antropóloga menos atenta - ou menos formada pela leitura minuciosa e crítica da literatura - limitar-se-ia a constatar a reprodução, na prisão, de transformações da sociedade, não questionando a natureza, o âmbito e a dinâmica destas transformações. No caso presente, pelo contrário, a experiência da prisão como que desvelou a natureza, o âmbito e a dinâmica dos processos em acção no seu exterior.
4Desde logo porque as fronteiras entre exterior e interior se diluíram. E, depois, porque a própria noção de uma economia da droga se vai revelando imprópria ou insuficiente. O senso comum diria que, havendo mais droga, mais consumo, mais tráfico, haverá naturalmente mais processos e prisões relacionadas com a droga. E ponto final. O antropólogo, todavia, vai mais longe, questionando verdades feitas, colocando perguntas que podem parecer ingénuas: se há tráfico de droga, porque só surgem nas prisões certos tipos de pessoas relacionadas com ele e não outras? Porque surgem os pequenos traficantes ou as pessoas para quem o tráfico complementa outras actividades? Porque não são estas pessoas os estereotípicos membros de gangues e mafias a que o cinema americano nos habituou? Onde estão os grandes traficantes, ou as pessoas que, a coberto de actividades legais, participam no tráfico através das vias indirectas da corrupção, da fuga fiscal ou da lavagem de dinheiro? Porque são as reclusas oriundas dos mesmos bairros e, mais do que isso, de redes familiares e vicinais facilmente delimitáveis pelo observador? Finalmente - e estas são apenas algumas entre muitas perguntas que devemos colocar-nos - porque se transformou a prisão num ponto de passagem, numa escala de um percurso de vida e de um percurso de colectivos e não numa condenação definitiva, excludente, de alguns indivíduos?
5A resposta a estas perguntas - que nos vão sendo colocadas de forma extraordinariamente sedutora e aliciante - vai encontrar-se no entrosamento entre as vidas das reclusas e a economia, as instituições, as leis, os preconceitos e as hipocrisias da nossa sociedade. Ora aproximando o zoom, ora afastando-o, a autora conduz-nos num vaivém permanente entre a prisão e o bairro, mediado pela intervenção da lei e das autoridades, dos media e dos estudiosos. Nesse vaivém vamos percebendo o processo de constituição de grupos humanos como que «definidos» para o aprisionamento, num processo que vai garantido a continuação incólume da verdadeira economia do tráfico. Os contornos sociais e culturais das práticas destas redes de parentes e vizinhos vão, além disso, dando uma noção das especificidades portuguesas quer do tráfico, quer da vida nos bairros que dele dependem, quer das prisões. Uma especificidade em que as noções - vindas das ciências sociais ou das representações mediáticas - sobre as características aos níveis do género, da «raça» e etnicidade ou da classe social, são suspensas e alteradas. Em vez do estereotipo - ou mesmo do «tipo» - somos confrontados com algo muito mais difícil de controlar pelos mecanismos da volúpia securitária: somos confrontados com o real.
6É por isso que este trabalho - rigoroso, laborioso, sedutor e de extrema importância política - extravasa, à semelhança das redes das reclusas, a prisão, desmontando a nossa sociedade como uma extensão dessa instituição, num processo de pesquisa, análise e escrita que atinge a plenitude do que penso serem os três objectivos principais da prática antropológica: oferecer uma boa descrição sistemática e teoricamente ancorada do real, gerando, assim, a reformulação crítica de aparelhos teóricos das ciências sociais que tendem para o enquistamento e, por fim, gerando o lúcido desvendamento que acorda as consciências sociais e políticas do nosso viver colectivo.
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