II. Sangue, Suor e Sémen1
Masculinidades na aldeia
p. 43-69
Texte intégral
1A minha interacção com o grupo dos homens em idade de trabalho (a princípio difícil e largamente substituída por um contacto com os velhos), deu-se aquando de um baile. Quando entrei na Casa do Povo, pelas dez da noite, não encontrei ninguém que conhecesse já. Sentadas de encontro às paredes do salão, várias mulheres esperavam a chegada das outras pessoas; só dois pares dançavam: um misto e um de mulheres. No bar, adjacente ao salão, encontro o senhor Altino Morais (tio do presidente da Junta e afilhado do senhor Altino Valente, de quem tomou o nome, e que apresentarei no capítulo seguinte). Sorriso bonito, algo trocista, numa cara triste e envergando um belo capote alentejano. Fiz-lhe companhia, ainda habituado a lidar com maior à-vontade com os mais velhos, e ele falou-me de como antigamente nos bailes se tocavam concertinas e gaitas, de como as pessoas cantavam as saias e dançavam em roda, trocando sucessivamente de pares; os bailes eram quase sempre em casas particulares, pelo que não eram abertos a toda a gente.
2As pessoas iam chegando em maior número. O bar, reduto de homens, foi-se enchendo. Como muitos haviam já bebido no café, uma espécie de etapa preparatória para ir ao baile, um jovem, grande e pesado, que estava já manifestamente embriagado, caiu no chão ao meu lado. Ajudei-o a levantar-se, perguntei ao moço que o acompanhava se não seria melhor ele beber uma água mineral. Comprei-lhe uma água e convenci-o a bebê-la. Agradecido, enterneceu-se comigo: dizia palavras incompreensíveis, mas a expressão de afecto era evidente. Imediatamente, o que o acompanhava começou a falar comigo.
3O acompanhante era o Leonel. Tem 28 anos e trabalha nas pedreiras de um dos Capuchos. Estudou até ao 8° ano, o que o torna algo especial no meio e, segundo ele, queria ter continuado a estudar mas não pôde. Os pais, de idade avançada e reformados, haviam sido jornaleiros pobres; a casa, onde habita com os pais e os irmãos, é sustentada por ele e pelo irmão mais novo, o qual trabalha como tratador de cavalos para um dos Capuchos que é cavaleiro tauromáquico; a irmã mais nova trabalha ocasionalmente, mas ocupa-se sobretudo da lida da casa; quanto ao irmão mais velho, casado, vive na sua própria casa, com algum conforto material auferido com a profissão de maquinista numa pedreira. O Leonel gostaria também de dedicar mais tempo a duas actividades de que gosta: o desenho e a leitura de livros de ficção centífica; é, aliás, um dos poucos utilizadores da biblioteca itinerante da Gulbenkian. Eu que já fora identificado por algumas pessoas como padre, fui-o então como escritor….
4Leonel calça botas de cowboy de biqueira afiada, veste blusão e calças de ganga, adorna-se com um colar e usa na lapela pins de bandas rock; o seu favorito é uma caveira, um símbolo associado a uma corrente estética do rock chamada heavy-metal, muito popular entre a juventude operária e pequeno-burguesa dos subúrbios das grandes cidades. A sua moto, embora não seja um modelo caro, tem uma carroceria que os imita, distinguindo-se das motorizadas mais utilitárias que a maioria dos colegas de trabalho usa. Fez a tropa em Beja e na Amadora. Neste último local, fazia muitas vezes o serviço da porta de armas. Essa situação permitia-lhe, aparentemente, observar e ser observado numa espécie de jogo das possibilidades sexuais. A propósito, e num espírito de basófia que eu viria a deixar de estranhar (por ser mais retórica do que avaliativa), contou o episódio de uma rapariga com quem ele e mais quarenta camaradas de armas teriam tido relações sexuais numa só noite. A conversa seguiu este rumo, em que o tema «mulheres» se torna no elemento central. Mas não se trata de qualquer tipo de mulher, mas sim o tipo que se define pela expressão gajas — o oposto da namorada, da esposa ou da mãe. Aí, fiquei imediatamente convidado para participar no circuito das discotecas e boîtes, o que equivale a dizer uma excursão ao mundo «dessas» mulheres.
5Este foi o meu episódio de entrada no mundo masculino da aldeia. O Leonel viria a revelar-se uma pessoa extremamente sensível e cordata, pelo que ficou um bom amigo até ao fim da minha estadia. Mas como o baile é, em si, uma situação de interacção especial, diferente do quotidiano, continuo com a descrição dessa noite. Surge, então, o Zé Safado, com os seus olhos azuis brilhantes a enganarem a provecta idade (ele é o pai do Raposo, que já tem um filho, e que surgirá como um dos meus informantes privilegiados sobre o mundo do trabalho). Zé Safado não perdeu tempo a explicar a sua filosofia: é casado, mas como ganha 150 contos por mês, não lhe custa — de facto, segundo ele, «pode e deve» —, gastar 20 contos numa só noite. Em mulheres, pois para ele as mulheres são «todas putas» (uma vez mais, as mulheres como categoria geral, não as esposas, mães, filhas…) e supostamente não haverá uma nas redondezas que não lhe tenha «passado pelas mãos». Por vezes vai mesmo a Badajoz. Começa por perguntar à sua esposa se não o quer acompanhar; como «ela diz sempre que não quer», ele diz que, então, vai com uns amigos e volta no dia seguinte. Na realidade, o que faz é telefonar para um certo número em Badajoz e «elas vêm à fronteira buscar um gajo de carro».
6O meu estatuto de homem e solteiro, e o facto da minha presença no bar do baile, conduziu a conversa para os temas da predação sexual. Mas permitiu alargar subitamente o meu leque de informantes e dar riqueza humana às relações no terreno. Através do Leonel, conheci o Beto. Viria a ser um acompanhante constante ao longo de um ano. Um acompanhante por vezes difícil, porque sempre presente, e algo possessivo. Aliás, meses depois, eu seria alvo de uma disputa pela minha amizade entre Beto e Leonel e ainda um terceiro companheiro de terreno, o Zé Ganhão. Beto começa por descrever o quadro da dureza do trabalho nas pedreiras, mas marcando bem que tal não impede a dedicação à borga. Sem dúvida. A minha cabeça rodava já, como muitas vezes viria a rodar, perante o que só posso definir como «excesso alcoólico». Excesso na circulação de bebidas, excesso no volume das vozes, excesso na sobreposição de conversas, excesso nas horas, excesso nas histórias contadas, excesso nas pancadas amistosas, abraços, brincadeiras, provocações jocosas e ternuras. Quando começo a falar com o Beto, surge o Zé Seco (Jr). Já está bastante inebriado. Faz logo o elogio do pai, o poeta Zé Seco, e o filho (uma figura angélica de 14 anos, com cerveja numa mão e cigarro na outra) mostra-se manifestamente aborrecido por o pai repetir vezes sem conta que era eu o homem a quem tinha de entregar as décimas do avô para as passar à máquina; para mais, Zé Seco Jr tinha de disputar a minha atenção com o Camilo, da Fonte Soeiro, que queria por tudo oferecer a sua ajuda para me dizer de quem são as casas, campos e courelas dos arredores.2
7A noite avança. É altura para surgirem, se tiverem de surgir, as cenas de pancada. Desta feita, entre um homem dos seus quarenta anos e um jovem. O Zé Seco Jr quer proteger-me, enquanto explica que o homem é um colosso, «forte como um touro» (já antes o vira fazendo uma demonstração ao içar um jovem bem pesado), mas «boa pessoa». O tal colosso, segundo Zé Seco Jr, é oriundo das Caldas da Rainha, «sozinho, sem mulher nem nada», e por isso eu devia ser protegido, não fosse ser agredido, para mais quando a minha descrição social não era muito diferente da do outro.
8A cena desvanece-se. Entra um grupo de rapazes de cabelo rapado: são os que vão em breve para a tropa e que organizaram o baile anterior a este, o baile das sortes3. Ao falar-se de tropa, alguns homens que já a fizeram mostram imediatamente as tatuagens. Leonel não hesita: descreve a de um colega no quartel que consistiria numa cobra enrolada dos pés até ao peito, com a cabeça da cobra correspondendo à glande do pénis.
9Na manhã seguinte, 25 de Novembro, dia da padroeira Santa Catarina de Alexandria (embora a festa com arraial só se faça no verão), a aldeia estava repleta de carros: todos de matrícula portuguesa, propriedade de Pardaleiros que emigraram para as grandes cidades, sobretudo em arredores de Lisboa como Odivelas, Ramada e Caneças, ou no concelho de Almada. Entrei no café e pedi uma bebida; quando pergunto quanto custa, o dono aponta-me um jovem que já me pagara a despesa. Conhecera-o também no baile; embora jovem, é já encarregado de uma pedreira, conduz um Volkswagen Golf muito admirado e invejado pelos outros. Nunca viria a ser uma pessoa muito chegada a mim. Hoje percebo porquê: tanto o Leonel, como o Beto e o Zé Ganhão pertencem ao estrato social mais modesto, tanto em termos de genealogia familiar como pelo facto de serem trabalhadores não-qualificados, e o rapaz «do Golf» viria a ser um dos seus alvos de crítica por suposta subserviência ao patrão, um dos Capuchos. Mas o facto interessante estava naquele gesto de comensalidade, sobretudo porque ele não se aproximou de mim, não tentou começar uma conversa, antes se dirigiu imediatamente para a sala adjacente onde estão os bilhares e matraquilhos. Tinha-me dado as boas-vindas; e ao mesmo tempo tinha-se tornado num credor da minha estima.
10Dois conjuntos diferentes de questões necessitam ser abordadas. Primeiro, identificar algumas das pessoas (sobretudo homens) com quem estabeleci relações simultaneamente de contacto próximo e recolha de informação. São eles que formaram a minha imagem da masculinidade em Pardais. Segundo, mapear os níveis de identidade social e os contextos sociais em que os discursos e práticas da masculinidade se exprimem e são moldados, dando significado às informações obtidas e à minha relação com estes informantes. Estes elementos, depois de uma abordagem sobretudo teórica nos capítulos III e IV, serão etnografados nos capítulos V a VII e analisados enquanto sistema simbólico da masculinidade.
Leonel
11Leonel, Beto e Zé Ganhão foram, sem dúvida, os meus amigos e informantes privilegiados4. Leonel, como já referi, é de algum modo o «solteirão» por excelência. Para quem está de fora, tal deve-se à situação da sua família: a dependência em relação ao seu trabalho e ao do irmão dificulta-lhe — assim parece ao «olhar exterior» — a procura de mulher e o estabelecimento de um grupo doméstico aparte. Por outro lado, Leonel, como muitos dos jovens de Pardais, tem um discurso sobre as raparigas da mesma idade que redunda sempre na constatação de que «não há raparigas que cheguem para os rapazes». Se se fizer uma rápida contagem por grupos de idade e estado civil, facilmente se percebe que a realidade desmente esta afirmação. Mas se se introduzir a variável do nível de educação, é muito real o fosso que existe entre raparigas e rapazes. A níveis de educação diferentes correspondem estratégias reprodutivas diferentes, fazendo com que uma rapariga com o 12° ano não queira casar com um rapaz com a instrução primária.
12Exemplifique-se: Filomena, que foi minha assistente na recolha de dados arquivísticos na Conservatória do Registo Civil, é pouco mais nova que Leonel; vive só com a sua mãe, viúva e trabalhadora agrícola sazonal. Pertence ao mesmo estrato social que a família de Leonel. No entanto, Filomena tem o 12° ano completo e só contempla a hipótese de se casar com um homem de igual nível de educação, ou pelo menos alguém cujo status sócio-profissional seja equivalente ao status auferido por um nível de educação alto. Ora, um partido desses só se encontra na Vila ou nas cidades, pelo que se espera que as raparigas que frequentam o liceu em Vila Viçosa encontrem aí o seu futuro marido. Caso isso não aconteça, pode-se ficar na situação de Filomena, por assim dizer «sobrequalificada» no mercado matrimonial aldeão.
13Voltemos ao Leonel: além dos dois factos apontados (a dependência da família no seu trabalho e o desequilíbrio de status no mercado matrimonial), ou por causa deles (ou, ainda, por razões íntimas não explicitadas socialmente e não captáveis pelo antropólogo), Leonel construiu para si uma identidade que passa pelo elogio da vida de solteiro, pelo desinteresse manifesto pelo casamento e pelo cultivo de elementos performativos e simbólicos que ele interpreta como próprios do «conquistador solitário» (designação minha). Muitos destes elementos, Leonel aprendeu-os em Lisboa, durante o serviço militar; outros são próprios da cultura local; outros ainda são absorvidos a partir dos media. Em Lisboa descobriu, por exemplo, que um homem pode ser desejado. De facto, nas noções locais sobre a relação entre os sexos, a mulher é vista como um ser atraente, que faz mover o desejo masculino, e os homens como seres «desejantes»; são também os homens que devem desenvolver as acções e estratégias para a conquista dos favores femininos. Subjacente a isto, e porque as mulheres são vistas pelos homens como seres ambíguos, desconfia-se que as mulheres também fazem estratégias de conquista. Mas estas nunca se conhecem ou vêem bem (mais: não são supostas verem-se) e, em termos de visibilidade social, será sempre o homem o responsável público pelo desencadear de um processo que leve a uma relação. Ora, em Lisboa, Leonel narra que não só foi regularmente assediado por homens, como, sobretudo, por uma mulher, com quem acabaria por manter uma relação. Segundo a sua descrição, tratar-se-ia de uma senhora de classe média, de meia-idade, sozinha, que recebia Leonel em sua casa, e o ajudou a comprar uma moto e várias peças de roupa que de outro modo não poderia ter comprado, em troca da sua companhia. Esta situação, que poderia ser interpretada por muitos Pardaleiros como desprestigiante (Leonel encontrando-se na situação «passiva» de submissão, de comprado), é re-interpretada por ele como resultado da sua esperteza, e aproveitamento da carência sexual da referida senhora5.
14Quanto aos elementos próprios da cultura local, eles têm que ver com a sexualidade predatória que é esperada dos homens em geral, e dos jovens solteiros em particular. Se os primeiros devem ter esse comportamento segundo regras de equilíbrio (o excesso de predação poria em causa a estabilidade familiar, o que seria pernicioso para o prestígio do homem), já os segundos devem demonstrá-la e, de certa maneira, «gastá-la» antes do casamento. O que Leonel fez, no fundo, foi uma espécie de invenção cultural a partir dos códigos que estavam à sua disposição: em vez de esgotar o comportamento predatório e tornar-se num homem maturo e completo (isto é, casado, com filhos e responsável por uma casa), fez deste comportamento um elemento da sua identidade, que apresenta como escolha (dizendo que não quer casar-se), e até como superioridade moral (faz e é às claras o que os outros — casados — fazem e são às escondidas).
15Mas este tipo de figura donjuanesca não está previsto no script cultural local. Por isso Leonel se socorreu de elementos simbólicos próprios daquilo que ele interpreta como «moderno»: a cultura popular (no sentido de pop) urbana da modernidade tal como retratada nos media (cinema e TV) e na música rock. Daí a sua forma de vestir; daí a sua forma de andar lenta mas segura; a sua ponderação a falar, a voz que nunca sobe de tom; um olhar que não vagueia muito, antes pousa e se fixa; em suma, uma imagem de à-vontade e segurança. Para mais, Leonel consegue jogar este jogo porque tem um pouco mais de instrução do que os seus companheiros na aldeia, articula melhor o seu discurso, explica aos outros as opções de vida que fez. Como tal, é respeitado, é visto como um caso ligeiramente àparte, mas não como um marginalizado.
Beto
16Beto é diferente em muitos aspectos. O mais importante dos quais é talvez o facto de ser casado. Casou-se muito cedo, depois de um namoro no Alandroal que é descrito como «uma grande paixão»; como na maior parte dos casos, não se fala de paixão no presente, pela esposa, mas só em relação ao período de namoro. Filho de um rendeiro, que trata de uma das quintas que produz das melhores laranjas da região, embora humildes os pais não necessitavam do trabalho do Beto. De qualquer modo, o seu irmão (cabouqueiro) e a sua irmã, vivem ainda com os pais. Ele, como mais velho, casou-se e formou a sua própria casa, à semelhança do irmão mais velho de Leonel. Aos 25 anos, já tem quatro filhos, todos pequenos (uma situação original entre os casais jovens, cuja tendência é para ter um só filho ou um «casalinho»). Beto também trabalha nas pedreiras, mas na realidade ao longo do ano fui-o encontrando a fazer toda a espécie de trabalhos: por vezes estava cortando sobreiros numa herdade, por vezes fazendo serviços de construção civil. O ponto de união de todas estas actividades era o patrão, um dos irmãos Capuchos, que consignava a força de trabalho de Beto quer para as suas pedreiras, quer para as suas terras, quer ainda para o arranjo dos seus edifícios. A relação de Beto com os Capuchos era, aliás, fortemente caracterizada pelo clientelismo: recebia muitos presentes do patrão, elogiava-lhe o espírito empreendedor, a bondade, as origens humildes, até mesmo a «esperteza» nem sempre honesta para o negócio; mas conseguia criticar-lhe, apesar de tudo, o poder e a discricionaridade.
17Tal como Leonel, Beto saía à noite com frequência. Como a larga maioria dos homens, paráva pouco em casa. Regressado do trabalho, ia a casa lavar-se e mudar de roupa, para logo se dirigir ao café, para os aperitivos do fim da tarde. Interrompia esta actividade para ir jantar a casa e, acabada a refeição, já estava de volta ao café até às 11 horas, ou mesmo meia-noite. Uma ou outra vez na semana, e aos fins-de-semana sempre, saía da aldeia quer para uma festa, um baile, discoteca ou boite. Quando falei com a mulher dele sobre isto, ela respondeu-me que desde que ele voltasse todas as noites e compartilhasse a cama, não se aborrecia, pois preferia mesmo que o homem estivesse fora de casa: os homens «atrapalham», «desarrumam», «não sabem estar em casa», «o lugar deles é na rua».
18Beto não tinha a calma construída que caracterizava o Leonel. Era mais ansioso: era mais dado a falar de mulheres, de proezas sexuais de difícil crédito, mais crú na descrição dos seus desejos e vontades predatórias; e ao mesmo tempo, mais perturbado com a sua vida interior. Encontrou em mim alguém com quem podia ter um discurso pouco aceite na aldeia: sobre os sonhos e pesadelos, os estados de alma, a melancolia e a tristeza, a insatisfação. Mas a bravata sexual e o queixume auto-piedoso, sempre estimulados por uma grande propensão para a bebida, eram contrabalançados por uma insistência em afirmar ser um bom sustentador da mulher e filhos, em afirmar o amor por estes, e em exibir capacidade financeira — mostrando dinheiro, falando muito dos gastos de comensalidade, relatando despesas sumptuárias com a família: refeições, presentes, roupas etc.
Zé Ganhão
19O terceiro amigo e informante privilegiado que tive foi o Zé Ganhão. Conheci-o mais tarde, já o trabalho de campo ia no seu sexto mês. Até então, Leonel e Beto andavam bastante juntos, e eu com eles. Aos poucos, Beto foi-se tornando muito possessivo da minha pessoa, e Leonel, elegante e distante, foi-se afastando. Havia algo que esfriava entre os dois: Beto queria a minha exclusividade, nas saídas nocturnas, nas mesas de café, e visitava a minha casa com insistência. Quando conheci o Zé Ganhão, através do Leonel, fiquei a saber que Leonel achava que Beto mentia cada vez mais (isto é, os seus exageros sobre sexo, despesas na comensalidade e postura honrada em conflitos passavam dos limites estabelecidos para a fantasia), bebia demasiado e se tornara num personagem difícil de suportar.
20Zé Ganhão era bem diferente: já quase na casa dos trinta, era divorciado. Do casamento tivera duas filhas, a mais velha das quais vivia com ele. A mulher fugira com outro homem, da Vila, e aí vivia com a filha mais nova; para Zé Ganhão, ela era uma «perdida», apenas em certa medida desviada pelo homem com quem estava. A sua saída da aldeia — um reconhecimento de que a culpa era dela — e o facto de o outro homem não ser de Pardais, haviam mantido a honra de Zé Ganhão quase intacta. Zé vivia agora em casa do pai, viúvo, juntamente com a irmã solteira. O pai fora trabalhador agrícola e também cabouqueiro; a irmã trabalhava na plantação de eucaliptos, mas tinha concluído o liceu, e namorava com um rapaz de outra aldeia, que a visitava todos os dias no seu automóvel.
21O Zé já havia trabalhado nas pedreiras, mas achara o trabalho alienante e perigoso; na verdade, tinha um fascínio quase poético pela vida do campo, e os seus planos de vida e a sua energia afectiva estavam concentradas nas cabeças de gado ovino que conseguira comprar e reproduzir. Trabalhava como tractorista numa propriedade agrícola pertencente ao cavaleiro tauromáquico Capucho, de quem tinha uma opinião muito crítica (caracterizava-o como «vaidoso», como alguém que se julga «mais que os outros»). Sonhava com a sua independência financeira, ao ver crescer o rebanho que guardava na Horta dos Apóstolos, cuidada pelo seu amigo Mariano, um «jovem agricultor» subsidiado pelos fundos comunitários.
22Nem a nonchalance de Lino, nem a instabilidade anímica de Beto: Zé Ganhão sorria sempre, era daquelas pessoas que parecem não fazer teatro, não terem persona. Como a maioria dos homens, também preenchia grande parte das conversas falando sobre mulheres, mas com uma frescura positiva: para ele o sexo era algo de agradável, as mulheres eram atraentes e falava-se disso como de qualquer outro aspecto bom da vida; mas raramente lhe ouvi expressões denegridoras, afirmações de poder, bravatas narcísicas, a não ser em tom manifestamente jocoso. Rapidamente a sua conversa mudava para a agricultura, as ovelhas, os touros, e tinha um forte investimento afectivo na sua filha.
Comparando homens: Níveis de identidade social
23Leonel, Beto e Zé Ganhão. O que os unia? Sem dúvida, dois aspectos: a idade e a estratificação social. Mas as diferenças eram flagrantes noutros aspectos que me parecem fulcrais para perceber a heterogeneidade da masculinidade: o estado civil (Leonel solteiro, Beto casado, Zé Ganhão divorciado); a personalidade (Leonel introspectivo e racional, Beto extrovertido e sentimental, Zé Ganhão equilibrado e afectuoso); a relação com o trabalho (Leonel ganhava o seu para cumprir com as suas obrigações e divertir-se, era funcional; Beto era mais dado ao ócio e estava muito envolvido nas relações de clientelismo; Zé Ganhão tinha um projecto de vida).
24O factor idade pode ser encarado de dois prismas: o primeiro, no presente etnográfico, refere-se à diferença na conceptualização e vivência da masculinidade por grupos etários diferentes; o segundo, no ciclo de vida dos indivíduos (e associando-se ao ciclo de desenvolvimento dos grupos domésticos), refere-se à aprendizagem dos diferentes papéis sociais que por regra (mas nem sempre, como no caso dos celibatários) correspondem a grupos etários. Os meus informantes mais próximos, aqueles com quem de facto convivi numa base diária, encontravam-se todos nas casas dos vinte e dos trinta anos: correspondiam em larga medida ao grupo dos jovens adultos solteiros ou casados há pouco tempo. Se isto provocou algum viés na minha apreciação da masculinidade, no entanto foram uma escolha e um acaso felizes: são eles que se encontram, enquanto geração, na charneira (não temporal, mas social) entre o mundo antigo e a modernidade, com a plena integração da aldeia na vida nacional e global. Ao nível do ciclo de vida, encontravam-se todos numa situação de tensão entre a permissividade da adolescência masculina e as responsabilidades do trabalho produtivo e da reprodução familiar.
25De qualquer modo, também tive como informantes crianças, adultos e velhos. As primeiras, permitiram-me observar alguns aspectos do processo de socialização, especialmente como a masculinidade é constituída na família, na interacção por jogos e brincadeiras, e na escola como absorção de aspectos da ideologia do estado; os adultos entre, digamos, os 40 e os 50 anos, foram sobretudo informantes relacionados com aspectos do trabalho: homens em posições de chefia nas pedreiras (encarregados), o próprio presidente da Junta, os donos dos cafés, ou seja, pessoas que tinham já de ponderar os seus interesses pessoais com os equilíbrios políticos da estratificação social. Os velhos viveram a mudança estrutural mais forte da aldeia, com o fim da agricultura, e penetração de valores de género desencaixados da visão rural, bem como o surgir de novas sociabilidades (cafés, discotecas, possibilidade de deslocação, media) que alteraram a construção do género, e que os fazem ver o mundo actual como uma «confusão» ou uma «sem-vergonha».
26Quanto à estratificação social, aqui coloca-se um problema maior. Como disse no capítulo I, a larga maioria dos homens são cabouqueiros e mesmo os que são encarregados são-no dada a sua experiência prática e não devido a um maior nível de instrução ou origem social diferente. Portanto, em certo sentido, relacionei-me com o que constitui de facto a esmagadora maioria. Só que a diferença social (de classe, status ou prestígio) não se compadece com percentagens: é uma relação de poder e desigualdade. E aquilo com que me vi confrontado foi com uma limitação ao grupo dos mais deserdados. Interessa prestar atenção a três pontos.
27Primeiro: uma excepção significativa foi a minha relação com o presidente da Junta. Segundo, quanto aos patrões das pedreiras, com ênfase particular para a família Capucho (que abordarei no capítulo V), não tive acesso pessoal e regular. Um terceiro aspecto é o que se relaciona com o facto de, localmente, as pessoas não se diferenciarem socialmente do mesmo modo que nas nossas categorias de observadores: o que para nós são ligeiras diferenças, podem ser em Pardais fossos intransponíveis, como no caso de um jovem que, sendo da mesma origem social que Leonel ou Beto, tendo sido também cabouqueiro, passa de repente a encarregado, compra um automóvel, veste roupas diferentes e tudo, supostamente, porque entrou numa relação privilegiada de clientelismo com um patrão. Vejamos cada um destes elementos.
28O sr. Morais é o paradigma de uma identidade social que não chega a constituir-se sequer como grupo social: o representante local do Estado, como presidente da Junta de Freguesia. Este cargo político aparte, ele pertence ao grupo dos que profissionalmente trabalham nos serviços, o que implica um nível de instrução elevado para a zona, e sobretudo a desvinculação do trabalho físico, bem como ainda o acesso a elementos da cultura letrada como as leis, os jornais, o debate político-institucional etc. O seu percurso de vida é exemplar. O pai — cujo funeral foi o acontecimento do meu primeiro dia de trabalho de campo —, nasceu em Terrugem, no concelho de Eivas; em certo momento da sua vida mudou-se para Pardais, como trabalhador agrícola na Quinta do Panasco; Altino Valente (ver próximo capítulo), cujos pais arrendavam à época aquela quinta, foi o padrinho de baptismo do sr. Morais, nascido pois em Pardais. O pai do sr. Morais viria a abrir uma taberna, que hoje já não existe. Mas esta sua passagem a comerciante tê-lo-á ajudado a subir um pouco na escala social. Em frente à antiga taberna ergue-se hoje a casa do sr. Morais, uma das poucas de dois andares na aldeia. Está construída paredes meias com a Quinta dos Passos, pois as irmãs Conceição permitiram ao pai do sr. Morais que aí construísse quatro casas. Nos registos escolares do tempo em que o sr. Morais fez a instrução primária, ele é o único aluno «com distinção», num oceano de insucesso escolar, e é o único registado como filho de comerciante. Prosseguiu os estudos, ao mesmo tempo que ia tomando conta da taberna do pai; ainda pensou em abrir um café, na época em que não havia nenhum na aldeia mas, porque o primo, com quem pensara fazer negócio, enveredou pelo comércio de carnes, viu-se demasiado isolado para avançar sozinho com o empreendimento.
29O sr. Morais é empregado de escritório numa empresa de metalomecânica vocacionada para a indústria dos mármores. Ao mesmo tempo, tem uma loja (mercearia e drogaria), associada da distribuidora retalhista Grula, por baixo do primeiro andar onde vive. Na loja funciona o Posto Público de telefone da aldeia e o sr. Morais é ainda angariador de seguros de uma importante seguradora. Do casamento teve um filho, que trabalha também no negócio de talhos iniciado pelo primo do pai. A seguir ao 25 de Abril, o sr. Morais foi eleito presidente da Junta nas listas do Partido Socialista e tem sido, desde então, o dinâmico presidente, mesmo numa freguesia onde o Partido Comunista sempre teve grande representatividade em eleições legislativas.
30É um homem entusiástico, que adora falar de política e muito me ensinou sobre os compromissos políticos locais; fascinado pelos métodos de organização, pelas tecnologias (é também reparador de televisões e, durante a estadia no terreno, começou a informatizar a Junta), pelo cumprimento de tarefas, vive no entanto algo afastado da comensalidade masculina e o seu discurso nunca contem elementos de exibicionismo sexual6. É um homem de família, que fica em casa à noite organizando os papéis ou vendo televisão. O prestígio acumulado política e economicamente compensa plenamente qualquer eventual perca de prestígio sexual: a sua masculinidade está alicerçada no sucesso, e plasma-se (como aliás quase sempre) com a de pessoa respeitável.
31Quanto às grandes famílias, pode-se falar de duas com laços com a aldeia (já que há que considerar que a estrutura da propriedade faz com que a burguesia proprietária em grande parte não seja local, sendo até desconhecida da população): os Conceição e os Capucho. Aos Conceição pertence a Quinta dos Passos. O nome da família aparece desde longa data nos registos e róis de confessados, percebendo-se facilmente que, até aos finais do século dezanove, se tratava de uma família de rendeiros (a Quinta dos Passos pertencia a famílias nobres residentes em Lisboa e em Vila Viçosa) que aos poucos se foi apropriando das terras. Dessa família era oriundo o presidente da Junta indigitado durante o Estado Novo. Por altura do começo da «era do mármore» a família foi enriquecendo a ritmo acelerado, ao descobrir-se a pedra nas suas terras: estas eram então arrendadas, com cálculos baseados na cubicagem extraída. A Quinta dos Passos foi habitada até há pouco mais de vinte anos pelos «Conceições» (como se diz localmente), sete irmãos e irmãs solteiros (segundo o sr. Altino Valente, os irmãos estavam, porém, todos amantizados com mulheres da zona), de que sobraram hoje duas irmãs que a dada altura se tornaram protectoras de uma afilhada (da família de Leonel…) que viria a ser sua herdeira. A esta jovem está ligada uma «história moral» sobre um certo médico de uma vila próxima que, no último momento teria acabado o namoro com uma rapariga de Pardais, para fazer um casamento de interesse com a herdeira. As senhoras vivem hoje fora da aldeia, com a afilhada e o médico.
32O pai dos actuais irmãos Capuchos era primo dos Conceições. Os filhos, de modestos filhos de rendeiro, passaram a proprietários de pedreiras, quer através de estratégias de casamento quer de herança. Os três Capuchos são Rui, Fernando e Quim. O primeiro é o verdadeiro «senhor» de Pardais, proprietário de várias pedreiras e patrono da igreja, do padre, das festas anuais. É o patrão de Beto, e o sr. Morais tem com ele uma difícil relação, que passa pelo apoio prestado por aquele ao Partido Social Democrata, no poder no presente etnográfico; habita numa luxuosa vivenda na vila. Fernando também tem a sua empresa de extracção e propriedades de criação de gado. Finalmente, Quim, o único que habita em Pardais, possui as vinhas da aldeia onde trabalham algumas mulheres locais, e ainda algumas pedreiras. Os três irmãos estão desavindos, e numa recente e grande disputa judicial, Rui ganhou o processo e com ele mais terra e mais pedreiras7. Fernando é também o pai de Zé Maria, cavaleiro tauromáquico conhecido nacionalmente, e também ele proprietário de pedreiras e empresário. Fernando foi a dada altura o patrão de Leonel e Zé Maria é o patrão de Zé Ganhão. Todos os Capuchos estão liminarmente excluídos da comensalidade masculina local, da interacção no café, das saídas a festas e bailes. A sua masculinidade está como que embutida na sua ascendência social. O cavaleiro tauromáquico tem ainda a vantagem acrescida de praticar uma arte que constitui um complexo simbólico fortemente marcado pela ideologia do género (ver capítulo VI).
33As relações entre patrões em geral, mas especificamente entre estes proprietários-empresários, e os trabalhadores, são um campo semântico para a expressão, entre outros aspectos, da masculinidade. As palavras chave que imediatamente ocorrem, vindas da memória de conversas, são: «dinheiro», «trabalho», «ricos» e «pobres», «preguiça». Este universo semântico já foi muito analisado a respeito das sociedades mediterrânicas, mas sobretudo ao nível das questões de estratificação e patrocinato. Raramente, porém, em relação ao género. Eu defendo que, se o trabalho e o status social são importantes para a definição da identidade social, são-no também para a masculinidade. E que os pares de relações preguiça/trabalho, riqueza/pobreza e outros definem também contínuos de masculinidade (mais e menos), levando ao investimento diferencial em características diferentes de masculinidade consoante se esteja numa ou outra ponta da escala. Vejamos.
34Os meus informantes lidam nas suas vidas com um aparente paradoxo que surge também ao nível do discurso. Primeiro, se existe uma obrigação moral de trabalhar, sustentar a família e sacrificar o corpo, todas como elementos prestigiantes e capital simbólico de masculinidade8, existe porém — e este é o segundo aspecto —, uma utopia da preguiça e do lazer, da abundância oriunda da riqueza, da limpeza do trabalho não-braçal; e, em terceiro lugar, subjacente a isto, uma ideia de que a distribuição desigual da riqueza é uma injustiça e resultado de um mau comportamento moral dos ricos, a «ambição» (pelo que a pobreza, por antítese, confere honra). Todavia — quarto ponto —, também se elogia a astúcia, a capacidade de estratégia nas relações de patrocinato, e a capacidade de enriquecer como prestigiantes.
35Neste complexo se joga grande parte da bolsa do capital simbólico da masculinidade. É por isso que o jovem que, por via da amizade ou do clientelismo com um dos donos das pedreiras (e isto é mais patente neste caso, em que o patrão é o cavaleiro Zé Maria Capucho, já que é da geração dos meus informantes), obtém um melhor salário, comissões por serviços prestados e compra um bom carro ou uma boa moto, suscita inveja, respeito e desprezo ao mesmo tempo. Inveja, porque obtém os bens de consumo que são vistos como valorizadores da imagem masculina; respeito, por o seu capital simbólico de masculinidade ser maior e por se reconhecer que de algum modo triunfou porque estrategizou melhor, denotando (na teoria local) qualidades inatas; desprezo, porque ao aceder mais perto do mundo dos ricos, participa da imoralidade que se julga estar na essência da riqueza.
36A transformação da vida agrícola de latifúndio na vida das pedreiras conduziu ao acentuar da proletarização. Gerou trabalho constante e relativamente bem pago para os homens, e maior desemprego para as mulheres e aumento da sua domesticidade. A androginização cultural da modernidade não significou uma alteração substancial das desigualdades, já que os homens viram reforçado o seu papel de sustentadores da família e ganharam ainda maior mobilidade. Igualmente, aquilo que pode ser interpretado como uma maior domesticidade das mulheres, é visto por muitas delas como aquisição de prestígio através da figura burguesa da «dona de casa». Sobretudo permitiu a absorção parcial de um novo tropo do modelo cultural de masculinidade hegemónica — o «sucesso».
37Seguindo a lógica local de organização da vida quotidiana — a divisão entre tempo de trabalho, tempo de lazer e tempo de família —, o segundo foi o tempo-espaço privilegiado para a minha observação e interacção, onde inclusive as informações sobre os outros dois foram sobremaneira recolhidas. A sociabilidade, que será analisada no capítulo VI partindo do exemplo do café como «casa dos homens», é entendida como interacção fora das tarefas do trabalho e da vida doméstica. Aqui há que estabelecer uma divisão entre sociabilidades inter-sexuais e intra-sexuais. Nas primeiras incluem-se os bailes, matanças, e festas (nas suas componentes religiosa e profana); nas segundas, temos sobretudo dois universos: o café e/ou taberna, e as saídas nocturnas (à falta de melhor expressão, e cobrindo a ida de grupos de homens a bailes e festas noutras aldeias sem as suas mulheres, e as idas a dis cotecas e boites). Por aqui prepassa a divisão entre o público e o doméstico, sendo que ambos se dividem por linhas de género.
38Se o café é um espaço exclusivamente masculino, já o baile e a festa não o são. Mesmo nestes casos, porém, a divisão pelos sexos estabelece-se. Nas festas, as cerimónias religiosas são participadas sobretudo pelas mulheres, e as profanas têm um tempo para a família e um tempo só para os homens, depois de a família regressar a casa; o mesmo se verifica com a mobilidade, já que os homens cobrem um maior espaço geográfico de festas (indo sozinhos ou em grupos masculinos), e as mulheres a poucas mais vão do que as da sua própria aldeia. No mundo doméstico, dominado pelas mulheres ao longo do ano, abre-se a excepção das festas de baptismo, casamento, aniversários ou matanças do porco, em que os homens cumprem papéis domésticos (de pai, marido, anfitrião), ou são mesmo convidados pelas mulheres, como no caso específico da matança (cf. Lawrence 1982).
39No que respeita à vida familiar, colocam-se problemas de observação que se relacionam com o fechamento da casa aos estranhos. Reduto das mulheres, nem o próprio homem da casa lá permanece algum tempo de monta para além das horas de sono. Espaço de troca e visitas mútuas entre as mulheres, sobretudo entre mãe e filha que vivam em casas separadas, mas também entre irmãs, primas, co-cunhadas e vizinhas, além dos momentos referidos (festas familiares) em que é aberta para lá das divisões de género, só é aberta à visita de amigos (entenda-se, amigos do marido), no dia da festa anual.
40Mas a masculinidade não se constrói e reproduz apenas pela divisão do trabalho, pela socialização na família e escola ou pelas formas mais ou menos ritualizadas de sociabilidade e interacção. O domínio das noções de pessoa, do corpo, das emoções e sentimentos e, em suma, do que constitui a dinâmica entre personalidade e regras culturais é uma área da experiência humana constitutiva de, e constituída por, categorias de género. Aqui, a sorte ditou que conhecesse um extraordinário homem de idade que é um poeta oral. O acervo de décimas suas que recolhi, mais as extensas conversas tidas com ele e com o seu filho, permitiram traçar um quadro de expressividade poética que, se por um lado reforçou o meu entendimento do sistema simbólico da masculinidade, por outro permitiu perceber como este é fluido, passível de mudança e, no fundo, resultado de um «pacto social» feito com a feminilidade dos homens — canalizada, contida, regularizada por uma retórica poética.
Símbolos e significados do género
41Tentemos agora apresentar, em traços largos, o sistema de significados e símbolos culturais que operam nos discursos e práticas da reprodução das categorias de género e, em especial, da masculinidade.
42Para os habitantes de Pardais, o mundo divide-se em masculino e feminino, sendo os dois princípios de tipo essencialista. Isto é, a divisão pela dicotomia sexual é tanto uma essência do mundo e da vida quanto a divisão entre animal e humano, por exemplo. O lugar da divisão masculino/feminino é o corpo e como este é visto como o assento da pessoa9, a divisão sexual é inescapável como constituinte da identidade e simultaneamente de dois conjuntos de seres humanos: homens e mulheres, nos quais o que nós entendemos por sexo e género se sobrepõem como uma e a mesma coisa. Por extensão do corpo, as actividades humanas e os produtos destas também seguem este princípio. Isto é visível na divisão sexual do trabalho e na divisão do trabalho sexual, para o primeiro ponto, e na atribuição de género simbólico a objectos, como a casa, as divisões desta, os locais de interacção social, etc. Por analogia, ainda, o mesmo acontece com a natureza e com dois níveis da experiência humana: as relações sociais em geral, e o mundo das emoções e sentimentos. Neste caso específico, e por ser português, as homologias são reforçadas pelo facto de a própria língua ter substantivos com género.
43Na prática do quotidiano, as coisas não são tão rígidas: masculinidade e feminilidade são vividas enquanto conjuntos de qualidades que podem verificar-se no campo sexual oposto. Assim, é reconhecido que um homem pode ter certos comportamentos, emoções ou actividades «femininas» e vice-versa. Não pode é possuí-las ou exercê-las exclusivamente, o que o remeteria para a anormalidade. Para definir a feminilidade ou masculinidade de uma emoção, acção ou situação são centrais as noções de actividade e passividade. Estas operam ainda a um outro nível de complexificação da dicotomia sexual: o facto de um homem nunca ser apenas isso, mas alguém com um papel social específico e uma conduta moral, papel esse que muda na vida, no quotidiano e pode mesmo coexistir com um outro papel; assim, é-se um marido, um pai, um filho, um patrão, um empregado, um rico, um pobre, um desgraçado etc.
44A pequena rapariga («gaiata») aprende a ser passiva neste sentido e o rapaz («gaiato») a ser activo, através da incorporação10 (no sentido de embodiment) destas características como habitus11. Isto é visível nos jogos para rapazes, que se baseiam na constituição de equipas e grupos extensos, com uma actividade física que cobre espaços vastos e públicos, com aspectos de competição pela chefia. Trata-se, em geral, de usar o corpo «para fora», mais tarde na vida sintetizado no período de passagem da «tropa» com a ordem «encolhe a barriga, estica o peito». Alguns exemplos são o pontapé, o arremesso, a luta corpo-a-corpo, a caça, a perseguição, a corrida, e até a exploração do espaço exterior (à casa, à escola, à rua, à própria aldeia). Aqui poder-se-iam ainda incluir «brincadeiras» masculinas ligadas à dominação das formas de vida inferiores, que muitas vezes passam pela crueldade para com os animais, mas que são também treinos do gosto pela caça, uma actividade exclusivamente masculina.
45Quanto às raparigas, nas suas actividades lúdicas é estimulada a destreza física «circular» e em espaços reduzidos, muitas vezes explicitamente desenhados no chão (como no jogo da macaca), ou com balizas simbólicas como o «coito», e a reprodução da vida familiar e da maternidade. Aqui, é legítimo fazer o papel de «pai», ao passo que seria impensável um rapaz fazer o de mãe; aprende-se ainda o hábito de falar baixo, segredar, caminhar duas a duas na rua, estabelecendo-se assim o ideal da conivência, por oposição ao da performatividade pública dos rapazes.
46Evidentemente, existem jogos que servem para a interacção dos sexos: a «cabra-cega» e as «escondidas» são dois bons exemplos. Neles é possível usar o tacto para identificar os corpos no anonimato, e assim identificar indivíduos. Até cerca dos sete anos de idade os sexos descobrem-se mutuamente, e não tornarão a fazê-lo até à adolescência tardia, com o namoro.
47Já na infância os desvios12 são verificados. Muitas vezes situações inocentes são interpretadas como significativas e, como tal, autenticamente construídas. É o caso do Gabriel, de 8 anos, um rapaz tímido, bem comportado e bom aluno, que queria fazer ponto de cruz nas aulas de lavoures. Estas aulas foram definidas pelas professoras como exclusivamente femininas. Perante a insistência do rapaz não souberam que atitude tomar, mas as outras crianças resolveram o assunto apodando-o de «maricas». Como era exímio no ponto de cruz, Gabriel continuou a praticar em casa, graças a uma mãe tolerante. Mas na escola nunca mais foi visto fazendo-o.
48Os rapazes aprendem que lhes é permitido sujarem-se e estragar a roupa. As mães repreendem-nos pelo facto, é certo, mas essa repreensão é prestigiante no seio do grupo de rapazes que se vai formando, e não é raro ver-se um pai vangloriar-se (ainda que sob a figura de retórica da queixa, mas denunciando o orgulho pela expressão facial) da «selvajaria» do filho. As raparigas desprezam explicitamente este lado masculino, reprimindo a tentação que algumas sentem de serem «maria-rapaz», e recebendo a gratificação das outras na competição pela aparência. Aparência e elegância na roupa que são estimuladas pelas mães, numa competição surda com as outras mães e vizinhas por interposta pessoa da criança.
49É no fim do período infantil da escola primária que surgem como evidentes os sinais do corte do rapaz em relação à mãe, que no estado adulto gerará a noção ambígua de Mulher (virgem e mãe versus mulher perdida, com a namorada/esposa num ponto de equilíbrio ambíguo), que a rapariga não sente. Esta aprende a classificar as mulheres de acordo com o comportamento moral conhecido, ao passo que para os homens essa ambiguidade feminina é ontológica. E não há princípio classificatório, dos homens pelas mulheres, simétrico ao que eles têm delas.
50Os rapazes ensaiam os primeiros passos dos princípios da «saída» e da «volta» fora de dois espaços fortemente feminilizados: a casa e a vizinhança (que pode ser o pátio comum a várias casas, um troço de rua, uma rede de casas aparentadas ainda que distantes, ou um monte). As raparigas, pelo contrário, aprendem a co-dominar estes espaços com as mães. De facto, o laço mãe-filha não tem jamais cortes, mesmo depois do casamento desta; o laço pai-filho não é simétrico deste, já que ao corte do filho com a mãe não corresponde uma aproximação ao pai, com quem se estabelece uma relação difícil e autoritária, como adiante veremos. As actividades dos adultos confirmam a ordem das coisas: o pai sai cedo para o trabalho, regressa ao fim da tarde para se lavar e comer e sai de novo para o café. A mãe, se não trabalha, permanece em casa e, quando sai, é para o circuito das lojas, lavadouro e visitas a casas quase sempre de parentes (a sua mãe, as irmãs, as cunhadas ou comadres). Se trabalha, fá-lo quase sempre em grupos de mulheres dirigidos por um homem, até pela natureza dos trabalhos sazonais de colheita e limpeza, onde não é raro mãe e filha estarem juntas.
51Em Pardais, o ideal de residência é neo-local. A família é um grupo nuclear, centrado numa casa física, com comunhão de mesa e tecto, mesmo quando várias casas (por exemplo, de vários filhos e/ou filhas de um casal) são geminadas num pátio comum. A casa assume ainda uma importância simbólica definidora dos géneros. Aparte o telhado, que é arranjado pelo homem, a mulher caia, limpa o adro que dá para a rua ou a porção de rua correspondente à fachada, faz o fogo, cuida do jardim e chega a fazer pequenos trabalhos de manutenção. O interior da casa tem como ponto central a cozinha, para onde dá a porta da rua. Nela, os objectos decorativos de prestígio, incluindo utilitários como os electrodomésticos, estão dispostos de forma aparentemente mais teatral que funcional; mas na realidade trata-se das duas coisas ao mesmo tempo, pois a disposição encenada dos electrodomésticos nos cantos, por exemplo, corresponde a um uso circular do espaço, muito diferente do racionalismo quadrangular da modernidade urbana. A porta está sempre entreaberta: para que os olhares exteriores não se intrometam excessivamente, mas para que as vizinhas possam assomar-se e chamar, muitas vezes para uma conversa ou partilha de tarefa mecânica (como descascar favas) à soleira da porta, em pequenas cadeiras. O quarto do casal é a segunda peça mais importante, com um forte investimento no mobiliário de quarto em torno da figura central da cama. Desde que estas duas divisões estejam garantidas, as outras funções são saciadas como se puder, havendo muitos casos em que as crianças dormem na cozinha-sala, se a casa fôr pequena (como no caso de Beto); os brinquedos das crianças, regra geral, fazem parte do capital de bibelots e objectos adquiridos ou oferecidos, em exposição na sala ou sala-cozinha. As últimas duas décadas trouxeram uma nova divisão com importância: a casa-de-banho, tanto mais importante quanto a família tiver aderido plenamente às ideias higienistas que são hegemónicas na sociedade moderna.
52A casa parece, ao estranho, um mausoléu, do qual grande parte dos seus habitantes são expulsos: a rapariga para o espaço limítrofe imediatamente adjacente, o rapaz para o total da aldeia, o homem para «a rua»13. Daí a facilidade com que elementos que noutras partes do país são centrais para a sociabilidade familiar, como a lareira de chão, terem sido substituídas pela cozinha moderna, e o facto de não se dizer «a casa do» ou «a casa x» (como sinónimo de estirpe ou família), mas sim «a da…», seguindo-se o nome da mulher.
53A estrutura sobre a qual assenta o telhado da casa tradicional, uma grande viga feita de tronco de uma árvore, é como que a coluna vertebral simbólica da casa. Pode ter viço (seiva, essência de fertilidade) ou o seu excesso negativo, o vício14, que é um mal feminino por excelência. Este vem do sangue (menstrual). Um vício masculino também existe, mas refere-se apenas a um juízo moral dos comportamentos (gastar de mais, beber de mais), sendo resultado de má influência dos outros ou de falha da esposa em o controlar. O lado bom das mulheres é o leite, alimentador, reforçador do lado positivo da maternidade. Também o sémen masculino é entendido como leite e é igualmente positivo. Mas é esgotável15, é um capital limitado, sobretudo por culpa do lado vicioso das mulheres (a sua apetência sexual e o encantamento que lançam sobre os homens, que «não lhe podem resistir»), pelo que nunca deve ser misturado com o sangue menstrual. A outra acepção de sangue tem que ver com a reprodução, assumindo aqui a noção de hereditariedade: o sangue do homem e o da mulher, juntando-se na união sexual, resultam num novo ser. Este pode ser de um dos sexos, mas o conhecimento local só contempla formas de evitar o feminino e de propiciar o masculino16.
54Os homens verbalizam mal-estar com a ideia de estar em casa. Estar em casa «faz mal», «amolece». Pode simbolizar quer o desemprego (logo, a incapacidade de prover o sustento da família), quer a preguiça, quer a dependência em relação à mulher. Em suma, a domesticidade feminiza. O homem só leva outros (amigos) a sua casa em ocasiões rituais (baptizado de um filho, casamento, festa da aldeia), nas quais então é ele quem «recebe» os outros, capitalizando o esforço doméstico da mulher em termos de arranjo da casa, comida cozinhada, acumulação calculada.
55O espaço por excelência dos homens é o café. A actividade principal é o consumo de álcool, em regime de comensalidade e reciprocidade diferida entre os homens. Esta actividade é complementada pelos jogos de cartas, pelos petiscos dos produtos da caça e recolecção, mas é sobretudo a conversa que domina. Como actividade do espaço e tempo de lazer, esta faz-se em voz alta e com códigos de gestualidade que contrastam com o controlo funcional do corpo no trabalho. Do corpo cansado e disciplinado pela hierarquia e a tarefa, surgem os gestos largos, as pernas abertas, o bater na mesa, o levantar da voz, a reiteração, as narrativas de auto-elogio.
56A temática sexual é um dos principais fios condutores das conversas masculinas no café ou em situações de lazer. Outros tópicos importantes de conversa são o trabalho, as relações empregados-patrões, o dinheiro, e o comentário de situações de bebedeira, diversão e conflito em saídas da aldeia. Na temática sexual, são sobretudo histórias exageradas sobre proezas sexuais, e convites jocosos à homossexualidade, expressos estes no apalpar das nádegas, no acender de um isqueiro no traseiro de outro, convidar outro a sentar-se no colo, dar beijos no ar, agarrar os testículos. Outro elemento é a coisificação das mulheres, já que delas se fala sem referir nomes ou situações, mas sim como arquétipos: as partes dos seus corpos, com ênfase para os seios e as nádegas, e as práticas sexuais consideradas fora do comum: sexo oral, anal, e triângulos amorosos.
57O álcool pode ajudar à sentimentalização. Aqui dá-se a possibilidade de exteriorização poética ou cantada de emoções normalmente consideradas feminilizantes, como o amor, a saudade, a caridade e a compaixão. Se a situação for particulamente festiva, pode-se verificar uma atmosfera que se aproxima do carnavalesco, a qual, no Carnaval propriamente dito, pode assumir a forma do travesti17.
58Outras situações em que o masculino é privilegiado incluem: o local de trabalho, o exterior da aldeia «urbano» (cafés, boites, bordéis), o exterior «rural» (festas de outras aldeias), o exterior tout court (nas actividades de caça, pesca e recolecção). Só na festa da aldeia as barreiras dos sexos são atenuadas. Há uma forte presença feminina na rua, não só porque são as mulheres a organizarem a vida religiosa (outro traço da masculinidade é o pouco à-vontade em entrar na casa de Deus…), como porque exibem o estatuto da família através da roupa, sua e dos filhos. Mas é na cerimónia religiosa que elas se apropriam da aldeia como casa simbólica, conduzindo a procissão, carregando os andores, com eles fazendo o périplo da comunidade. Nos bailes locais, feitos precisamente para o encontro dos dois sexos, a divisão ritualiza-se pelo controlo visual das mulheres casadas, sentadas em redor, e pelo olhar pesquisador dos homens solteiros — móveis e em pé —, até encontrarem uma rapariga que aceite dançar, depois de reconhecer um piscar de olho codificado.
59Como já referi, a divisão masculino/feminino não é linear. Sofre revezes com a idade, a classe social, as relações de trabalho, as mudanças subtis de status, a acumulação ou perca de prestígio. Em geral, pode-se dizer que a masculinidade tem de estar sempre a ser construída e confirmada, ao passo que a feminilidade é tida como uma essência permanente, «naturalmente» reafirmada nas gravidezes e partos.
60Enquanto se é gaiato, não se é homem no sentido de «masculino». Para o conseguir, é preciso cortar com a dependência afectiva em relação à mãe (o que não é só a minha interpretação ou a de muitos psicólogos18, mas algo explícito no discurso local dos adolescentes), à casa, à família, fazendo com os outros jovens as coisas de homem — e com mais intensidade do que os adultos as fazem. Largam a escola tão cedo quanto possível para acederem aos rendimentos do trabalho, o que, sendo também uma estratégia do grupo doméstico, é vivido pelos jovens como sendo uma iniciativa sua; a maior parte do dinheiro vai para a casa, ao cuidado da mãe (que também gere o salário do marido), mas o fundo de maneio serve para comprar, por exemplo, uma moto. Com esta ganham mobilidade, correm bares e festas em grupo, onde aprendem a «aguentar» o álcool e podem deslocar-se às cidades onde poderão iniciar-se sexualmente com prostitutas. Um objecto cultural aparentemente tão insignificante como uma moto, tem porém um significado abrangente: ao contrário de zonas do norte e litoral do país, as raparigas em Pardais não têm nem andam de moto. A sua mobilidade é assim reduzida, ao mesmo tempo que é a sua pressuposta imobilidade que faz com que não tenham moto. O objecto passa a ser exclusivamente masculino, bem como o que ele permite fazer. Daí não espantar que as motos sejam tema de conversa, objecto de uma estética, de uma classificação e de competição, que fala de status e prestígio em relação estreita com a masculinidade.
61O serviço militar completa este quadro com uma saída da região, uma ligação a um grupo masculino enquanto tal e não por via da identidade local (as raparigas não têm um grupo equivalente), uma arregimentação do corpo e a identificação do masculino com o militar e o nacional, que já lhes surgira prefigurada nos estereótipos da História Nacional nos livros escolares (Vale de Almeida 1991). A tropa é o que mais se aproxima de um ritual de iniciação ou passagem, ideia reforçada pelas ritualizações (hoje menos comuns) em torno das sortes. Seja como for, para os rapazes há o grupo a que pertencem na aldeia e, por cima deste, a identidade do seu género como um grupo que está para lá da aldeia e que se depreende como homólogo da comunidade nacional (isto não difere muito da identificação de «Homem» com «homem»). Para as raparigas, não existe nenhum dos dois: elas são, antes de tudo, esposa, mãe, filha etc, e as suas amigas são as da rede de parentesco imediato e local.
62O casamento é visto como necessário para atingir o estatuto adulto, aqui entendido como análogo ao de homem. O casamento segue, em princípio, a livre escolha do parceiro/a, de preferência com exogamia de aldeia. É maior, porém, a percentagem de homens que saem, mas não é uma regra. Isto é complementado pelo princípio da herança igualitária e da quase ausência de propriedade na classe dos trabalhadores. Uma outra instituição, a do «viver juntos», permite começar a sexualidade matrimonial sem ter ainda as condições económicas reunidas. A primeira noite juntos é supostamente clandestina, mas a mãe da rapariga é quase sempre informada com antecedência. A relação é de seguida institucionalizada, com o novo casal passando a viver, na maior parte dos casos, em casa dos pais da rapariga.
63No campo específico da sexualidade, há que distinguir entre a praticada e a falada. O acesso à última é o único possível no trabalho de campo. Assim, a norma local divide os homens e as mulheres internamente. A mulher mãe, virginal e protectora tem a sua antítese na mulher perdida, exclusivamente Natureza e portadora de um apetite sexual incontrolável. A ambiguidade da mulher, e a consciência de que se encontra submetida a um estatuto social inferior do qual pode querer sair através da manipulação, leva à construção de imagens sobre a fisiologia feminina como secreta e misteriosa, o que é patente nos perigos da menstruação, a que se aplicam tabús em torno da caiação, da confecção de alimentos, da matança do porco etc. O homem predador tem a sua antítese no homem sábio, que se preocupa com o sustento da família e cuida não cair em vícios. Vítima de uma libido sempre presente, o seu corpo não é questionado, mas antes visto como límpido, visível e «exterior»: ao nível sexual, os genitais são autónomos na sua vontade. Este paradoxo leva a que as mulheres conheçam muito bem a sua fisiologia, que os homens consideram obscura; e a que os homens não saibam nada sobre a sua, que no entanto apresentam como não problemática.
64Um dos perigos mais temidos pelos homens é o do adultério por parte das suas mulheres, o que pode fazer dum homem um «cabrão» (veremos noutro capítulo como isto se liga a metáforas animais e sexuais, também contidas na tourada). Sobretudo, deve desconfiar da predação dos outros homens, pelo que vive na ambiguidade da confiança da amizade e da desconfiança da virilidade predadora dos outros. Do mesmo modo, a «sua» mulher é suposta ter pouco apetite sexual, satisfeito com o marido moderadamente, na altura certa e de maneira contida. Outro equilíbrio difícil encontra-se no facto de ser prestigiante frequentar as «outras» mulheres, disseminar o seu sémen, gastando-o em práticas excessivas e fantasiosas; mas isto pode conduzir ao desgaste físico e à delapidação dos recursos económicos, pois se gastar o dinheiro da casa é o seu prestígio como sustentador que fica posto em causa. Aqui, é a esposa que o pode e deve controlar, gerindo ela o dinheiro da casa, e deixando-lhe o fundo de maneio para a comensalidade masculina que, assumidamente, pode incluir o recurso a favores sexuais de outras mulheres.
65Aparte o perigo de adultério, a mulher é suposta domesticar a sua libido graças à gravidez, temporariamente (um exemplo que denota uma vez mais a ignorância dos homens acerca da fisiologia feminina, uma vez que a gravidez não diminui necessariamente a libido), e, numa base constante, a sua vontade de contacto social graças às amizades femininas. Os homens vêem estas como baseadas na coscuvilhice e no controlo dos homens e do comportamento matrimonial de outras mulheres, ou ainda como ligadas à vida da igreja. Porém, as mulheres explicitam-nas como relações que permitem o alívio da solidão e a criação de solidariedades que permitam fazer «chegar a água ao seu moinho» sem melindrar o status quo do prestígio masculino e da modéstia feminina.
66Entre os homens, a masculinidade assenta fortemente nos aspectos especificamente sexuais. E divisões internas entre os homens estabelecem-se analogamente às divisões entre homens e mulheres. A masculinidade é frágil, em termos sexuais nada se pode mostrar de concreto (de visível, de mais observável que o discurso verbal), pelo que tanto o medo como a forma de agressão mais comum se fazem na linguagem da homossexualidade, enquanto categoria passiva, simbolizada na imagem da penetração anal, feminizando assim o homem. Este recurso retórico é usado em todas as relações competitivas e conflituosas entre homens, seja no trabalho, nos negócios ou no jogo. Por sua vez, a homofobia situa e exorciza o perigo homossexual da homossocialidade. Nunca é demais referir que uma das características centrais da masculinidade hegemónica, para além da «inferioridade» das mulheres, é a homofobia19.
67Como disse antes, os homens de Pardais partilham uma utopia social de igualdade. Esta é contraditória com o desejo de ascensão social e de riqueza. Por sua vez, esta conflictua com a imagem negativa dos ricos como ambiciosos e pouco honestos, dos pobres como trabalhadores honrados. Em certos contextos, a esperteza e a capacidade de manipulação (do clientelismo, por exemplo) são prestigiantes, e o trabalho (visto como um sacrifício que enobrece) é preterido a favor da preguiça (normalmente vista como passividade e cobardia). Tudo se passa como se os homens vivessem na tentativa de reencontarem um estar-no-mundo adolescente: igualitário, homossocial, sem mãe e sem esposa, na busca do prazer, e sem responsabilidades económicas. Em termos Freudianos, isto chamar-se-ia «regressão» ou fuga ao «princípio da realidade». Esta utopia só é entrevista no lúdico, na comensalidade, na reciprocidade ligada às actividades do prazer: beber, jogar, estar no café, sair à noite, ter relações sexuais ocasionais.
68As mulheres, através da relação privilegiada e continuada entre mãe e filha e da obtenção do domínio doméstico, não exprimem uma ambiguidade existencial deste tipo e não têm uma homofobia feminina simétrica à dos homens. A reprodução confere-lhes uma segurança ontológica enquanto seres humanos produtores. Mas sem dúvida sentem um desejo de autonomia pública e dos prazeres que lhes é negada pela dominação masculina. Até porque o «eco» que supostamente fazem da ideologia dominante não o pode ser de facto, já que a sua consciência não é verdadeiramente livre (Mathieu 1991).
69Antes, porém, de avançar para a explicitação destes pontos, e de definir melhor o que é e como é a masculinidade em Pardais, vejamos qual o estado da questão dos estudos sobre o género e a masculinidade: primeiro, no capítulo III, de um ponto de vista mais histórico, com as sociedades pré-modernas e as primeiras abordagens antropológicas. Depois, no capítulo IV, de um ponto de vista teórico, os instrumentos que permitem analisar o assunto em Pardais e colocar os dados em perspectiva comparativa.
Notes de bas de page
1 O título é inspirado numa frase de Gilmore: «Men nurture their society by shedding their blood, their sweat, and their semen» (1990:230). Em Pardais, o sangue derramado na guerra foi substituído pelos acidentes e mortes nas pedreiras. Quanto ao suor e ao sémen, prosseguem a sua tarefa de metáforas da produção e da reprodução…
2 Ver décimas de José Seco no capítulo VII. Sobre o personagem das Caldas da Rainha (Guedes), ver capítulo VI.
3 «Sortes» significa «inspecção militar», de «tirar à sorte».
4 Para compreender os laços de parentesco (ou a sua ausência) entre as várias pessoas mencionadas neste e noutros capítulos, ver genealogias em anexo.
5 De facto, não se é «comprado»: o dinheiro reconhece apenas o valor implícito ao falo, como imagem simbólica do pénis, princípio da masculinidade e bem do capital simbólico masculino.
6 É certo que o período do trabalho de campo coincidiu com o luto do sr. Morais pelo seu pai, o que o impedia de ter uma vida social plena. No entanto, antes e depois do luto, os seus hábitos não mudaram muito. Os prazos tradicionais para o cumprimento do luto são: 18 meses pelos pais, 12 pelos filhos, 6 por avós e irmãos, 3 por tios, e 1 mês e meio por primos, sogros, noras e genros, padrinhos. O código de vestuário de luto começa pelo traje negro completo; várias combinações de elementos de vestuário são feitas para graus diferentes de luto: blusa, avental, saia, meias e lenço, para as mulheres; camisa, gravata e fumo para os homens.
7 Num artigo, num semanário nacional, antes das eleições autárquicas de 1993, é explorada a relação entre Rui Capucho e o Presidente da Câmara que, eleito pelo PS, se candidataria, em 1993, pelo PSD. O sr. Morais também vem à liça no artigo, já que acusa Rui Capucho de não ter construído um caminho prometido como contrapartida para a expansão de uma pedreira.
8 «Capital économique et capital symbolique sont si inextricablement mêlés que l’exhibition de la force matérielle et symbolique representée par des allies prestigieux est de nature à apporter par soi des profits matériels, dans une économie de la bonne foi où une bonne renommée constitue la meilleure sinon la seule garantie économique» (Bourdieu 1980:202). Tradução livre: «Capital económico e capital simbólico estão tão ligados que a exibição da força material e simbólica representada por aliados prestigiados confere, por si só, ganhos materiais, numa economia da boa-fé, em que uma boa reputação constitui a melhor (senão mesmo a única) garantia económica».
9 O que não é de modo algum um truísmo. Basta pensar em algumas inovações da modernidade tardia, como os participantes do Ciberespaço ou Realidade Virtual em que, juntamente com a separação entre tempo e espaço de que fala Giddens se dá, em meu entender, uma separação entre pessoa e corpo.
10 Por incorporação, entendo o processo inconsciente, não reflectido, de aprendizagem pela imitação de posturas corporais, gestos, reacções psicossomáticas, que têm um significado nas relações sociais, estabelecendo hierarquias, entre as quais as dos géneros, e que constitui ainda uma das formas mais resistentes de memória social. Ver Bourdieu (1980), Connerton (1993), Csordas (1990).
11 «(…) habitus, systèmes de dispositions durables et transposables, structures structurées prédisposées à fonctionner comme structures structurantes, c’est-à-dire en tant que principes générateurs et organisateurs de pratiques et de représentations qui peuvent être objectivement adaptées à leur but sans supposer la visée consciente de fins et la maitrise expresse des opérations nécessaires pour les atteindre (…)» (Bourdieu 1980:88). Tradução livre: «sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e representações que podem ser objectivamente adaptadas ao seu fim sem pressupor a antevisão consciente de fins e o domínio expresso das operações necessárias para os atingir».
12 O uso do termo «desvio» não tem aqui qualquer sentido científico, mas sim o significado genérico de comportamento não-normativo, como tal considerado por uma dada cultura num dado momento histórico. O comportamento do jovem em causa não é para mim — obviamente — uma forma desviante. Mas é graças à identificação de desvios que o processo de estigmatização se despoleta: é-se acusado de «ser» algo («maricas») a partir de uma acção («fazer lavoures»). Ver Goffman 1988 [1963].
13 A rua é uma categoria simbólica — de sociabilidade e espacialidade — abrangente e marcadora de masculinidade. Ver Medeiros (1991).
14 Segundo Cutileiro (1977:128) o vício é a «predisposição responsável pelos potenciais perigos sociais que decorrem da (…) vida social activa das mulheres». Pina-Cabral (1989) acrescenta que a palavra também refere tendências anti-sociais e autodestrutivas, e que a fusão, na linguagem popular, entre «viço» e «vício», dá conta da associação do vigor do corpo à fertilidade, sexo e sensualidade, «e que estas qualidades assumem uma conotação moralmente pejorativa» (1989:126)
15 Não necessariamente enquanto teoria folk da fisiologia, como em contextos melanésicos, mas muitas vezes como metáfora assumida.
16 Ver, a este propósito, Viegas (1991).
17 Durante o ano de trabalho de campo, só vi três figuras travestidas. Como noutros contextos, há mais tendência para os homens se travestirem do que para as mulheres, o que pode estar relacionado com o facto de, culturalmente, as mulheres (como categoria de género) serem socialmente construídas pelos homens, e não o contrário.
18 Chodorow (1978) é quem mais desenvolve esta ideia
19 A expressão «homofobia» tornou-se comum no vocabulário quer das Ciências Sociais quer do activismo político-sexual, a partir da sua introdução por pensadores do movimento gay. Significa o medo da homossexualidade, dos homossexuais e da própria homossexualidade latente, medos esses exorcizados em formas de acção social que excluem, discriminam (e até atacam, fisicamente) aqueles homossexuais que exibem os sinais culturalmente estereotipados como reveladores da sua orientação sexual (efeminação, travestismo, militantismo).
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