Introdução1
p. 13-20
Texte intégral
1Com as pessoas de Pardais vivi, ao longo de um ano e subsequentes visitas, um pouco de tudo: falámos da história local, do trabalho, das tradições, das histórias de vida. Os dados que recolhi abrangem todos os temas possíveis. Poderá parecer estranho — às pessoas de Pardais — que me tenha concentrado no tema da masculinidade. Acontece que a investigação científica não se faz — infelizmente? — para as populações estudadas, mas sim para o todo da sociedade e muito em especial para os outros investigadores. É assim que achamos que o conhecimento avança. E os temas relacionados com a identidade e o lugar social de homens e mulheres são hoje questões que se colocam com premência em todas as sociedades: ao nível da vida pessoal (isto é, e assumamo-lo, da felicidade…); ao nível de maior ou menor poder (no trabalho, na cidadania); e até ao nível do futuro da comunidade global, como a Conferência da ONU sobre População reconheceu em 1994. Ao concentrar-me neste tema, tive de me concentrar também nas conversas e momentos que tive com os meus amigos de Pardais sobre o mesmo. Não quer isto dizer, no entanto, que só se falasse ou pensasse em masculinidade, género ou sexualidade.
2Porque sei que alguns tópicos podem ser melindrosos, resolvi atribuir pseudónimos às pessoas: de certo modo isto significa que as informações que me foram dadas servem para ser comparadas com as obtidas, por outros investigadores, noutras partes do mundo. Não deixo, porém, de me sentir em dívida para com Pardais, onde por certo se esperava um trabalho mais geral sobre a vida da aldeia. Aldeia cujo nome é de facto este: tal opção deve-se ao facto de, sendo a Antropologia uma ciência interpretativa, não deixar de ser ciência social. O social é feito de locais e pessoas reais, e não fictícias. O privado é poupado pela estratégia dos pseudónimos, o público é de livre acesso. Estou em crer que ainda está para nascer o antropólogo que resolva estas ambiguidades éticas, de forma satisfatória para todas as partes interessadas.
3Para o leitor que não é de Pardais, convém esclarecer que a estratégia monográfica usada em Antropologia prende-se, sobretudo, com questões de método. A vivência entre um grupo humano específico permite a recolha de um certo tipo de dados: permite «ver» o social incorporado em e agido por indivíduos, assim como permite «ver» estes agindo sobre o social. É a este interface entre acção individual, interacção entre pessoas e códigos culturais herdados que hoje em dia chamamos cultura. De certo modo, um trabalho sobre este tema poderia ter sido levado a cabo em qualquer sítio onde existam seres humanos: embora a estratégia monográfica lance luz sobre um contexto específico, o objectivo científico é sempre de âmbito mais universal. Tãopouco o facto de Pardais se situar «na província» significa maior «verdade» ou «permanência das tradições», ou «exotismo». Tão somente, as aldeias permitem, simultaneamente, o contacto individualizado e a apreensão de um colectivo.
4Quando parti para o terreno, a questão que levava comigo era a seguinte: como se reproduz, no dia-a-dia, a masculinidade? Sobretudo, como se reproduz o modelo central de masculinidade — a masculinidade hegemónica — quando a diversidade das experiências e identidades dos homens apontam no sentido de existirem várias masculinidades? Estas perguntas, ao longo quer do trabalho de campo, quer das leituras subsequentes e da escrita, foram desmultiplicando-se em muitas outras, a que os diferentes capítulos procuram responder.
5A motivação inicial para estas perguntas prendia-se com um interesse na área de estudos do Sexo e Género. Definido este como construção social, cultural e historicamente relativa, sobre a realidade biológica daquele, a área esteve ligada, desde a década de sessenta, ao movimento feminista nas Ciências Sociais. Primeiro, sob a forma denominada «Estudos de Mulheres», que constituiu uma primeira démarche no sentido de contrabalançar o androcentrismo da Antropologia até então feita. Nas etnografias justapunham-se de forma acrítica as vozes masculinas e a sociedade no seu todo. Os Estudos de Mulheres procuraram estudar as sociedades tal como vistas pela sua metade feminina.
6Todavia, este projecto implicava um pressuposto: o de que as relações entre os géneros eram, na base, relações de poder, assimetria e desigualdade, e não simplesmente relações simétricas e complementares, como o senso-comum gosta de pensar. Assim, num segundo tempo — em que esta premissa se tornou mais assumida —, as relações sociais com base no género passaram a ser entendidas como um conjunto mais a acrescentar aos das relações com base na idade, status, prestígio, classe social e outras.
7A posição, em termos de política académica, das promotoras destes estudos, era muito particular: o engajamento político era lido pelo senso comum e pelo establishment como mais marcante que o dos investigadores que se debruçavam sobre outras áreas, como as classes sociais ou a raça, as quais, no entanto, não deixavam de ter conotações, motivações e implicações políticas. O remeter da área do género para um gueto académico levou a uma justaposição entre estudos por mulheres, sobre mulheres, para mulheres.
8Hoje, creio, as coisas mudaram um pouco. Não reconhecer a variável do género na análise social surge já como tão grave quanto menosprezar a variável da classe social, por exemplo. Nos países onde o próprio feminismo surgiu com maior impacto (as sociedades cosmopolitas que são também os centros de produção antropológica: Estados Unidos, Reino Unido e França) surgiu também o movimento social gay, com ramificações académicas que introduziram no pensamento sobre o género um questionamento mais além do essencialismo das categorias de homem e mulher: o do essencialismo da heterossexualidade. Isto permitiu que tanto o feminino como o masculino, além de questionados crítica e sociologicamente no seu aspecto relacional, fossem também passíveis de questionamento específico. Isto é, surgiu nos últimos anos uma clara noção de que há várias masculinidades e várias feminilidades. Nas sociedades modernas, uma vez controlado pela cultura o processo natural da reprodução humana, as identidades de género e a sexualidade passaram a ser, cada vez mais, «algo que se tem» (como diz Giddens), ou algo que se escolhe, um aspecto da identidade pessoal, maleável e manipulável.
9Aparte honrosas excepções — e quase todas sobre contextos extra-Europeus —, a análise dos processos sociais que definem a masculinidade focaram maioritariamente a homossexualidade como objecto de estudo, um pouco como os Estudos de Mulheres haviam focado o universo feminino. Gosto de situar o meu trabalho, pelo contrário, num esforço por explicitar os processos e relações sociais que constituem a masculinidade hegemónica, o modelo central que subordina as masculinidades alternativas (de pessoas, grupos ou sociedades), e que é o modelo da dominação masculina, intrinsecamente monogâmica, heterossexual e reprodutiva. É este modelo que é, para mim, o objecto de espanto, o exótico, o «Outro» a tentar compreender.
10Assim, as perguntas iniciais precisam de alguns acrescentos: será que em contextos da cultura oral a masculinidade hegemónica é mais resistente à mudança, por oposição a contextos letrados, urbanos e modernos? Até que ponto se pode falar de dominação masculina e até que ponto os agentes dessa dominação não são eles também vítimas dela?
11Estava plenamente convencido de que este tipo de pesquisa necessitava da dupla estratégia do trabalho de campo com observação participante e da pesquisa teórica, bibliográfica e comparativa. Assim como tinha consciência do carácter transdisciplinar dos estudos sobre género, por cortarem transversalmente outros tipos de identidade social. Por isso este trabalho oscila sempre entre o registo etnográfico, e a análise teórica.
12Quanto ao trabalho de campo, o problema metodológico fundamental com que me confrontei foi o de não haver um modelo disponível para a recolha de dados sobre a masculinidade. Apercebi-me rapidamente que ser homem é algo, sobretudo, do nível discursivo e do discurso enquanto prática. Campo de disputa de valores morais, em que a distância entre o que se diz e o que se faz é grande, optei por uma estratégia de inserção num grupo de homens em situações de sociabilidade — o que condicionou o trabalho a aspectos de homossocialidade, mais do que sobre relações entre os géneros. Escolhida a aldeia de Pardais como terreno, aí me instalei e vivi durante cerca de um ano. A escolha do terreno deveu-se à vontade de comparar diferenças entre modelos de masculinidade (o meu e dos que me rodeiam) com outros «aqui ao lado», dentro do mesmo universo linguístico e do mesmo Estado-Nação.
13O Alentejo surgiu como escolha por ser terreno quase virgem na etnografia portuguesa e uma extensão negligenciada da Europa do Sul. Mas procurei um contexto que, longe de ser um resto remoto e esquecido, fosse uma zona em transformação. Daí a zona dos mármores, com a sua actividade económica pós-agrária e ligação à economia (e cultura) mundial. Uma vez na aldeia, a interacção com os homens levou-me a perceber que, se alguma vez queria compreender a masculinidade, teria de prestar atenção aos aspectos discursivo e performativo: a expressão, quer verbal, quer incorporada, quer ritualizada, de valorações morais sobre o que é ser homem (e ser mulher), assentes numa classificação do mundo cuja base dicotómica primeira é o sexo dos seres humanos.
14A sociabilidade era o contexto interaccional, espacial e temporal ideal para isto, o que, junto com especificidades do terreno (como a impossibilidade de trabalhar nas pedreiras) levou ao desenvolvimento de uma dupla estratégia: durante o dia, interacção com crianças, velhos e mulheres; à noite e aos fins de semana, com os homens. Tentei sempre não deslizar para uma viciação dos dados, em que confundisse as expressões da masculinidade com os momentos de lazer, o que creio se pode depreender da estrutura do trabalho que adiante apresento.
15Encontrava-me igualmente sem paradigma. Ao contrário, por exemplo, dos estudos de estratificação social, parentesco ou cultura material (e mesmo assim…), para a área específica da masculinidade dentro da área do género, tive de experimentar com diversas perspectivas. Estes caminhos cruzados da experimentação teórica e metodológica, bem como do processo de vivência e descoberta ao longo de um ano de terreno, tentei inseri-los ao longo de todo o trabalho, como elemento indissociável da experiência reflexiva antropológica. Recuso instintivamente catalogações como Marxista, Durkheimiano ou Weberiano: os três foram grandes mestres, e a noção de cultura com que hoje se trabalha precisa dos três, em harmonia e confrontação.
16O trabalho que aqui apresento tem como hipótese central que a masculinidade hegemónica é um modelo cultural ideal que, não sendo atingível por praticamente nenhum homem, exerce sobre todos os homens um efeito controlador, através da incorporação, da ritualização das práticas da sociabilidade quotidiana e de uma discursividade que exclui todo um campo emotivo considerado feminino; e que a masculinidade não é simétrica da feminilidade, na medida em que as duas se relacionam de forma assimétrica, por vezes hierárquica e desigual. A masculinidade é um processo construído, frágil, vigiado, como forma de ascendência social que pretende ser.
17Os capítulos foram pensados como independentes, ensaiando em cada um deles uma estratégia retórica diferente, se bem que encadeados por uma narrativa de descoberta do terreno e de deslindamento do problema. Aqui está implícito o reconhecimento de que o que se produz em antropologia é um texto. O trabalho que se apresenta não é nem a própria experiência que vivi em Pardais, nem a vida real dos meus informantes. É uma interpretação: subjectiva porque minha, e baseada nos discursos (interpretações) dos informantes. Objectivável, por assim dizer, porque apoiada na comparação com o que se escreveu sobre o mesmo tópico, pelo controle dos elementos objectivos do contexto, e pela coerência interna da exposição.
18Interpretação não é leviandade. É uma responsabilidade. Perante os meus informantes, que sabem melhor que ninguém dirigir as suas vidas. Perante a academia, que julga a coerência interna e a plausibilidade de uma interpretação. Não pretendo emitir juízos de valor sobre os valores dos meus informantes, mas tãopouco posso deixar de assumir que, quando se fala de género, se está a ser político, porque em causa estão relações de poder/dominação e questões como o prazer, a liberdade, a família, a reprodução, a moral, em discussão permanente na nossa sociedade.
19James Clifford dizia, no influente Writing Culture, que os autores da colectânea:
«(…) see culture as composed of seriously contested codes and representations; (…) assume that the poetic and the political are inseparable, that science is in, not above, historical and linguistic processes. (…) assume that academic and literary genres interpenetrate and that the writing of cultural descriptions is properly experimental and ethical» (1986:2)2
20Tal não significa passar uma carta em branco a alguns excessos das correntes pós-modernas em Antropologia. O campo a que Writing Culture deu início tem sido por vezes mal interpretado. Se bem que a interpretação etnográfica tenha levado a uma terminologia que, por vezes, não distingue esta dos conceitos teóricos, criando assim a confusão epistemológica de que falava Sperber (1981), no entanto é certo que o texto que o antropólogo escreve trai em grande medida a experiência do terreno, e intervém na sociedade de forma política.
21O que distingue o Homem, dizia Sahlins (1976), «não é o facto de ter de viver no mundo material, mas o facto de fazê-lo com um esquema de sentido/significado (meaning)». Bom ou mau, quer eu concorde quer não, eu tento mostrar o sentido que faz, para os meus informantes, «ser homem», o que não significa uma carta de alforria relativista: se aprecio a ideia de honra, franqueza e altivez, já não posso apreciar, por exemplo, manifestações de machismo ou homofobia.
22De modo a transmitir aquele e outros sentidos recorro à narrativa. Os seres humanos contam histórias, mesmo quando científicas. A antropologia tem o trunfo de ser a única ciência humana em que (ainda) se valoriza a descrição da condição humana per se (Nader 1989:19). Mas além de narrativa, a antropologia deve ser crítica, e o que se critica são questões sociais. Perante novas questões, também se inovam os métodos. Estes, como as teorias, passam por períodos experimentais, tanto mais quanto os paradigmas não estejam em pleno funcionamento, como hoje:
«A period of experimentation is characterized by eclecticism, the play of ideas free of authoritative paradigms, critical and reflexive views of subject matter, openness to diverse influences embracing whatever seems to work in practice, and tolerance of uncertainty about a field’s direction and of incompleteness in some of its projects» (Marcus e Fischer 1986:x)3
23O Capítulo I constitui o relato daquilo que eu chamo «a visão exterior». Correspondendo aos primeiros tempos no terreno, tenta dar conta de elementos da estrutura da aldeia, de alguns dados objectivos que contextualizam as vidas dos meus informantes: estrutura da população, estrutura social e profissional, características geográficas e sócio-económicas da região. Tento ainda debater estes dados, sobretudo os referentes aos grupos domésticos, à luz de alternativas que se têm vindo a apresentar ao estudo da família e dos grupos domésticos; aí, a perspectiva do Sexo e Género surge como uma delas.
24O Capítulo II estabelece os níveis de identidade social e os contextos em que os discursos e práticas da masculinidade se exprimem e são moldados. Em torno das noções de idade, estado civil, estratificação social, trabalho, etc., apresento os meus principais informantes. Complementando este grupo-chave, debruço-me ainda sobre figuras emblemáticas de outras identidades sociais e masculinidades: o presidente da Junta, as famílias influentes na aldeia. Masculino e Feminino são apresentados como categorias classificatórias, atribuídas a homens e mulheres, usadas para definir a divisão sexual do trabalho, a divisão do trabalho sexual e a dicotomia sexual na visão do mundo.
25Os Capítulos III e IV sistematizam e discutem aspectos teóricos. No Capítulo III, apresento uma narrativa da Antiguidade, do Cristianismo e dos começos da Modernidade ao nível dos valores centrais do sexo e do género e das teorizações que sobre eles se faziam. O Capítulo III inclui ainda uma experiência: entretecer o registo escrito de um erudito local do século XIX, com a memória oral de um velho que viveu na sociedade «antiga», agrária, e ainda com a visão que os cientistas sociais têm da economia agrária e política do Alentejo. Subjacente, está um panorama histórico que possa situar o presente etnográfico em continuidade e ruptura com o passado.
26No Capítulo IV é explícita a exposição das minhas influências teóricas e horizontes comparativos, em que as noções de símbolo e significado, discursividade e prática, e construção e reprodução sociais se conjugam como linhas de análise para o estudo da masculinidade hegemónica.
27Os Capítulos V a VII retomam a etnografia do Capítulo II. O Capítulo V aborda o mundo do trabalho, do poder e do conflito. Analisa a hierarquia no trabalho, a estratificação social, a noção de respeito, a simbologia do dinheiro e do consumo, as noções de sacrifício e força, entre outras, tentando delinear as relações e mútua construção destas noções e hierarquias na constituição da masculinidade e das relações sociais.
28O Capítulo VI é um conjunto de três estudos de caso: o Café como espaço/tempo de homossocialidade; as saídas nocturnas como exemplo da moral sexual ambivalente; e o universo simbólico e performativo dos touros e touradas como texto e representação do género e da masculinidade.
29O Capítulo VII centra-se no campo das emoções e sentimentos. O estudo de caso central é o das poesias de um poeta local, onde as emoções consideradas femininas são expressas pelos homens e para os homens. O capítulo aborda ainda a situação das mulheres face à dominação masculina, bem como o processo de incorporação da masculinidade por parte dos rapazes.
30A conclusão — propositadamente intitulada «Perspectivas» —, resume e entretece os argumentos mais fortes da exposição e tenta abrir o caminho para futuros estudos na àrea do género.
Notes de bas de page
1 Página anterior: David, de Michelangelo, 1501-4, Mármore, Florença: Museu da Academia. E um jovem de Pardais regressado do serviço militar.
2 «(…) vêem a cultura como sendo composta de códigos e representações fortemente contestados; (…) partem do princípio que o poético e o político são inseparáveis, que a ciência ocorre nos processos históricos e linguísticos e não fora deles (…) partem do princípio de que os géneros académico e literário se interpenetram e que a escrita de descrições culturais é, de facto, experimental e ética»
3 «Um período de experimentação caracteriza-se pelo eclectismo, pelo jogo de ideias livre de paradigmas, por perspectivas críticas e reflexivas sobre os temas, pela abertura a influências diversas, aceitando tudo o que seja aplicável, e pela tolerância da incerteza acerca do rumo da área em que se trabalha e do carácter incompleto de alguns dos seus projectos».
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