Capítulo 2. Regime demográfico e sistema familiar
p. 13-73
Texte intégral
I
1Num texto programático publicado há mais de quinze anos, E. A. Wrigley sublinhava a importância do contexto para a compreensão dos comportamentos demográficos. “Para que o estudo histórico da população venha a ocupar um espaço intelectual específico no âmbito da ciência histórica não será suficiente encorajar uma onda crescente de estudos sobre os comportamentos demográficos no passado. Também será preciso elaborar, de forma complementar, conceitos estruturantes que estabeleçam ligações entre as características da população e o seu contexto socioeconómico e que tenham em devida conta a sua interacção mútua” [Wrigley, 1981: 207]. É sobre dois desses conceitos — sistema familiar e regime demográfico — e sobre a sua relação com as diversas tradições e abordagens, as quais caracterizam a demografia histórica e a história da família, que este capítulo se propõe reflectir.
2Por sistema familiar entende-se o conjunto das relações que se estabelecem entre indivíduos e grupos em decorrência das funções desempenhadas pela família na organização social da reprodução. Essas relações incluem as que se estabelecem no âmbito de uma mesma unidade familiar: entre marido e mulher, entre o pai e cada um de seus filhos, entre irmãos co-residentes, eventualmente entre a mulher e a sogra co-residente, etc. Incluem as relações que se estabelecem entre indivíduos pertencentes a unidades familiares diferentes: entre a mulher e a sogra não residente, entre o pai e os filhos casados, entre irmãos casados, entre os pais respectivos de um noivo e de uma noiva antes e depois do casamento, etc. Essas relações podem ter ou não a sua origem em relações de parentesco biológico, mas são sempre relações sociais. Podem servir ou não como base para a cooperação económica. Podem ter um caráter predominantemente instrumental ou afectivo, estando baseadas na emotividade ou em interesses materiais. Podem ser ou não regulamentadas juridicamente. Em cada sociedade, o conjunto de relações que integra o sistema familiar irá reflectir as funções desempenhadas pela família, a maneira como essas funções se traduzem numa determinada forma de família e em determinado tipo de ciclo familiar, e as representações simbólicas e os valores associados à família. O sistema familiar é, assim, bem mais que a forma tipicamente assumida pela família ou pelo agregado doméstico numa região determinada, ou a trama de relações existente entre membros de uma determinada unidade familiar. Tem que ver com o conjunto (variável) de funções desempenhadas pela família numa determinada região ou grupo social. E entre essas funções uma das primordiais é a de servir de enquadramento institucional para a reprodução biológica das populações.
3Nestes termos, a noção de sistema familiar encontra-se estreitamente relacionada com a de regime demográfico. Como veremos adiante, o conceito de regime demográfico especifica um conjunto de relações e de mecanismos que estão na base da organização social quer da reprodução biológica de uma população, quer da reprodução do conjunto de relações mediante as quais se regula a apropriação social (e a distribuição) dos meios de vida dessa população. Esta formulação um tanto abstracta visa sublinhar o facto de os comportamentos demográficos não se verificarem num vácuo e de o seu enquadramento social — em primeiro lugar, no âmbito do sistema familiar — ser em muitos casos de importância decisiva para a determinação das dinâmicas demográficas.
4É neste sentido que este capítulo irá tentar esclarecer como se relacionaram, no passado europeu, a família e a dinâmica das populações, e ver até que ponto essas relações permitem que se fale da organização social da reprodução nas sociedades da Europa moderna. Mas para isso será preciso passar em revista, também, a evolução da demografia histórica e examinar a influência dessa evolução sobre a maneira como estamos acostumados a conceber a relação entre os fenómenos demográficos e o seu contexto social.
II
5Falar de demografia histórica comporta um risco evidente de anacronismo. A própria noção de “população”, sua condição sine qua non, pressupõe que as pessoas possam ser não apenas enumeradas, mas contadas; e que tenha sentido agregar, num total único, os números de pessoas pertencentes a diversas categorias sociais. Para que tal ocorra, é preciso que alguém tenha interesse em saber os números e capacidade para contar.
6A contagem dos homens foi sempre uma manifestação de poder. No Antigo Testamento, foi Deus quem mandou Moisés efectuar a contagem do povo de Israel;1 e quando, mais tarde, David ordenou um recenseamento por conta própria, Deus castigou pela peste todo o povo de Israel.2 Foram os grandes impérios e as cidades-estado os principais responsáveis pela realização dos primeiros recenseamentos e sobretudo pela emergência das categorias de súbdito e de cidadão, as quais, estabelecendo uma forma de igualdade política entre os homens, criavam as condições conceptuais para a realização de recenseamentos.
7Os primeiros numeramentos foram de facto efectuados no antigo Egipto, na China, no Japão, na Grécia, em Roma e em partes do Império Romano. Mas com a Idade Média desapareceram as condições políticas e conceptuais para a sua realização. Se exceptuarmos documentos excepcionais como o Domesday Book (1086), mandado elaborar após a conquista da Inglaterra pelos Normandos, os registos da capitação inglesa (poll tax) de 1377 e alguns numeramentos locais, foi só na Florença do Quattrocento que, com o célebre Catasto de 1427, voltamos a encontrar um recenseamento sistemático em grande escala. Mas, sintomaticamente, as autoridades florentinas acabaram por não aproveitar a riqueza das informações estatísticas contidas nesse documento de carácter fiscal, e nunca tentaram calcular a população residente nos seus domínios, ou o valor dos seus bens [Herlihy e Klapisch-Zuber, 1978]. Apesar da sua aparente modernidade, o Catasto pertence ainda a um mundo particularista onde as diferenças entre pessoas e categorias de pessoas se sobrepõem ao igualitarismo implícito no acto de contar.3 Foi só com o início do processo de construção do Estado moderno, a partir do século XVI, que os numeramentos, geralmente de carácter fiscal ou militar, começaram a tornar-se mais frequentes. E foi na sequência da Reforma e do Concílio de Trento, e no âmbito de tentativas para consolidar a autoridade das Igrejas sobre os fiéis, que se generalizou o registo eclesiástico de baptismos, casamentos e óbitos. As novas técnicas de contagem dos homens reflectiam as novas formas assumidas pelo poder no início da época moderna, e foram estas as grandes responsáveis pelas fontes que nos permitem (a nós, homens do século XX a quem não repugna a “transformação dos homens em número e da idade numa duração”)4 a (re)construção do objecto de uma análise demográfica retrospectiva.
8Não é casual que a demografia histórica seja na prática equivalente à história das populações da Europa ocidental nos períodos moderno e contemporâneo, ou que o seu conteúdo se possa em grande parte resumir nas problemáticas do “antigo regime demográfico” e da “transição demográfica”. Para o período medieval, de facto, as fontes são demasiado escassas, fragmentárias e localizadas para permitir uma visão de conjunto ou uma análise dos comportamentos ou mecanismos demográficos. O mesmo poderá dizer-se (por enquanto) das sociedades situadas mais a leste, em relação às quais a nossa informação ainda é muito fragmentária. Em certa medida, o mesmo é também verdade em relação às sociedades não europeias, com a excepção — ainda bastante parcial — das zonas de colonização e povoamento europeu. Devido a essas limitações, não sabemos ao certo até que ponto as fronteiras do nosso conhecimento correspondem às fronteiras reais de um sistema demográfico e familiar europeu ou tão-somente às limitações da informação disponível.
9Trata-se de uma questão de alguma importância, porque a procura das relações entre demografia e modelos de família pressupõe que essas relações existam e sejam coerentes. A procura dessas relações equivale na realidade à procura da lógica de um hipotético sistema demográfico e familiar europeu, e a noção de sistema pressupõe que os seus limites possam ser identificados. Mas não sabemos se esses limites correspondem aos do sistema demográfico e familiar ou apenas ao conjunto de fontes que utilizamos para o estudar. É difícil saber se o sistema demográfico e familiar que nos é revelado pelas fontes da Europa moderna já existia durante a Idade Média, e se algumas das diferenças que observamos entre a Europa ocidental e a oriental, por exemplo, correspondem a diferenças de sistema ou apenas à natureza das fontes utilizadas.
10A concentração sobre as sociedades europeias entre os séculos XVI e XIX é assim, em grande medida, um reflexo da dependência da demografia histórica em relação às suas fontes. Estas são, essencialmente, de dois tipos.
11Como referi, foi no âmbito da cristandade latina, e no período após a Reforma e Contra-Reforma, que foram introduzidas, em ambos os lados da fronteira religiosa que separava católicos e protestantes, práticas de administração dos fiéis que se traduziram em fontes nominativas susceptíveis de revelarem alguma coisa, quando analisadas de maneira sistemática, sobre os comportamentos dos homens e mulheres do passado em relação à família e à reprodução. Trata-se fundamentalmente dos registos paroquiais de baptismos, casamentos e óbitos, elaborados quer por católicos, quer por protestantes, e dos libri status animarum, ou róis de confessados, que em boa parte do mundo católico recenseavam anualmente, família por família e em cada paróquia, toda a população sujeita ao cumprimento do preceito pascal.5
12Mas as autoridades eclesiásticas não foram as únicas, nem as primeiras, a preocuparem-se com o registo de dados relativos à população. A realização de numeramentos, a partir do início da Época Moderna, começava a exprimir uma concepção da população enquanto recurso. O número dos homens reflectiria e condicionaria a força de um nascente Estado moderno, como muito bem perceberam, entre outros, Maquiavel, Jean Bodin e Giovanni Botero. No seu tratado sobre as Cause della grandezza e magnificenza delle città [1589], Botero procura estabelecer os mecanismos que determinam o crescimento demográfico e o progresso económico das cidades. Nas suas admiráveis Relationi universali [1591-96], por outro lado, que constituem um autêntico e enciclopédico tratado de geografia política e económica à escala do mundo então conhecido, Botero começa por delinear o que hoje chamaríamos a geografia humana e económica de cada país. Na segunda parte, tenta determinar, para cada príncipe, quais são as causas do seu poderio ou de sua fraqueza em confronto com os países vizinhos, e presta atenção particular ao estado da população, considerando que a primeira das “causas da grandeza dos Estados” é la moltitudine della gente.6 Nas obras destes autores (e de outros “precursores” do mercantilismo), o nível da população constitui um indicador de condições económicas e uma condicionante de estratégias políticas. Como bem sublinha a propósito de Portugal António Manuel Hespanha na sua tese “As Vésperas do Leviathan” [1986], o nível da população (e o seu conhecimento) eram recursos fundamentais na construção do Estado moderno.
13As fontes mais imediatamente disponíveis para a história da população na época moderna, os censos e numeramentos, reflectem essa concepção, e não é de estranhar que a história da população, num primeiro momento, tenha feito o mesmo. Afinal de contas, esses documentos efectuavam contagens da população no seu conjunto e era disso que tratava a história da população. O ponto de partida para o desenvolvimento da demografia histórica foi assim uma preocupação com a variação no tempo do número dos homens, e com as causas extrínsecas dessa variação, mais do que com a estrutura das populações ou com os mecanismos intrínsecos subjacentes à sua dinâmica.
14Quando, face à inexistência de censos, era preciso recorrer a numeramentos de carácter fiscal, havia que transformar os números fornecidos pelos documentos numa estimativa do tamanho da população. Surgia o inevitável problema do multiplicador, do coeficiente que permitiria a transformação de fogos em habitantes e a utilização do numeramento como se fosse um censo, embora tosco, da população. Na sua determinação intervinham noções o mais das vezes intuitivas acerca da natureza da família no passado, ou acerca da relação entre o crescimento da população entre dois censos e as condições económicas e sociais da época ou da conjuntura. Os números proporcionados por esses censos e numeramentos e as tendências que representavam podiam em seguida ser postos em relação com tendências e processos reconstruídos pelas história económica e social, e incorporados num discurso historiográfico mais amplo. Mas a conceptualização da interacção entre a dinâmica da população e o seu contexto socioeconómico permaneceu durante muito tempo rudimentar. Uma preocupação explícita e analítica com a relação entre a estrutura das populações estudadas e os mecanismos subjacentes à sua dinâmica ficava excluída, aparentemente fora do alcance do historiador.
15Isto deve atribuir-se não a qualquer naïveté dos historiadores, mas a dois factores em particular. Por um lado, havia a falta de fontes que permitissem calcular o movimento natural da população e decompô-lo nas suas principais componentes, a natalidade e a mortalidade. Por outro, havia a imagem generalizada do sistema demográfico antigo, submetido à ameaça de uma excessiva pressão da população sobre os recursos disponíveis, e cujas flutuações derivariam mais de variações exógenas da mortalidade que de qualquer dinâmica intrínseca. Nessas condições, analisar a dinâmica do movimento natural e da relação entre fecundidade e mortalidade não parecia prioritário. De qualquer modo, e mesmo que se quisesse estudar essa relação, as únicas fontes disponíveis para o estudo do movimento da população na época pré-estatística eram os registos paroquiais, cujo carácter localizado, fragmentário e disperso impedia a sua utilização para o cálculo de taxas relativas a populações com uma dimensão significativa. As raríssimas recolhas de registos paroquiais tendo em vista uma análise da dinâmica da população, como as efectuadas por Rickman na Inglaterra e por Vargas Ponce em Espanha,7 não fazem senão sublinhar as dimensões do problema e o peso dessa visão tradicional da população.
16Uma visão mais analítica está associada à chamada teoria da transição demográfica, que reflecte não apenas a disponibilidade de novas fontes — como os recenseamentos que começaram a ser elaborados na segunda metade do século XIX, e que na primeira metade do século XX já atingiam um certo grau de fiabilidade, ou as sempre mais analíticas estatísticas do movimento da população —, como também uma preocupação com os problemas da explosão demográfica nos países subdesenvolvidos. Essa preocupação traduziu-se num esforço para identificar os mecanismos subjacentes ao declínio da fecundidade matrimonial que se tinha verificado na Europa, com a esperança de obter ensinamentos úteis para a promoção do controlo da fecundidade no Terceiro Mundo.
17Durante algum tempo, as discussões a respeito da transição reflectiam noções segundo as quais o declínio paralelo mas não simultâneo da mortalidade e da fecundidade, nos países desenvolvidos, teria sido uma manifestação quer dos avanços da medicina e da saúde pública, quer do desenvolvimento de uma atitude racional e individualista em relação à procriação. Implícita nesta concepção estava a ideia de que no período anterior ao início da transição não havia qualquer controlo da fecundidade, nem individual nem social. Nessas condições imaginadas, a dinâmica da população estaria determinada pelas variações na intensidade da mortalidade, que por sua vez reflectiria flutuações climáticas, epidemias, os acasos da guerra e as variações da conjuntura económica. No Antigo Regime, onde a dinâmica das populações teria sido determinada em grande parte pelo clima e por doenças epidémicas, não tinha muito sentido procurar interacções mais subtis e complicadas entre a mortalidade e outras variáveis demográficas, ou entre estas e o contexto socioeconómico.
18A investigação dessas interacções no período mais recente constituiu, pelo contrário, o objectivo principal do mais notável conjunto de trabalhos inspirado pela teoria da transição, o célebre European Fertility Project desenvolvido na Universidade de Prínceton a partir dos anos 60. Esse projecto visava, através da análise estatística de um grande número de variáveis demográficas e socioeconómicas, identificar os factores que pudessem explicar a cronologia do declínio da fecundidade em diferentes regiões da Europa.8 O projecto baseava-se nos censos e nas estatísticas do movimento da população da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, e os indicadores foram calculados para cada uma das províncias de cada país europeu. Mas apesar da abundância e da homogeneidade das fontes utilizadas, os resultados foram decepcionantes. A razão fundamental está em que o projecto procurava relacionar atributos das populações de cada província com as características socioeconómicas das províncias em questão, calculando, por exemplo, a correlação entre a queda da fecundidade matrimonial entre dois censos e o grau de analfabetismo ou de urbanização. Os mecanismos sociológicos ou psicológicos através dos quais esses atributos estariam relacionados entre si, e que estariam a influir no comportamento dos casais, permaneciam implícitos e reflectiam uma associação hipotética entre o desenvolvimento de um racionalismo individualista e a adopção de comportamentos demográficos “modernos”. Não estamos muito longe dos pressupostos subjacentes à sociologia da modernização e do desenvolvimento da mesma época. Mesmo se admitíssemos que esses pressupostos fossem apropriados às sociedades europeias durante os últimos cem anos (o que é discutível), eles dificilmente poderiam fornecer ensinamentos úteis para o estudo das dinâmicas demográficas das sociedades europeias do Antigo Regime.
19Os resultados decepcionantes dos estudos realizados no âmbito do projecto de Prínceton reflectem assim os modelos economicistas subjacentes à sua formulação e traduzem-se no enorme papel explicativo atribuído à cultura regional — que mais não é senão uma outra maneira de designar o resíduo, ou seja, a variância não explicada pelas equações de regressão.9 Desde então, contudo, muitos demógrafos têm vindo a manifestar uma maior abertura interdisciplinar. Mesmo no âmbito da demografia contemporânea e dos estudos sobre o Terceiro Mundo, como se pode ver nos trabalhos publicados na revista Population and Development Review, o objectivo tem vindo a ser definido de maneira sempre mais clara como uma caracterização mais rigorosa dos comportamentos demográficos e das suas conexões.
20Uma preocupação análoga tinha começado a emergir dos primeiros estudos de microdemografia paroquial. Já no século XIX, como vimos, haviam sido utilizadas algumas agregações de séries paroquiais numa tentativa de encontrar um sucedâneo para as então inexistentes estatísticas do movimento da população. No contexto de estudos localizados, os registos paroquiais tinham às vezes sido utilizados como indicador da conjuntura demográfica. Mas foi só quando passaram a ser encarados do ponto de vista da reconstituição dos comportamentos demográficos que os registos paroquiais se transformaram em fonte privilegiada da demografia histórica.
21A demografia histórica, contudo, deve a sua renovação nas últimas décadas a uma tentativa de superar as limitações e os defeitos não dos censos e numeramentos do passado, mas da informação demográfica produzida hoje em dia nos países do Terceiro Mundo. Numa tentativa de encontrar uma medida da “fecundidade natural” que fosse utilizável em estudos sobre o declínio da fecundidade nesses países, e face às deficiências quase insuperáveis dos recenseamentos e das estatísticas do movimento da população, o demógrafo francês Louis Henry — talvez por não ser historiador, e justamente por isso capaz de um olhar mais analítico sobre as fontes históricas — deu-se conta de que os registos paroquiais da França do Antigo Regime poderiam permitir a definição simultânea e rigorosa não apenas do número de eventos demográficos — nascimentos, matrimónios e óbitos —, como também das respectivas populações em risco, tornando possível o cálculo, com um grau notável de precisão, de indicadores demográficos como taxas de fecundidade matrimonial por idades, intervalos proto e intergenésicos, taxas de mortalidade infantil e idades médias de acesso ao matrimónio.
22O método de reconstituição de famílias [Fleury e Henry, 1956; 1965] permitia cálculos rigorosos — foi justamente por isso que Henry tinha recorrido aos registos paroquiais —, mas tinha um custo bastante elevado em termos de significância e alcance dos resultados. A morosidade do método fez com que as investigações tivessem como objecto populações muito pequenas, e a necessidade de garantir uma base numérica suficiente e de reduzir o risco de flutuações aleatórias originou que os cálculos se baseassem nos eventos ocorridos durante várias décadas. Disso resultava que as flutuações de curto e médio prazo fossem invisíveis e que os resultados se apresentassem com uma aparência às vezes enganadora de estabilidade. Disso resultava também que mesmo quando o número de eventos era suficiente para que as taxas fossem significativas, não havia modo de saber a que população mais ampla se referiam os números, cuja representatividade para além da freguesia ficava inevitavelmente por avaliar.
23Disso resultavam, por fim, o carácter algo introspectivo dos estudos demográficos paroquiais, o carácter repetitivo dos cálculos realizados — dizia-se, não sem razão, que entre uma e outra das centenas de monografias paroquiais só os números é que mudavam — e o facto de nelas serem pouco frequentes as referências a problemas de âmbito macrodemográfico ou às discussões correntes no campo da história económica e social. Dizia-se também, de novo não sem razão, que muitos desses estudos paroquiais desprezavam toda a informação, por vezes muito rica, que se poderia retirar dos registos paroquiais para além dos baptismos, matrimónios e óbitos.
24Em termos gerais, não será demasiado injusto concluir que a preocupação pelo rigor da medida levou a uma tal redução da escala da análise que os resultados dessa demografia em filigrana acabam, mesmo quando a investigação tiver sido realizada com rigor e dedicação, por ser de alcance muito limitado. É por isso importante esclarecer em que medida essa técnica permite de facto reconstituir os comportamentos demográficos, quais os comportamentos em causa e quais as populações (ou subpopulações) cujos comportamentos são analisados.
25A técnica consiste em efectuar o cruzamento nominativo entre todos os registos de acto (de baptismo, casamento ou óbito) que se referem à mesma pessoa. Uma vez que os registos de baptismo relacionam entre si as “biografias” de pais e de filhos, o cruzamento nominativo aplicado aos registos paroquiais pode constituir o ponto de partida para o encadeamento genealógico dessas biografias. Mas para Henry a técnica estava dirigida à reconstituição dos comportamentos demográficos relativos à mortalidade, à nupcialidade e em particular à fecundidade. Delimitando universos de eventos em relação aos quais a respectiva população em risco era conhecida, a técnica permitia o cálculo rigoroso de taxas e de intervalos e a caracterização de comportamentos demográficos, desde os parâmetros de um modelo de casamento à prática ou não da limitação da fecundidade matrimonial. A necessidade de relacionar eventos com as respectivas populações em risco impunha um controlo rigoroso sobre a observação, com a exclusão de todos os que poderiam ter saído, mesmo provisoriamente, de observação. A utilização dos registos de uma única paróquia podia, assim, e atendendo aos padrões de mobilidade do Antigo Regime, levar a que o estudo se debruçasse sobre uma parte apenas da população, o que levantou dúvidas quanto à representatividade dos resultados obtidos e à legitimidade de generalizações para sectores da população excluídas da análise ou para populações mais amplas.
26Há também o problema inverso, que deriva da necessidade de decompor a população analisada em subpopulações significativamente diferenciadas. Alguns comportamentos demográficos, como, por hipótese, um baixo nível de concepções pré-matrimoniais, poderão ser característicos de toda uma população; outros — o controlo da fecundidade, a tendência a adiar ou antecipar o casamento segundo a conjuntura económica, ou o costume de condenar ao celibato (religioso ou não) todas as filhas para além da primogénita — poderão, numa época e região determinada, ser característicos só de determinados grupos sociais. Qualquer tentativa séria de contextualizar os comportamentos demográficos, analisando a sua interacção com outros aspectos do sistema económico e social, pressupõe que se saiba quais os grupos sociais que protagonizam, e em que circunstâncias, cada tipo de comportamento.
27São relativamente raros os registos paroquiais que, por incluírem sistematicamente informações a respeito das ocupações dos intervenientes, permitem a decomposição da população em subpopulações segundo critérios sociologicamente significativos. Raras vezes permitem determinar, por exemplo, se determinada taxa ou idade de acesso ao casamento corresponde a algum modelo subjacente aos comportamentos de toda a população, ou se, pelo contrário, as médias e as taxas derivam da coexistência de dois ou mais modelos, cada um dos quais específico de determinado grupo social. Isto impõe limitações bastante significativas à possibilidade de estabelecer ligações entre comportamentos demográficos e o contexto socioeconómico, e acaba por reforçar o carácter bastante fechado, e exclusivamente demográfico, de muitas das análises efectuadas com esta técnica.
III
28A reconstituição de famílias permite, assim, recuperar os comportamentos demográficos de uma parte da população de comunidades bastante restritas, que na maior parte dos casos são paróquias. Mas não permite, em geral, a identificação dos comportamentos diferenciais de grupos sociais específicos. Os resultados dizem respeito apenas ao elemento estável da população. Em se tratando de unidades relativamente pequenas, essa restrição é bastante limitativa. De qualquer modo, a ausência de referência ao contexto socioeconómico torna bastante problemática qualquer tentativa de determinar o âmbito de representatividade de cada estudo paroquial. Seria por isso muito difícil ensaiar a caracterização de um regime demográfico a partir dos resultados de estudos paroquiais, por numerosos que fossem, de reconstituição de famílias.
29Mas esses estudos estiveram mesmo assim na origem de uma revisão bastante radical da imagem tradicional do sistema demográfico antigo.
30Mostraram não ser verdade que a mortalidade era uniformemente elevada e caracterizada pela incidência de crises, e demonstraram que pelo contrário havia variações consideráveis, nomeadamente no nível da mortalidade infantil. Mostraram que não era verdade que a fecundidade fosse uniformemente elevada. A fecundidade geral era de facto bastante moderada em consequência de uma nupcialidade restrita, caracterizada pelo casamento tardio e pelo celibato relativamente elevado.
31Num primeiro momento, contudo, a variabilidade dos comportamentos demográficos foi considerada menos importante que a exigência de um novo modelo que substituísse a imagem falsa de uma população que mal conseguia reproduzir-se face a uma mortalidade forte e periodicamente devastadora. Os estudos de reconstituição de famílias tinham mostrado que a dinâmica das populações antigas não era, como se supunha, determinada fundamentalmente pela mortalidade, que por sua vez reflectiria as vicissitudes do clima e as irrupções imprevisíveis de doenças epidémicas. Antes pelo contrário, na Europa do Antigo Regime havia formas de controlo social da reprodução que, impedindo a população de crescer até os limites impostos pelo meio ambiente, conseguiram evitar que o equilíbrio entre a população e os recursos fosse restabelecido por via da mortalidade.
32Esses estudos tinham revelado, por outras palavras, que a muitas regiões da Europa poderia aplicar-se o esquema elaborado por Malthus para a Inglaterra do século XVIII, onde a dinâmica da população era regulada através do controlo social do acesso ao matrimónio. Mas, pelas razões já indicadas, esses mesmos estudos não podiam servir de base para qualquer tentativa de elaborar um esquema alternativo, ou de especificar os mecanismos subjacentes ao modelo malthusiano.
33Cabe ao demógrafo britânico John Hajnal o mérito de ter chamado a atenção para a importância desses mecanismos, e do matrimónio em especial, dentro do sistema demográfico do passado europeu. Num ensaio que se tornou rapidamente um clássico da demografia histórica contemporânea, Hajnal [1965] constatou a existência, na Europa pré-industrial, de regimes demográficos diferenciados. Analisando os recenseamentos de finais do século XIX, verificou que, a leste de uma linha imaginária que corre de Sampetersburgo (Leningrado) a Trieste, o matrimónio era precoce e quase universal para ambos os sexos; a oeste da mesma linha, pelo menos 10% de cada geração não se casava, e os que contraíam matrimónio faziam-no bastante tardiamente, a idades para cima dos 24-25 anos. Os comportamentos em relação à nupcialidade que estudos de reconstituição de famílias tinham identificado em paróquias isoladas, quase todas na França dos séculos XVII e XVIII, possuíam, por conseguinte (pelo menos em finais do século XIX), um âmbito europeu.
34A nupcialidade restrita traduzia-se em níveis significativos de celibato definitivo e, sobretudo, no matrimónio tardio. Os jovens que casavam faziam-no, em média, vários anos depois do início do período fecundo da noiva. Esta espera correspondia aos anos em que a fecundidade das mulheres é em geral mais elevada e, por isso, mesmo que não houvesse qualquer controlo da fecundidade entre as mulheres casadas, um regime matrimonial como o que caracterizava as sociedades da Europa ocidental terá exercido uma forte influência restritiva sobre o nível de fecundidade da população feminina.
35O regime matrimonial “europeu”, que Hajnal demonstrou ser específico das sociedades da Europa ocidental, corresponde à institucionalização do que Malthus caracterizou como um “travão preventivo” (preventive check) contra o crescimento desmesurado da população. Uma nupcialidade socialmente controlada pode revelar-se um instrumento extremamente flexível para regular o crescimento da população na medida em que permite activar ou desactivar, segundo as conjunturas, o potencial representado por aquela parte da população feminina cuja fecundidade biológica é mais elevada. Segundo o modelo, se a população crescer mais rapidamente que os recursos colocados pela sociedade — através da sua estrutura económica e da sua organização social — à disposição do conjunto dos seus membros, uma subida da idade média de acesso das mulheres ao matrimónio poderá, ao reduzir a natalidade, aliviar a médio prazo a pressão demográfica. Inversamente, se uma crise de mortalidade ou uma epidemia tiver dizimado a população, a antecipação de um número significativo de matrimónios resultará num aumento da natalidade e permitirá a reposição a médio prazo dos efectivos perdidos.
36Esta capacidade de recuperação e esta flexibilidade não poderiam ser características de sistemas demográficos cujo regime normal de funcionamento implicasse uma plena utilização do potencial de fecundidade da população. No Leste europeu, o matrimónio era precoce (entre os 18 e os 21 anos, em média, para ambos os sexos) e quase universal. Fora da Europa e das zonas de povoamento europeu, o matrimónio adolescente (abaixo dos 18 anos) era universal. Sem afirmar que este modelo de sistema auto-regulado correspondia de facto ao funcionamento real dos sistemas demográficos da Europa pré-industrial, Hajnal chamou a atenção para o facto de este regime matrimonial ter sido específico de uma pequena parte do globo, justamente aquela onde se deu a “grande transformação” da época moderna, e indicou a possibilidade de que tenha existido alguma relação entre esse regime, a “ética protestante” e o desenvolvimento do capitalismo.10
37Seria importante para a avaliação desta hipótese conhecer os limites, no espaço e no tempo, do regime europeu ocidental. Hajnal foi cauteloso. A fronteira a leste era evidente, mas para sul a situação era menos clara. Em finais do século XIX, todos os países da Europa meridional se caracterizavam por uma nupcialidade de tipo europeu ocidental. Mas Hajnal sublinhou a heterogeneidade dessas populações e indicou que algumas regiões da Itália meridional e da Espanha se assemelhavam mais à Grécia que ao Noroeste da Europa. Enquanto não estivessem disponíveis informações mais completas, Hajnal preferiu concentrar as suas atenções sobre as implicações do contraste entre a Europa ocidental e a oriental, deixando em aberto a questão da eventual existência de um modelo matrimonial específico da Europa meridional.
38No que diz respeito aos limites cronológicos do regime matrimonial ocidental, a informação fragmentada de que dispunha não lhe permitiu um maior grau de certeza. Para os século XVII e XVIII todas as fontes analisadas indicavam a vigência deste regime na Escandinávia, Inglaterra, Países Baixos, França (Normandia, Lyon, Auvergne), Alemanha, Áustria e Norte da Itália. A nupcialidade de grupos sociais privilegiados (aristocracia inglesa, elites de Genebra e Vurtemberga) parecia, no entanto, ter sido diferente até os séculos XVI e XVII, com um acesso relativamente precoce das mulheres ao matrimónio. Mas estes exemplos isolados e pouco representativos não permitiam generalizações. Só para o caso inglês havia indicações de que anteriormente poderia ter existido um regime diferente. Os registos da capitação inglesa de 1377 (poll tax) tinham sido analisados por J. C. Russell [1948] e sugeriam a existência de um regime matrimonial semelhante ao da Europa oriental. Segundo Hajnal, uma nupcialidade de tipo ocidental corresponderia à existência de 50-55% de mulheres casadas entre a população feminina com 15 anos ou mais. Na Europa oriental, essa mesma percentagem chegava, no final do século XIX, a 65-69%. Ora, segundo as estimativas de Russell, a percentagem na Inglaterra no final do século XIV não deveria ser inferior a 70%, o que sugere a existência de um regime matrimonial semelhante ao da Europa oriental em finais do século XIX.
39Hajnal reconheceu que, por si mesmos, estes dados não permitiriam conclusões seguras, pois havia dúvidas quanto ao eventual sub-registo de mulheres solteiras. Mas admitiu que, caso fossem confirmados a partir de outras fontes, seríamos tentados a concluir que, pelo menos em algumas áreas da Inglaterra do século XIV, o regime matrimonial teria sido bastante diferente do que caracterizou a Europa ocidental nos séculos XVIII e XIX. Neste caso, e com base no que se sabia a respeito da nupcialidade da aristocracia e de grupos de elite, poderia talvez adiantar a hipótese do aparecimento, por volta do século XVI, de um novo regime matrimonial no Ocidente europeu. Antes dessa transição hipotética, os regimes matrimoniais em toda a Europa teriam sido relativamente homogéneos, e esse regime “medieval” teria sido mais semelhante ao do mundo não europeu que ao regime que marcou a experiência histórica do Ocidente na época moderna.
40Mais ambicioso foi o esquema elaborado por Pierre Chaunu com base nas hipóteses de Hajnal, colocando o regime matrimonial ocidental e o seu mecanismo homeostático no centro de um “sistema de civilização da cristandade latina”, baseado no controlo e na cerebralização das pulsões sexuais.11 Este sistema, que segundo Chaunu caracterizou a Europa ocidental durante a época moderna, teria surgido gradualmente nos últimos séculos da Idade Média em resposta ao desafio de um monde plein. Grande parte da cronologia de Chaunu baseia-se nas cautelosas hipóteses de Hajnal e em extrapolações a partir de algumas observações feitas na Península Ibérica.
41Com efeito, e segundo os dados apresentados por Russell, a Inglaterra de 1377 corresponderia a uma situação intermédia entre o matrimónio adolescente das sociedades não europeias e o matrimónio tardio do regime europeu ocidental, podendo o seu regime matrimonial ser considerado como um regime de transição em que a idade média de acesso das mulheres ao matrimónio seria de aproximadamente vinte anos.
42No final do século XVI e início do século XVII, alguns registos paroquiais de Castela indicam uma idade média de acesso das mulheres ao matrimónio que também era de vinte anos, mas no final do século XVIII essa idade média ter-se-ia elevado em Espanha até alcançar um nível “ocidental”. Isto indica, conclui Chaunu, que a passagem do regime de transição ao regime ocidental consolidado pode ter demorado de 150 a 200 anos, o que corresponde justamente ao intervalo entre o Poll tax inglês de 1377 e os primeiros registos paroquiais do século XVI, que nos indicam já um regime de matrimónio tardio.
43Disto podem ser extraídas, segundo Chaunu, duas conclusões. A primeira, mais frágil, situaria o início do processo de transição na Inglaterra durante o período de expansão do século XII, aproximadamente 200 anos antes da situação de “transição plena” observada em 1377. Anteriormente a este processo de transição, teria existido na Europa um regime de matrimónio adolescente. A segunda conclusão consiste em considerar que em Espanha o processo de transição teria sido o mesmo, embora com dois séculos de atraso.
44Estas teses implicam a assimilação da história demográfica da Península Ibérica à de toda a Europa ocidental, caracterizada (ainda que com ritmos diferentes) por um processo único. Chaunu interpreta-o como um aspecto fundamental da história da civilização cristã latina desde os últimos séculos da Idade Média. O sistema ter-se-ia desenvolvido e, em seguida, difundido em resposta ao desafio de uma densidade cada vez maior da população. As diferenças e variações entre as regiões da Europa ocidental não reflectiriam mais que avanços e retrocessos no desenvolvimento de um sistema único, cuja natureza englobante não deixa lugar para a existência de sistemas ou subsistemas regionalmente específicos. Toda a história demográfica da Europa ocidental poderia ser reduzida a uma sequência, também ela única, de regimes demográficos e de transições. O principal objectivo da investigação seria então o de estabelecer quando e porque, em determinada região, se terão verificado as transições: primeiro, entre o regime medieval e o new pattern que caracterizou o Antigo Regime; depois, a de que se ocupava a teoria da transição, e que separava o Antigo Regime demográfico da demografia contemporânea.
45Embora a segunda transição corresponda à fertility transition estudada pelo projecto de Prínceton, a adopção desta nova cronologia e de uma perspectiva de longue durée implica, na realidade, a elaboração de um novo esquema de transição. Numa primeira fase, caracterizada pelo equilíbrio homeostático de Antigo Regime, uma nupcialidade socialmente controlada regularia a fecundidade, adequando-a às oportunidades criadas pela mortalidade. Numa segunda fase, a nupcialidade deixaria de ser socialmente controlada. Esta fase poderia corresponder, por hipótese, à proto-industrialização, à urbanização ou à industrialização — em qualquer dos casos, à introdução de elementos alheios à dinâmica da sociedade camponesa. Numa terceira fase, e face à ameaça de uma fecundidade geral desregulada, ou desajustada a uma mortalidade que poderia até estar em declínio, a fecundidade matrimonial passaria a ser controlada directamente pelo casal. Um tal esquema poderia encaixar-se num modelo de desenvolvimento de longa duração, como o que foi proposto em tempos por Ansley Coale.
46Segundo Coale [1974], a história da população europeia poderia caracterizar-se em termos de uma sequência de fases. Após um período inicial durante a Idade Média, marcado pela ocupação do espaço, surgiam, tal como no esquema de Chaunu, o desafio de um mundo densamente povoado, e a resposta, que se traduziu no modelo homeostático malthusiano. Mais tarde, sob o impacte da proto-industrialização, da urbanização e da revolução industrial, esse sistema começaria a desagregar-se. Após um período de instabilidade, surgiria um novo regime demográfico, neomalthusiano, baseado no controlo directo da fecundidade pelo casal.
47Vale a pena, a respeito desse novo esquema, fazer três breves comentários. Em primeiro lugar, convém notar que neste esquema a variável-chave já não é a mortalidade, mas a fecundidade. Isto constitui uma diferença radical em relação ao esquema tradicional. Em segundo lugar, a fecundidade é socialmente controlada quer através da nupcialidade, quer através de valores que orientam o comportamento dos casais. Numa tal perspectiva, mesmo a racionalidade económica individual que se exprime numa limitação da fecundidade seria sempre uma forma de controlo social, mediada pelos valores interiorizados da racionalidade de mercado.
48O novo esquema levanta um conjunto de questões inexploradas acerca dos mecanismos sociológicos e psicológicos subjacentes à institucionalização de diferentes formas de controlo social da reprodução. A novidade, em relação às formulações tradicionais da transição demográfica, reside na introdução explícita de uma dimensão sociológica. Na formulação tradicional, era o indivíduo racional quem, liberto do peso e das ameaças de uma mortalidade do Antigo Regime, passava a controlar a sua própria reprodução adequando o número de filhos às suas próprias aspirações económicas. No âmbito da reformulação operada por estes modelos de inspiração malthusiana haveria que explicar o aparecimento e difusão de mecanismos institucionalizados de controlo social da reprodução, bem como a sua posterior substituição por outros mecanismos de controlo, igualmente sociais mas agora individualizados. E em terceiro lugar há que notar que o processo de transição que conduz ao modelo neomalthusiano será diferente consoante o ponto de partida, ou seja, consoante o modo como na fase anterior a fecundidade tiver sido socialmente controlada. É neste contexto que adquirem toda a sua importância os estudos que mostram a existência de variações significativas na maneira como a nupcialidade era socialmente organizada e controlada em diferentes regiões da Europa do Antigo Regime, e a demonstração por Wrigley e Schofield [1981: 236-248] de que o modelo malthusiano se aplicava efectivamente à Inglaterra pré-industrial, mas de que os modelos que caracterizavam a Suécia e a França, pelo menos entre 1750 e 1850, eram completamente diferentes. A revalorização da fecundidade e da nupcialidade como variáveis-chave do sistema demográfico europeu voltou a levantar a questão das variações regionais e do âmbito geográfico de aplicação do modelo de sistema demográfico do Antigo Regime.
49A pouca importância atribuída à questão das variações regionais nas leituras cronológicas do ensaio de Hajnal12 foi por sua vez posta em causa de maneira muito directa pelos trabalhos de Richard Smith [1979, 1983] sobre os modelos matrimoniais e as relações sociais na Inglaterra ao fim da Idade Média.
50As hipóteses de Hajnal sobre as origens do regime ocidental estavam baseadas principalmente, embora com muita cautela e repetidas advertências, em cálculos efectuados por Russell a partir de registos da capitação inglesa de 1377. A validade desses dados, no entanto, dependia de duas condições decisivas: que o sub-registo não tivesse sido superior a 5%; ou — no caso de ter excedido esse nível — que não tivesse tido incidência maior entre solteiros que entre casados. Se o nível tivesse efectivamente sido muito baixo, a eventual exclusão de um maior número de solteiros que de casados não alteraria em muito o quadro delineado por Russell. No entanto, se — como argumentaram vários especialistas13 — essa estimativa fosse excessivamente optimista, os efeitos de um mais que provável sub-registo selectivo comprometeriam a credibilidade de quaisquer conclusões baseadas nas proporções respectivas de solteiros e casados na população recenseada.
51Além disso, Russell tinha baseado os seus cálculos numa parte apenas dos registos utilizáveis e, na sua amostragem, estavam sobrerrepresentadas as localidades pequenas que, devido à emigração de solteiros, apresentavam percentagens elevadas de pessoas casadas. Depois de ter analisado os restantes registos disponíveis, Smith concluiu que, se fosse levada em conta a probabilidade do sub-registo de solteiros, a proporção de homens casados na população com mais de 15 anos seria perfeitamente compatível com a que corresponderia a um regime matrimonial de tipo ocidental.
52Esta conclusão foi confirmada pela análise das correcções efectuadas em 1382 ao registo da capitação de 1381, com a finalidade de acrescentar os criados e trabalhadores solteiros que tinham sido inicialmente omitidos, e por uma análise de duas listas de famílias de servos de 1269. Em ambos os casos, os números eram perfeitamente compatíveis com o modelo ocidental.
53Os resultados obtidos pareciam impor a conclusão de que o regime matrimonial inglês dos séculos XIII e XIV era semelhante, em relação a ambos os sexos, ao regime ocidental da época moderna. Mesmo admitindo que a sobremortalidade do século XIV pudesse ter produzido uma intensificação conjuntural da nupcialidade feminina, já não parecia possível falar, pelo menos no que respeita à Inglaterra, de um regime matrimonial medieval ou em qualquer transição ocorrida por volta do século XVI.
54Estes trabalhos referiam-se exclusivamente à Inglaterra e demonstravam que o esquema proposto por Chaunu e Coale a respeito da cronologia e da dinâmica do sistema demográfico do Ocidente europeu não podiam aplicar-se à história da população inglesa. O alcance destas conclusões negativas é, porém, bastante mais amplo. Como também referiu Richard Smith [1981, 1983], boa parte das especulações acerca de um hipotético regime matrimonial medieval teve suas origens em apenas duas fontes: os registos da capitação inglesa de 1377 (tal como foram interpretados por Russell) e o já mencionado Catasto florentino de 1427. Ambas as fontes pareciam indicar a existência, nestes dois extremos da Europa ocidental, de um regime de matrimónio feminino precoce (18-20 anos). Apesar de o casamento masculino na Toscana de 1427 ter sido tardio, a precocidade do feminino parecia justificar a ideia de um regime matrimonial medieval relativamente homogéneo14 e de âmbito europeu.
55Os demais dados fragmentários de que dispunha, e que se referiam a populações bem menores, reforçavam essa tese. Smith cita os casos de Montaillou (1290-1320), onde as mulheres se casavam com 17-18 anos; do vale do Ródano, no século XV, com uma idade ao casamento das mulheres de 20-21 anos; e de Prato, onde elas casavam aparentemente com 15-16 anos, em 1372, e com 19-21, em 1470-1480.
56A descoberta de que na Inglaterra o regime matrimonial tinha sido de tipo ocidental e “moderno” desde pelo menos o século XIII veio pôr em dúvida o carácter geral e europeu desse hipotético regime medieval. É verdade que a concentração geográfica dos restantes dados anteriores ao século XVI poderia não reflectir mais que as diferenças entre o Noroeste e o Sul da Europa no que respeita à natureza e à qualidade das fontes. Não seria assim totalmente impossível argumentar que o modelo matrimonial que transparece através das fontes mediterrânicas é na realidade um modelo europeu continental, e que nesse quadro a Inglaterra constitui uma excepção isolada. Enquanto não houver uma base mais segura para essa argumentação, contudo, seria melhor limitarmo-nos à interpretação das fontes disponíveis, reconhecendo que a sua concentração geográfica parece indicar a existência de um regime matrimonial específico na Europa meridional. Convém reconhecer, com efeito, que, sem o apoio dos dados ingleses, a hipótese de Hajnal quanto à cronologia dos regimes demográficos europeus perde credibilidade, e que seria imprudente continuar a sustentá-la com base apenas em informações cujo âmbito geográfico é tão limitado.
57Além disso, existem dados que indicam a existência, em plena Idade Moderna, de um regime matrimonial parecido com o “medieval” nessas mesmas áreas da Europa meridional. Alguns dados espanhóis dos séculos XVI e XVII, que parecem traduzir um padrão de matrimónio feminino precoce, tinham sido interpretados como vestígios de um regime matrimonial tardo-medieval [Chaunu, 1974: 325-352; Casey, 1977: 17]. O próprio Hajnal reconheceu que em finais do século XIX havia áreas em Espanha e na Itália cujo regime matrimonial se caracterizava pela precocidade do acesso das mulheres ao casamento. Mas a descoberta de uma surpreendente continuidade do regime matrimonial inglês permitiu uma nova leitura de tais “sobrevivências”, tornando possível um quadro alternativo de interpretação. Se de facto os dados anteriores ao século XVI correspondem não a um regime medieval de âmbito europeu, mas a um regime matrimonial específico da Europa meridional, a persistência desse regime nessas mesmas áreas deixaria de ser tão surpreendente.
58Para duas áreas da Europa ocidental onde existem informações anteriores ao século XVI, a Inglaterra e a área mediterrânica, está assim aparentemente comprovada a persistência de regimes matrimoniais regionalmente específicos desde os últimos séculos da Idade Média até o final da Idade Moderna. Isto, e não a cronologia de uma transição ilusória, deveria constituir o ponto de partida para investigações mais pormenorizadas em cada uma dessas áreas. A situação antes do século XVI nas restantes áreas da Europa ocidental — França, Alemanha, Escandinávia, etc., — continua a ser, em grande parte, uma incógnita. Mas se efectivamente as implicações das investigações de Richard Smith sobre a Inglaterra medieval forem as aqui sugeridas, também nessas áreas o estudo da nupcialidade deveria ser efectuado a partir de uma perspectiva comparada que procurasse explicações regionalmente específicas quer para os fenómenos de continuidade e mudança, quer para as eventuais diferenças que possam existir em relação aos dois modelos regionais já identificados.
IV
59Já por várias vezes foi feita referência ao modelo malthusiano segundo o qual uma nupcialidade socialmente controlada pode funcionar como variável reguladora do ritmo de crescimento da população, adequando-o ao ritmo de crescimento dos meios de subsistência. Antes de aprofundar as implicações do modelo, contudo, em particular no que diz respeito à estruturação do conceito de regime demográfico, convém recordar os pontos essenciais da análise original de Malthus e alguns estudos mais recentes que se situam no interior da mesma problemática.
60Thomas Robert Malthus (1766-1834) foi aluno brilhante de matemáticas em Cambridge e ocupou, no East India College, a primeira cátedra de Economia Política a ser criada nas Ilhas Britânicas. Em 1798, publicou, anonimamente, a primeira edição do seu Ensaio sobre o Princípio da População,15 no qual procurava rebater as teses optimistas de Condorcet e outros sobre a evolução futura da sociedade. Argumentou que na ausência de qualquer controlo ou “travão”, uma população tenderia, devido à natural “paixão entre os sexos”, a crescer de maneira exponencial. Mas as pessoas precisavam de alimentar-se, e a produção de alimentos dificilmente poderia aumentar senão numa progressão aritmética. Nestas condições, e uma vez que a longo prazo a população nunca poderia crescer a uma taxa superior à da produção de alimentos, o crescimento desmesurado da população desencadearia inevitavelmente mecanismos que limitariam esse mesmo crescimento. A questão essencial, segundo Malthus, era a de descobrir a natureza e o modo de funcionamento desses mecanismos. Na primeira edição do Ensaio, Malthus distingue entre dois tipos de mecanismo: “A previsão das dificuldades em se criar uma família funciona como um travão preventivo; e as dificuldades reais de alguns membros das classes inferiores, que os impedem de dar uma alimentação e atenção adequadas a seus filhos, funciona como um travão positivo.”16 Na segunda edição, publicada em 1803, e nas que se lhe seguiram,17 ele procurou especificar melhor a natureza desses mecanismos. No intervalo, estimulado pela discussão provocada pela primeira edição, estudara a bibliografia disponível e efectuara viagens de estudo à Escandinávia, à Rússia, à França e à Suíça. O resultado desses estudos foi um livro novo, de carácter muito mais sociológico, quase quatro vezes mais extenso que o ensaio original.
61Enquanto a primeira edição tivera como propósito demonstrar que o crescimento incontrolado da população levaria necessariamente à miséria, a segunda visava explicar o funcionamento do mecanismo do travão preventivo e a maneira como, na maior parte dos países da Europa, esse mecanismo tinha mantido um certo equilíbrio entre o crescimento da população e da produção alimentar. O livro apresenta-se como um estudo comparativo dos mecanismos que, nos diferentes países analisados, controlam o ritmo de crescimento da população, mantendo-o abaixo do seu nível “natural” e evitando o empobrecimento progressivo da população. A distinção entre o travão preventivo e o positivo foi mantida e tornou-se mais clara. Este passou a designar todos os mecanismos que limitam o crescimento da população através dos seus efeitos sobre a duração natural da vida humana: por outras palavras, através da mortalidade. Aquele passou a designar todos os mecanismos que limitam o crescimento da população através dos seus efeitos sobre o número de nascimentos: uma vez que o controlo directo da fecundidade através da contracepção era para Malthus inadmissível, trata-se aqui essencialmente da nupcialidade. Se as pessoas só se casassem quando estivessem em condições de assegurar o sustento da família, já não haveria o perigo de a população crescer mais rapidamente que os meios disponíveis para a sua subsistência; e a prudência dos indivíduos, a sua contenção moral, assegurariam o bem-estar colectivo. Muita coisa depende, obviamente, do nível de bem-estar considerado necessário. Malthus reconhece que o nível mínimo desse bem-estar é, para o trabalhador inglês, superior ao nível mínimo de subsistência, o que significa que o ritmo de crescimento da população nunca chega a pôr em perigo essa mesma subsistência e desencadear os mecanismos do travão positivo. Observa que na China, pelo contrário, as pessoas estão habituadas a viver com tão pouco que não existe essa margem de segurança, e descreve-a como uma população forçada, vivendo no limite mesmo da subsistência. Numa situação como a chinesa, argumenta, o único mecanismo capaz de limitar o crescimento da população é o travão positivo, constituído pelo conjunto de factores, desde a fome à guerra e às epidemias, que influem directamente sobre o nível da mortalidade.18
62O caso chinês serve, no esquema de Malthus, para sublinhar a contrario as características mais salientes do modelo inglês. Mas apesar de ele estar a escrever na Inglaterra sobre a Inglaterra, o problema do “princípio da população” tinha sido colocado desde uma perspectiva geral e a abordagem comparativa tornou-se progressivamente mais explícita de edição em edição de sua obra [Wrigley, 1984]. A Malthus interessavam os mecanismos específicos de diferenciação e agregação através dos quais comportamentos e decisões individuais acabavam por traduzir-se na dinâmica de uma população, determinando-a. Mesmo a contraposição entre os casos inglês e chinês, aparentemente tão esquemática, serve para sublinhar até que ponto a natureza dos mecanismos que regulam a dinâmica da população pode variar de sociedade para sociedade, reflectindo factores culturalmente específicos como a noção de nível mínimo de bem-estar.19
63Não creio que seja necessário insistir sobre a importância dessa problemática, que corresponde precisamente à conexão necessária entre os respectivos campos analíticos da microdemografia paroquial e da história macrodemográfica da população. Mas apesar de terem sido poucos os estudos de demografia histórica que tentaram reunir dados que correspondessem a essa problemática, ou que tentaram examinar o eventual fundamento empírico das teses malthusianas, o modelo de um sistema auto-regulado através do acesso ao matrimónio foi retomado, independentemente uns dos outros, por um certo número de estudiosos.
64Em 1953, Gerhard Mackenroth elaborou um modelo de uma sociedade camponesa onde o acesso ao matrimónio era determinado pela sucessão à direcção de uma exploração agrícola ou outra posição económica, mostrando como uma nupcialidade socialmente controlada podia funcionar como reguladora dos efeitos da fecundidade numa economia onde o número de posições económicas autónomas era limitado.20 Pouco depois Göran Ohlin analisou na sua tese de doutoramento de Harvard21 a relação entre os travões positivo e preventivo na dinâmica das populações, identificando a nupcialidade como variável reguladora fundamental.
65Em meados dos anos 60, como vimos, John Hajnal [1965] sublinhou a importância do atraso no acesso ao matrimónio como elemento determinante na dinâmica dos sistemas demográficos da Europa ocidental. Por essa mesma altura E. A. Wrigley, baseando-se nos estudos de ecologia animal de V. C. Wynne Edwards [1962] e numa atenta releitura de Malthus, formulava nas suas aulas em Cambridge, e depois em Population and History [1969], um modelo adequado às características de uma economia de mercado como a inglesa. Um pouco mais tarde Jacques Dupâquier [1972] formulava um modelo daquilo que chamava o “sistema demográfico do Antigo Regime”, que em muitos aspectos se poderá considerar como uma síntese dos modelos anteriores.22
66Apesar das suas análises comparativas Malthus estruturara o seu pensamento em função de polaridades simples (travão positivo versus travão preventivo; vício versus prudência, etc.) e, no essencial, delineara a oposição entre um sistema europeu (conceptualizado a partir da experiência inglesa) e um sistema não europeu (uma “situação chinesa” imaginada por oposição ao modelo inglês). Os autores que procuraram interpretar os novos resultados fornecidos pelas reconstituições de famílias — John Hajnal com o seu “modelo europeu de casamento”, Pierre Chaunu com o seu “sistema de civilização da cristandade latina”, Jacques Dupâquier com o seu “sistema demográfico do Antigo Regime”, entre outros — também pensaram, como vimos, em termos de um único modelo europeu. Apesar de incorporarem uma caracterização estilizada das relações sociais que serviam de contexto aos comportamentos demográficos, as suas formulações apontavam no sentido de um único esquema de evolução das populações europeias, em que cada região obedecia a uma cronologia própria, mas atravessava cada uma das fases mais ou menos da mesma maneira.
67Mas um esquema em que a variável-chave era a nupcialidade, a menos natural de todas as variáveis demográficas e a mais sujeita a interferências por parte do contexto económico e social, era um esquema que, como já se disse, deveria ter levantado desde o início a questão das variações regionais e da sua relação com as estruturas sociais. E foi de facto precisamente a partir de uma reflexão sobre Malthus que alguns historiadores-demógrafos de Cambridge começaram, em finais da década de 60, a elaborar, tendo em vista o estudo das relações entre os comportamentos demográficos e o sistema económico e social, o conceito de regime demográfico.
68Este conceito retoma as oposições malthusianas entre travão positivo e travão preventivo, entre situação chinesa e modelo europeu/inglês, reformulando-as nas noções de regime demográfico de alta pressão, cuja dinâmica seria determinada através da mortalidade por factores em grande parte fora do controlo social ou humano, e de regime demográfico de baixa pressão, cuja dinâmica seria, pelo contrário, socialmente controlada através do acesso ao matrimónio e à reprodução legítima. A diferença entre esta formulação e o esquema inicial de Malthus reside, essencialmente, no facto de aqui serem especificadas algumas das condições sociais tidas como necessárias para a definição dos mecanismos de controlo da dinâmica demográfica. Um regime demográfico é, essencialmente, uma forma determinada de controlo social da reprodução.
V
69As reformulações da problemática da transição demográfica, bem como o renovado interesse pela problemática malthusiana, foram provocados pelos resultados inesperados dos estudos de reconstituição de famílias, e em particular pela constatação dos efeitos potenciais de uma nupcialidade controlada sobre a fecundidade e, por conseguinte, sobre a dinâmica de uma população. Mas as fontes utilizadas pela microdemografia paroquial quase nunca permitem a análise dos mecanismos subjacentes ao controlo social da reprodução.
70É talvez significativo que as primeiras tentativas de enquadramento dos resultados dos estudos de reconstituição falassem em mecanismo homeostático, como que a tentar compensar com uma analogia biológica a falta de informações acerca dos mecanismos sociológicos subjacentes aos fenómenos analisados. Mas a utilização do conceito de regime demográfico, e em particular a distinção entre regimes de alta e baixa pressão, pressupõe que esses mecanismos possam ser especificados e, pelo menos em princípio, verificados empiricamente.
71Na formulação inicial malthusiana, a noção de travão positivo engloba, como vimos, o conjunto de factores e de mecanismos que limitam o crescimento da população através da sua influência sobre o nível da mortalidade. Para Malthus, esses mecanismos — fome, peste e guerra, com as suas variantes — seriam desencadeados directa ou indirectamente pela pressão permanente da população sobre os recursos, e essa pressão seria a consequência inevitável da disparidade entre os ritmos de crescimento da produção de alimentos e de uma população em que a fecundidade não fosse controlada. As formas assumidas pelo travão positivo poderiam variar de uma sociedade a outra. Na segunda edição do Ensaio, por exemplo, e nas posteriores Malthus compara a situação na China e no Japão, e conclui que a prática do infanticídio, na China, tem o seu equivalente na maior frequência das guerras e lutas intestinas que caracterizam a história do Japão.23
72No caso dos regimes demográficos de baixa pressão, controlados através do nível da fecundidade, esses mecanismos também podem variar de sociedade para sociedade. Na análise de Malthus, contudo, a especificação dos mecanismos permaneceu implícita, reflectindo a visão do mundo e da sociedade característica de um eclesiástico inglês de finais do século XVIII. Ao centro encontrava-se o indivíduo, confrontado com a escolha entre o vício (a contracepção, a prostituição e o sexo ilegítimo), a irresponsabilidade moral (casamento sem ter condições para criar uma família em condições decentes) e a prudência (a renúncia ao casamento — e, por conseguinte, à sexualidade — durante todo o período de poupança necessário para a criação das condições de viabilidade económica e independência de um novo agregado doméstico). O vício era obviamente inaceitável; a irresponsabilidade levaria a um regime de alta pressão, controlado pela mortalidade; e a prudência individual, acompanhada pela contenção moral, traduzir-se-ia num regime demográfico de baixa pressão, no qual a médio e longo prazo a fecundidade acompanharia o ritmo de crescimento dos meios de subsistência. Não há qualquer discussão a respeito dos mecanismos sociológicos através dos quais a prudência e contenção moral dos indivíduos se traduziriam na regulação da dinâmica da população. Foi só muito mais tarde, como veremos, no contexto das investigações dos historiadores-demógrafos de Cambridge, que se procedeu à sua especificação formal. Entre esses mecanismos, convém aqui ressaltar o papel determinante da existência de um mercado de trabalho assalariado e da figura do criado de lavoura, bem como de um sistema familiar que pressupõe a residência separada e a independência económica de cada novo agregado doméstico.
73O esquema de Mackenroth, pelo contrário, apesar da sua clara inspiração malthusiana, pressupõe um conjunto de mecanismos sociológicos completamente diverso. A noção-chave para Mackenroth são as posições económicas, que existiriam em número limitado. O casamento e a constituição de um novo agregado doméstico estariam condicionados ao acesso a uma posição económica. Numa economia camponesa — mas o mesmo seria o caso no contexto urbano, com uma estrutura artesanal — esse acesso ocorreria com a morte (ou retirada) de quem a ocupava anteriormente. Nestas condições, seria a mortalidade (ou o envelhecimento) da geração anterior a condicionar, em cada geração, o acesso dos indivíduos a uma posição económica, ao casamento e à chefia de um agregado doméstico. No caso de a nova geração ser mais numerosa que a anterior, toda a população excedente ficaria excluída do processo de reprodução, devendo escolher entre um celibato subalterno in loco e a emigração. Os mecanismos sociológicos subjacentes a este esquema derivam todos do papel estruturante da posição económica que se transmite de geração em geração, subordinando a essa transmissão/reprodução o acesso dos indivíduos de cada geração à reprodução legítima. A família e o agregado doméstico passam a ser a tradução e projecção da posição económica (casa camponesa, oficina artesanal) no plano das relações sociais.
74O modelo de “sistema demográfico do Antigo Regime”, proposto por Jacques Dupâquier, retoma o essencial do esquema de Mackenroth, interpretando-o, à luz das análises de Hajnal, em chave malthusiana. No esquema de Mackenroth a subordinação da reprodução dos indivíduos à transmissão/reprodução das posições económicas impunha um limite ao número de casais que se podia formar (e reproduzir) em cada geração. O esquema de Dupâquier é semelhante e baseia-se na especificação das condições em que um casamento se pode realizar. Por um lado, temos o mecanismo típico de uma economia camponesa fechada, já descrito por Mackenroth. Por outro, temos a ideia de que os jovens, enquanto esperassem uma oportunidade para casar, teriam de trabalhar como criados de lavoura em outras explorações. A proporção dos membros de cada geração que teria oportunidade de casar, e a idade em que o poderiam fazer, dependeria das posições económicas (que Dupâquier chama établissements) disponíveis. Um aumento da mortalidade levaria a um aumento no número de casamentos e a uma redução na idade a que os jovens pudessem estabelecer uma nova família. Estes dois aspectos da nupcialidade teriam, por sua vez, repercussões sobre a fecundidade, controlando deste modo o ritmo de crescimento da população. Tal como no modelo de Mackenroth, o contexto institucional de uma economia camponesa, em que a reprodução/transmissão das posições económicas determina o acesso dos indivíduos à reprodução legítima, é de importância fundamental na estruturação do regime demográfico. De igual importância é a estrutura da autoridade no seio da família camponesa, em particular no que diz respeito às relações entre pais e filhos. Em ambos os casos (e ao contrário do que se encontra implícito no esquema original de Malthus), é a mortalidade que, através dos seus efeitos sobre a nupcialidade, regula o nível da fecundidade. Apesar de se tratar de um regime de baixa pressão em que o ritmo de crescimento da população é regulado através da nupcialidade e da fecundidade, o contexto institucional de uma economia camponesa subordina ambas as variáveis à mortalidade. No modelo original de Malthus, pelo contrário, a fecundidade era regulada pela nupcialidade sem que esta dependesse da mortalidade. O papel crucial de variável reguladora era, nesse modelo, desempenhado pelas expectativas dos jovens casais quanto às suas possibilidades de poderem assegurar um nível mínimo de bem-estar e de independência para o novo agregado doméstico — por outras palavras, pelo andamento da conjuntura económica — sem que tivessem qualquer importância as relações e a estrutura da autoridade no interior de cada família.
75Cada um desses esquemas de análise implica que na caracterização de um regime demográfico seja levado em conta um conjunto diferente de elementos institucionais, o que, por sua vez, se traduz em exigências diferenciadas no que diz respeito às informações necessárias para o seu estudo e às fontes que as podem fornecer.
76O esquema Mackenroth/Dupâquier de uma economia camponesa articula-se em torno da dinâmica da sucessão à direcção de uma posição económica ou établissement. A sua verificação implica que se saiba até que ponto existe uma relação entre a mortalidade da geração anterior e a nupcialidade (e, consequentemente, a fecundidade) da nova geração. Uma vez que se trata das relações entre gerações diferentes de uma mesma família, a verificação poderá basear-se nas informações que é possível obter a partir da análise nominativa dos registos paroquiais, eventualmente completados por outras fontes de âmbito local.
77O esquema malthusiano, pelo contrário, baseia-se em instituições e relações sociais de carácter muito menos localizado. O mercado de trabalho assalariado transcende o âmbito de determinada comunidade ou paróquia. A instituição do criado de lavoura, característica da sociedade inglesa pré-industrial, implica a circulação de jovens entre explorações agrícolas durante os anos que antecedem o casamento. E sabe-se que a sociedade inglesa era caracterizada por uma mobilidade da população muito considerável, com frequentes deslocações de curto alcance [Laslett, 1977a]. Já houve, de facto, quem argumentasse que para a análise de muitos aspectos da Inglaterra pré-industrial o nível apropriado não é nem a comunidade nem a região, mas a sociedade nacional [Macfarlane, 1981]. Mesmo sem ir a tais extremos, cumpre reconhecer que a caracterização de um regime demográfico nem sempre pode ser feita apenas no contexto de uma comunidade, ou através de registos paroquiais, mas pode exigir o recurso a fontes demográficas de âmbito mais vasto e a análises de tipo agregativo.
78A problemática dos regimes demográficos surgiu como consequência indirecta dos resultados dos estudos de reconstituição de famílias, que indicaram o papel de variável reguladora que poderia ser desempenhado pela nupcialidade; mas a sua formulação, tal como toda a problemática malthusiana, transcende o âmbito restrito desses estudos e pressupõe um leque de informações muito mais amplo. Trata-se, com efeito, de relacionar comportamentos demográficos de indivíduos com as suas consequências em termos do funcionamento do sistema demográfico e em termos da dinâmica da população. A cada nível há um enquadramento socioeconómico e sociocultural que tem de ser levado em conta, o que exige o recurso a outro tipo de fontes que não os puramente demográficos. A problemática dos regimes demográficos é de natureza intrinsecamente sociológica e pareceria à partida pouco permeável aos métodos microanalíticos.
79De facto, uma primeira aproximação ao problema é possível sem o recurso a tais métodos. Pode-se sempre, através do estudo de variações no espaço e/ou no tempo, formular hipóteses a respeito da existência de relações de causalidade entre duas ou mais variáveis.24 Trata-se, no essencial, do mesmo tipo de metodologia utilizada — com outras fontes — no âmbito do projecto de Prínceton. Assim, se constatarmos que a idade média ao casamento é mais baixa em zonas onde se desenvolveram formas de produção proto-industriais, podemos avançar a hipótese da existência de um nexo causal entre ambas as variáveis. Mas uma demonstração satisfatória da existência de uma relação causal passaria por uma comparação entre casais “proto-industriais” e não “proto-industriais” — o que, face à inexistência de estatísticas sobre a nupcialidade segundo o tipo de actividade económica,25 implicaria necessariamente o recurso ao cruzamento nominativo e a técnicas que permitissem a identificação dos indivíduos pertencentes a um e outro grupo. Sem o recurso a essas técnicas, as hipóteses seriam sempre provisórias e sujeitas ao risco de incorrerem na chamada “falácia ecológica”.
80Neste primeiro nível, tratar-se-ia de uma operação relativamente simples: através do cruzamento nominativo entre os registos paroquiais e as folhas nominativas de um recenseamento (ou documento análogo), procurar-se-ia identificar os indivíduos registados em ambas as fontes. A população identificada (descartados todos os casos ambíguos) seria então decomposta em subgrupos homogéneos segundo determinado atributo (a ocupação, neste exemplo). Reconstituir-se-iam os comportamentos demográficos de cada subpopulação, e procurar-se-ia determinar se há diferenças estatisticamente significativas entre os comportamentos dos diversos grupos. No essencial, trata-se apenas de completar, mediante o recurso a outras fontes nominativas, as informações que podem ser reconstituídas a partir dos livros de baptismos, casamentos e óbitos. A escala da investigação seria determinada pela disponibilidade de fontes e pelo custo, em tempo e dinheiro, do tratamento da informação.
81São muitas as informações adicionais que em princípio podem ser obtidas através de procedimentos deste tipo e, se as fontes apropriadas estiverem disponíveis, torna-se possível constituir um ficheiro bastante completo de dados individuais. Nem sempre, porém, um tal ficheiro permitirá avançar muito na direcção atrás apontada de contextualização dos comportamentos demográficos de indivíduos e do sistema demográfico como um todo. A possibilidade de o fazer, ou não, dependerá em parte do tipo de sociedade que está a ser objecto de investigação e da importância que nela tiverem, para a explicação dos comportamentos sociais, as relações interpessoais. E aqui a questão da escala volta a colocar-se, mas de outra maneira.
82De facto, a problemática dos regimes demográficos, construída em torno de noções processuais como sistema, funcionamento e reprodução, exige uma abordagem de tipo contextual. E visto que os comportamentos demográficos dizem respeito à família e à esfera mais imediata da existência social de um indivíduo, uma abordagem contextual dos regimes demográficos passa (sem se esgotar nela) por uma investigação de tipo micro-histórico.
83Ao contrário de estudos baseados em grandes categorias sociais e agregações de pessoas (classes, categorias socioprofissionais, etc.), nas quais os indivíduos são intercambiáveis do ponto de vista analítico, uma abordagem micro-histórica considera o indivíduo como ponto tendencialmente único de intersecção de determinações múltiplas. Representa uma opção metodológica por uma escala de investigação que permita localizar o actor (ou os actores) no contexto das relações sociais consideradas significativas para a explicação ou compreensão do seu comportamento. As afinidades com a antropologia derivam da importância atribuída a alguns aspectos que parecem ser comuns às sociedades estudadas pelos antropólogos e às sociedades europeias do Antigo Regime. Em ambos os tipos de sociedade o conteúdo de uma relação social é, pelo menos em parte, determinado pela identidade social dos indivíduos que nela intervêm, enquanto nas sociedades industriais contemporâneas, pelo contrário, a maior parte das relações sociais pode ser definida sem qualquer referência à identidade dos intervenientes. Nestas condições pode considerar-se os indivíduos que intervêm em determinado tipo de relação social como se fossem intercambiáveis entre si. Esta característica das sociedades contemporâneas, que torna possível a generalização a partir de uma amostragem e está na base da noção de “representatividade”, dá origem a muitas das metodologias usadas em estudos de sociologia e ciência política. Nas sociedades de interconhecimento, pelo contrário, onde as relações sociais são pluridimensionais, cada um dos indivíduos que constituem uma relação social encontra-se inserido numa constelação diferente de relações sociais interindividuais e é, por isso, um exemplar sociológico único. Nestas circunstâncias os indivíduos — mesmo os que pertencem a uma mesma categoria social — não são, de um ponto de vista analítico, intercambiáveis entre si. Muitas vezes torna-se mesmo impossível imaginar o que poderia vir a ser uma “amostragem representativa”. Nestas condições, o objectivo da investigação micro-histórica é o de reconstituir, na medida do possível, a teia de relações sociais que define a identidade sociológica de cada indivíduo. Como sublinharam Carlo Ginzburg e Carlo Poni num artigo programático,26 o instrumento de que se serve o historiador para seguir todos os fios desta teia, fragmentados e dispersos numa multiplicidade de fontes, são as referências nominativas. Juntando todas as referências que dizem respeito a um mesmo indivíduo, o historiador pode reconstituir a sua biografia e identidade sociológica, que são o ponto de partida para a análise do sistema de relações entre pessoas e entre grupos [Carvalho, 1991].
84A análise micro-histórica baseia-se, tal como a reconstituição de famílias, no cruzamento nominativo. Mas o cruzamento nominativo efectuado no âmbito de uma investigação micro-histórica é bem mais complexo que no caso da reconstituição de famílias. A razão é simples: os registos paroquiais têm um formato regular, contêm para cada indivíduo mais ou menos as mesmas informações e dizem respeito a acontecimentos que em geral sucedem poucas vezes — no caso do baptismo e do enterro, uma só vez — na vida de cada indivíduo. Isto permite a formalização de regras para a identificação de indivíduos e a sua tradução em programas para computador [Wrigley e Schofield, 1972]. No caso mais geral, pelo contrário, estes controlos não existem e, ao mesmo tempo, o leque de informações potencialmente disponíveis para cada indivíduo é muito mais amplo.27
VI
85O modelo inglês e o esquema malthusiano que dele deriva constituem, como já se acenou, um caso à parte em relação a este problema. Ao contrário dos modelos que reflectem a lógica e as instituições e relações sociais características de uma sociedade camponesa baseada na exploração familiar, o modelo inglês reflecte a lógica individualista de uma economia fundada no trabalho assalariado. Nos modelos baseados numa economia camponesa, é no âmbito da família que se determinam os comportamentos demográficos individuais que, agregados, irão configurar a dinâmica da população; no modelo inglês, os comportamentos individuais determinam-se à margem das relações familiares, no âmbito de um mercado de trabalho impessoal que transcende a família, a casa e o lugar de residência. Não é nem na reconstituição de famílias, nem nos registos paroquiais nos quais esta se baseia que o historiador poderá procurar as informações necessárias à especificação pormenorizada do modelo e à verificação das hipóteses que dele derivam. Será talvez por isso, em parte, que no âmbito da demografia histórica os primeiros modelos a serem desenvolvidos foram justamente aqueles que podiam ser formalizados a partir das informações contidas nos registos paroquiais, e que a especificação e verificação do modelo malthusiano teve de aguardar o desenvolvimento de novas técnicas de análise que viabilizassem outro tipo de fonte.
86Como já se referiu, na segunda metade dos anos 60 o historiador inglês E. A. Wrigley começou a desenvolver o conceito de regime demográfico de baixa pressão e a estudar a sua aplicação na análise da dinâmica da população inglesa. Já anteriormente, nos seus estudos pioneiros sobre Colyton [1966, 1968, 1972], Wrigley se defrontara com os problemas colocados pelas fontes demográficas inglesas. Apesar de terem início na primeira metade do século XVI, os registos paroquiais ingleses eram singularmente lacónicos, e forneciam poucas indicações quanto à identidade dos intervenientes. Em muitíssimos casos de homonímia, não era possível determinar qual dos dois (ou mais) indivíduos com o mesmo nome era o interveniente em determinada ocasião, o que levava à necessidade de excluir da análise uma parte significativa dos eventos demográficos registados na fonte. Acresce que a omissão sistemática do nome de solteira das mulheres, mesmo nos registos de casamento, aumentava o risco de confusão, ao ponto de não ser possível, salvo em pouquíssimos casos excepcionais, adaptar às fontes inglesas as técnicas de reconstituição de famílias desenvolvidas em França com base em informações muito mais completas.
87Convencidos de que no contexto inglês o progresso da demografia histórica passaria pelo desenvolvimento de metodologias alternativas, capazes de tirar proveito da boa qualidade de muitos registos paroquiais ingleses,28 Wrigley e seu colega Roger Schofield conceberam, nos anos 70, um projecto ambicioso de reconstrução agregativa da dinâmica da população inglesa entre a primeira metade do século XVI e a segunda metade do século XIX.29
88Seguindo na esteira de Rickman, que na primeira metade do século XIX analisara os totais anuais de baptismos e óbitos de um conjunto de paróquias numa tentativa de reconstruir a dinâmica da população inglesa,30 Wrigley e Schofield propuseram-se tentar a reconstrução do movimento da população inglesa entre o século XVI e o século XIX através da agregação das séries de baptismos, casamentos e óbitos de uma amostragem de paróquias.
89Um conjunto de 404 paróquias foi seleccionado inicialmente em função da qualidade do registo, e o trabalho de levantamento foi efectuado por voluntários interessados na história dos seus próprios lugares de residência.31 Tendo em conta a distribuição regional, a dimensão e as características ecológicas e socioeconómicas de cada paróquia, essas séries serviram em seguida como base para o cálculo de três séries nacionais, correspondentes aos totais mensais de nascimentos, casamentos e óbitos ocorridos em todo o país entre 1541 e 1871.
90Em muitos países, hoje em dia (e em relação ao passado recente), os demógrafos dispõem de recenseamentos relativamente completos e fiáveis, mas os dados sobre o movimento da população são inexistentes ou de má qualidade. Isto levou a que se desenvolvessem técnicas de análise demográfica que tentam reconstruir alguns aspectos do movimento da população no passado a partir da sua estrutura no momento em que foi realizado o recenseamento.32 Os historiadores-demógrafos, pelo contrário, dispõem muitas vezes de dados relativamente fiáveis sobre o movimento da população (nem que seja apenas à escala de uma paróquia), mas raramente podem relacionar esses dados com a população a que dizem respeito. Embora existam técnicas que permitem retirar algumas conclusões limitadas a partir de dados sobre o movimento da população [Livi Bacci, 1977], essas técnicas têm um alcance bastante reduzido, sobretudo quando se trata de populações pequenas, onde nem sempre é possível distinguir entre flutuações aleatórias e os efeitos de variações nos comportamentos demográficos. Mesmo a técnica de reconstituição de famílias, que, como vimos, visa proporcionar dados sobre os eventos demográficos e sobre a população a que dizem respeito, não consegue ultrapassar as limitações devidas à escala reduzida em que este tipo de exercício é possível.
91Para contornar estas dificuldades, Wrigley e Schofield recorreram à técnica de retroprojecção, inicialmente desenvolvida por Ronald Lee, para reconstituir a estrutura da população inglesa ao longo do período para o qual não havia recenseamentos.33 Dispondo, assim, de dados reconstruídos sobre a estrutura e o movimento de toda a população inglesa ao longo do período 1541-1871, puderam desenvolver, para essa população, um conjunto de análises demográficas comparável ao que os demógrafos franceses tinham efectuado para um período menos extenso ao nível de paróquias individuais.
92Na sua obra, Wrigley e Schofield procuraram detectar as variáveis que determinaram a dinâmica da população inglesa ao longo desse período. Vistas as hipóteses avançadas pelos historiadores-demógrafos franceses a respeito da eventual existência, à escala europeia, de um “sistema demográfico do Antigo Regime”, em que o nível da fecundidade reflectia o da nupcialidade, que por sua vez era determinada pela evolução da mortalidade, resolveram submeter esse modelo homeostático a uma avaliação estatística. Verificaram que, tal como previsto pelo modelo, a uma elevação da mortalidade para cima do seu nível normal seguiam-se aumentos da nupcialidade e da natalidade. Mas constataram igualmente que a magnitude desses movimentos era muito inferior ao que o modelo, ou alguns exemplos locais franceses frequentemente citados, poderia levar a supor.
93Uma análise das flutuações conjuntas da mortalidade e da nupcialidade em toda a Inglaterra entre meados do século XVI e a primeira metade do século XIX mostrou que um aumento hipotético de 100% no nível da mortalidade durante um ano reduziria a nupcialidade em 10% nesse mesmo ano. Durante os quatro anos seguintes, a nupcialidade encontrar-se-ia, em média, 10,3% acima do seu nível normal. O efeito cumulativo destes movimentos, durante cinco anos, traduzir-se-ia num aumento bastante significativo de 31,3% no nível da nupcialidade. No entanto, e visto que cerca de 80% dessa variação se pode atribuir ao recasamento de viúvos e viúvas, o efeito cumulativo de um aumento de 100% no nível da mortalidade sobre os matrimónios em que ambos os contraentes eram solteiros seria de 6,1% em cinco anos, ou pouco mais de 1% ao ano.
94O movimento da natalidade, nas mesmas circunstâncias, correspondeu igualmente às previsões do modelo, mas de modo muito atenuado. No ano em que se verificasse a sobremortalidade hipotética, e no ano seguinte, a natalidade situar-se-ia 18,3% e 12,4% abaixo de seu nível normal devido, respectivamente, aos nascimentos e às concepções não verificadas no ano da sobremortalidade. No terceiro ano viria a recuperação esperada, mas esta seria demasiado fraca (5% acima do nível normal) para que pudesse compensar as perdas dos anos anteriores.
95Convém esclarecer, contudo, que estes cálculos se baseiam nas flutuações conjuntas — grandes ou pequenas — observadas ao longo de todo o período, e deve recordar-se que as taxas de mortalidade, nupcialidade e natalidade consideradas dizem respeito à população de toda a Inglaterra. Em estudos de âmbito local não seria possível distinguir as flutuações menos violentas das variações aleatórias, e por isso estes resultados não são directamente comparáveis com os produzidos por estudos locais. Isto poderá explicar uma parte da diferença entre estes dados e os que fizeram com que se falasse de baby booms capazes de repor os efectivos perdidos durante crises de mortalidade. Mais importante é o facto de que a população inglesa, ao contrário de algumas populações continentais, não parece ter estado submetida a repetidas crises de subsistência.34 Em geral, os períodos de sobremortalidade parecem ter sido mais consequência de epidemias que de uma pressão excessiva da população sobre os recursos disponíveis. De qualquer modo, e mesmo que na história da população inglesa alguns elementos do modelo homeostático possam ter sido detectados estatisticamente, parece evidente que não existia qualquer mecanismo auto-regulador do sistema demográfico. Os movimentos compensatórios de curto prazo da nupcialidade e da natalidade foram insuficientes não só para neutralizar os efeitos directos da sobremortalidade, como até para compensar os efeitos indirectos da mortalidade sobre a natalidade durante o período de crise [Wrigley e Schofield, 1981, cap. 9].
96Estes resultados indicavam que a dinâmica da população inglesa teria de ser explicada através de outros factores. A conclusão a que chegaram Wrigley e Schofield é de que a variável fundamental no regime demográfico inglês era a nupcialidade e que esta funcionava como reguladora da fecundidade. As flutuações de ambas variáveis estavam relacionadas não com a mortalidade (como o modelo levaria a supor), mas com a dinâmica dos salários reais.35 Com efeito, havia uma correspondência notável, considerando período compreendido entre o século XVI e o início do século XIX, entre o nível da fecundidade geral e um índice de salários reais; mas o nível da fecundidade matrimonial permaneceu relativamente estável durante todo o período, e as flutuações no nível da fecundidade geral podem ser atribuídas às variações da nupcialidade. Estas, por sua vez, pareciam reflectir o nível dos salários reais, confirmando a intuição de Malthus a respeito da importância do travão preventivo na história da população inglesa. Com efeito, se os jovens, prudentemente, só se arriscassem a casar e a fundar uma nova família quando dispusessem de um património suficiente para garantir a independência do novo agregado doméstico, a nupcialidade reflectiria, de maneira bastante directa, o nível dos salários reais, e teria por sua vez, na ausência de qualquer forma de contracepção, uma repercussão directa sobre o nível da fecundidade. Na medida em que qualquer tendência para o crescimento desmesurado da população implicaria um agravamento da situação económica dos jovens trabalhadores, com uma redução no nível dos salários reais, essa pressão demográfica acabaria por provocar um abrandamento no crescimento populacional até que o nível de vida dos trabalhadores tivesse melhorado o suficiente para os induzir a aceitar com maior facilidade os riscos do casamento.
97Estes resultados suscitaram, obviamente, a questão de se saber até que ponto o modelo inglês poderia ter uma aplicação mais geral. Os únicos países para os quais havia dados que permitissem comparações válidas eram a Suécia e a França e, mesmo assim, apenas para o período 1750-1850. Neste período as variações da taxa de crescimento da população inglesa deveram — se, quase exclusivamente, a variações na fecundidade, que, por sua vez, derivaram de variações na nupcialidade. O papel da mortalidade na dinâmica da população inglesa foi bastante reduzido. Na Suécia, a situação era diametralmente oposta: o factor que permitiu o crescimento da população foi o declínio da mortalidade, enquanto a fecundidade se manteve relativamente estável. Em França, por último, aparece uma terceira dinâmica: o crescimento da população foi reduzido durante todo o período em consequência de dois movimentos contraditórios: a mortalidade decresceu progressiva e marcadamente entre 1750 e 1850 mas ao mesmo tempo a fecundidade sofreu um declínio paralelo — devido em parte a uma queda da nupcialidade e em parte ao início do controlo generalizado da fecundidade das mulheres casadas. A taxa de crescimento da população manteve-se abaixo dos 0,25% por ano. Durante este período, pelo menos, a história demográfica do Noroeste europeu não pode ser interpretada à luz de um único modelo [Wrigley e Schofield, 1981: 236-248].
98Tornou-se necessário reavaliar, por conseguinte, a maneira como o regime matrimonial da Europa ocidental tinha vindo a ser identificado com um “sistema demográfico do Antigo Regime”. Entre 1750 e 1850, o regime matrimonial era sensivelmente o mesmo nos três países, mas cada um possuía um sistema demográfico com uma dinâmica própria. Nem no caso inglês nem no sueco era possível conciliar a dinâmica observada com as previsões do modelo homeostático, e mesmo o caso francês só poderia ser conciliado com esse modelo na medida em que fosse possível atribuir o declínio da fecundidade exclusivamente a um retrocesso paralelo da nupcialidade e não, como parece ter sido o caso, à combinação do retrocesso da nupcialidade com a difusão de práticas de controlo da fecundidade matrimonial.36
99Como já foi referido, as características do modelo inglês implicam um enquadramento institucional que transcende a escala familiar e paroquial da tradição microdemográfica. Segundo a lógica do mercado, o lugar de produção do sentido da acção social é o indivíduo, e os níveis intermédios de integração, que se situam entre o indivíduo e a nação — a família, a comunidade —, não desempenham um papel significativo na determinação da acção social. É através do mercado impessoal que se conciliam as estratégias dos actores e que as motivações individuais se agregam em comportamentos colectivos,37 pelo que a análise do enquadramento institucional dos comportamentos demográficos tem, neste caso, de ser efectuada a uma escala, e com fontes, que correspondam à natureza das determinações sociais a que se encontram sujeitos. Este facto tem algumas implicações mais gerais.
100A análise de Wrigley e Schofield permitiu, ao nível nacional, a identificação dos mecanismos demográficos subjacentes à dinâmica da população inglesa e a formulação de hipóteses quanto ao seu fundamento socioeconómico e sociocultural. Nem uma nem a outra teriam sido possíveis se a investigação tivesse permanecido restrita à escala microdemográfica paroquial. Embora os dados de base tenham sido as 404 séries paroquiais, e se bem que os autores tenham recorrido às 13 reconstituições de família inglesas então disponíveis para a especificação dos termos da relação entre fecundidade geral, fecundidade matrimonial e nupcialidade, a sua problemática e as hipóteses correspondentes exigiam um nível de análise mais geral e um âmbito de aplicação muito mais vasto que o paroquial. Essa foi uma das razões por que tiveram de reconstruir a sua imponente série de “censos” nacionais.
101A análise comparativa que desenvolveram, por outro lado, levou à identificação de diversos modelos demográficos; o inglês, de baixa pressão, em que a nupcialidade varia segundo o nível de vida; o sueco, em que a dinâmica da população, nos séculos XVIII e XIX, resultou directamente das variações da mortalidade, sem qualquer intervenção da nupcialidade ou da fecundidade; e o modelo francês, regulado através da nupcialidade, mas de pressão relativamente alta, em que a nupcialidade, e a partir de finais do século XVIII a fecundidade matrimonial, reagem a flutuações da mortalidade. A explicação destas diferenças irá exigir por parte da demografia histórica um grau mais significativo de abertura interdisciplinar. E apesar do facto inegável que não teria sido possível detectar a existência e medir a importância de cada um destes diversos modelos trabalhando no quadro limitado da microdemografia paroquial, também não será possível estabelecer a natureza das relações entre os mecanismos demográficos e os seus fundamentos socioeconómicos e socioculturais sem mudar o nível de análise e efectuar investigações intensivas e aprofundadas baseadas no cruzamento nominativo entre registos paroquiais e outras fontes de âmbito local.
102Foi necessário, por outras palavras, que se efectuasse uma investigação aprofundada ao nível de uma população nacional (em cujo âmbito, uma vez que os censos não existiam, havia que “inventá-los”) para tirar a demografia histórica do marasmo a que tinha levado a repetição mais ou menos rotineira e estereotipada do modelo da monografia paroquial. Mas, uma vez realizada essa mudança de perspectiva, é a própria macrodemografia histórica dos modelos quantificados e dos regimes demográficos que torna a propor aos historiadores-demógrafos uma maneira muito mais fecunda e interessante de utilizar a documentação de âmbito local, que continua e continuará a ser, sobretudo através das análises nominativas intensivas que se tornam sempre mais frequentes com o recurso à informática, o objecto privilegiado das suas interrogações.
VII
103A análise comparativa levada a cabo por Wrigley e Schofield, e a caracterização dos diferentes regimes demográficos que lhes foi possível identificar, suscita ainda duas questões complementares. A primeira decorre do facto de nos diversos regimes demográficos a articulação interna das variáveis demográficas — mortalidade, fecundidade, nupcialidade — não ser a mesma.38 Este resultado sublinha a importância da análise das variações no espaço, e dos diversos modelos regionais, por contraposição à tradicional perspectiva evolucionista que nos fala de uma ou mais transições e tenta reduzir as variações regionais à mera diferenciação interna de um processo único de âmbito continental.
104Mas talvez seja mais importante uma segunda questão. Essa mesma análise comparativa conduz à constatação da insuficiência de uma análise puramente interna dos regimes demográficos, cujo funcionamento enquanto sistema de variáveis demográficas não se pode determinar senão em função da articulação de cada uma com o respectivo contexto socioeconómico e sociocultural. Na Inglaterra, essa articulação passa pelo mercado e pela existência de uma determinada matriz sociocultural dos comportamentos demográficos, que faz com que a mulher seja co-responsável com o marido na criação das condições de independência do novo agregado doméstico que será instituído no momento do matrimónio [Macfarlane, 1986]. Noutras partes da Europa passará pelas práticas sucessórias ou pelo papel do agregado doméstico enquanto unidade de trabalho e de produção. Sem uma consideração deste tipo de variável, a lógica de funcionamento de qualquer regime demográfico continuará sendo inacessível. A constatação da diversidade no espaço faz da explicação dessas diferenças uma tarefa prioritária. Mas para a empreender seria preciso abrir o campo de análise, permitindo e fomentando a penetração interdisciplinar e incluindo na análise instituições e relações que tradicionalmente têm sido objecto de outras ciências sociais. E a mais importante dessas instituições, justamente por constituir em todas as sociedades o contexto imediato dos comportamentos demográficos, é a família. Por outras palavras, a necessária contextualização dos fenómenos demográficos passa pela caracterização e análise do sistema familiar.
105Como vimos no primeiro capítulo, a história da família na Europa pode ser caracterizada em termos de três perspectivas principais de análise: uma, associada ao nome de Philippe Ariès, que privilegia o estudo das representações da família e da vida familiar [Ariès, 1960]; outra, associada ao Cambridge Group for the History of Population and Social Structure e à figura de Peter Laslett, que tem vindo a dedicar-se à análise estatística comparada das estruturas familiares; e uma terceira, que manifesta uma grande abertura às problemáticas da antropologia social, mas que é dificilmente caracterizável em termos de “escola”, e que procura desenvolver uma análise contextual da família e das suas funções no processo de reprodução social.39 Destas três perspectivas, são a segunda e a terceira que mais têm a ver com a problemática dos regimes demográficos e dos sistemas familiares.
106O estudo comparativo das estruturas familiares está intimamente associado à trajectória intelectual de Peter Laslett e do Cambridge Group for the History of Population and Social Structure, o centro de investigação que criou, juntamente com E. A. Wrigley, em 1964.
107Ao contrário do que se poderá pensar com base nos seus trabalhos mais recentes, Laslett não é, de formação, nem historiador social nem demógrafo. Professor de Teoria Política em Cambridge, Laslett especializara-se no pensamento político inglês do século XVII e em especial no pensamento de John Locke. Como é sabido, o primeiro dos Two Treatises on Government [1690] tem como ponto de partida uma polémica contra as ideias de Robert Filmer, que, em Patriarcha, or the Natural Right of Kings [1680], postulara a existência de uma mesma relação de autoridade patriarcal entre Deus e os homens, entre o rei e os seus súbditos e entre um pai e os seus filhos.
108Ao examinar, na década de 60, umas listas de habitantes elaboradas no século XVII pelos párocos das aldeias de Clayworth e Cogenhoe, Laslett resolveu tentar esclarecer se as ideias de Filmer acerca da autoridade patriarcal poderiam ter uma origem ao nível da estrutura social, e derivar da prevalência, na Inglaterra rural da época, de uma estrutura familiar patriarcal. Contudo, ao analisar o conteúdo das listas [Laslett, 1977a], constatou com alguma surpresa que os agregados domésticos na Inglaterra do século XVII eram, ao contrário do que frequentemente se imaginava, de dimensão reduzida e estrutura simples.
109Estes resultados foram confirmados pela análise de outros recenseamentos locais ingleses, e em 1969 foi organizado em Cambridge um colóquio com a dupla finalidade de esclarecer até que ponto esse modelo inglês teria um âmbito mais geral e, simultaneamente, de contestar os que imaginavam que a estrutura simples e dimensão reduzida da família contemporânea tivesse resultado da Revolução Industrial e do processo de “modernização”.40
110Os dados apresentados no colóquio sugeriam que a família simples, ou nuclear, estava bastante mais difundida na Europa pré-industrial do que se costumava pensar, o que parecia justificar que se adoptassem as características mais específicas do modelo inglês como elementos de definição da “identidade familiar do Ocidente”, na medida em que, segundo os (poucos) resultados então conhecidos, o modelo inglês parecia corresponder à situação normal na Europa do Noroeste. E apesar de terem sido apresentados alguns exemplos contrários, essa foi considerada, com alguma justificação, como a principal conclusão do colóquio. Este desafio lançado a partir de Cambridge não tardou em provocar uma resposta por parte de estudiosos cujas investigações diziam respeito a zonas onde as estruturas familiares eram mais complexas. Com base nas suas investigações na Áustria, Lutz Berkner [1975] protestou, levantando dúvidas quanto às bases metodológicas de toda a operação; e alguns historiadores franceses não tardaram em fazer notar que no Sul a situação era um tanto diferente [Collomp, 1974; Flandrin, 1976; Goubert, 1977]. A discussão ficou deslocada, perdendo a sua dimensão cronológica inicial e a sua preocupação com os efeitos da modernização, para se transformar numa tentativa de estabelecer as fronteiras orientais e meridionais do modelo “ocidental”.
111O facto de que no início da década de 70 tinham sido analisadas mais de cem listas nominativas inglesas e pouco mais de uma ou duas em quase todos os outros países europeus contribuiu, evidentemente, para que, por metonímia, se tomassem as características do modelo inglês como definidoras do modelo ocidental; e indirectamente fez com que essas características servissem também para definir, a contrario, os eventuais modelos “não ocidentais”. Se no Ocidente o padrão de nupcialidade se caracterizava pelo acesso tardio de homens e mulheres ao matrimónio, o casamento precoce (das mulheres, ou de ambos os sexos) seria “não ocidental”; se no Ocidente a proporção de agregados familiares alargados ou múltiplos era muito reduzida, a presença em proporções significativas de qualquer destes tipos de agregado familiar complexo seria igualmente “não ocidental”.
112Nos anos que se seguiram multiplicaram-se os estudos empíricos e, no começo dos anos 80, já começava a ter sentido falar de uma (embora incompleta) geografia familiar europeia. Mas esses mesmos estudos ressentiam-se dos termos em que a discussão tinha sido iniciada e reflectiam ainda mais directamente as incompreensões que se seguiram ao colóquio de Cambridge. O facto de o estudo comparativo das formas da família na Europa ter sido empreendido com o objectivo inicial de esclarecer até que ponto o sistema familiar de uma região determinada estaria ou não conforme com o modelo inglês fez com que as atenções se concentrassem nas proporções relativas de agregados domésticos simples e complexos, e não, por exemplo, nas proporções relativas, e no significado, de diferentes tipos de agregado complexo.
113Apesar das repetidas críticas de que foi alvo, o Grupo de Cambridge continuou a promover estudos centrados quase exclusivamente na morfologia do grupo doméstico e na utilização da célebre tipologia elaborada por Peter Laslett e pelo antropólogo norte-americano Eugene Hammel [Hammel e Laslett, 1974] com base numa classificação inicialmente proposta por Louis Henry. Esta tipologia classifica os agregados domésticos existentes em determinada localidade em cinco categorias de acordo com as relações de parentesco existentes entre os seus membros. As cinco categorias são: solitários, agregados sem núcleo conjugal, agregados familiares simples (casal com ou sem filhos, ou viúvo/a com filhos, sem outros parentes), agregados familiares alargados (idem, com outros parentes) e agregados familiares múltiplos (agregados com mais de uma unidade conjugal). Conforme sublinharam imediatamente os críticos do esquema, esta tipologia descritiva confunde situações (por exemplo casal com filhos) que podem corresponder a uma fase determinada do ciclo doméstico em sistemas familiares completamente diferentes: essa situação, com efeito, poderá verificar-se quer num sistema de família nuclear baseado na residência neolocal,41 quer — conjunturalmente — num sistema de família troncal, após a morte dos pais do chefe de família, mas antes do casamento dos seus filhos.42
114Mais grave, numa perspectiva de análise comparada, é o facto de a tipologia se basear directamente na experiência inglesa, em que a forma “normal” de agregado doméstico é o agregado familiar simples, e em que há também formas “incompletas” (solitários e agregados não conjugais) e formas “complexas” (agregados familiares alargados ou múltiplos, que incluem outros parentes para além do núcleo conjugal).43
115Nos estudos estimulados pelos trabalhos do Grupo de Cambridge a preocupação central era quase sempre a de saber até que ponto a proporção respectiva de agregados simples e complexos se afastava do padrão inglês. Com alguma razão, os críticos argumentaram que se tratava de um exercício metodologicamente estéril, uma vez que os resultados nada nos podiam dizer a respeito das funções da família, da dinâmica das relações familiares, ou do significado das diferenças observadas.
116Tem ainda sido criticado o suposto carácter “estático” dessas análises, mas a crítica, desta vez, é despropositada, porque as proporções de cada tipo de agregado doméstico dizem respeito não aos agregados domésticos em si, cuja composição é notoriamente instável, mas à população de agregados domésticos, cuja estrutura em qualquer momento tenderá a ser bastante estável, desde que o sejam os comportamentos que nela se reflectem.
117Como já foi dito no capítulo anterior, as análises do Grupo de Cambridge têm como objecto o household, ou agregado doméstico, e não a família enquanto unidade de parentesco, e apesar de todas as ambiguidades apontadas tem vindo a revelar-se um instrumento bastante útil para análises comparativas.44
118Mais interessante e fecunda era uma preocupação secundária de alguns desses estudos promovidos e inspirados pelo Grupo: procuravam saber até que ponto se confirmaria, em outras zonas, a associação que se constatara ter existido na Inglaterra entre um sistema de família nuclear e um modelo matrimonial baseado no acesso tardio e socialmente controlado ao casamento. A investigação de uma associação deste tipo entre a morfologia familiar e um elemento-chave em qualquer regime demográfico implicava, de facto, a necessidade de uma conceptualização mais rigorosa das relações existentes entre regime demográfico e sistema familiar.
119Que o casamento e a família sejam instituições intimamente relacionadas é evidente, mas a questão da definição precisa dessa relação, e em particular da relação que numa população determinada possa existir entre a nupcialidade e a estrutura familiar, tinha recebido, nos trabalhos do Grupo de Cambridge, menos atenção do que seria talvez de esperar. Em nenhum dos capítulos do volume Household and Family in Past Time [Laslett e Wall (orgs.), 1972] se tinha adiantado alguma coisa a respeito. E foi só no seu conhecido ensaio sobre a história da “família ocidental” que Peter Laslett [1977b] tentou pela primeira vez especificar essa relação no contexto daquilo que denominou o “sistema familiar ocidental”.45
120Segundo Laslett, esse sistema define-se em função de quatro características, das quais duas têm a ver com a composição normal do agregado doméstico. Este é normalmente constituído por um casal juntamente com os seus filhos solteiros. Outros parentes, bem como os filhos casados, são excluídos. Mas em muitos casos o agregado doméstico poderá incluir um número variável de criados, que são considerados para todos os efeitos como membros do agregado.
121As outras duas características dizem respeito à nupcialidade e representam a tradução, no plano das relações familiares, do modelo matrimonial europeu tal como fora definido por Hajnal. Uma vez que as mulheres se casam tarde, elas estariam, segundo Laslett, em idade relativamente madura durante o período de socialização dos filhos. E a reduzida diferença de idades entre os cônjuges estaria na origem daquilo que denominou companionate marriage.46
122Laslett insistiu que o que caracteriza o Ocidente (e a Inglaterra em especial) é a combinação dessas quatro características, que em conjunto constituem um sistema interdependente e definem a identidade familiar do Ocidente. Na base da coerência do sistema está a relação entre a formação de cada novo agregado doméstico e o casamento do seu chefe, porque o casamento não se pode realizar enquanto ele não estiver em condições de assumir a chefia de um agregado independente, e porque, de acordo com a lógica do sistema, cada novo agregado doméstico é uma consequência do casamento do chefe e uma projecção desse casamento no campo das relações sociais.
123Essa relação que existe ao nível individual entre o casamento e a formação dos agregados domésticos, e que se traduz na regra de residência neolocal após o casamento, pareceria implicar que, ao nível da população, um modelo de casamento tardio estaria de igual modo associado ao predomínio estatístico e normativo de agregados domésticos simples, ou famílias nucleares. A existência de uma tal relação pareceria ser confirmada pelo facto de na Europa oriental, onde a forma predominante da família é o agregado doméstico conjunto (joint family household) constituído por um casal e pelos seus filhos casados, encontrarmos um modelo “não europeu” de casamento, caracterizado pelo acesso precoce e universal ao matrimónio de ambos os sexos.47
124Seria assim tentador considerar, seguindo Laslett, que se trata de uma relação de interdependência funcional, e pensar em utilizar essa combinação de modelo matrimonial e estrutura familiar como elemento definidor da “identidade familiar” de uma região determinada. Mas uma análise mais cuidada mostra que a relação não tem carácter geral, e que a sua existência só pode ser demonstrada no contexto de sistemas baseados em regras de residência neolocal após o matrimónio. Mesmo em tais casos, contudo, a nupcialidade e a estrutura familiar não são, em rigor, variáveis interdependentes. Na Inglaterra, por exemplo, onde há uma relação inegável entre a formação de um agregado doméstico e o casamento do seu chefe, essa relação reflecte uma situação em que a nupcialidade masculina é uma variável dependente controlada por um conjunto de factores que simultaneamente determinam a taxa de formação dos agregados domésticos (household formation rate) [cfr. Wrigley e Schofield, 1981; Goldstone, 1986]. Na Europa do Leste, por outro lado, não há qualquer relação ao nível individual entre o casamento e a formação de um agregado doméstico ou o acesso à chefia de um agregado preexistente, e a relação entre nupcialidade e estrutura familiar numa população determinada é, por conseguinte, indeterminada.48
125Para mais, mesmo no caso de um sistema baseado, como o inglês, em regras neolocais de formação dos agregados domésticos, essas regras apenas afectariam a nupcialidade masculina, enquanto numa análise comparada dos modelos matrimoniais o que carece de explicação são acima de tudo as variações na nupcialidade feminina.
126Na Inglaterra existia o companionate marriage descrito por Laslett, baseado numa reduzida diferença de idades entre os cônjuges, e não faltam informações a respeito das responsabilidades relativamente equilibradas do noivo e da noiva na criação de condições para a independência do novo agregado doméstico [Macfarlane, 1986]. É possível que tais definições culturais dos papéis respectivos de marido e mulher, ou o seu equivalente noutras regiões, possam ter funcionado como variáveis intermédias, articulando as estruturas familiares com os modelos de matrimónio com os quais se encontram associados, ou definindo o contexto cultural, variável mas necessário, de todo o processo de reprodução social. Se de facto for esse o caso, a análise teria de ser alargada para incluir uma gama de variáveis muito mais ampla que as inicialmente incluídas na definição do “sistema familiar ocidental”.
127De um ponto de vista metodológico, contudo, a escolha das variáveis a incluir na análise não deverá neste caso reflectir padrões regional e culturalmente específicos. As variáveis que parecem mais apropriadas a uma caracterização do modelo inglês podem ser bem diferentes das que definem a relação entre casamento e formação dos agregados domésticos, e entre nupcialidade e estrutura familiar, nas zonas de mezzadria da Toscana e da Emilia-Romagna, por exemplo, nos sistemas de família troncal da Catalunha ou da Galiza, ou mesmo nos sistemas neolocais da Espanha centro-meridional e do Mezzogiorno italiano.
128Um exemplo elucidativo dos riscos envolvidos na utilização de padrões observados numa região como base para a identificação de outros padrões regionais é fornecido pelo — de resto, importante e interessante — artigo de Richard Smith [1981] acerca das implicações do estudo que David Herlihy e Christiane Klapisch-Zuber [1978] consagraram ao Catasto toscano de 1427. Como já tive ocasião de observar, Smith faz notar que, após a revisão dos dados tardo-medievais ingleses, todas as restantes indicações quanto à existência de um hipotético modelo matrimonial “medieval” estão concentradas na Europa meridional. Atendendo a que um padrão de acesso precoce das mulheres ao matrimónio parece ter persistido em zonas da Europa meridional durante boa parte da época moderna, Smith sugere que faria mais sentido considerar quer os dados tardo-medievais, quer esses dados da época moderna como indicação da persistência de um modelo matrimonial especificamente “mediterrânico”.
129O Catasto toscano não permite apenas uma reconstituição pormenorizada de padrões matrimoniais. Fornece também uma informação muito completa sobre a composição dos agregados domésticos, e revela a existência, nas zonas rurais, de uma estrutura baseada em agregados domésticos múltiplos, na residência patrilocal após o casamento e na ausência de qualquer relação necessária entre o casamento e a formação dos agregados domésticos.
130Esse modelo era parecido com que tinha sido observado no Sul e no Centro da França, pelo menos na medida em que, ao contrário do que acontecia na Europa do Noroeste, se tratava evidentemente de um sistema não baseado na residência neolocal após o matrimónio ou em agregados domésticos simples, e era coerente com o pouco que se sabia sobre a nupcialidade e as estruturas familiares noutras zonas da Europa meridional.49 Partindo do pressuposto de uma relação de tipo funcional entre um modelo matrimonial “não europeu” e uma estrutura familiar “não ocidental”, Smith caracterizou-os a ambos como aspectos de um modelo regional especificamente “mediterrânico”.50 Em vez da substituição, por volta de 1500, de um modelo “medieval” por outro “moderno”, ou “ocidental”, propôs que se falasse da persistência plurissecular de dois modelos regionais contrastados, o “inglês” e o “mediterrânico”, ambos definidos por uma combinação específica de modelo matrimonial e estrutura familiar.
131Infelizmente, Smith não se dera conta do facto que nos outros exemplos por ele citados — italianos, franceses ou espanhóis — havia informação só sobre o modelo matrimonial, ou só sobre a estrutura familiar, mas não sobre ambos simultaneamente. E na realidade, em todos os casos citados de matrimónio feminino precoce durante a época moderna, sabemos que o sistema familiar se baseava na família nuclear; e em todos os casos citados de sistema familiar complexo, sabemos que o modelo matrimonial, durante a época moderna, se caracterizava pelo acesso tardio das mulheres ao casamento. Devido às insuficiências da informação utilizada51 e ao papel estruturante do modelo inglês em relação aos termos da análise comparada, o facto de a Toscana do século XV ter sido a única zona meridional em relação à qual se dispunha de uma informação muito completa fez com que metonimicamente passasse a representar todo o Mediterrâneo ocidental desde finais da Idade Média.
132No seguimento do seu ensaio sobre o “sistema familiar ocidental” [1977b], Laslett começara entretanto a elaborar as bases para uma tipologia regional. Esta deveria, ao contrário da tipologia Hammel-Laslett, incluir aspectos quer da nupcialidade, quer das estruturas familiares como critérios para dividir a Europa como um todo em quatro grandes regiões — Oeste, Centro-Oeste, Mediterrâneo e Leste. Mas a fundamentação desses critérios — que parecem ter sido escolhidos precisamente em função de uma comparação com o modelo inglês — permaneceu implícita. Depois de algumas versões preliminares que circularam informalmente e foram discutidas em seminário,52 uma versão mais acabada da tipologia foi apresentada na contribuição de Laslett ao volume colectivo Family Forms in Historic Europe, intitulada “A Família e o Grupo Doméstico como Grupo de Trabalho e Grupo de Parentesco: Uma Comparação entre Áreas da Europa Tradicional” [Laslett, 1983].
133Apesar das restrições que lhe podem ser formuladas, quer em termos metodológicos, quer no plano da informação, a tipologia proposta por Laslett em 1983 continua a ser a mais completa formulada até à data, e constitui um útil ponto de partida para novas investigações. No ensaio, Laslett tenta, de facto, com base em quatro critérios de classificação, elaborar uma tipologia das diferentes formas de organização familiar que julgou poder detectar na Europa pré-industrial.
134Desses quatro critérios só o primeiro corresponde às preocupações iniciais do programa que dirigia em Cambridge, ou seja, ao problema da composição dos agregados domésticos e das proporções de agregados de cada tipo estrutural numa população em determinado momento.
135Um segundo critério tem que ver com o modo de formação dos agregados — através do casamento do chefe, da fissão de um agregado preexistente, etc. — e em particular com a existência (ou não) de uma ligação entre a formação dos agregados e o casamento.
136Um terceiro critério corresponde, justamente, às características do casamento — ou melhor, da nupcialidade — tais como a idade média de acesso ao matrimónio, o nível do celibato definitivo, as taxas de recasamento de viúvos e viúvas, etc.
137E, finalmente, o quarto critério — menos desenvolvido, mas talvez o mais interessante e importante para estudos comparativos — corresponde à composição e às funções do agregado enquanto unidade de produção e de reprodução.
138À luz desses quatro critérios (cada um dos quais tem vários aspectos, num total de 33 elementos de classificação), Laslett dividiu a Europa tradicional, no que diz respeito à organização do grupo doméstico, em quatro regiões e dois grupos: por um lado, o Oeste e o Centro-Oeste, por outro, o Leste e o Mediterrâneo.
139Seria impossível resumir aqui todas as características de cada uma dessas quatro regiões, mas de uma forma grosseira e simplificadora poderíamos descrevê-las do modo seguinte:
a região oeste (a Escandinávia, a Inglaterra, os Países Baixos, o Norte da França) caracteriza-se pela casamento tardio de homens e de mulheres, pelo residência neolocal após o casamento (o que se traduz na dominância da família nuclear) e pela circulação dos jovens entre os agregados domésticos, como criados, durante os anos que antecedem o casamento;
a região centro-oeste (a Alemanha, a Suíça, o Centro e o Sul da França) caracteriza-se, ela também, pelo casamento tardio, mas a forma dominante de agregado doméstico — o que não quer dizer, evidentemente, que seja a mais numerosa53 — seria a da família troncal, onde o herdeiro permanece em casa depois do casamento e assume a sua direcção após a morte ou a retirada do pai. Aqui, ao contrário do que se passa no Ocidente, o agregado doméstico enquanto unidade de produção pode também incluir trabalhadores que sejam parentes do chefe do agregado;
a região leste, que corresponde a toda a Europa situada a leste da linha Sampetersburgo (Leningrado) — Trieste (que Hajnal definira como fronteira entre os regimes matrimoniais do Ocidente e do Oriente), caracteriza-se justamente pelo casamento precoce e universal de homens e de mulheres, pela residência patrilocal de todos os filhos após o casamento — os irmãos só se separariam mais tarde, quando o agregado se tivesse tornado demasiado grande e o pai tivesse morrido — e pelo facto de cada agregado ser uma unidade de produção e de trabalho constituída exclusivamente com base no parentesco;
a região mediterrânica (Itália, Espanha, uma parte de Portugal54 e da Península Balcânica) caracteriza-se pelo casamento universal, precoce para as mulheres mas tardio para os homens, pela residência patrilocal e pela família indivisa, ou joint family, e pelo facto de o agregado ser uma unidade de produção constituída com base no parentesco, com poucos criados.
140Não é meu propósito discutir aqui até que ponto estas várias caracterizações — e em particular a que diz respeito ao Mediterrâneo — serão exactas. Mais importante, porque não dependente de eventuais falhas de informação, é a questão, já referida, dos critérios de classificação que estão na base desta tipologia.
141No caso do Noroeste, e em particular no caso mais estudado, o da Inglaterra, é evidente que existe uma relação estreita entre a formação de um novo agregado doméstico e o casamento de seu chefe, no sentido de que o casamento não se realiza antes de o homem poder tornar-se chefe de um agregado doméstico independente e de que na lógica do sistema cada novo agregado é consequência do casamento de seu chefe, representando a sua tradução no plano das relações sociais. Esta relação fundamenta a articulação entre a estrutura do agregado doméstico, o seu modo de formação, o seu funcionamento económico com base em criados solteiros, o regime de casamento tardio e, por essa via, a flexibilidade de um regime demográfico de baixa pressão.
142Depara-se-nos aqui justamente o sistema de relações que se encontra na base das caracterizações do “sistema familiar ocidental”, de Laslett, do “sistema de formação dos agregados domésticos do Noroeste europeu”, de John Hajnal, e do “sistema demográfico do Antigo Regime”, de Jacques Dupâquier.
143No caso das outras regiões, pelo contrário, esta relação entre o casamento e o agregado doméstico é mais fraca ou não existe de facto. Consequentemente, é difícil descortinar a lógica de um sistema na caracterização dessas regiões apresentada por Laslett. Os 33 elementos de classificação, agrupados em quatro critérios principais, só se articulam em função da lógica do sistema do Noroeste europeu. Não são, por isso, necessariamente os mais indicados para explicitar a lógica própria de cada um dos outros três sistemas regionais, ou mesmo para os identificar enquanto sistemas. O que os 33 elementos nos oferecem é essencialmente um catálogo de semelhanças e de diferenças em relação ao sistema do Noroeste e não uma caracterização tipológica adequada das formas de organização familiar na Europa.
VIII
144Para que pudesse de facto ser considerado como ponto de partida para a elaboração de uma tipologia regional, o esquema de Laslett precisaria de ter sido elaborado com base em critérios que derivassem de características universais do fenómeno em questão, determinadas a partir de uma definição teórica do objecto “agregado doméstico” e das suas relações com a família, com o parentesco e com outras instituições e grupos sociais. E de facto, desde o início dos estudos sobre as estruturas familiares, a questão da definição do objecto de estudo tem vindo a constituir um problema.
145Essa linha de investigações, como vimos, teve início com os estudos de Laslett sobre a composição das “famílias” registadas em listas de habitantes de duas paróquias inglesas. Nesses documentos, tal como nas fontes utilizadas por estudos análogos noutros países, os habitantes (por vezes só os habitantes a partir de determinada idade) encontram-se agrupados em unidades de carácter presumivelmente residencial.55 Mas é muito raro encontrar, na fonte, uma explicação inequívoca da natureza desses grupos, ou dos critérios utilizados para incluir certas pessoas (por exemplo os criados) em determinadas unidades e não em outras.56 Poderia argumentar-se, contra os críticos deste tipo de estudo, que a própria separação entre uma unidade e outra significava que constituíam, para quem redigiu o documento, unidades sociológica e culturalmente significativas. Mas isto não quer dizer que sejam unidades significativas para os fins da nossa investigação e — sobretudo — não garante a sua comparabilidade.
146Mesmo que se admitisse que essas unidades — households, ou agregados domésticos — correspondem invariavelmente a unidades de residência, isso não resolveria o problema. Seria preciso descortinar, para cada uma das sociedades (ou épocas) a serem comparadas, qual o sentido sociológico e cultural da co-residência, e em que medida a composição dos agregados, definida em termos do parentesco de cada membro com o chefe do agregado, constitui um critério adequado para comparações. Nalguns contextos, por exemplo, a co-residência de parentes poderá derivar de regras explícitas do sistema de parentesco, noutros, poderá traduzir a organização da produção agrícola, o funcionamento dos mecanismos de sucessão e herança, ou a organização da assistência na doença e na velhice. Se em duas sociedades o sentido sociológico e cultural da co-residência for diferente, não terá muito sentido efectuar uma simples comparação da composição dos agregados numa sociedade e noutra, ou construir categorias de carácter morfológico (por exemplo agregado familiar múltiplo), cujo significado poderá variar de uma sociedade para outra, ou até de um grupo social para outro na mesma sociedade. Do mesmo modo, se não soubermos até que ponto em cada sociedade a co-residência implica a colaboração nas tarefas produtivas, ou vice-versa, não terá sentido tentar relacionar a composição dos agregados domésticos com a organização da produção.
147Com efeito, a única definição aparentemente universal de que dispomos para a análise comparativa dos agregados domésticos — a que deriva do facto de se tratar de uma unidade de residência — é de utilidade limitada, uma vez que, como vimos, a co-residência tem um sentido irremediavelmente contextual, e não pode, por si só, servir como base para a comparação. Trata-se de uma dificuldade metodológica com que se defronta qualquer análise comparativa, e que assume a sua forma mais aguda nos estudos de antropologia social [Rowland, 1987a]. A alternativa mais frequentemente adoptada em antropologia, que é a de procurar fundamentar a análise comparativa de instituições nas funções (em princípio, universais) que estas desempenham, também se revela de utilidade apenas relativa na medida em que não é possível identificar um conjunto de funções que seriam desempenhadas pelo agregado doméstico em toda e qualquer sociedade [Wilk e Netting, 1984; Hammel, 1984].
148Mas também é evidente que nenhuma análise comparativa do agregado doméstico poderá prescindir dessas duas dimensões. O problema está em articulá-las de uma forma que seja metodologicamente defensável. Manifestando a sua formação de antropólogo, Eugene Hammel sugeriu há alguns anos [1988] que se tentasse reconstruir aquilo que o agregado doméstico poderia significar para os próprios interessados, os “nativos”, e incluir na análise uma terceira dimensão, que corresponderia às representações do agregado doméstico em cada cultura. Nestes termos, propõe que se procure identificar, em cada sociedade, a instituição que constitui o enquadramento social mais imediato para os indivíduos, e com o maior número de funções, e que se procure levar em conta a maneira como essa instituição é representada na cultura local. Não seriam, neste caso, as funções específicas (residência, produção, reprodução, comensalidade, enquadramento para a sexualidade legítima, socialização das crianças, assistência na velhice, etc.) que seriam consideradas como universais, mas o facto de em todas as sociedades ser necessária a existência de uma instituição capaz de desempenhar uma pluralidade de tais funções.57 Nestes termos, a análise comparada procuraria esclarecer as funções desempenhadas por essa instituição (que na maior parte dos casos poderá até corresponder ao nosso conceito de household / casa / agregado doméstico) e a maneira como essas funções se relacionam com a composição do mesmo, tentando identificar os factores que influenciam o seu processo de formação e o seu ciclo de desenvolvimento.
149Na medida em que uma das funções que em quase todas as sociedades caracterizam os agregados domésticos é a de funcionar como enquadramento social imediato para a reprodução, não teria sentido investigar o papel dos agregados domésticos sem levar em conta o modo como as restantes funções podem influenciar os comportamentos demográficos, assegurando um papel necessário de mediação entre comportamentos e decisões individuais e processos sociais.
150Com efeito, é no âmbito de uma abordagem contextual de inspiração socioantropológica, que privilegia a análise das funções dos agregados domésticos e das suas relações com a composição e a representação cultural dos mesmos, que se poderá melhor equacionar o problema das relações entre comportamentos demográficos e estrutura social.58 Nessa caracterização, o ponto de partida será a maneira como o sistema familiar e o seu funcionamento, principalmente através das suas implicações para a nupcialidade, se traduz em comportamentos que correspondem a regimes demográficos de alta ou de baixa pressão.
151Não dispomos ainda de uma geografia satisfatória das estruturas familiares à escala europeia, e o nosso conhecimento dos sistemas familiares europeus e da sua distribuição no espaço é ainda mais incompleto.59 Mas neste contexto, onde o que interessa é tentar esclarecer o tipo de relação que poderá existir entre sistema familiar e regime demográfico, poderemos limitar a discussão às mais significativas dentre as situações conhecidas.
152A principal distinção a fazer será entre regimes controlados através da nupcialidade e regimes controlados de outro modo.
153Em relação àqueles, poderemos considerar diversas situações em que a dinâmica da população é socialmente controlada através da nupcialidade, e tentar identificar, pelo menos nas suas grandes linhas, o papel do sistema familiar nesse processo.
154Em primeiro lugar, poderemos considerar o modelo pirenaico, que corresponde à situação observada aos dois lados dos Pirenéus, em França e Espanha, e que manifesta alguma semelhança com situações observadas noutras regiões.60 Do ponto de vista demográfico, trata-se, de modo evidente, de um sistema de baixa pressão, com níveis moderados ou baixos de mortalidade, fecundidade e nupcialidade. Os baixos níveis de fecundidade são manifestamente consequência de uma nupcialidade restrita, que por sua vez se deve ao facto de o acesso ao matrimónio estar condicionado ao acesso à chefia de uma casa. Numa economia agro-pastoril de montanha em que a unidade social elementar é a casa camponesa a que corresponde uma parte estável e diversificada dos recursos disponíveis, e onde o número de casas (e de explorações agro-pastoris) é relativamente fixo, qualquer aumento no número de casais de uma geração para outra poderia comprometer o equilíbrio da economia local. O sistema de herança visa transmitir a casa intacta de uma geração a outra, e traduz-se na designação de um herdeiro único, o qual, depois de compensados os herdeiros excluídos, sucede à direcção da exploração. No caso de casais sem filhos varões, o sucessor poderá ser o marido da filha que for escolhida como herdeira. Subordinando o acesso ao matrimónio à sucessão à direcção de uma casa, o sistema familiar assegura o equilíbrio da economia local. Mas, ao mesmo tempo, ao traduzir-se numa nupcialidade restrita, com um acesso geralmente tardio de homens e mulheres ao matrimónio,61 este sistema acaba por controlar a fecundidade e, por conseguinte, a própria pressão da população contra os recursos e o número limitado de casas e de explorações. A população excedentária, em cada geração, tem de contentar-se com um papel secundário: depois da escolha do herdeiro62 e o seu casamento “em casa”, poderão optar entre permanecer em casa, numa posição subordinada de celibato forçado, ou emigrar, com o eventual propósito de acumular recursos suficientes para estabelecer uma casa própria após o regresso. A subordinação do acesso ao matrimónio à sucessão implica que a nupcialidade, dentro dos limites determinados pelo número de casas existentes, passa também a ser determinada pela mortalidade da geração anterior.63
155Esta situação, que corresponde à que se encontra subjacente ao modelo de “sistema demográfico do Antigo Regime” de Dupâquier e ao modelo camponês de Mackenroth, traduz uma clara subordinação dos comportamentos demográficos ao sistema familiar e ao ciclo de desenvolvimento do agregado doméstico. Mas essa subordinação depende de algumas condições precisas, das quais, em termos de uma análise comparativa, as mais significativas são cinco: a) uma economia em que, por razões ecológicas e tecnológicas, o número de unidades de produção é limitado; b) a exigência, igualmente por razões ecológicas e tecnológicas, de se evitar a fragmentação das unidades económicas, sobretudo tratando-se de unidades diversificadas, no momento da sua transmissão à geração seguinte; c) um sistema jurídico que permite fazer face a esta última exigência instituindo um herdeiro único ou beneficiado, eventualmente mediante compensação em dinheiro aos herdeiros excluídos; d) uma representação cultural da família e das funções do agregado doméstico que se traduz na subordinação do matrimónio à reprodução da casa e numa distribuição de papéis no interior da família que assegura essa subordinação; e e) uma distribuição de papéis em termos de género que implica, em geral, uma pequena diferença de idades entre os noivos.
156Em contraste, mas igualmente representativo de uma situação em que a dinâmica de uma população é socialmente controlada através da nupcialidade, poderemos considerar o modelo inglês, cujas características principais também se podem encontrar em outras zonas da Europa do Noroeste. Neste modelo, que corresponde em grande parte ao que foi formulado por Malthus, estamos igualmente perante um regime demográfico de baixa pressão. O nível da fecundidade é determinado pelas variações da nupcialidade, mas esta — ao contrário do que se passa no modelo pirenaico — é independente da mortalidade. A nupcialidade varia em função do nível de vida dos jovens trabalhadores, ou seja — uma vez que se trata de uma economia estruturada pela lógica do mercado —, em função do nível dos salários reais. Uma vez que os jovens, ao casarem-se, vão constituir uma agregado doméstico independente, e uma vez que são eles — os dois — que devem assumir a responsabilidade pela independência económica desse novo agregado, o tempo necessário para a acumulação do património necessário estará em relação inversa ao nível dos salários reais. Os salários, por sua vez, reflectem a oferta de mão-de-obra, que, por sua vez, é determinada pelo nível da fecundidade no período anterior. Subjacente a essas relações, e em geral à subordinação da dinâmica demográfica à evolução da economia, está um certo número de condições: a) a instituição do serviço, através da qual os jovens, antes de se casarem, trabalhavam como criados de lavoura assalariados em outras casas — mesmo quando o agregado doméstico era unidade de produção, esta baseava-se no trabalho não dos membros da família, mas de criados que eram apenas temporariamente membros do agregado doméstico; b) a norma tácita que excluía a possibilidade de dois casais viverem sob o mesmo tecto, e que obrigava o novo casal a constituir um agregado doméstico independente; c) uma distribuição de papéis em termos de género que, tornando a noiva co-responsável por assegurar a independência do novo agregado, favorecia uma pequena diferença de idade entre os noivos; d) a independência entre o acesso ao matrimónio e a transmissão de bens entre gerações; e e) uma economia largamente dominada pela lógica do mercado e pelo trabalho assalariado.
157Uma das variantes mais significativas deste sistema familiar parece ser o modelo siciliano, em que a residência pós-matrimonial é igualmente neolocal, onde predomina o trabalho assalariado fora de casa, onde o acesso ao matrimónio é — para os homens — independente da herança, mas onde o regime demográfico é, comparativamente, de alta pressão e onde o acesso das mulheres ao casamento é muito precoce em termos europeus. A diferença em relação ao modelo inglês reside no facto de as mulheres, e sobretudo as jovens, não trabalharem nos campos, mas em casa, e de a sua contribuição para o estabelecimento do novo agregado doméstico assumir a forma do dote. Esse dote é negociado com o noivo (e sua família) pelo pai (ou irmãos) da noiva, e pago por estes. Não só não há, neste caso, razões para que a noiva aguarde, com o noivo, o tempo necessário para acumular o património necessário para poderem casar e estabelecer um novo agregado doméstico, como também existe um incentivo para os irmãos anteciparem o casamento das irmãs, uma vez que em muitos casos eles só irão casar depois de terem resolvido o problema do(s) casamento(s) desta(s). Infelizmente não dispomos de qualquer estudo sobre a história da população siciliana que permita determinar o papel relativo, na determinação de sua dinâmica, da nupcialidade e da mortalidade. Não podemos, assim, fazer mais que assinalar que um sistema em muitos aspectos parecido com o modelo inglês parece aqui estar associado a um regime demográfico de alta pressão, em que dificilmente a nupcialidade feminina, atendendo às suas características, poderá ter desempenhado algum papel moderador.
158Uma contraprova da influência do sistema familiar sobre a nupcialidade no contexto do Mediterrâneo é fornecida pelo caso da Sardenha, onde o sistema familiar — salvo em algumas comunidades pastoris — é igualmente neolocal, mas onde a idade média ao casamento das mulheres é bastante mais elevada que na Sicília, ao ponto de as baixas taxas de natalidade terem causado alguma preocupação entre autores do século XVIII. A diferença reside no facto de, na Sardenha, as noivas não receberem dote, sendo antes obrigadas a trabalhar para acumularem a sua contribuição para o estabelecimento do novo agregado doméstico. Marido e mulher, na Sardenha tradicional, casavam tarde. Estas diferenças em relação à Sicília parecem ter sido acompanhadas por outras. Nas zonas de economia agro-pastoril, em que os homens se ocupavam dos rebanhos e se encontravam durante longos períodos ausentes das aldeias, o trabalho agrícola acabava por ser confiado às mulheres, que por vezes, como em algumas outras zonas da Itália meridional, constituíam o núcleo de um conjunto de agregados domésticos uxorilocais. Mesmo nas zonas cerealíferas o papel doméstico das mulheres era considerável. A esta diferente distribuição de papéis em termos de género parece ter correspondido uma representação cultural também diferente, sendo de assinalar a falta aparente de preocupação, na sociedade rural da Sardenha, com questões de honra feminina.64
159Completamente diferente é a maneira como se efectua o controlo social da nupcialidade no modelo toscano, correspondente à área onde predominava a mezzadria. Nesta forma de parceria, o proprietário celebrava um contrato (anual e renovável) com o chefe de uma família mediante o qual este se empenhava a fornecer a força de trabalho necessária para o cultivo da exploração. Esta força de trabalho era familiar, composta pelo chefe, pelos seus filhos solteiros e casados e pelas respectivas mulheres e crianças. A força de trabalho devia corresponder às exigências da exploração, e o agregado familiar — que por vezes tinha uma estrutura muito complexa — devia, por conseguinte, possuir um número equilibrado de homens, mulheres e crianças. Qualquer desequilíbrio poderia comprometer, aos olhos do proprietário, a eficiência da família enquanto unidade de trabalho e levar à não renovação do contrato. Pelas consequências que poderia ter sobre o equilíbrio entre homens e mulheres, e posteriormente, com o nascimento das crianças, sobre o número de bocas inúteis, o casamento de qualquer dos filhos do chefe estava sujeito à autorização prévia do proprietário. Muitos contratos prevêem que o casamento não autorizado de um dos filhos possa levar à não renovação do contrato e à expulsão da família da exploração.65 Nestas condições, não será de surpreender que a idade média ao casamento de membros de famílias de mezzadri fosse relativamente elevada. A Toscana é uma das zonas de Europa para a qual dispomos de um estudo efectuado com metodologia comparável à de Wrigley e Schofield,66 que mostra ter sido a fecundidade (e, por trás desta, a nupcialidade) a determinar, em grande parte, a dinâmica da população nesta região da Toscana. A importância desta conclusão deriva do facto de o sistema familiar nesta zona ser completamente diferente do inglês,67 mas ter igualmente funcionado como contexto para o controlo social através da nupcialidade, da dinâmica da população. Poderemos ainda admitir, mas agora apenas a título de hipótese, que a pressão dos proprietários sobre os mezzadri terá sido mais forte em épocas de conjuntura económica difícil, e que esta pressão, juntamente com as dificuldades dos próprios mezzadri, poderá ter tido um efeito negativo sobre a nupcialidade. A confirmar-se esta hipótese, teríamos outro modelo em que a influência do sistema familiar sobre a dinâmica dos comportamentos demográficos depende, em grande parte, do conjunto de funções desempenhadas pelo agregado doméstico, mas em que a existência dessa relação não passa pelo conjunto de mecanismos associados a um sistema familiar de tipo nuclear.
160O modelo clássico de um regime demográfico não controlado pela nupcialidade, mas sujeito apenas ao travão positivo da mortalidade, é o modelo chinês formulado por Malthus para sublinhar, a contrario, o carácter excepcional do modelo europeu ocidental. Apesar de Malthus ter, como já vimos, delineado, com base em descrições empíricas, um contraste entre o modelo chinês e o japonês, será talvez melhor considerar o “modelo chinês” como puramente teórico de ausência de controlo social sobre a dinâmica da população. Assim, e mesmo que Malthus tenha comentado que a Irlanda corria o risco, se o aumento da população não fosse controlado, de acabar numa situação como a chinesa, será melhor considerar o modelo apenas como um caso-limite, útil como tipo ideal para confrontar com situações realmente observadas. O modelo siciliano, já referido, é um exemplo em que não parecem estar em funcionamento os mecanismos típicos de outras situações europeias observadas. Poderemos por isso concluir que se trata realmente de uma “situação chinesa”? Provavelmente não. Ainda que os mecanismos não sejam evidentes, uma comparação entre a evolução demográfica siciliana e o modelo chinês mostra que alguma forma de controlo terá de ter existido — mesmo se o mecanismo por agora nos escapa. E o mesmo poderá dizer-se de outras situações europeias em que os indicadores demográficos traduzem o funcionamento de um regime de alta pressão.
161Em contraste, poderemos considerar diferentes situações em que o nível da fecundidade é controlado directamente, através da limitação dos nascimentos pelo próprio casal, e não indirectamente, através do controlo social do acesso ao casamento. Deixando agora de lado a transição demográfica de finais do século XIX e início do século XX, podemos identificar três tipos de situações em que, no âmbito de sistemas demográficos de antigo regime e dos equilíbrios tradicionais que os caracterizam, um dos elementos significativos de regulação era a limitação directa da fecundidade matrimonial por parte do casal.68
162Um primeiro conjunto de situações diz respeito a grupos sociais específicos: entre estes, podemos recordar algumas casas reais e aristocracias (Grã-Bretanha, França, Bélgica); as famílias de elite de Veneza, Milão, Génova e Genebra; e algumas comunidades judaicas em Itália, França e Alemanha. Todos estes grupos manifestaram uma fecundidade matrimonial baixa a partir, nalguns casos, do século XVII, e têm sido considerados de alguma forma como “precursores” do controlo da fecundidade na Europa [Livi Bacci, 1986]. Mas uma discussão destes casos particulares ficaria fora do âmbito deste texto.
163Um segundo tipo de situação, a respeito do qual ainda sabemos demasiado pouco para podermos fazer mais do que mencioná-lo, é o que corresponde a algumas zonas rurais da Hungria, onde durante o século XVIII há indícios seguros de se ter praticado, por algum tempo, a limitação da fecundidade matrimonial. Embora o número de reconstituições de família seja insuficiente para permitir generalizações seguras, é talvez significativo que esses indícios tenham sido encontrados numa zona de assinalável complexidade familiar. Segundo alguns autores húngaros, a ocorrência de uma proporção muito significativa de agregados domésticos de tipo múltiplo na região transdanubiana meridional, durante os séculos XVIII e XIX, terá sido um fenómeno conjuntural devido ao crescimento da população numa zona já densamente povoada. Antes do início da emigração em massa, em finais do século XIX, a solução encontrada teria sido a de admitir a co-residência de filhos casados com os pais e de constituir unidades de trabalho agrícola baseados na família plurigeracional. Nessas circunstâncias excepcionais, argumenta-se, a contracepção poderá ter sido imposta à jovem esposa pela sogra, ansiosa por não ver deteriorar a relação entre braços produtivos e bocas improdutivas no âmbito da família, e o facto mesmo da coabitação num espaço restrito de dois ou mais casais poderá ter influído negativamente sobre a frequência das relações sexuais e ter tido o efeito de reduzir a fecundidade dos jovens casais [Andorka, 1971, 1972; Andorka e Faragó, 1983].
164O terceiro conjunto de situações, que continua à espera de uma explicação satisfatória apesar de já possuirmos uma informação muito mais completa, corresponde, por sua vez, às diferentes fases do declínio da fecundidade em França entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XX, com todas as suas diferenciações regionais.
165O declínio da fecundidade em França, a partir de 1780 aproximadamente, tem muitas vezes sido analisado como se se tratasse de uma antecipação do processo que nos outros países da Europa teve início só muito mais tarde, em geral a partir da segunda metade do século XIX. O facto de o processo ter sido interpretado como uma “transição precoce” teve como consequência, entre outras, que a França passou quase sempre a figurar como excepção a qualquer tentativa de generalização sobre o contexto socioeconómico da transição. Investigações recentes têm vindo a sugerir, contudo, que é um erro considerar o declínio da fecundidade em França como um processo único, e que de facto só a última fase, a partir de 1870 aproximadamente, pode ser considerada como sendo propriamente de transição. Baseando-se na reconstrução da história da população feminina francesa e da sua evolução regional no século XIX efectuada por Étienne van de Walle [1974], E. A. Wrigley [1987: 270-321] logrou demonstrar ter havido três fases distintas no processo.
166A primeira, que terá tido início na segunda metade do século XVIII, foi caracterizada por uma redução dramática no nível da mortalidade. Entre 1740/89 e 1830/39 a esperança de vida aumentou 45,6%, de 27,4 a 39,9 anos. A população reagiu através do mecanismo clássico da restrição da nupcialidade, mas a redução da fecundidade assim conseguida (20%) só teria sido suficiente para compensar metade do aumento na esperança de vida. Há indicações (através, por exemplo, da evolução da ilegitimidade) de que essa restrição da nupcialidade não foi efectuada sem tensões. Wrigley sugere que, de facto, nessa situação sem precedentes os limites do mecanismo clássico foram atingidos, e que a limitação directa da fecundidade matrimonial pode ser compreendida, nesta primeira fase, como uma inovação no âmbito do sistema homeostático tradicional.
167Na segunda fase, como que a confirmar a hipótese de uma substituição de mecanismos no interior do sistema clássico, verificamos entre 1830 e 1870/80 uma estabilização da esperança de vida por volta dos 40 anos, uma continuação do declínio da fecundidade matrimonial e um regresso da nupcialidade a valores mais “normais”.69 Uma análise desagregada por regiões, com base nos indicadores demográficos calculados por Van de Walle, parece confirmar a hipótese geral, uma vez que durante esse período os comportamentos respectivos da nupcialidade e da fecundidade matrimonial foram diferentes de região a região, mas tiveram sempre o efeito de compensar a evolução da mortalidade e de manter a estabilidade da população em cada região.
168Na terceira fase, por fim, teríamos, a partir de 1870/80, o início da transição demográfica propriamente dita e do declínio irreversível da fecundidade matrimonial.
169Como é evidente, esta nova periodização da transição francesa coloca um conjunto de questões de interesse geral. A mais importante, do nosso ponto de vista, é levantada pelo próprio Wrigley [1987: 311-314], e é a seguinte: em termos gerais, não há grandes dificuldades em aceitar que o comportamento demográfico de uma população possa configurar um sistema homeostático, nem em caracterizar o funcionamento de um tal sistema, que mantém o crescimento da população dentro de determinados limites, como uma forma de “racionalidade inconsciente” ou “mão invisível demográfica”. Em última análise, é isso que está por trás de todos os modelos de um sistema demográfico do Antigo Regime. Mas quando o mecanismo de controlo passa a ser a limitação directa da fecundidade matrimonial estamos a considerar processos decisórios em que o modelo imediato é o da racionalidade individual. Não é fácil articular conceptualmente decisões conscientes de indivíduos com a lógica subjacente ao funcionamento de um sistema auto-regulado, porque no primeiro caso estamos a utilizar uma metodologia individualista, que procura explicar o sentido intrínseco e consciente de decisões e acções individuais, e no segundo estamos à procura de um sentido extrínseco e sociológico (que pode muito bem ser inconsciente) dessas mesmas acções e decisões, utilizando uma metodologia de tipo holista.70
170Apesar dessas dificuldades, é precisamente aqui que se torna necessário concentrar as atenções, nos processos através dos quais comportamentos individuais se transformam em mecanismos sociais e vice-versa. A solução, como já se referiu a propósito do problema da transição em geral, reside na consideração dos comportamentos e decisões individuais como comportamentos sociais individualizados e, por conseguinte, na tentativa de explicar, pelo seu contexto, essa mesma individualização, que se traduz na emergência da capacidade decisória individual.71
171Em termos mais gerais, o conjunto das situações aqui resumidas demonstra a extrema variabilidade das relações que podem existir entre os comportamentos demográficos e o seu contexto social imediato. A partir do momento em que a diversidade das situações e das trajectórias demográficas for assumida como um problema central na história das populações europeias, torna-se evidente que a análise do contexto social e institucional dos comportamentos demográficos deve passar a ser parte integrante de qualquer projecto de investigação nessa área. Isto implica, obviamente, uma análise da família e do agregado doméstico, da sua morfologia e da sua dinâmica, mas a análise das estruturas familiares, por si só, corre o risco de tornar-se metodologicamente estéril, se não estiver integrada numa análise mais ampla do sistema familiar e das funções que em cada sociedade são desempenhadas pelos agregados domésticos.
172Que em muitas sociedades europeias o sistema familiar tenha tido, através dos variados mecanismos de formação dos agregados domésticos, a função de controlo social da nupcialidade é bastante evidente. Também o é o facto de, nesses casos, o controlo social da nupcialidade se traduzir no controlo social da reprodução. São esses os mecanismos subjacentes aos modelos clássicos da Inglaterra e da área pirenaica. Mas o que demonstra a análise de outras situações, e em particular dos casos da Hungria transdanubiana nos séculos XVIII e XIX, ou da França entre 1780 e 1870, é que o controlo social da reprodução não se exerce — mesmo antes da transição demográfica — apenas através da nupcialidade. Em determinadas circunstâncias o controlo social da reprodução passa a ser exercido, no âmbito da família, através da emergência e do exercício da capacidade decisória individual. Noutras — em regimes de alta pressão — é exercido através de mecanismos que influem sobre a mortalidade: no caso-limite da “situação chinesa” de Malthus, através da fome e das epidemias, mas também através de mecanismos sociais como o infanticídio; no caso japonês — sempre segundo a formulação malthusiana — através do mecanismo social da guerra, permanentemente fomentada pela pressão da população sobre os recursos.
173O que esta variabilidade indica, sem sombra de dúvida, é que não será possível entendermos a dinâmica de uma população determinada se não individualizarmos as relações sociais subjacentes à estruturação do respectivo regime demográfico. Essas relações sociais estão centradas na família, é certo, mas não se esgotam nas relações que hoje definimos como “familiares”. O estudo dos regimes demográficos tem de combinar-se com o dos sistemas familiares, mas o mais importante é a sua articulação no âmbito de um enquadramento conceptual mais amplo. Esse enquadramento, que englobaria quer o estudo dos regimes demográficos, quer o dos sistemas familiares enquanto tais, pode ser descrito como um estudo interdisciplinar, que integra a demografia histórica e a história da família numa perspectiva que as articule e assegure a sua coerência. Trata-se, como sugeri no início, do estudo da organização social da reprodução, da maneira como a reprodução biológica de uma população se encontra socialmente organizada e estruturada.
Notes de bas de page
1 Livro dos Números, I, 1-3 e 44-47.
2 Primeiro Livro de Crónicas, XXI, 1-15.
3 Para um resumo da pré-história dos recenseamentos, cfr. Dupâquier e Dupâquier, 1985: 24-47.
4 A formulação é de Jacques e Michel Dupâquier [1985: 47].
5 Fontes deste tipo, ao contrário dos numeramentos de fogos e recenseamentos anónimos, iriam permitir a análise de comportamentos demográficos cujo referente é não uma população heterogénea, mas um conjunto de indivíduos identificados. Iriam tornar-se, assim, com o desenvolvimento de técnicas de análise nominativa, a fonte privilegiada da demografia histórica. Mas para isso foi preciso que a atenção dos estudiosos se deslocasse da tentativa de determinar o montante da população, e a sua evolução no contexto da evolução socioeconómica, para a caracterização de comportamentos demográficos e do seu papel na dinâmica da população.
6 Botero, 1591-96, Segunda parte, Proémio.
7 Vargas Ponce, 1982; sobre os estudos de Rickman, cfr. Wrigley e Schofield, 1981: 597-644.
8 Para uma síntese dos resultados do projecto, ver Coale e Watkins (orgs.), 1986.
9 Neste contexto, convém salientar o notável esforço de revisão metodológica empreendido por Susan Cotts Watkins, uma das principais colaboradoras no projecto, que num livro mais recente [1991] tenta mostrar como as decisões íntimas dos casais em relação à limitação da fecundidade podem reflectir mecanismos de controlo social da reprodução.
10 Mais recentemente, as teses de Hajnal foram reiteradas com bastante vigor por Alan Macfarlane [1986: 321-344].
11 As principais ideias de Chaunu foram repetidas em várias publicações. Para uma visão mais geral, ver Chaunu, 1974: 325-352.
12 Uma indicação da pouca importância antes atribuída a essa questão pode encontrar-se na tese de Jacques Dupâquier sobre o Bassin parisiense, onde, depois de expor o modelo e de lhe atribuir implicitamente uma validade geral, acaba por reconhecer que poderá ser válido apenas no Bassin parisiense, mencionando numa nota de pé de página [1979: 390] que no Sul da França o sistema familiar já era diferente.
13 M. M. Postan, por exemplo, considerou que até 25% da população poderia ter sido excluída [Smith, 1979: 83].
14 Pelo menos em relação às mulheres e, por conseguinte, no que diz respeito às suas implicações como regulador da fecundidade e da dinâmica da população.
15 [T. R. Malthus], An Essay on the Principle of Population, em Wrigley e Souden (orgs.), 1986: I.
16 Malthus [1798], em Wrigley e Souden (orgs.), 1986: I, 26. A palavra positiva refere-se a um travão que entra efectivamente em acção para reduzir o nível da população (a mortalidade), ao contrário do travão preventivo, que impediria o seu crescimento desmesurado.
17 A primeira e a sexta edição de 1826 (com a indicação das diferenças entre esta e a segunda, de 1803) estão incluídas em Wrigley e Souden (orgs.), 1986: I — III. Trata-se da melhor e mais completa das edições modernas das obras de Malthus.
18 Na realidade, a situação na China era bastante mais complexa, havendo inclusive indícios da prática do controlo da fecundidade matrimonial entre a nobreza Quing (1644-1911) [Feng, Lee e Campbell, 1995].
19 Do mesmo modo, embora esse aspecto não tenha sido objecto de desenvolvimento explícito por parte de Malthus, a natureza desses mecanismos irá também em cada caso reflectir a organização social.
20 Mackenroth, 1953. Para uma apresentação sucinta em inglês (não só do modelo de Mackenroth, mas de toda esta problemática), ver Schofield, 1976.
21 A tese, inédita, foi resumida em Ohlin, 1961.
22 Para uma síntese mais recente, ver Bideau, 1983.
23 Malthus, An Essay on the Principle of Population6, Livro I, cap. 12, em Wrigley e Souden (orgs.), 1986: II, 125-138.
24 Um exemplo do que é possível com este método (e das suas limitações) é o capítulo 4 (adiante), onde análises de regressão são utilizadas para identificar os factores associados à variação de estruturas familiares entre regiões (e no interior de cada uma delas) em Portugal continental.
25 Por vezes, torna-se possível efectuar este tipo de análise a partir de uma fonte como os registos da população da Bélgica. Cfr. R. Leboutte, 1988.
26 Ginzburg e Poni, 1979 (trad. port. em Ginzburg, 1989).
27 Ao mesmo tempo o que obriga a uma investigação mais exigente em termos da crítica das fontes, este facto torna imprescindível o recurso à informática. E é sem dúvida no campo da micro-história (não necessariamente em trabalhos de conteúdo demográfico) que se têm realizado os progressos mais notáveis na aplicação da informática à investigação histórica [Rowland, 1991]. Todos os projectos deste tipo, desde o caso paradigmático do Projecto Earls Colne, dirigido em Cambridge por Alan Macfarlane entre 1971 e 1983, até estudos mais recentes e menos ambiciosos, como as “reconstituições de paróquias” que têm vindo a ser efectuadas na Universidade do Minho sob a direcção de Norberta Amorim, tomam como ponto de partida os registos paroquiais. Usam-nos, contudo, mais como instrumento para a construção de genealogias e para a identificação do maior número de pessoas possível do que como fonte directa de informação demográfica. Isto não impede que tais estudos incluam uma componente de análise demográfica, ou que todos os cálculos sejam feitos com o rigor necessário para a determinação da população em risco. Mas permite que se utilizem informações provenientes de outras fontes para a identificação dos indivíduos, e que essas informações sejam também utilizadas para contextualizar os comportamentos demográficos.
28 Não há aqui qualquer contradição com o que acima foi dito quanto ao caracter limitado das informações contidas nesses registos. A qualidade do registo era, nos registos paroquiais ingleses, frequentemente muito boa desde bastante cedo, com poucas omissões: era fundamentalmente a escassez de informações nominativas relativas aos intervenientes em cada acto que impedia, na maioria dos casos, o recurso a técnicas de cruzamento nominativo como a reconstituição de famílias. As técnicas agregativas desenvolvidas em Cambridge prescindiam, justamente, daquilo que em geral não era possível com os registos ingleses: a identificação nominativa e o posterior cruzamento das informações relativas a cada indivíduo contidas no registo de diferentes actos de baptismo, casamento e óbito.
29 Para uma apresentação do projecto e de sua génese, cfr. Schofield, 1986.
30 Os trabalhos de John Rickman foram efectuados em preparação dos censos ingleses de 1801 e 1841. Cfr. Wrigley e Schofield (1981: 597-644).
31 Quase todo o trabalho de levantamento de fontes em que se basearam as investigações do Cambridge Group for the History of Population and Social Structure foi efectuado por voluntários, sob a direcção de membros do Group. Este corpo de voluntários, que Louis Henry denominou “le secret weapon anglais”, começou a formar-se nos anos 60 em resposta a um convite formulado por Peter Laslett numa palestra no programa cultural da BBC.
32 Um exemplo dessas técnicas é a que foi desenvolvida por John Hajnal para o cálculo, a partir da estrutura da população por sexo, idade e estado matrimonial, tal como se encontra registada em qualquer censo moderno, da idade média ao casamento nos 35 anos anteriores a esse recenseamento (cfr. adiante, cap. 3). Em termos mais gerais, todas as técnicas que derivam da teoria das populações estáveis procuram deduzir a história recente de uma população (nível de mortalidade ou fecundidade, taxa de crescimento) a partir dos efeitos dessa mesma história sobre a estrutura da população no presente.
33 A técnica, na versão desenvolvida por Wrigley e Schofield (back projection), consiste na aplicação em sentido contrário da lógica que preside à elaboração de projecções demográficas: em vez de começar com a estrutura por idades da população em determinada data e ir ano a ano acrescentando nascimentos e subtraindo óbitos (por idade) até chegar à data futura a que diz respeito a projecção, começa-se neste caso com a estrutura por idades da população numa data em que exista recenseamento de boa qualidade, e vai-se ano a ano acrescentando os óbitos por idade e subtraindo os nascimentos até remontar, no passado, à data para a qual se deseja conhecer a estrutura da população. Começando com o recenseamento inglês de 1871, e utilizando as séries nacionais de nascimentos e óbitos reconstituídas a partir da amostragem de registos paroquiais, conseguiram remontar até 1541. A distribuição por idades dos totais anuais de óbitos foi feita com a ajuda da teoria das populações estáveis, e um grande número de simulações no computador foi efectuado para testar a robustez do modelo com diferentes funções de mortalidade e emigração. Ver Wrigley e Schofield, 1981, e, para uma exposição acessível e clara da lógica subjacente a este tipo de análise, Breschi, 1991.
34 Esta afirmação, embora correcta numa perspectiva de análise comparada, precisa de ser matizada. Cfr. Walter e Schofield (orgs.), 1989, caps. 1 a 4.
35 Sobre a dinâmica da nupcialidade na Inglaterra, e sobre o papel respectivo do celibato e da idade de acesso ao matrimónio, cfr. também Goldstone, 1986.
36 Cfr. adiante, as primeiras páginas do capítulo 3.
37 Para uma tentativa de aplicar este tipo de modelo à análise da sociedade inglesa ver Macfarlane, 1978. Para uma discussão mais aprofundada do problema, cfr. Rowland, 1985.
38 Um resultado análogo foi, de resto, obtido por Massimo Livi Bacci [1988], na sua análise comparada do processo de transição nos últimos cem anos em Portugal, Espanha e Itália.
39 Serão de salientar aqui os trabalhos de David Sabean [1990], o volume colectivo organizado por Netting, Wilk e Arnould [1984] e, no contexto português, o livro de Álvaro Ferreira da Silva [1993]. Poderiam ainda mencionar-se, para além destas três perspectivas de análise, os estudos associados com a chamada psico-história, ou os estudos sobre o “curso de vida” (life-course) inspirados por Tamara Hareven. Cfr. Hareven (org.), 1978, e Hareven, 1982.
40 Os trabalhos apresentados no congresso foram publicados no volume Household and Family in Past Time [Laslett e Wall (orgs.), 1972]. Convém, contudo, recordar que os trabalhos apresentados sobre outros países que não a Inglaterra raramente abrangiam mais que uma ou duas aldeias, sendo, portanto, de duvidosa representatividade; e que alguns países, entre os quais Portugal e Espanha, nem sequer foram mencionados. Sobre o mito da família patriarcal da Europa pré-industrial, cfr. agora Smith, 1993.
41 É usual distinguirem-se dois modelos fundamentais de residência após o matrimónio. Num sistema neolocal, os jovens estabelecem um novo agregado doméstico imediatamente após o casamento, abandonando (se ainda lá estiverem a morar) os respectivos agregados domésticos de origem. Num sistema patrilocal, os jovens integram-se no agregado do pai do noivo (residência patrivirilocal) ou da noiva (residência patriuxorilocal). Quando, num sistema patrilocal, só um dos filhos, o herdeiro, se integra após o casamento no agregado paterno para posteriormente assumir a direcção da casa, diz-se que se trata de um sistema de família troncal (do francês famille-souche).
42 O ciclo de desenvolvimento de um agregado familiar típico num sistema de família troncal poderá, com efeito, incluir três fases diferentes: uma primeira fase, em que, após a morte de ambos os pais, o filho e sua mulher vivem só com os seus próprios filhos solteiros (agregado familiar simples); uma segunda fase, em que um desses filhos se casa e fica a viver com os pais (agregado familiar múltiplo); e uma terceira fase, em que o filho casado vive com a mãe viúva (agregado familiar alargado).
43 Há ainda outro problema, que deriva da terminologia utilizada. Laslett e Hammel falam de agregados familiares “simples”, “alargados” (extended) e “múltiplos”, englobando as duas últimas categorias na noção de “agregado familiar complexo”. Esta classificação parece basear-se na distinção entre “família nuclear” e “família extensa” (extended family), o que tem levado muitos autores a insistir que mesmo num sistema de família nuclear (ou de agregados familiares simples) existem relações muito importantes e significativas entre membros da família extensa pertencentes a agregados independentes. Esta objecção baseia-se, contudo, numa confusão. A noção de “família extensa” (extended family) só tem sentido quando contraposta à “família nuclear” e designa aqueles membros da família que não residem no mesmo agregado familiar. Numa sociedade em que a co-residência de parentes mais afastados (ou de mais do que um casal) fosse um fenómeno normal e frequente, a noção de “família extensa” deixaria de ter sentido. A categoria laslettiana de “agregado familiar alargado” (extended family household) designa, nesses termos, um agregado familiar que inclui, para além dos membros da família nuclear, alguns membros da família extensa. Na medida em que a contraposição família nuclear-família extensa se baseia nos pressupostos do modelo inglês, o mesmo poderá dizer-se de toda a tipologia Hammel-Laslett.
44 Não vejo inconveniente em utilizar os termos “família” e “familiar” neste contexto desde que fique claro que se trata de uma unidade de residência baseada, em geral, em relações de parentesco. Salvo quando houver risco de confusão, utilizarei os dois termos indiferentemente para designar o household enquanto unidade de residência (v. g., “estrutura familiar” e “estrutura dos agregados domésticos”).
45 Este ensaio de Laslett tem como ponto de partida os breves comentários de Hajnal [1965: 132-135] sobre o problema, nas conclusões do seu ensaio sobre o sistema matrimonial europeu.
46 Ou seja, um casamento em que marido e mulher são companheiros e parceiros um do outro.
47 Laslett reconhece explicitamente (1977b: 12) que o seu ensaio reflecte discussões havidas com John Hajnal em 1974-1975, aquando da estada deste no Cambridge Group. A distinção estabelecida por Laslett entre os sistemas familiares “ocidental” e “não ocidental” corresponde de perto ao contraste delineado por Hajnal entre os sistemas de casamento “europeu” e “não europeu”. Como já se referiu acima, Hajnal abordara o problema na conclusão do seu ensaio de 1965. O próprio Peter Laslett costuma referir-se a esta tese como a “hipótese Hajnal-Laslett”.
48 Cfr. a descrição de diversos modos de formação dos agregados domésticos em Hajnal, 1982.
49 Essas informações eram as seguintes: a) algumas informações sobre a complexidade da estrutura familiar em zonas da França centro-meridional, dos Pirenéus e da Córsega nos séculos XVIII e XIX — a partir da publicação do livro de Flandrin [1976], a complexidade da família meridional (francesa…) transformou-se em lugar-comum, ao ponto de Michel Vovelle, por exemplo, se ter visto obrigado [1980: 39-54] a pôr em causa a suposta homogeneidade deste modelo “meridional”; o exemplo da Córsega tinha já sido citado no colóquio de Cambridge [Dupâquier e Jadin, 1972], e desde a época de Le Play os Pirenéus tinham estado associados à famille souche; b) algumas informações ou indicações acerca da precocidade do matrimónio feminino em zonas do Sul de França e dos Pirenéus nos séculos XIV e XV [Le Roy Ladurie, 1975; Rossiaud, 1976; Laribière, 1967; e Higounet — Nadal, 1978]; c) informações igualmente fragmentárias acerca do acesso precoce ao matrimónio das mulheres em Castela e Valência em finais do seculo XVI e no século XVII [Bennassar, 1967; Casey, 1977]; d) uma informação muito completa sobre a complexidade das famílias rurais em zonas de mezzadria no Centro-Norte da Itália no século XIX [Angeli e Bellettini, 1979].
50 Há que ter em conta, aqui, o facto de boa parte das discussões que se seguiram ao colóquio de Cambridge terem tido como objecto, como já se disse, a fronteira meridional do modelo “ocidental”. Esta é uma perspectiva que se encontra presente não apenas em textos de membros do Grupo de Cambridge, como também nos dos seus críticos franceses. Esta visão homogénea da Europa meridional pode também ter sido reforçada por uma conjuntura intelectual onde deve ser salientado o impacte da reedição (e da tradução inglesa) do Mediterrâneo de Braudel [Braudel, 1966; 1972-3], bem como a influência dos trabalhos de antropologia social do Mediterrâneo publicados nas décadas de 60 e 70 [Pitt-Rivers (org.), 1963; Peristiany (org.), 1965, 1968, 1976; Davis, 1977].
51 Trata-se essencialmente da informação disponível em Cambridge em finais dos anos 70 em publicações históricas ou demográficas de língua inglesa ou francesa. Uma informação mais completa, embora nem sempre de fácil acesso, encontrava-se já disponível em italiano, espanhol e português. E já havia, em inglês, um número considerável de estudos socioantropológicos que assinalavam a esmagadora presença da família nuclear no Sul da Itália e da Península Ibérica.
52 Tive ocasião, por exemplo, de apresentar no seminário do Cambridge Group, em Novembro de 1981, uma comunicação sobre “Family Forms and Demographic Patterns: the Puzzle of Portugal” (contendo os primeiros resultados das investigações sobre os padrões demográficos e as estruturas familiares em Portugal que tinham sido iniciadas no Instituto Gulbenkian de Ciência) e de sublinhar até que ponto a distribuição regional das estruturas familiares e das idades médias de casamento parecia contradizer a hipótese Hajnal-Laslett (cfr. adiante, caps. 3 e 4). Durante a discussão, andámos às voltas com uma formulação preliminar do que viria, no texto final do ensaio de Laslett, a ser o modelo mediterrânico, mas a única conclusão a que se pôde chegar, sem pôr em causa os próprios termos em que a tipologia tinha sido concebida, era a de que Portugal não se enquadrava no modelo tal como se encontrava formulado. E de facto, nesse texto final, a única conclusão a que se pôde chegar resume-se à frase “Portugal is a puzzle” [Laslett, 1983, 530].
53 Isto deve-se a que, mesmo num sistema baseado na co-residência de dois casais de gerações diferentes, muitos agregados domésticos se apresentam como “incompletos”, ou porque os pais já terão morrido, ou porque nenhum dos filhos ainda se terá casado. Nestas condições, os agregados domésticos múltiplos (ou múltiplos e alargados) poderão, por razões puramente demográficas deste tipo, constituir uma minoria do conjunto dos agregados observados num momento determinado. Este facto levou Berkner [1975] a argumentar, contra Laslett, que o facto de a maioria dos agregados ser de tipo simples não significa necessariamente que se trata de um sistema de família nuclear; inversamente, é preciso reconhecer que o facto de apenas uma minoria dos agregados ser de tipo complexo não é incompatível com a existência de um sistema de família troncal [cfr. Wachter, Hammel e Laslett, 1978].
54 Laslett parece referir-se aqui ao Minho e ao facto de ser nessa região que se encontram estruturas familiares complexas. A forma como acabou por incluir Portugal na sua “região mediterrânica” (apesar de ter tido conhecimento de que a complexidade da família no Minho reflectia um sistema de família troncal e de que o casamento era tardio para homens e mulheres) é uma indicação da medida em que a sua tipologia continuava a basear-se no modelo inglês e na oposição família nuclear / família complexa.
55 Um dos critérios preconizados pelo Cambridge Group para decidir se uma fonte poderá ser utilizada como base para estudos sobre as estruturas familiares é justamente a medida em que essas unidades (presumivelmente) residenciais estão, no documento, claramente separadas umas das outras.
56 Uma excepção é constituída, pelo menos em teoria, pelos róis de confessados portugueses. Cfr., por exemplo, as instruções detalhadas que constam das Constituiçoens Synodaes do Bispado de Lamego […], Lisboa, 1683, pp. 54-55: “Difficultosamente se poderia saber, se os Freguezes cumprião com o preceito de se confessarem, & commungarem na Quaresma, senão ouvesse algūa prevenção. E por tanto conformandonos com o costume geral, & Constituiçoens antigas deste Bispado, mandamos a todos, & a cada hum dos Parochos delle, que tanto que entrar a Septuagesima, per sy mesmos, & não por outrem, vaõ pelas ruas, & casas de sua Freguezia, & fação rol de todas as pessoas, homens, & mulheres, seus Freguezes, nomeados por seus nomes, & sobrenomes, com a rua, & bairro, onde vivem, assentando cada casa per sy, & cada pessoa em regra separada, com item particular, & com margem bastante para se pòr lembrança dos que tiverem cumprido. E em cada hūa das casas dos ditos Freguezes assentarà em primeiro lugar as cabeças, & depois os filhos, & familiares, que passarem de sete anos, com toda a distinção, & declaração, para se saber, quaes são os que devem jà receber a Communhão, & quaes não […]”. Apesar do carácter formal destas instruções, alguns aspectos, para nós importantes, permanecem apenas implícitos. Qual era, por exemplo, a definição exacta de “casa” em Lamego no século XVII? Quando um filho, casado em casa, assumia a direcção da exploração, a “chefia” — para efeitos do rol de confessados — permanecia com o pai ou passava para o filho? Quando um pai morresse, tendo um filho casado em casa, a chefia passava para o filho ou para a viúva? Nestes casos (de agregados domésticos contendo mais de um casal, ou um casal — jovem — e uma viúva), o agregado contava-se como uma casa ou duas? Da resposta dada a estas questões, que por demasiado óbvias não mereceram inclusão nas instruções, poderá depender a interpretação das estatísticas sobre a composição dos fogos e a comparabilidade de duas listas feitas em lugares ou épocas diferentes.
57 A definição do agregado doméstico adoptada por Hammel aproxima-se do conceito de unidade social primária que João de Pina Cabral [1991: 117-119] propõe como base para a análise comparativa do grupo doméstico na Europa atlântica e mediterrânica. Não é meu propósito, aqui, discutir as questões levantadas por Pina Cabral, que, no entanto, considero fundamentais. Apesar de as suas preocupações serem diferentes das minhas, concordo plenamente com a sua tese de que não é possível avançar em direcção a uma análise comparada dos sistemas familiares na Europa, e das suas implicações demográficas, sem esclarecer o sentido que se deve atribuir a conceitos como os de maison/ casa e o seu significado sociológico.
58 Nestes termos, é pena que o conjunto de critérios mais interessante na tipologia de Laslett, o que se refere às funções do agregado doméstico enquanto unidade de produção e reprodução, seja justamente o que se encontra menos desenvolvido.
59 Muitos elementos para uma tipologia regional, como já referi, podem encontrar-se em Laslett, 1983. Cfr. ainda Burguière e Lebrun, 1986, e — com alguma cautela — Todd, 1990: 29-67.
60 Apesar de a comparação ser formulada, more antropologico, em termos atemporais, convém talvez recordar que todas as caracterizações se referem a situações observáveis antes da transição demográfica.
61 A idade média ao casamento dos homens é relativamente elevada em toda a zona circumpirenaica. Dá-se o mesmo com as mulheres, excepto em zonas do versante catalão, onde o casamento feminino é algo mais precoce.
62 No País Basco, o herdeiro é escolhido pelos pais, enquanto nas áreas catalãs é automaticamente o primogénito. Em qualquer dos dois casos, as práticas de herança implicam determinadas relações de autoridade no âmbito da casa paterna e uma bem definida distribuição de papéis.
63 Mesmo quando em casos individuais a sucessão à direcção da casa se der antes da morte do pai, o momento em que essa sucessão se verificar reflectirá a esperança de vida — e por conseguinte a mortalidade — do conjunto da geração anterior.
64 Sobre a família sarda e o papel da mulher, ver Oppo, 1992. Para uma comparação entre a Sicília e a Sardenha cfr. Barbagli, 1988: 555-563.
65 Sobre as estruturas familiares toscanas, cfr. sobretudo Doveri, 1990: 144-222.
66 Breschi, 1990. Neste estudo Breschi utiliza a técnica original de reverse projection, desenvolvida por Ronald Lee.
67 De facto, a Toscana deveria, segundo a hipótese Hajnal-Laslett, ser caracterizada por um regime demográfico de alta pressão, regulado pela mortalidade, na medida em que estruturas familiares tão complexas deveriam corresponder a um regime de matrimónio precoce e universal para as mulheres. Para sublinhar o paradoxo, convém notar que na zona da Maremma, no Sul da Toscana, o regime demográfico era de facto de alta pressão, com uma elevada mortalidade devido à malária, mas este coexistia com um regime de trabalho assalariado e com um sistema de família nuclear.
68 Devemos aqui, seguindo Lestaeghe [1980], distinguir entre três modalidades de limitação da fecundidade. A primeira, que incide sobre o início da actividade reprodutiva da mulher, decorre em geral do controlo exercido sobre o acesso ao matrimónio e à reprodução legítima. A segunda, que incide sobre os ritmos dessa actividade reprodutiva, decorre de um conjunto de práticas que, conscientemente ou não, implicam uma redução dos riscos de engravidar (aleitamento prolongado, períodos de abstinência sexual, etc.). A terceira, que incide sobe o término da actividade reprodutiva e se traduz numa decisão, por parte do casal, de (tentar) não ter mais filhos depois de atingido o número desejado, corresponde a práticas conscientes de contracepção. Um baixo nível de fecundidade geral pode ser consequência de qualquer das três formas de controlo; um baixo nível de fecundidade matrimonial pode ser consequência da segunda e/ ou da terceira; mas só a terceira implica que a curva de fecundidade se afaste — independentemente do seu nível — da forma característica da fecundidade natural. E é só esta terceira que pode ser interpretada, de maneira inequívoca, como decorrendo de decisões tomadas pelo casal.
69 Segundo os números de Van de Walle [1974], que, no entanto, não invalidam a hipótese geral de Wrigley, quer a nupcialidade, quer a fecundidade matrimonial terão manifestado uma tendência para a estabilidade neste período, com uma ligeira recuperação da fecundidade matrimonial em muitas regiões durante alguns anos.
70 Ambas as metodologias são legítimas e ambas têm as suas limitações intrínsecas. A escolha entre uma e outra depende do enquadramento da investigação, e não seria de excluir uma estratégia que recorresse a ambas, mas sucessivamente, para esclarecer aspectos complementares do objecto em estudo. Qualquer tentativa de combinar as duas perspectivas de análise parece-me contraditória e condenada ao fracasso. Cfr. Rowland, 1985, e, sobre o problema teórico mais geral, Rowland, 1987a.
71 Cfr. o já referido estudo de Susan Cotts Watkins [1991], que tenta justamente esclarecer de que maneira as decisões individuais a respeito da procriação poderão reflectir determinismos sociais. No caso da análise da dinâmica regional da população francesa efectuada por Wrigley, haveria também que esclarecer através de que mecanismos as decisões quanto ao número desejado de filhos tomadas pelos casais de uma geração se articulam com as decisões quanto à idade ao casamento tomadas por casais da geração seguinte, por forma a harmonizar a evolução conjunta da fecundidade matrimonial e da nupcialidade com a evolução da mortalidade.
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