Prefácio
p. XIII-XVIII
Texte intégral
1Os ensaios incluídos neste volume reflectem um conjunto de preocupações que têm vindo a orientar a minha actividade de investigação no domínio da demografia histórica e da história da família durante os últimos quinze anos, e sintetizam os resultados de projectos e trabalhos realizados ao longo desse período. Após a minha vinda para Portugal, em 1975, dera início, com colegas da equipa de História Económica da Faculdade de Economia do Porto, a um conjunto de estudos de história local inspirados no modelo das historical community studies proposto por Alan Macfarlane e outros historiadores influenciados pela antropologia social. Alguns anos mais tarde, no Núcleo de Sociologia Histórica do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, procurei consolidar essa linha de investigação através da exploração de dois tipos de fontes: os registos paroquiais, que juntamente com os róis de confessados constituem a base indispensável para a construção de genealogias, para a identificação dos indivíduos, e para a determinação do papel do parentesco na estruturação das relações sociais; e os processos da Inquisição, donde esperava obter uma informação pormenorizada sobre a natureza das relações e dos conflitos interpessoais, comparável à que fora retirada por Alan Macfarlane dos processos ingleses de feitiçaria ou por Emmanuel Le Roy Ladurie da documentação da Inquisição medieval sobre os cátaros de Montaillou.
2No início da década de 80, no entanto, nem a documentação inquisitorial nem os registos paroquiais se encontravam, em Portugal, em condições de serem utilizados para esse tipo de investigação; e no programa inicial do então recém-criado Núcleo de Sociologia Histórica foi dada prioridade ao levantamento e à análise sistemática destes dois tipos de fonte, bem como ao aprofundamento das questões metodológicas colocadas pela sua eventual utilização em estudos micro-históricos de comunidade.
3A análise dos processos inquisitoriais, e da instituição que lhes deu origem, representava um desenvolvimento natural dos meus estudos anteriores sobre os processos de feitiçaria, mas o domínio da demografia histórica, e em particular da demografia histórica portuguesa, era em grande parte novo para mim. Ao mesmo tempo que procurava iniciar-me nas problemáticas e nas técnicas da disciplina, comecei, com a colaboração de José Mariz, a tentar enquadrar no contexto da diversidade observável à escala europeia os poucos dados conhecidos sobre os comportamentos demográficos e as estruturas familiares portuguesas. A questão nunca tinha sido posta nesses termos, e os primeiros resultados foram bastante surpreendentes. Tornou-se evidente que nem o modelo de “sistema demográfico de Antigo Regime”, de Jacques Dupâquier, nem o modelo baseado na interdependência funcional entre um regime de casamento tardio e a prevalência da família nuclear, proposto por John Hajnal e Peter Laslett, tinham aplicação em Portugal. Visto que os historiadores-demógrafos dos outros países da Europa meridional tampouco tinham manifestado qualquer interesse pela análise comparada dos regimes demográficos e sistemas familiares, a compreensão da especificidade do caso português passava pelo exame crítico dos esquemas interpretativos até então propostos e pelo estabelecimento de um quadro alternativo de análise comparativa. Mas passava também pela caracterização da diversidade observável no próprio território português, o que obviamente não seria possível com base em estudos isolados de microdemografia paroquial. Paradoxalmente — visto que o propósito inicial tinha sido o de criar condições para a realização de estudos intensivos de âmbito local — fui levado a aprofundar questões metodológicas inerentes à análise de recenseamentos, com o objectivo de efectuar uma caracterização do caso português em toda a sua diversidade. Essa caracterização global, por sua vez, poderá servir como quadro de referência para a avaliação do alcance e da representatividade de futuros estudos locais. Estou convencido de que só a multiplicação desses estudos, desde que devidamente enquadrados e realizados numa perspectiva de análise comparada, poderá servir como base para o desenvolvimento da história da população e da família em Portugal.
4O primeiro capítulo, de carácter geral e introdutório, insiste no carácter contextual de qualquer análise da família. Representa, de certo modo, uma reacção contra o isolacionismo de alguns historiadores, que pretendem instituir a história da família em campo autónomo de investigação histórica, desprezando as suas relações com outras ciências sociais (e em particular com a demografia). E pretende demonstrar que o estudo comparativo da família, pelo simples facto de se basear na análise das suas funções, tem sempre um carácter interdisciplinar.
5O segundo capítulo, mais ambicioso, pretende fazer a mesma coisa em relação à demografia. Passa em revista a história da demografia histórica, e das fontes em que esta se baseia, para tentar mostrar como o reconhecimento do papel central da nupcialidade na determinação da dinâmica das populações antigas implica uma necessária abertura interdisciplinar da demografia histórica e a sua articulação, numa perspectiva mais ampla, com a história da família. Através da análise do conceito de regime demográfico, mostra como a dinâmica das populações antigas reflecte as funções demográficas da família, e, por conseguinte, os factores socioeconómicos que servem de enquadramento e contexto para o sistema familiar, e propõe uma série de exemplos que ilustram, no contexto europeu, as diferentes formas de articulação, através da nupcialidade, entre regime demográfico e sistema familiar.
6Os restantes dois capítulos constituem uma primeira aproximação à complexidade e especificidade do caso português.
7No terceiro capítulo procuro identificar os padrões de nupcialidade observáveis em Portugal continental durante a segunda metade do século XIX. Trata-se do primeiro momento em que uma tal caracterização se torna possível graças à realização, a partir de 1864, de recenseamentos da população. Mas trata-se também do último momento em que os padrões de nupcialidade têm relevância decisiva para a caracterização dos regimes demográficos, porque o início da transição demográfica nas primeiras décadas do nosso século e a lenta difusão de práticas de limitação da fecundidade matrimonial viriam, a partir de então, permitir que a dinâmica da população deixasse de ser regulada pela nupcialidade. Essa caracterização exigiu, no plano da metodologia, um esforço considerável de crítica e revisão do método de Hajnal, frequentemente utilizado por demógrafos e historiadores para o cálculo de indicadores da nupcialidade a partir de recenseamentos, porque se tornou logo evidente que em Portugal, nessa época, não se encontravam reunidas as condições — relativamente à mortalidade, às migrações e à estabilidade dos comportamentos matrimoniais — que constituem a condição sine qua non para a utilização desse método. Optei por incluir, no texto, a exposição do procedimento adaptado para a sua avaliação e revisão. Fi-lo não por terrorismo metodológico ou para satisfazer um qualquer desejo perverso de trazer para a mesa de jantar os tachos em que este foi cozinhado, mas por estar convencido de que a — desejável — utilização de métodos de cálculo indirectos por parte de historiadores exige uma consciência plena das suas implicações e condições de utilização, e para deixar explícitas as condições de validade dos resultados a que cheguei. O leitor que estiver interessado apenas nestes últimos poderá, a partir da observação dos mapas (e da consulta do quadro A. 1, em apêndice), limitar-se ao respectivo comentário às páginas 107-117. De qualquer modo, creio que os resultados obtidos permitem, para o período em questão, uma caracterização bastante exaustiva dos padrões de nupcialidade portugueses e da sua configuração regional, constituindo um ponto de partida para investigações mais aprofundadas e localizadas sobre a articulação interna dos regimes demográficos em Portugal.
8O último capítulo, por sua vez, propõe-se analisar o segundo domínio focado no capítulo 2, o do sistema familiar, e procura descrever a configuração regional das estruturas familiares em Portugal a partir dos dados do Censo de 1960. No intuito de explicitar o facto de as informações com que trabalha o historiador não serem simplesmente “dadas”, mas deverem ser sempre objecto de uma manipulação prévia que condiciona a validade dos resultados, incluí no texto uma explicação das operações que foram necessárias para transformar as informações fornecidas pelo Censo numa representação adequada da estrutura familiar. Com base nessa representação, e para dar conta das variações inter e intra-regionais detectadas, foi em seguida efectuada uma análise multivariada, que permitiu a elaboração de um modelo explicativo articulado em torno de três factores principais: os regimes de economia agrária, as relações cidade-campo e a emigração. A incidência de cada um desses três factores era variável consoante a região, mas em todos os casos o modelo permitia explicar, estatisticamente, uma proporção muito considerável da variação interconcelhia nas estruturas familiares. Analisadas as diferenças inter-regionais na capacidade explicativa do modelo, chegou-se à conclusão de que os principais factores subjacentes à variação nas estruturas familiares eram o grau de subordinação do tecido económico à lógica de mercado e a medida em que essa subordinação permitia a estruturação das relações sociais e familiares em torno de um princípio alternativo, o da lógica da casa. A principal novidade do ensaio reside não nesta conclusão, mas na sua demonstração estatística. O ensaio constitui, tal como o capítulo anterior, um ponto de partida para investigações mais aprofundadas e localizadas sobre a estruturação do sistema familiar e sobre as suas relações com o contexto socioeconómico.
9Resta a questão, implícita na própria escolha dos textos que compõem este volume, da relação entre sistema familiar, regime demográfico e o respectivo contexto socioeconómico. Infelizmente, não dispomos, à escala do país, de informação estatística suficiente para ensaiar uma análise dessas relações na segunda metade do século XIX, que representa, como disse, o último momento em que uma tal análise teria sentido. A informação necessária só está disponível para 1960, quando a difusão de práticas de controlo da fecundidade já retirara à nupcialidade o seu papel de regulador da dinâmica demográfica. Numa tentativa de estabelecer uma ponte entre as duas caracterizações, procurou-se estabelecer até que ponto as estruturas familiares observadas em 1960 poderiam ser consideradas como representativas da situação existente no passado. Os resultados são surpreendentes e parecem justificar a utilização do quadro descrito e analisado neste capítulo, juntamente com o quadro da nupcialidade descrito no capítulo anterior, como ponto de partida para investigações de âmbito local relativas à articulação entre regime demográfico e sistema familiar em épocas anteriores.
10Alguns leitores poderão estranhar que não tenha procurado retirar conclusões mais desenvolvidas a partir do trabalho realizado e dos resultados a que foi possível chegar. As razões são duas. Por um lado, qualquer tentativa de ir mais além na interpretação dos resultados exigiria uma ampla análise comparativa, para situar o caso português no quadro da diversidade europeia, e questões de oportunidade editorial aconselharam a que se não sobrecarregasse este volume. Ficará para outra ocasião. Por outro lado, o meu propósito aqui era mais limitado. Queria apenas esclarecer os termos da questão, efectuar uma primeira aproximação de conjunto ao caso português e lançar um desafio ao número crescente de investigadores que se ocupam de demografia histórica e da história da família em Portugal: o de multiplicarem, sim, as monografias locais, a realizar com toda a minúcia que a documentação permite; mas fazerem-no, sempre, tendo presente a necessidade de justificar, em termos de um enquadramento mais amplo e comparativo como o aqui proposto, o seu âmbito e alcance.
11Na realização destes estudos contraí dívidas de vária ordem.
12Ao Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian quero agradecer a confiança manifestada neste programa de investigações aquando da criação do Núcleo de Sociologia Histórica; à Direcção do Instituto Gulbenkian de Ciência, o apoio constante à sua realização durante os anos em que trabalhei no IGC (1980-1987); e ao Conselho de Investigação do Instituto Universitário Europeu o ter-me concedido, reconhecendo as implicações comparativas e o alcance europeu desse programa, os meios necessários à sua conclusão.
13Muitas das ideias expostas neste livro foram clarificadas em discussões e conversas informais com John Hajnal, Peter Laslett e Richard Smith; com José Mariz, Álvaro Ferreira da Silva, João Arriscado Nunes e João Pina Cabral; e com os participantes e alunos dos seminários dos Estudos Avançados de Oeiras (1982 — 1985), da Escola de Verão sobre Nupcialidade e Família do Instituto Universitário Europeu (1988) e do curso de mestrado em História das Populações da Universidade do Minho (1993 — 1994), onde tive ocasião de apresentar e discutir versões preliminares de alguns destes textos.
14Mais directa foi a contribuição de Rosella Rettaroli e Lucia Pozzi, assistentes de investigação no Instituto Universitário Europeu, que demonstraram imaginação e paciência na verificação dos dados e na testagem de inúmeros modelos estatísticos, e de Elizabeth Reis, que generosamente pôs à minha disposição os dados já formatados dos recenseamentos de finais do século XIX.
15A todos, e aos outros colegas e amigos que de alguma maneira contribuíram para a realização destes estudos, o meu muito obrigado.
16O capítulo 1 foi inicialmente publicado, em espanhol, na revista Gestae. Taller de historia, (n.° 1, 1989).
17Os capítulos 2 e 3 incluem, refundidos, trechos de comunicações apresentadas em congressos e seminários ao longo dos últimos anos, algumas das quais já publicadas na sua forma original nas actas respectivas: “Nupcialidade, Família, Mediterrâneo”, Boletín de la Asociación de Demografía Histórica, V/2, 1987; “Mortalidad, migraciones y edad de acceso al matrimonio: algunos problemas en el análisis de la nupcialidad en la Península ibérica”, Boletín de la Asociación de Demografía Histórica, V/3, 1987; “Matrimonio y familia en el Mediterráneo occidental: algunas interrogaciones”, in F. Chacón (org.), Familia y sociedad en el Mediterráneo occidental, Murcia, 1987; “Sistemas matrimoniales en la Península Ibérica (siglos XVI-XX): una perspectiva regional”, in V. Pérez Moreda e D. S. Reher (orgs.), Demografía Histórica en España, Madrid, 1988; “Organisation sociale de la reproduction et transition démographique en Europe méditerranéenne”, in AA. VV., La transition démographique dans les pays méditerranéens, Nice, 1989; “El Censo de Floridablanca y la historia de las poblaciones europeas”, in AA. VV., La Población española en el siglo XVIII a través del Censo de Floridablanca, Madrid, 1992; e “Microanálise e regimes demográficos”, in D. Reher (org.), Reconstituição de Famílias e Outros Métodos Microanalíticos para a História das Populações, Porto, 1995.
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