O basto 1
p. 363-365
Texte intégral
1Não se ignora que a Martins Sarmento se deve a descoberta de três estátuas de guerreiros lusitanos encontradas respectivamente em S. Jorge de Vizela, nas proximidades de Santo Ovídio (Fafe) e na vila de Refojos de Basto (2). À excepção desta última e das duas da Galiza, acaso perdidas, todas as outras se vêem figuradas : a de Viana na grande maioria das publicações que se ocupam das estátuas militares lusitanas ; as de Montalegre, Vizela e Fafe ainda em mais duma revista ou livro3; por fim, num boletim arqueológico, a descoberta pelo sr. Rafael Rodrigues e descrita pelo sr. Leite de Vasconcelos – que de todas as que apareceram no país é a mais incompleta e pior esculturada4. Restava, pois, figurar a de Basto, inédita para quem não a visitou sobre a pequena ponte em que actualmente existe, logo à entrada da Praça.
2Não obstante a transfiguração a que a submeteram e a que Sarmento, em mais do que em um lugar, aludiu (5), subsistem bem patentes os caracteres das suas congéneres : saio curto, adaga larga e pequena, cinturão trinervado, escudo redondo e à frente do abdómen, rótulas bem visíveis e, porventura, armilas nos dois braços. Todavia as modificações que sofreu quando a mudaram, em 1892 e por deliberação da Câmara de Cabeceiras, da antiga ponte onde estava para aquela em que hoje pode ser observada, tais alterações constituem o mais indouto e pitoresco dos restauros que uma edilidade de aldeia poderia gestar e decidir ! A estátua surge-nos com cabeça, barretina, músculos das pernas e pés evidentemente aditados ; no escudo a ornamentação é manifestamente contemporânea das deturpações ; no tórax lê-se em caracteres incisos, avivados hoje a amarelo sobre fundo azul, PONTE/ DE S MGUEL/DE EEFOYS/e logo em baixo, no escudo, completando a epígrafe, DE BASTO, em caracteres negros sobre fundo branco, sendo inclusas algumas das letras de toda a inscrição ; por fim a data 1612 revela a época do primeiro desvario. Estão actualmente pintadas a negro as botas, as ligas (!) e a barretina ; a azul, o saial ; a branco, as meias e o escudo ; a amarelo, os galões, a gola, os punhos e os calções ! Argamassa e tintas, como se vê, fizeram, aliançadas, esta grotesca metamorfose ! Do alto, presidindo olìmpicamente à fraude, a municia palidade – como na arquitectura sacra, os cónegos das sés e das colegiadas !
3Já as mutilações da estátua de Viana, inicialmente descrita por Hübner (6), originaram, ao tempo em que apenas eram só conhecidas as de Montalegre e sobre a sua data e origem nada se estabelecera de plausível (7), interpretações e comentários (8) que levaram à dúvida, por momentos, alguns espíritos aos quais o restauro impressionara. Em Espanha mesmo vários dos aditamentos, como a cruz (9) e as conchas (10), induziram certos antiquários a recuarem indevidamente o uso do símbolo religioso e do adorno marinho.
4Breve, porém se reconheceu a mutilação e até a sua causa (11), e para logo se desvaneceram as dúvidas exibidas (12) ; indirectamente se verifica, por igual, que o asserto dos arqueólogos portugueses é adoptado no país vizinho (13).
5Ora a transformação da estátua de Basto na burlesca figura, que reproduzimos agora (figs. 1 e 2), explica-se por um motivo semelhante ao que determinou a falsificação da de Viana : nesta pretendeu-se representar um antigo ascendente de família ; na de Basto a do vetusto símbolo local.
6Efectivamente a tradição diz que em tempos chegara a Cabeceiras um guerreiro temeroso o qual, parando no pontilhão próximo da antiga alameda, dissera : Até aqui basto eu ! Significava desta arte que não carecia de auxílio para se defender dos seus perseguidores. Daí o nome de Basto à terra e o seu símbolo epónimo figurado na escultura lusitana, ulteriormente aformoseada sob os ditames da estética municipal.
7A etimologia vale o restauro, e ambos muito valem para a povoação. Por isso se conta que oferecendo Sarmento cem mil réis pela estátua, foi rejeitada altivamente a proposta : só a levariam, contava numa carta (14) o antiquário insigne, se lá fossem conquistá-la com o 20 de infantaria !
Notes de bas de page
1 Artigo publicado na revista Portugalia, tomo I, fasc. 4.° (Porto, 24 de Outubro de 1903), pp. 832-833.
2 MARTINS SARMENTO, A proposito das estatuas galaicas, in Revista Académica, n.° 3, págs. 19-21,1, Porto, 1879, artigo reproduzido na Revista de Siencias Naturaes e Sociaes, págs. 181-8, IV, Porto, 1896. – Os lusitanos, nota da pág. 40, Porto, 1880. – Materiaes para a archeologia do concelho de Guimarães, in Revista de Guimarães, n.° 4, págs. 185-6, I, Porto, 1884. –Estatuas militares no Jardim Botanico da Ajuda, in O Occidente, n.° 283, pág. 246, IX, Lisboa, 1886. – M. SEPÚLVEDA, Historia organica e politica do exercito portuguez, págs. 254- -71, I, Lisboa, 1896; etc.
3 SARMENTO, Estatuas cit., pág. 248. – SEPÚLVEDA, Ob. cit., págs. 254-5, 257 e 258, – J. LEITE DE VASCONCELOS, Estatuas de guerreiros lusitanos, in Archeologo Português, n.° 1, págs. 30-1, II, Lisboa, 1896. – PIERRE PARIS, Statues lusitaniennes de style primitif, in Arch. cit., n.° 1, págs. 4-5, VIII, Lisboa, 1903 (reedição das figs. da ob. cit. de Sepúlveda).
4 J. LEITE DE VASCONCELOS, Estatuas dum guerreiro lusitano, in Arch. cit., n.° 1, págs. 24-5, VII, Lisboa, 1902.
5 Revista de Guimarães, Número especial comemorativo, pág. 85, Porto, 1900. – Estatuas cit., pág. 246, etc.
6 EMÍLIO HÜBNER, Estatuas galaicas, apêndice C, datado de 1861 e traduzido por Augusto Soromenho nas Noticias archeologicas de Portugal, do mesmo epigrafista alemão. Lisboa, 1871.–Ainda o famoso Corp. Inscrip. Hisp. Lat., II, n.os 2462 e 5611.
7 HtlBNER, Obs. cits. – PINHO LEAL, Portugal antigo e moderno, I, pág. 43, col. 2.a, voc. Ajuda; N, pág. 440, col. 1.a, voc. Montalegre, Lisboa, 1873-5.– JÚLIO DE CASTILHO, Lisboa antiga, págs. 30-4, I, 2.a parte. Coimbra, 1884. – MANUEL MURGUIA, Galicia, págs. 37-8 e 67. Barcelona, 1888 ; etc.
8 LUÍS DE FIGUEIREDO DA GUERRA, Vianna do Castello, págs. 97-8. Coimbra, 1878. – O Instituto, págs. 141 e 143, XXVI, 2.a série (sessões de Maio e Agosto de 1878). Coimbra, 1879.
9 GODOY ALCANTARA, Iconografia de la cruz y del crucifijo en España, in Museo espanol de antiguedades, págs. 65-6, III. Madrid, 1874.–RADA Y DELGADO, Ladrillos sepulcrales cristianos que se conservam en el Museo Arqueológico Nacional, in Museo cit., cit, pág. 590, VII, Madrid, 1876.
10 VILLA-AMIL Y CASTRO, Armas, utensilios y adornos de bronce recogidos enGalicia, in Museo cit., pág. 67, IV. Madrid, 1875. –-Ainda do mesmo: Adornos de oro encontrados en Galicia, in Museo cit., págs. 547-8, III.
11 SARMENTO, A proposito cit., in Rev. cit., págs. 186-8. – A estatua do Pateo da Morte, in O Pantheon, págs. 382-4. Porto, 1880-1, artigo reproduzido na Revista de Siencias Naturaes e Sociaes cit., págs. 189-90, IV.–CAMILO CASTELO BRANCO, Narcoticos, pág. 102, II, Clavel ed. Porto, 1882.
12 FIGUEIREDO DA GUERRA, Estatua calaica de Vianna, in Pero Gallego, págs. 3-4, n.° 15. Viana, 1882, artigo reproduzido na Revista de Siencias Naturaes e Sociaes cit., págs. 192-4, IV.–Exposição de arte ornamental do districto de Vianna em agosto e setembro de 1896, págs. 8-9. Viana, 1898.
13 RAMÓN MÉLIDA, Idolos ibericos, in Revista de Archivos, Bibliotecas y Museos, pág. 149, I, 3.a época. Madrid, 1897.
14 SEPÚLVEDA, Ob. cit., nota de pág. 256.
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