Os ciganos em portugal1
p. 44-50
Texte intégral
1A data do aparecimento, na Europa, do povo errante a cujos membros se dá a denominação genérica de ciganos, persiste tão obscura, como fragmentária e dispersa é toda a sua história. Sabe-se que a língua deles é um dialecto neo-hindu com tantas influências dos léxicos estranhos quantos são os povos com que mais habitualmente estão em contacto ; e deste conhecimento se chegou a deduzir a sua entrada na Europa pelos princípios do século XV, fugidos da Índia à temerosa invasão de Tamerlão. Averiguado está, porém, sem que bem precisado, que a sua existência nesta parte do mundo é anterior e muito à data que levianamente iam fixando, isto é, que por esse século se deu realmente uma notável imigração para a Europa ocidental, o que não implica uma residência na região oriental do continente que se pode t-lvez contar por muitos séculos.
2Entre os nomes com que em cada país os designam, gregos lhes chamaram já, em virtude dos elementos do léxico heleno que na sua língua encontraram. Afonso Valente, no apodo que dirigiu a Garcia de Resende brincando com a sua rotundidade, apodo que este colige no seu Cancioneiro geral, começado a imprimir em Almeirim, diz :
Pareceys hum pouco o farto preguador da vyda eterna,
Grega bebada, de parto,
antre cubas em tauerna.
3Ora com bons motivos supõe um eminente etnologista português, de cuja obra nos acuparemos adiante, que esta grega está aqui na significação de cigana.
4Cigano em Portugal, gitano em Espanha, boémio em França e zíngaro na Itália, o cigano tem conservado, através do tempo e do espaço, os traços étnicos mais característicos de um povo ao qual as emigrações, com o seu ar de uma penitência eterna a remir um pecado imperdoável, em pouco lograram alterar os fundamentos. Do seu país de origem nada explicam e nada sabem ; a língua vai-se-lhes alterando mais ou menos profundamente e a ponto de serem já relativamente numerosos os dialectos ou sub-dialectos que eles falam. Mas caldarari na Hungria, ursari os da Bulgária, contratadores de gado os de Portugal, há traços dominantes que distinguem este povo nómada e disperso, notável sequer por semelhante persistência, pelos seus processos industriais quase proto-históricos e pela maneira primitiva das suas relações internacionais.
5Aceite com alguns etnologistas distintos, Bataillard à frente, a existência dos ciganos na Europa oriental, na Ásia Menor e em certas regiões da África, em tempos remotíssimos da história, é de formar com certa segurança e enquanto investigações novas não a venham contraditar, a presunção de que este povo colaborou em grande parte na difusão dos metais, sendo mesmo esse talvez de onde se destacaram os artistas que, peregrinando, importaram o bronze para a Europa.
6Quase todos os ciganos do Oriente se ocupam no trabalho do ferro ; e os gitanos de Granada e de um certo bairro de Sevilha, posto que se não conheça a origem do ferro que empregam, a ferramenta, os seus processos de trabalho e os seus diversos produtos, dão-se ao mesmo mister. Mas não é para reparo ver ainda os ciganos da Galícia e da România, além dos da Hungria, fundidores do bronze, do latão e da prata, quase três mil anos depois que o bronze, suplantado pelo ferro, cessou de ser um metal de uso corrente e popular ? – perguntava um etnologista distinto procurando atribuir aos ciganos o papel de introdutores dos metais entre nós.
7No estado actual da ciganologia é impossível, enfim, fixar a época do estabelecimento destes párias na Europa oriental. Serão ciganos os atingãs da Idade-Média bisantina que no princípio do século VII começaram a ser assinalados na Ásia Menor sem que se saiba de onde vieram e quando ? Ou realmente o seu aparecimento na Europa é mais antigo – siginos de Heródoto, síntios de Homero, povos cabíricos que a Grécia antiga conheceu nas ilhas do Mediterrâneo oriental, nos Balcãs e na Ásia Menor ?
8São estes os problemas postos pelos especialistas e cuja solução se fará – a fazer-se – quando mais completa for a série das monografias regionais que ainda não existem em número suficiente. Dos nossos, por exemplo, faltava um trabalho de conjunto ; e como aparecesse há pouco, subscrito por um publicista da mais brilhante e merecida nomeada científica portuguesa, vai-se resumir aqui a obra do sr. Adolfo Coelho, no que ela tem de mais interessante para o público (2).
9Bataillard já contara que no século XV da nossa era vieram do oriente europeu para ocidente bandos consideráveis de ciganos, imigração esta que é a primeira e única da qual a história conservou documentos autênticos. Nesse século mesmo chegaram estes à península e nos seus fins a Portugal, como é dado presumir pela ausência de qualquer facto histórico em contrário ou pela impossibilidade de qualquer outra hipótese com acerto. A entrada dos ciganos no país efectuou-se provàvelmente pelo Alentejo, vindos da Estremadura espanhola, pois era esta a província portuguesa mais adequada ao seu género de vida, isto é, em mais vantajosa situação para centro de onde irradiassem nas suas excursões. Aí os conheceu, sem dúvida, Gil Vicente, visto ter sido representada em Évora (1521) a sua Farsa das Ciganas. Esta farsa, cheia de evidente fidelidade, é o primeiro monumento literário em que figuram ciganos a despeito da Gitanilla de Cervantes, escrita quase um século depois, ter feito esquecer a peça portuguesa, bem como a comédia italiana de Rodigino, La Cingana, publicada ainda no séc. XVI.
10Na península, como em toda a Europa ocidental, gitanos e ciganos foram considerados originários da Grécia ; e já vimos, ao trasladar a quadra de Valente, a probabilidade de uma denominação baseada nessa crença poder ser atribuída à cigana. Um dos personagens da farsa de Gil Vicente diz:
Mantenga senhuraz y rozaz y ricaz Da Grecia sumuz hidalgaz por Diuz.
o que confirma que até nós se estendera a convicção desta suposta pátria de origem.
11Depois destes documentos – os mais antigos que se conhecem relativos aos ciganos de Portugal, – os materiais para a reconstituição da sua história têm de colher-se na legislação, de ordinário avara em particularidades interessantes para o etnologista, mas pródiga em queixas ou penas contra feitiçarias e roubos que lhes eram atribuídos. Nas cortes de 1525 ou de 1535 pediram-se providências ao rei para que em tempo algum entrassem ciganos nos seus reinos « porque deles não resulta outro proveito senão muitos furtos que fazem e muitas feitiçarias que fingem saber ». Logo um alvará ordenou que saíssem do reino e alguns anos mais tarde determinava-se que fossem expulsos, depois de açoutados, com baraço e pregão. Posteriormente, novas queixas contra os seus ranchos e quadrilhas deram origem à cominação da pena das galés e por fim à pena última ; mas, apesar disso, nos princípios do século XVII ainda se reclamava contra novos crimes, « roubos e danos que fazem aos vassalos com geral escândalo». Sem eficácia, sempre iludidas as provisões mais violentas, os ciganos não só continuaram a existir entre nós, mas parece até que, no século XVI, alguns passaram à vida sedentária, pois uma lei de então nos fala de certos que estavam avizinhados, embora aos corregedores se impedisse a faculdade de lhes darem cartas de residência.
12Um alvará de 1647 é o documento escrito que mais interessantes notas fornece acerca deste povo. Nele se determinara que vivessem em lugares afastados da corte – Torres Vedras, Leiria, Ourém, Tomar, Alenquer, Montemor-o-Velho e Coimbra – dos quais não podiam sair sem licença dos respectivos juízes e se lhes proibia que falassem geringonça (gíria), nem a ensinassem aos filhos, nem andassem em trajo de ciganos. Obrigados eram a trabalharem enquanto pudessem, como faziam os naturais do reino, e, estando impossibilitados por doença ou muita idade, se lhes permitia que pedissem esmola, sem que fizessem embustes a que chamavam buenas-dichas e jogos de corriola ou partidas de cavalgaduras. Deste texto depreende-se com bastante nitidez os traços característicos da raça, pedinchona, madraça e astuciosa, a ponto tal que sem religião alguma, soubera sempre fingir a do povo do qual se fizera parasita. Os versos de Gil Vicente :
Da lnuz limuzna pur la amur de Diuz ; Christianuz sumuz, veiz aqui la cruz.
então, como hoje, eram de uma exactidão fiel e típica.
13Em geral o cigano iguala e frequentemente excede a estatura média dos antropologistas. É magro, mas robusto e ágil. Uma vez, em Barbacena, um cigano fez cair de um telhado, com dois pulos, uma navalha que lá havia posto. Na carreira e no salto são prodigiosos, homens e mulheres : grandes marchas, dormir na terra húmida e sem abrigo, tarde, a desoras, para levantar antes do sol nado. A cabeça é característica na graça, grosseira talvez no gitano, mais delicada e fina no cigano húngaro : pele escura e áspera, rosto comprido, cabelos e olhos negros, muito vivos estes nas mulheres, com o seu tom dolente e nostálgico dos países passados, para outros e outros, vida sem ideal, marcha quase sem rumo.
14Vivos, emocionáveis, nervosos, talvez inteligentes, a sua memória topográfica é particularmente notável, mercê das necessidades a que os obrigam as suas translações infindáveis. A agudeza hábil desta raça denuncia-se com especial relevo na burla, espírito de mistificação, no fundo, que lhe dá o duplo prazer do fruto do logro e do próprio logro. O cigano não atura o trabalho persistente ; e como já não seja caldeireiro, perdida de há séculos a indústria dos metais, as aptidões desse povo restringem-se exclusivamente ao contrato dos gados. De ordinário, porém, a arma de defesa ou o seu instrumento de luta pela vida é a hipocrisia, humilde sempre para os que não são da sua raça, mas reconhecendo só nesta e para ela direitos, deveres e virtudes ; na fraternidade, no respeito pelos velhos, no amor dos filhos e na fidelidade conjugal estão os sentimentos bons que dominam o grupo. Pedindo, os ciganos têm a arte de tocar os afectos, das mulheres principalmente, os filhos nus, numa sacola, histórias trágicas de miséria, lúgubres horrores. Obtido um objecto, pedem outro, e outro, e outro, até que a caridade cansa. Se o peditório não rende, roubam ; e algumas vezes, mas raras, dá-lhes para coserem um homem de facadas.
15Irreligiosos, adoptam as práticas do povo em que vivem, por hipocrisia. Tendo um filho baptizam-no tantas vezes quantas possam arranjar lavradores ricos para padrinhos, a fim de receberem os enxovais, excepção feita, naturalmente, de algum cigano sedentário e rico. Trocando gados querem sempre receber ainda dinheiro e se os vendem sabem disfarçar-lhes os defeitos: um lavrador vendeu numa feira uma burra viciosa aos ciganos e foi depois comprar-lhes outra que parecia bem diferente e afinal era a mesma ; alguém que manifestara desejo de um cavalo de certa cor encontrou-o pertencente a ciganos, comprou-o e foi burlado porque tinham pintado o animal ; burro velho e cansado fazem-no vivo e bravo, pois a mão esconde uma agulha que o pica e o faz pinotar que é um regalo.
16A bruxaria e a buena-dicha são os ramos de negócio mais rendoso para as ciganas, tanta esposa iludida, tanto namorado incerto ou ausente desperta, nas mulheres, estes recursos, a reconciliar os infiéis, a reatar as afeições. Casos de longe em longe relatados são interessantíssimos na trama episódica: feitiços complicados e estranhos, com roubos de cordões de oiro e de libras no remate.
17A não ser um ou outro cigano abastado que se domicilia, geralmente os da sua raça levam a vida errante por feiras e excursões, marchas longas, a pé ou a cavalo, com galgos para a caça. Vagueando, recolhem de noite às tendas e palheiros e, ao encontrarem nova povoação, orientam-se passeando os arredores a ver onde há gado ou aves para roubarem. Comem carne, peixe e couves misturadas, toucinho cru, porco desenterrado ; e alguns há que justificam plenamente a quadra que compuseram lá em Espanha :
Un gitano se murió
Y dejó em el testamento
Que le enterrasen en viña Para chupar los sarmientos.
18O casamento é feito entre eles com uma solenidade pitoresca e interessante, principalmente na averiguação da virgindade, história que não é para aqui. A cigana é, de ordinário, honestíssima, e se o não fosse tinha o desprezo dos seus e da sua raça. Quando morre o cigano é enterrado pelos companheiros em pleno campo. Uma vez foi um rogar a um pároco que lhe enterrasse o pai ; custava o serviço 2$400 ; ora 500, tornou-lhe o outro, não valia ele em vivo. E deixou-o insepulto.
19Para o estudo da linguagem dos ciganos portugueses, coligiu o nosso eminente etnologista e filólogo, com a colaboração de Tomás Pires, o infatigável colector alentejano, dados interessantes que levaram a assentar em que os representantes da raça cigana no nosso país falam o português, o espanhol e o romanho ; ora a linguagem dos nossos ciganos representa um estádio ainda mais adiantado na ruína da língua original do que a do gitano, esta sendo já muito afastada dos dialectos extra-hispânicos. Quando surgem no país bandos de ciganos caldeireiros da Hungria, ou ciganos condutores de ursos e macacos da Bucovina, entendem-se com eles, mas as relações não são nunca muito íntimas.
20Nem toda a história dos ciganos portugueses, é, porém, o que se viu ; alguns são gratos para quem os protege, respeitam-lhe a propriedade e mantêm-se mesmo fiéis quando intervêm em negócios. Um alvará de D. João IV e a carta do enérgico e inteligente procurador da coroa, Tomé Pinheiro da Veiga, contam-nos que mais de 250 homens dessa raça se acharam alistados no exército português desde a restauração do reino, servindo nas fronteiras « com zelo e valor com que já foram muito apremeados » . Referindo-se Tomé da Veiga a um certo que serviu Portugal « três anos contínuos com suas armas e cavalo á sua custa, sem soldo», combatendo « valorosamente no campo, até deixar a vida», põe em contraste o proceder dele com o de tantos, não poucos, que desse mesmo campo « infamemente fugiram, à vista dos que esforçadamente morreram ou pelejaram ».
Notes de fin
1 Artigo publicado no jornal O Primeiro de Janeiro, do Porto, de 17 de Agosto de 1893 (p. 1). Anos depois Rocha Peixoto incluiu-o, com insignificantes alterações formais, no seu livro A Terra Portuguezal (Chronicas Scientificas)/Porto/Livraria Chardron/de Lello & Irmão, Editores/1897 (pp. 155-166).
Neste volume das OBRAS de Rocha Peixoto reproduz-se o texto de A Terra Portugueza, por ter sido revisto pelo seu autor.
2 Rocha Peixoto refere-se ao seguinte volume: OS CIGANOS/DE/PORTUGAL/ Com um estudo sobre o calão / Memoria destinada á X sessão / do / Congresso Internacional dos Orientalistas/por/ F. Adolpho Coelho/Lisboa/Imprensa Nacional/1892/303 págs.
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