Contribuições para a etnografia portuguesa: Notas sobre malacologia popular1
p. 3-14
Texte intégral
1Nos estudos etnográficos realizados entre nós, a mitologia zoológica, ainda que haja por vezes ocupado os investigadores das tradições e crenças populares, está longe de ser completa. Tais trabalhos poderiam talvez ser levados a cabo pelos naturalistas se, às suas inquirições especiais, aliassem as relativas aos usos e superstições nos povos das regiões que exploram. Na pesquisa demorada e minuciosa das espécies zoológicas, é que o investigador tem lugar de conhecer as ideias que popularmente se ligam aos seres ; e compreende-se de sobejo como ao etnógrafo pode passar despercebida uma quantiosa soma de factos, sabendo-se que a natureza dos seus estudos é, até certo ponto, estranha à indagação da fauna em todas as suas particularidades. Eu pude verificar o que vai dito em algumas observações cujos intuitos primordiais nada tinham que ver com trabalhos de ordem etnográfica. Da comparação de algumas notas coligidas e dos trabalhos especiais firmados por especialistas competentes resultou a observação de um bom número de documentos ignorados, os quais, posto que nada valendo isoladamente, podem, no conjunto, prestar algum subsídio ao estudo da fauna popular portuguesa.
2Investigações um pouco subordinadas a este propósito, foram já ini ciadas – e infelizmente apenas iniciadas – pelo nosso extinto naturalista Arruda Furtado, cuja dedicação por assuntos de carácter zoológico não o impossibilitava de recolher materiais para ontros estudos, senão estranhos, todavia de indiscutível valor. Ora esta notícia poderá supor-se sem interesse, uma vez que se julgue que um tão restrito grupo zoológico entre nós, não dá margem a considerações de importância científica.
3Contràriamente, porém, os subsídios deste estudo, além do mais, demonstrarão a meu ver um certo número de aptidões já antevistas por Furtado no seu trabalho inicial (1) e que, tanto mais notáveis se tornam, quanto os objectos com que se relacionam pareceriam merecer, na sua quase generalidade, uma insignificante atenção. Estas aptidões são as que se referem à nomenclatura popular, a qual se na ictiologia é naturalíssima em virtude da importância primeira do comestível, e sobretudo nas populações costeiras, na malacologia deveria limitar-se às três ou quatro espécies edules mais comummente usadas.
4Um outro facto não assinalado até hoje é a persistência, nas povoações do litoral, da adopção de certos moluscos comestíveis apenas entre os indivíduos que compõem tal ou tal agrupamento marítimo, e que desde o período neolítico, nomeadamente nos kjoëkkenmoëddings, formam um dos elementos essenciais da alimentação entre os povos pré-históricos. Se, como adiante veremos, um grande número de espécies tem caído em desuso na economia culinária geral, é certo que, ou por necessidade ou por gosto, elas fazem ainda parte da mesa escassa de várias populações piscatórias.
5De resto algumas observações mais completarão este estudo o qual poderá, como já acima foi dito, nada valer no detalhe, mas que acompanhado de investigações similares nos outros grupos zoológicos, contribuirá eficazmente para um estudo definitivo da nossa zoologia popular e consequentemente da Etnografia portuguesa.
6O culto pelas conchas em alguns povos antigos e ainda actualmente em várias tribos dispersas, não tem, na Europa ocidental, senão pequenos vestígios persistindo e manifestando-se quase exclusivamente nos divertimentos infantis. Elas representaram todavia um papel preponderante, não só quando consideradas divindades, mas mesmo reunidas ou fazendo parte de variadas cerimónias religiosas. Nos costumes indianos, nas superstições americanas e numa ou noutra tradição bramânica, as conchas, pelo seu valor de amuletos, pela sua origem suposta divina ou pela sua associação aos objectos mais venerados do culto, ocupam um lugar dos mais estimados entre os produtos naturais. Dos modos diferentes de interpretar as qualidades de tais seres, deriva uma extensa série de factos enunciados em várias obras etnográficas sobre diversos povos, e aos quais o espírito eminentemente sábio e lúcido de Paul Sébillot deu corpo, para realizar o seu interessante estudo acerca das conchas marinhas (2).
7Na mitologia malacológica portuguesa sabe-se que Plínio afirmou a aparição, junto a Lisboa, do deus Tritão, o qual, com a sua concha, ou afugentava os gigantes, ou aplacava a fúria indómita dos mares (3). Nos Lusíadas, Camões ao descrever a recepção de Baco por Neptuno, apresenta Tritão chamando, às ordens do pai, os deuses da água fria. Tritão toca numa concha, cuja
...voz grande canora foi ouvida
Por todo o mar que longe retumbava. (4)
8Na tradição popular actual não há ligada ao Tritão ideia alguma mitológica ; apenas, como na Bretanha, ele serve de instrumento de chamada entre os trabalhadores do campo.
9Nos nossos contos e quadras populares, nada ou mal aparecem, como em algumas lendas bretãs, as conchas ornando as grutas das sereias. Só talvez como últimos indícios de antigos emblemas pagãos, vêem-se ainda nas igrejas as pias da água benta em forma de péctens ou de cardiuns, o que decerto pode não ter essa significação, levando em conta a tendência emblemática conchífera evidenciada nas fontes, na heráldica e em vários outros objectos ou monumentos os mais dissemelhantes, cuja explicação poderá melhor ser dada pelas proximidades do mar e estreiteza de território que permite um conhecimento mais amplo da nossa fauna marinha e conseguintemente a adopção, como ornato, de algum dos seus mais interessantes produtos. É, todavia, curioso reparar que a concha não só aparece nas fontes e nas pias referidas, mas também nas baptismais. Representariam elas objectos acessórios ao culto das águas no período luso-romano ?
10Os rosários de contas ainda hoje são objecto de entretenimento das crianças nas povoações do litoral. Entre os indianos rosários análogos constituíam muitas vezes o penhor de uma promessa, ou, como nos canadienses, o objecto indispensável na presença do qual se estabeleciam os tratados de paz. Nos tempos pré-históricos a existência dos colares foi-nos revelada sobretudo nas grutas funerárias (5) e a explicação em que os arqueólogos estão de acordo é que tais objectos não eram mais do que meros enfeites.
11A existência dos nossos rosários de conchas, e paralelamente nas costas bretãs, pode ser um costume degenerado. A eles, porém, liga-se a superstição habitual nas Astúrias de as mães pendurarem ao peito uma concha, a fim de lhes aumentar o leite, superstição que em alguns lugares do norte de Portugal, posto que modificada superficialmente, existe na essência. Ela consiste entre nós em pendurar uma conta ; e sabido é como entre os povos pré-históricos as conchas-ornatos andavam associadas aos colares de contas de diversos minerais.
12O uso da concha como amuleto ou como simples adorno existia já entre os habitantes de alguma das grutas de Cesareda. O nosso eminente geólogo, o sr. Nery Delgado, encontrou várias valvas de Pectunculus perfuradas, parecendo-lhe « terem sido destinadas a servir de adorno ou enfeite». (6) Esta descoberta condiz com as realizadas nas sepulturas de Dijon, Arvier, Treiche e Cueva de la Mujer7 nas quais é curioso notar que, associado a várias conchas constituindo braceletes ou colares, aparecia sempre o Pectunculus. O nosso sábio geólogo pretende sensatamente que as conchas de Haliotis, Patella, Pectunculus, Mytilus, Pecten e Ostrea constituiriam um alimento insignificante para o troglodita da Furninha (8) e supõe que a sua existência na gruta poderá ser interpretada por outras considerações etnográficas. A não fazer parte de uma alimentação talvez acidental, só a título de objecto de troca, adorno ou amuleto me parece a sua introdução atribuível ; e essa é sem dúvida a opinião do ilustre investigador.
13O costume de reunir ao cadáver braceletes ou outros objectos formados por conchas, persiste talvez modificado, na opinião de Sébillot (9), em alguns cemitérios das costas da Bretanha, nos quais é uso os parentes disporem no túmulo conchas em cruz. Este hábito, a que não é estranha alguma ideia religiosa, não existe, ao que me consta, entre nós.
14Convém no entanto referir que numa localidade portuguesa (Póvoa de Varzim), em oposição a este costume, os habitantes da terra quando uma rixa séria os indispõe, prometem-se, praguejando, tocar as contchas ao adversário logo que ele morra. Esta ameaça, nunca levada a efeito, constitui uma ofensa tão expressiva como outra qualquer praga habitualmente em uso na citada população marítima.
15A apropriação e utilização das conchas nas fórmulas populares medicinais reduz-se a três ou quatro casos que mereçam referência.
16Não obstante uma decidida repugnância quase genérica, o povo sabe atribuir a várias das nossas espécies de Helix, virtudes eminentemente terapêuticas para a cura da tísica ou do esfalfamento. No Minho, um nudibrânquio esmagado e colocado no abdómen cura a fraqueza (10). As virtudes destes moluscos, aparentemente nús, estendem-se até ao desparecimento do suor nas mãos, o que se consegue esfregando entre elas um desses animais (11).
17A extinção da catarata opera-se, segundo uma crença, geral em Ílhavo, Ovar, Aveiro, Buarcos e outras populações para o sul, com a introdução do opérculo dos Trochus, Littorinas e Purpuras entre a pálpebra e o globo ocular. Na antiguidade, este órgão característico dos operculados tinha outras aplicações, como o dos muricídeos, por exemplo, que, em fumigação, dava excelentes resultados, dizia-se, no tratamento das sufocações histéricas (12).
18O sépio de um cefalópode muito vulgar entre nós, a Sepia officinalis, L., é utilizado como dentifrício. Este notável decápode, além das suas aplicações industriais, forneceu à medicina elementos para vários remédios ; outrora os farmacêuticos empregavam-no mesmo como uma base. Hoje a siba utiliza-se apenas medicinalmente como ficou referido.
19Na, Póvoa de Varzim acredita-se que a Cyprœa Europœa, Mont., reduzida a pó e misturada com suco de limão, extingue as sardas. É interessante relatar a este respeito que um médico holandês pretendia curar, no século passado, os dartros da cara com conchas marinhas dissolvidas no mesmo suco (13).
20Os comestíveis mais geralmente adoptados nos lamelibrânquios são o Cardium eãule, L., o Mytilus edulis, L., a Ostrea edulis, L., e nos cefalópodes o Octopus vulgaris, Lamk., e o Loligo vulgaris, Lamk. Em torno destes grupam-se contudo alguns outros que ordinàriamente acompanham os já citados nas ocasiões da pesca. No mercado de Lisboa o Donax trunculus, L., o Tapes decussatus, L., a Dosinia exoleta, L., a Littorina littorea, L., e o Murex brandaris, L., aparecem associados a outros moluscos, mas não fazem parte de um comércio especial.
21No norte utilizam-se com mais frequência outras espécies de sabor ordinário : Patella vulgata, L., P. athletica, Bean, Trochus crassus, Pult., T. cinerarius, L., e Purpura lapillus, L. O uso destas espécies, porém, não constitui tão pouco um comércio regular. Elas e outras são introduzidas na economia doméstica pelas populações marítimas, em virtude de uma escassez de pesca, ou obedecendo a simples exigências do paladar.
22Estes dois factos explicam a apropriação à culinária de moluscos como o Pecten maximus, L., o P. opercularis, L., o Triton nodiferus, Lamk., e a Ranella gigantea, Lamk., repugnantes à maioria da população alheia aos trabalhos marinhos.
23A inclinação pelos mariscos evidenceia-se nos tempos pré-históricos, sobretudo nos restos de cozinha que constituem os quatro kjoêkkenmoêddings do vale do Tejo. Nos de Cabeço de Arruda e Fonte do Padre Pedro, entre outros apareceram com abundância as valvas da Lutraria compressa (14). Moluscos deste género (L. oblonga, Chem.) sei que usam ainda os pescadores da Póvoa de Varzim. É interessante, todavia, para o estudo comparativo, reproduzir a lista dos moluscos marinhos que o povo de Liceia (15) adoptava nas suas refeições, curiosa em virtude de encerrar representantes de todos os géneros utilizados então, e ainda hoje fazendo parte do consumo no litoral.
Triton cutaceus | E. emarginata |
24A comparação entre esta lista e a que vou dar, reunindo todos os moluscos comestíveis actuais, dirá suficientemente sobre a persistência da utilização de certas espécies pelos habitantes da costa. Apenas duas observações, acerca de representantes não incluídos, a completarão. Ao Triton nodiferus, Lamk., não mencionado nesta lista, é provável que se refira o fragmento de búzio que o nosso consócio e ilustre arqueólogo, o sr. Santos Rocha, indica como recolhido no megálito das Carniçosas (16). Quanto aos vestígios de Pecten maximus, L., encontrados sem perfuração numa das grutas de Cesareda, a não representar um meio de troca, o que parece admissível em vários casos (17), era então empregado como comestível.
25Reunindo à lista acima várias espécies de Patellas, Littorinas e poucas mais que apareceram em outras estações pré-históricas e notando que nesta e na seguinte os géneros são quase os mesmos, ver-se-á que o habitante do litoral ainda faz participar da sua alimentação espécies usadas pelas populações ex-históricas.
Lista dos moluscos marinhos actualmente comestíveis
LAMELIBRÂNQUIOS
Donax trunculus, L. | Trochus crassus, Pult. |
26Os moluscos fluviais eterrestres têm pouca importância como comestíveis. Apenas alguns Unios (mexilhões do rio) e Helix, estas últimas por uma insignificantíssima minoria, se utilizam raramente.
27São pouco importantes os recursos de outra ordem tirados das conchas. A simplicidade, as dimensões e a pobreza de colorido dos moluscos que têm habitat em Portugal explica claramente a sua insignificante apropriação nas indústrias populares. Sabe-se no entanto que a Cyproea moneta, gasterópodé pequeno e descorado, representa um importante papel como moeda em algumas regiões africanas ; mesmo uma secção transversal e basilar de um Conus vale um boi em algumas das nossas possessões da África ocidental (18). Costumes análogos a estes observam-se apenas nos jogos infantis entre as populações litorais da Bretanha e da Irlanda ; nas nossas localidades da beira-mar vêem-se também vulgarmente as crianças fazerem casitas com as valvas chatas dos Pectens, reunindo-lhes pequenas louças constituídas por valvas côncavas de outros bivalves. Estas casitas equivalem a lojas, e entre umas e outras simulam-se compras cujo preço é satisfeito pelas conchas mais pequenas.
28As mulheres de Vila Chã adquirem nas praias mais próximas e mais abundantes, exemplares com que depois enfeitam pequenas cómodas, capelas, bocetas, caixas, bilheteiras e outros objectos que depois entram no baixo comércio. De Vila do Conde espalham-se por outras localidades mulheres vendendo vários objectos de adorno entre os quais se encontram brincos ornados com Cyproeas. Estes objectos fazem lembrar os amuletos que os habitantes das Novas Hébridas penduram nas orelhas.
29O pescador da Póvoa de Varzim tem sempre uma marca especial para distinguir dos outros os seus utensílios de pesca. Esses sinais extremamente curiosos, cuja interpretação e estudo terão melhor lugar num trabalho antropológico já encetado, são várias vezes substituídos por conchas. Em cada um dos utensílios do barco, na extremidade de cada rede, nas chaves da habitação e da mobília, uma concha, sempre da mesma espécie, é-lhes invariàvelmente reunida. Na vida doméstica, as valvas do Pecten maximus, L., emprega-as o habitante do litoral para encerrarem líquidos ; e refere Sébillot que o bretão usa as conchas para beber ou guardar o leite.
30Nos divertimentos infantis a que já temos feito referências é curiosa a similitude de costumes entre as nossas crianças e as das costas oceânicas da França e da Inglaterra. O autor da memória que nos tem servido de comparação (Les coquilles ãe mer) expõe no seu interessante trabalho os jogos com as conchas roladas atiradas ao mar de modo a darem saltos na carreira, as lunetas formadas com valvas de pelecí-podas perfurados, os barquitos e outros.
31A pesca aos moluscos, geralmente de pouca importância na maior parte das nossas praias, não dá lugar à existência de documentos de interesse. Sei apenas que em algumas povoações do norte, o pescadorque na maré baixa procura o polvo entre as fendas dos rochedos, diz-lhe, julgando atraí-lo:
Sacaramole (?) Põe-te ao sol.
32Esta fórmula recorda a das crianças que excitam os moluscos terrestres a procurarem a obscuridade, colocando-os ao sol. É geral e comummente conhecida :
Caracol, caracol
Põe os corninhos ao sol.
33Nos desafios (19) e nas canções populares a concha entra, com o seu nome vulgar, ou como pretexto de rima, ou servindo de recurso para a realização de quadras com intuitos estranhos. Servem de exemplos a este último caso, os seguintes:
Fui ao mar buscar beijinhos (Cyprœa)
Numa bandeja de prata;
Que tomar amores não custa
Deixá-los é o que mata.
Fui ao mar buscar conchinhas
Ao repontar da maré;
Não há nome que me agrade
Como o nome de José.
34Para rematar este estudo vamos referir-nos ao facto mais notável e mais curioso na nossa malacologia popular, o qual consiste na separação natural dos moluscos marinhos em duas grandes divisões, correspondentes a duas secções importantes delimitadas cientìficamente. O povo português separa os Lamelibrânquios dos Gasterópodes com as designações gerais de Conchas e Caramujos. Excepção feita de um restritíssimo número de moluscos de maiores dimensões, um lamelibrânquio completo (Solen, Mactra, Tellina, Venus, Lucina, Arca, etc.) ou uma das suas valvas isoladas, é sempre uma concha ; o gasterópode (Trochus, Phasianella, Alexia, Scalaria, Janthina, Hydrobia, Rissoa, Natica, Cerithium, etc.) é ordinàriamente um caramujo. Esta diferenciação compreende-se que não desce às mínimas particularidades ; o caso geral, todavia, é o que fica apontado.
35A designação específica abrange os indivíduos da lista que segue :
Vocabulário malacológico popular e nomenclatura científica correspondente
I Denominações arcaicas
(20) Solen vagina (S. marginatus, Pult.) | Longueirão |
| Pholas dactylus | Borreas |
(21) (Cardium edule | Briguigão |
(Mytilus edulis | Misilhão |
II Denominações actuais
LAMELIBRÂNQUIOS
Solen marginatus, Pult | Facas (Espinho) |
GASTERÓPODES
Patella vulgata, L ) | Lapa |
CEFALÓPODES
Octopus vulgaris, Lamk | Polvo |
36É, como se vê, avultado, o número de designações populares que existem para um grupo zoológico cuja importância e inferioridade numérica pouco tem de comparável com as outras secções do reino animal, superiores em organização. O povo das costas, dadas as condições de vida e de meio que o tornam contemplativo e observador criou um vocabulário próprio, relativamente extenso, com uma aptidão especial que não é comum entre as classes medianamente instruídas. Os nomes em geral são originados pela comparação com os objectos de uso mais frequente, ou sejam caseiros ou utensílios de ofício. É o que se dá, para o primeiro caso, com o Cltenopus (bandeira, chave) cujas digitações alongadas e anexas ao corpo principal da concha, lhe dão efectivamente a aparência dos objectos designados pelos dois qualificativos populares ; e, para o segundo, com o Helcion, (barquinho) onde o contorno exterior marca, em miniatura, uma justa semelhança com o objecto de que foi tirado o nome. As mesmas considerações poder-se-iam estender às facas, funis, pentes, leques, bêbedas, fusos, etc. A par, designações existem cuja interpretação nos escapa, não só pela novidade dos vocábulos, como pelo exotismo da comparação. É o que acontece para a Tectura (covela) ou para o Donax (cadelinha).
37As semelhanças grosseiras entre espécies de géneros próximos, leva muitas vezes o povo a incluir, sob o mesmo nome, indivíduos bastante distanciados em organização. Confirma-se esta afirmativa atendendo à denominação de búzio dada a espécies dos géneros Cassis, Triton e Murex. Paralelamente, porém, várias espécies possuem mais do que um nome e na mesma localidade, como se observa nas Pinnas (conchilhão, funil), ou nas Nassas (alcofinha, cornetinha).
38Terminadas estas notas convém ainda repetir que a Arruda Furtado se deve a iniciativa da investigação aprofundada da terminologia zoológica popular. A última parte desta memória não é mais do que a aplicação do seu método ao estudo dos moluscos. Ela verifica até certo modo e tàcitamente confirma as opiniões de Furtado acerca das aptidões do povo português reveladas no grau de acerto dos qualificativos populares (22). Estudos congéneres nos outros ramos superiores da zoologia, na botânica e na mineralogia, mais valiosos e mais úteis serão para o estudo natural e social do nosso povo.
39Maio, 89.
Notes de bas de page
1 Notas psychologicas e ethnologicas sobre o povo portuguez, I Nomes vulgares de peixes in Jornal das sciencias mathematicas, physicas e naturaes, n.° XLII. Lisboa, 1886.
2 Les coquilles de mer in Revue d’Ethnographie, n.° 6, tom. V – Paris, 1886.
3 Sébillot, op. cit.
4 Os Lusíadas, est. XV-XIX, canto VI, tom. III, ed. da Actualidade.
5 G. Mortillet. Le Préhistorique, Paris, 1885.
6 Noticia ácerca das grutas de Cesareda. Lisboa, 1887.
7 Mortillet, op. cit.
8 La grotte de Furninha à Peniche, in Compte-rendu du Congrés internationale d’Anthropologie et d’Archéologie préhistoriques. Lisbonne, 1882.
9 Op. cit.
10 Leite de Vasconcelos – Tradições populares de Portugal. Porto, 1882.
11 Op. cit.
12 Plinio, apud Sébillot.
13 La médecine des pauvres. Paris, 1741. Apud Les coquilles de mer.
14 Les kjoëkkenmoëddings de la vallée du Tage, in Compte-rendu do congresso de Lisboa, 1882.
15 Carlos Ribeiro – NOTICIA DE ALGUMAS ESTAÇÕES E MONUMENTOS PREHISTORICOS. I Noticia da estação humana de Liceia. Lisboa, 1870.
16 A. dos Santos Rocha – Antiguidades do concelho da Figueira. Coimbra, 1888.
17 Mortillet – Le Préhistorique. Part. 2.a, cap. XVIII – Magdaleneano.
18 Informação de Ricardo Severo.
19 Nuns versos recolhidos em um desafio na Póvoa de Varzim, são interessantes a referências aos peixes, crustáceos e equinodermes que povoam o mar. A factura é detestável, o que de resto e por ser lá geral, constitui um bom subsídio para a inquirição do desenvolvimento intelectivo daquele povo. A seguinte amostra, referida às anatifas (n. v. precêba, pinha do penêdo), comprova-o satisfatòriamente :
Eu digo que sabes muito,
Também me vais dizer esta.
Qual é o peixe do mar
Que tem as unhas na testa ?
Essa não me mete medo ;
Quem tem as unhas na testa
São as pinhas do penedo.
20 Domingos Vandelli – Specimen fauna et florœ Lusitania, ap. A. Nobre, Historia da malacologia em Portugal.
21 Camões–Lusíadas, canto VI, est. XVI e XVIII, ed. cit.
22 Op. cit.
Notes de fin
1 Trabalho publicado na Revista de Sciencias Naturaes e Sociaes, vol. I, n.° 2 (Porto, 1889), pp. 75-90.
Deste trabalho tirou Rocha Peixoto a seguinte separata : NOTAS/SOBRE/A MALACOLOGIA POPULAR/ por /ROCHA PEIXOTO /Porto / Typographia Occidental/66, Rua da Fabrica, 66/1889/16 págs., 169X98 mm.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000