Pessoal de uma lavoura
p. 73-150
Texte intégral
IV
1Diverso e numeroso é o pessoal que se emprega em cada lavoura, aumentando ou diminuindo conforme as necessidades do granjeio, o estado do tempo e a existência de braços. A quase totalidade dessa gente acomoda-se por ano, temporada, mês ou dias, segundo o trabalho a que se destina e outras circunstâncias consequentes de usos locais e vontade dos contratantes. Por excepção e para determinados serviços de natureza muito especial, usa-se também o ajuste por empreitadas.
2O pessoal contratado por ano, mês ou dias, sai quase todo das vilas e aldeias próximas, onde tem os seus domicílios. O das empreitadas é, pela maior parte, gente estranha à região.
3Aos criados de ano, chamam-se-lhes anuais, aos de temporada, temporeiros; aos de meses, mensais, e aos de dias, jornaleiros, trabalhadores, ou homens a dias.
4Mas estas nomenclaturas são muito genéricas e comuns a diferentes classes e entidades. Por isso, para se destrinçar bem cada mister adoptam-se nomes qualificativos, especiais e especialíssimos correspondentes à categoria e ocupação de cada indivíduo.
5Aos vencimentos dos anuais, temporeiros e mensais chama-se-lhes soldada; ao dos jornaleiros jorna, jornal ou salário.
6Salvo excepções raríssimas, todos os criados se alimentam por conta da lavoura, quer seja pondo-se-lhe a mesa conforme o costume do sítio, quer pelo sistema de comedorias ou mantimentos do estilo, aviados no fim de cada semana, quinzena ou mês. Dos poucos que por acaso não vencem comida, diz-se que trabalham «a seco». Os esclarecimentos relativos à alimentação, dão matéria para um parágrafo próprio de que oportunamente tratarei.
7Reflectindo um pouco, vê-se que toda a criadagem se divide em quatro agrupamentos, que de modo algum significam classes nem categorias mas núcleos distintos pela natureza dos serviços que desempenham.
8O primeiro agrupamento compreende toda a família empregada no amanho das terras, acarretos, eiras, desmoitas e outros trabalhos, com exclusão das ceifas e gadanhas. Engloba portanto a ganharia, os carreiros ou almocreves e a carraça.
9Por ganharia ou malta, entende-se o troço de homens – ganhões – em número indeterminado, que em todo o ano se ocupa principalmente nos serviços culturais e correlativos, à excepção das ceifas. Topa a tudo por assim dizer, não obstante ter a seu exclusivo encargo as fainas já aludidas. O chefe da ganharia é o abegão, que tem por imediato substituto o sota.
10Os carreiros trabalham com as parelhas de muares, nos labores do carro e arado. Ao encarregado, chama-se maioral das mulas, e ao imediato ajuda. Os restantes são carreiros rasos.
11Resta a carraça, que é apenas um desdobramento da ganharia, mais ou menos temporário. Organiza-se com a gente menos válida – rapazes e velhos que se aproveitam, em separado, para afazeres de pouca monta a que a malta não pode atender. Tem por governante o sota ou qualquer de confiança e préstimo.
12A constituir o segundo agrupamento estão aqueles que não intervêm nos trabalhos agrícolas mas em outros diversos e importantíssimos, como o guarda de herdades, carpinteiros, cozinheiro, amassador, etc.
13No terceiro, figura o pessoal transitório, ou melhor dizendo, aquele que só desempenha misteres especiais, de ocasião, restringidos a determinadas épocas.
14Dos ganadeiros (homens ocupados exclusivamente na pastoreação dos gados manadios) forma-se o quarto grupo, que se por ventura é menos numeroso, nem por isso diminui de importância quanto à escolha e responsabilidade dos que o representam.
15Resumindo: uma lavoura bem montada, completa e composta de «tudo que lhe é dado» ocupa o seguinte gentio:
Criadagem permanente
16Um guarda de herdades, um ou dois carpinteiros, um abegão, um sota, dois boieiros, um cozinheiro, um amassador, quatro a seis carreiros, dez a quinze ganhões, um hortelão, um tratador de cavalos, e um paquete. Ganadeiros – Pastores: um maioral de ovelhas e diferentes entregues, um para cada rebanho, com o seu respectivo ajuda. Porqueiros: um maioral de porcas e dois ou mais entregues e correspondentes ajudas. Dois vaqueiros; um eguariço e um cabreiro.
17O guarda, o abegão, sota, maioral das mulas, boieiros e ganadeiros-maiorais são sempre anuais, de pensão. E a todos estes, exceptuando o guarda, dá-se-lhes o título de governos ou cabeças. Nas restantes ocupações (quadro permanente) encontram-se anuais, temporeiros, mensais e a dias. Vejamos agora os do
Pessoal transitório
18Dois corta-ramas; um rancho de vinte a quarenta mondadeiras; uma camarada de ceifeiros-ratinhos (trinta a quarenta) com os seus respectivos enrilheiradores e tardão; uma camarada de doze a vinte tosquiadores de gado lanígero; um grupo de dois a seis gadanheiros de feno; um ou dois roupeiros; um lançarote; dois cordoeiros; um melancieiro ou meloeiro; um guarda da eira; um semeador; um embelgador; dois valadeiros; um rancho de mulheres no apanho da azeitona e da bolota; um assougueiro; dois alavoeiros; um perunzeiro, etc.
19Deste modo fica enumerado o pessoal permanente, transitório e acidental de uma lavoura importante. Simples enumeração porque o mais que lhe respeita vai largamente consignado nas Particularidades de cada ocupação.
20As lavouras pequenas ocupam menos gente, como é bastante maior nas excepcionalmente grandes, que sustenta dois abegãos, três guardas, etc. Desde o pequeno lavrador – o charepe – de duas ou três juntinhas e meia dúzia de rezes, até ao agricultor opulento de cinquenta a sessenta arados e muitos e numerosos rebanhos de todas as espécies – há margem para hipóteses tão variadas e diversas, que para o caso presente aproveito a que melhor representa a cultura extensiva.
21O maior número de lavouras ocupa sem dúvida menos família que o referido, mas como nas de entre essa maioria não há, pelo menos, uma que execute todas as práticas e sistemas das grandes «casas», são estas que me servem de ponto de referência, porque, repito, é só nelas que se encontram todas as numerosas entidades que constituem em absoluto o pessoal agrícolo-pecuário de um quadro completo. As outras menores, embora importantes, cada qual restringe-se a determinadas especialidades, o que lhe reduz bastante o número de ocupações.
Soldadas e salários
22Há soldadas de duas classes: uma antiga, tradicional, exclusiva dos criados de ano, de pensão. Compreende verba em réis e várias achegas ou avenças de cobiçado apreço com searas, pão na eira, lenha, pegulhais, etc. O que tudo se designa também por adições, propinas, aquidades, forras, etc.
23A outra usança, de soldada a dinheiro somente, restringe-se a uma quantia fixa em réis, e está mais em voga para com os temporeiros mensais, e alguns de ano sem pensão de vulto.
24Os vencimentos em réis, ainda se baseiam numas tantas moedas de ouro (valor antigo de 4$800), unidades de há muito abolidas mas que parece eternizarem-se pró-forma nos ajustes dos criados de lavoura. Principalmente nos «de ano». Nos de temporada e meses já se convenciona por mil réis. E nos de entre uns e outros, também sucede falar-se em libras, costume que deverá perder-se brevemente porque nunca chegou a arreigar-se, nesta ordem de contratos.
25As soldadas com searas e adições várias são as preferidas pelos serviçais, embora sujeitas a contingências. Mas no jogo se conhece a sorte, dizem eles. E portanto jogam, arriscando-se às eventualidades. Se num ano perderem, outro virá melhor que os indemnize em cheio. Depois – e aqui é que está o busílis – nos anos tortos, em que julgam sair-se mal por as searas mostrarem mau aspecto, tratam a tempo de melhorar a sua situação, pelo menos alguns. Aí por Março ou Abril, aqueles a quem o caso se afigura sério e que não têm considerações a guardar, abalam a pretexto de qualquer coisa, ou se confiam na benevolência do amo fazem-lhe choradeira pedindo lhes garanta a seara em certa quantidade, um pouco inferior à produção mediana. O amo anui, se estima o criado, e tudo se concilia, tanto melhor que se a colheita excede ao convencionado e garantido, o excesso reverte para o serviçal.
26Variam as soldadas anuais e especialmente as dos governos. Os que as arrancam maiores, ganham de seis a doze moedas, seara de trigo ou de centeio de seis a dez alqueires de semeadura e de dois a quatro de legumes. E mais quarenta a noventa alqueires de «pão na eira», lenha, forra de égua, etc. Centeio na eira ou em searas, em lugar de trigo, só se usa na freguesia de Santa Eulália, onde se não concedem searas de legumes, mas sim de melanciais, cultura vulgaríssima no sítio.
27As de cereais semeiam-se com semente fornecida pelo lavrador, que a recebe na futura colheita. Cultivam-se como as do amo e à custa deste na torna do costume da respectiva folha, realizando-se a sementeira e ceifa nos meados das correspondentes épocas. A malha ou debulha efectua-se no final do período das eiras. A monda corre por conta do interessado, levada a efeito por mulheres de sua família, ou outras a quem paga.
28Para as searas de legumes não há tornas especiais, nem o lavrador contrai outros compromissos além de as lavrar, semear e recolher, quando e como lhe apraz. O costume das searas de trigo ou de centeio está quase restringido aos abegãos. Tem inconvenientes para o lavrador mas também lhe assegura vantagens. Dos abegãos que as ganham há a esperar maior zelo e estabilidade de que se as não vencessem.
29A searinha é o elo que liga o serviçal ao amo. E este concedendo-lha em soldada associa-o às suas prosperidades e desventuras.
30Por outro lado, crê-se com fundamento que uma seara de qualquer criado junta na eira, em rilheiro, arrumada à do lavrador (como se usa) torna-se um bom seguro contra incêndios. Em primeiro lugar, há da parte do possuidor, e por interesse próprio, maiores cautelas; em segundo, a malvadez dos incendiários hesita e desiste dos propósitos infames contra o lavrador quando sabe que, lançando-lhe fogo à seara, vai igualmente destruir a do criado, que não odeia. E então, para não fazer mal a um pobre deixa de se vingar no rico. Se deixa, por que nem sempre lhes vêm os escrúpulos.
31Das outras achegas, as que persistem mais são o pão na eira, a lenha, etc.
32As restantes, como forras de éguas, vacas, etc., limitam-se a determinadas lavouras antigas, onde se conservam por respeito de tradição.
33Em resumo, quanto maior valor representam as aquidades menor é a verba em dinheiro. Em cada emprego predomina determinada forra, como frisarei em sua altura.
34Outra advertência: as usanças aludidas não contendem com os ganadeiros, cujas soldadas e costumes divergem sensivelmente.
35Por esta e outras razões, omito por agora os vencimentos e costumes de tais criaturas. A diversidade da sua profissão dá-lhes direito a um artigo próprio de que oportunamente tratarei.
36Época do ajuste – Os criados de ano, entram e encimam pelo «S. Mateus» (21 de Setembro), fim e princípio do ano agrícola no concelho de Elvas e parte do de Arronches. No de Campo Maior é a 15 de Agosto e noutros pelo «S. Miguel».
37Como quer que seja, àqueles de que se pretende a continuação, o amo fala-lhes, perguntando-lhes se ficam ou não. O consultado, se deseja ficar, responde: “Se é da sua vontade, fico.” E não querendo, diz: “Não senhor, comigo não faça conta.”
38Pelo que o lavrador trata de acomodar a tempo outro que o substitua.
39No caso de o criado pedir aumento de soldada ou o amo redução, ambos se entendem oportunamente e decidem qualquer coisa. A rebaixa de soldada, toma-a o criado como sintoma de descontentamento ou enfado do lavrador e nessa convicção não a aceita, despedindo-se. Que os há que se resignam e vão ficando. Mas são os menos. Só os zorros matreiros.
40No termo de Elvas é da praxe os lavradores «falarem» ou apalavrarem os criados pelas vésperas e feira de Barbacena (8 de Setembro). Se até então nada lhes diz, subentende-se que os não quer. E por conseguinte, os «esquecidos» procuram novo amo.
41A praxe esta já não é usada por todos os lavradores. Alguns adoptaram o sistema de não «falarem» aos que os vêm servindo. Mas, para que saibam o costume, previnem-nos por uma vez de que os despedirão a tempo quando lhes não convenham.
42Aos criados antigos, que, por seus merecimentos ou particular afeição se conservam numa lavoura vinte e trinta anos, adquirindo foros de vitalícios, o lavrador não lhes «fala», tão certo está da sua permanência e dedicação. Eles nem por sombras se consideram despedidos ou desfeiteados, antes tomam o silêncio como testemunho de confiança e amizade.
43Quase se consideram pessoas de família com o direito e dever de a servirem até à morte. Existem alguns de permanência tão antiga que, por assim dizer, viram nascer os amos, tendo-lhe servido os pais e avós! Curiosa cena, observar um desses velhotes quando os patrões se zangam com eles. Entre outros arrazoados, sai-lhes o seguinte: “Olhe lá, meu amo : quando vocemecê nasceu já eu cá estava... Tem de me aguentar, inda que não queira.”
44Ou por outra: “Ora deixe-se de coisas... quem me comeu a carne há-de roer-me os ossos!...” E o amo ouve, cala-se e ri para consigo...
45Vão rareando essas boas criaturas, modelos de probidade e abnegação, credores de respeitosa estima e amparo. Vão desaparecendo e infelizmente quase ninguém os substitui. Os novos acusam uma tal instabilidade e indiferença pelos amos, que poucos «criam raízes» em qualquer casa.
46Como disse, são os amos ou seus representantes quem acomoda os criados. Os que têm e desejam conservar, e ainda os estranhos que precisam adquirir.
47Quanto aos que saem de uma lavoura e pensam servir noutra, para onde ninguém lhes «falou», usa-se irem eles à cata de arranjo, oferecendo-se e tratando-se com o novo amo. Mas tanto lavradores como serviçais não se dirigem logo directamente uns aos outros para o efeito do ajuste. Em dadas circunstâncias, o negócio carece de segredo para qualquer dos contratantes ou para os dois mesmo, já porque o lavrador suspeita de um colega com análogos propósitos, já porque o servo receia não obter o lugar cobiçado e depois ficar também sem aquele em que se emprega. Como os cães de Borba... Coisa provável se o seu antigo amo souber que procurou outro.
48Por consequência, quando ocorrem tais dúvidas e receios, servem de intermediários nos preliminares do ajuste os serviçais de confiança que «ficam», como abegão, maioral das mulas, etc. Comissionados estes que se pelam por tais incumbências. Todos a aceitam, procurando facilitar ou impedir o contrato, conforme os sentimentos que nutrem pelo futuro camarada. O amo dá-lhe o devido desconto e faz o que lhe parece.
49É dos bons costumes nenhum lavrador sério «desafiar» criados de confiança de outrem para os empregar na mesma ou semelhante ocupação. O estilo manda que só se «fale» na maré própria a quem se sabe ou consta que sai. Antes e noutras circunstâncias é feio e dá nas vistas.
50Mas se no decorrer do ano um lavrador precisa de alguém para preencher vaga extraordinária e para isso se lembra de um jeitoso acomodado por fora em obrigação de categoria inferior, pede ao amo respectivo lho dispense, e só depois da cedência lhe manda falar. O procurado, «se sabe onde caem as coisas» (ser cortês), não se ajusta definitivamente sem ter «uma atenção» com o amo antigo.
51Na região elvense quando um serviçal se ajusta e fala no assunto, diz: Estou acomodado (ou tratado).
52Noutras variam de termo, exprimindo-se assim: Estou concertado. De maneira que acomodar e concertar significam em dialecto rural alentejano, o ajuste dos criados com os lavradores.
53Aos anuais, seguem-se os temporeiros. Para o efeito da sua acomodação o ano agrícola divide-se em três temporadas: a primeira – a da sementeira outonal – principia pelo S. Mateus (de 21 a 23 de Setembro) e finaliza aí pela «Senhora da Conceição ou Natal» ; a segunda – a do alqueive e sementeiras de tremeses – principia imediatamente à outra e termina no cabo de Maio; a terceira e última – a do Verão ou das eiras – vai desde o começo de Junho até 20 de Setembro à noite.
54A temporada do alqueive usa-se subdividi-la em duas épocas: a primeira, desde o começo até fins de Fevereiro ou Março, quando muito; a segunda, todo o período restante. A subdivisão tem por único fim a diferença do preço por mensalidades – menos na primeira época e maior na segunda.
55Eis os preços correspondentes às três temporadas por cada ganhão e mês:
56Sementeira: 4$800 a 5$500 réis. Alqueive: 3$600 a 4$000 réis de Dezembro a fins de Fevereiro e 4$500 a 5$000 réis em Março, Abril e Maio. Verão: 5$500 a 6$000 réis.
57Preços estes que se referem a ganhões rasos de mãoseira e não aos de maiores responsabilidades, que vencem mais e em proporção com a importância de encargo.
58O ajuste realiza-se dias antes da temporada ou já em princípio. As contas ou pagamentos finais efectuam-se no primeiro dia feriado subsequente ao fim da época, excepto nos que respeitam à do Verão, que invariavelmente têm lugar no dia 21 de Setembro ou na véspera há noite. Assim como aos anuais de pensão costuma falar o lavrador, os de temporada são apalavrados e justos pelos «governos» respectivos (com prévia autorização do amo). De maneira que aos ganhões fala o abegão ou o sota, e aos carreiros o maioral das mulas. O preço é ou não estipulado no acto do ajuste. Antigamente todos se acomodavam sem preço, sujeitando-se ao que os lavradores fizessem no fim. Hoje adoptam-se outras normas mais racionais. Ou se acomodam a «preço feito» ou se convenciona pagar e receber pelo maior que se «abra» de entre os das lavouras vizinhas.
59Para o serviçal o ajuste fixo e antecipado não passa de uma ficção. Se depois subir para os companheiros da mesma lavoura ou dos de outras próximas, ele abala ou exige o excesso. E não se estranha por ser corrente. O criado «é pobre e não pode perder».
60Mas, se se der o inverso, isto é, se o amo ajustar por exemplo a cinco mil réis, e depois outros pagarem a quatro, o dos cinco tem de cumprir a palavra. Não será coerente mas é corrente. E por isso também se não estranha. A propósito: notando um dia em palestra de lavradores, esta falta de reciprocidade, um dos mais velhos, observou com espírito: «Nós tratamos, mas eles os (criados) conversam. Portanto, as “falas” deles são vozes ao vento!...»
61Anuais e temporeiros, embora se ajustem por épocas fixas que em bom direito tinham obrigação de cumprir e encimar, abalam quando querem por futilidades e caprichos, sem atenções para com os amos ou quem os representa. Por isso, os que assim saem não têm direito a receber a soldada vencida antes do dia das contas gerais.
62Os chamados governos só «partem o ano» por motivo forte, excepcional.
63Por seu turno, também o lavrador precisa escudar-se em razões imperiosas para pelo ano adiante despedir qualquer, sem incorrer nas censuras gerais. Mas, se «manda embora» algum paga-lhe imediatamente sem aguardar pelo cabo do ano ou da temporada.
64Enquanto servem e pelo ano fora, todos os criados obtêm do lavrador os abonos de que precisam, correspondentes às soldadas. Alguns chegam a estar adiantados e raros são os que não pedem por conta.
65Dos que venceram por inteiro, sem abonos nem dias perdidos, diz-se que ganharam a «soldada direita». São poucos. A maioria é chapa vencida... chapa derretida. Por esta e outras circunstâncias de fácil intuição, cada lavrador tem o chamado livro dos assentos, onde procedem à inscrição dos criados e correspondentes soldadas, tendo cada inscrição colunas próprias para a anotação dos abonos e dias perdidos. Com este livro, tudo se explica e aclara no acto das contas.
66Ao aproximar-se o S. Mateus as parolices nas herdades e aldeias versam principalmente sobre a mudança ou continuação da família anual nas lavouras do sítio.
67Sobre tão momentoso e palpitante assunto, fantasiam-se conjecturas, sugerem-se mexericos, avolumam-se despeitos, propalam-se boatos e inventam-se carapetões, tudo a propósito de saídas e entradas do numeroso pessoal que então encima.
68Todos os que servem no campo (e até os estranhos) querem saber uns dos outros e daí o acervo de petas que voam de herdade em herdade num torvelinho de comentários. Tanto se inventa e fantasia sobre este assunto, que à época essa chamam-lhe o tempo das mentiras. «S. Mateus à porta, trapacices às carradas.»
69Mas as mentirolas só medram até ao dia de contas, em que tudo se esclarece. Grande dia; com que impaciência se aguarda! Afinal, chega. E, como disse, a 21 de Setembro.
70Logo ao nascer-do-sol, os de ano, que saem, largam as ocupações de que imediatamente tomam posse os que entram de novo. Posse apenas, que o dia consagra-se às contas.
71De manhã cedo (senão de véspera à noite), o lavrador sentado à banca, munido do livro dos assentos e da folhinha, faz as contas aos criados, pagando a um por um, à maneira que vão chegando. Os que pelo seu comportamento ou serviços especiais merecem galardão costumam receber maior ou menor gorjeta, que se dá segundo a ocupação, o mérito e a simpatia. Os gratificados usam dizer: “Meu amo teve um olhamento comigo.”
72O abegão e o maioral das mulas assistem respectivamente às dos seus subordinados para esclarecerem quaisquer dúvidas sobre adiantamentos e dias perdidos. Se assim mesmo surge alguma que se não consegue aclarar resolve-se geralmente a favor do serviçal para cortar atritos.
73Os que saem a bem, quando recebem a soldada, dizem para o lavrador: “Queira desculpar, meu amo, se o não servi à sua vontade.” O lavrador responde como julga apropositado. E se fica com saudades dele, acrescenta: “Vai com Deus... a porta fica aberta.” Faz-lhe perceber que pode voltar na primeira oportunidade.
74Outros criados recebem e cumprimentam com as seguintes palavras: “Nosso Senhor lhe dê muito para dar a ganhar aos pobres.” Ou por este outro modo: “Deus nos dê saúde, meu amo: a vocemecê para o dar, e a mim para o ganhar.” E o amo redargue-lhe: “Obrigado. Deus te ouça.”
75Se além das soldadas têm recebido do amo quaisquer favores importantes usam muito da seguinte frase: “Nosso Senhor lhe pague, que eu não sou capaz.” E como não é capaz, endossa a letra à Divindade, ficando quite com o amo e de consciência tranquila para não mais se lembrar do obséquio. Interpretação chistosa de um falecido lavrador que muitos factos corroboram.
76Não obstante, é claro que agrada sempre toda e qualquer expressão de respeito e reconhecimento, por banal que seja. Os criados antigos não se eximem ao cumprimento desses deveres. Os novos já afinam noutro diapasão. O maior número está nas tintas, para semelhantes etiquetas.
77Ultimadas as contas todos se vêem com o seu pecúlio. Muitos vão logo pagar o rol ao sapateiro e os bicos que devem pelas vendas e lojas. É um dia de pagamentos e cobranças em que o dinheiro gira a rodo nas aldeias como em nenhum outro do ano. Abençoado S. Mateus!...
78À tarde ou no dia seguinte de madrugada, amos e criados todos marcham para a romaria e feira do S. Mateus, em Elvas. Os serviçais vão celebrar com folguedos e farnéis o mourejar de um ano inteiro. Ali, nos subúrbios de Elvas, ao Senhor da Piedade e no Rocio do Calvário expande-se em grupos multicores um povo trabalhador, na legítima folgança de horas fugidias que lhe parecem minutos. Junto dos churriões e outros «carros tapados» que pejam o terrado, estendem-se os panos alvíssimos e come-se à farta, em grupos de famílias, com íntima satisfação. À noite regressam aos lares, e a 23, de manhã, iniciam-se as lidas do novo ano agrícola, voltando todos aos hábitos normais.
79Os moços começam logo a pensar na pândega do «S. Mateus» que vem.
80Salários – Regulam-se pelos seguintes, por dia e homem: De 21 de Setembro a 8 de Dezembro (sementeira) cento e sessenta a duzentos réis. De 9 de Dezembro a fim de Fevereiro (primeira época do alqueive) cento e vinte a cento e quarenta réis. De Março a Maio, inclusive, (segunda época do alqueive) cento e sessenta a duzentos réis. De Junho a meados de Agosto (eiras) cento e sessenta a duzentos e oitenta réis. De meados de Agosto a 20 de Setembro (palhas e desmoitas) cento e quarenta a cento e oitenta réis.
81O jornal vence-se diariamente, mas estipula-se e paga-se às semanas ou quinzenas. O trato por quinzena de trabalho sem interrupção do domingo intermediário é uso geral durante as sementeiras e também no tempo das eiras em algumas zonas. No resto do ano ajusta-se e paga-se no fim das semanas e à jorna fixa por cada dia, pagando o lavrador ou o abegão, se este recebeu do amo. Como quer que seja, o abegão assiste ao pagamento e, sendo preciso, informa dos dias que tem cada jornaleiro. Ao mesmo tempo, ao entregar-lhes a jorna despede-os logo, se os não quer. Mas se pelo contrário ainda os precisa, troca impressões com eles, para lhes conhecer o propósito. Costumeira banal de simples palavreado. Só depois, pelo dia fora e à tarde, nas tabernas e pontos de reunião das aldeias, é que abegãos e sotas falam a «preceito» à gente de que precisam, abrindo-lhes ou não o preço por que hão-de sair.
82No tempo das sementeiras e no do Verão é demorado o ajuste. O trabalhador, ou só se decide à última da hora, aguardando maior oferta, ou trata-se sem preço, mas com a condição de receber pelo mais alto que se pagar. A maioria não sai sem preço feito e assim mesmo só o aceita quando vê que não pode obter mais.
83No Verão, e na freguesia de Santa Eulália, os salários não se definem antes da manhã do dia seguinte ao da folga, na praça da aldeia, onde a família se junta a discutir o caso. Ali «fazem praça», ouvindo as ofertas dos governos, por entre os comentários de ocasião. Dura isto até às sete ou oito horas da manhã, em que se decidem a sair para onde melhor lhes apraz. O trabalho próximo, a simpatia pelo abegão, e o bom trato em alimentação constituem motivos de preferência.
84Chegados aos serviços consideram-se justos, mas por qualquer ninharia quebram o compromisso e partem a semana ou quinzena, abalando à surdina sem sequer participarem ao abegão. O que às vezes motiva transtorno. Mas como é usual pouco se estranha, e tanto menos porque os que saem hoje de uma casa, dias ou semanas depois voltam para lá com igual sem-cerimónia. E como as abaladas são frequentes em todas, e os que desertam de umas lavouras vão logo para outras, substituindo-se assim reciprocamente, as vagas depressa se preenchem. Há apenas mutuação de caras, sem vantagem para ninguém.
85De Inverno acentua-se a estabilidade, não se discutindo preços. Vai-se com o tempo, que é o da abibe – uma avezita, magrizela e humilde, que em bandos arriba então ao Alentejo. Depois, de Abril em diante, «quando vem a rola e canta o cuco», à família pica-lhe a mosca não parando em ramo verde. De mansa que estava passou a brava, tão brava, que aos adjuntos dos domingos e segundas-feiras para os ajustes da semana por vezes se lhe chamam touradas. Força de expressão, está claro.
Aumento das soldadas e salários
86Nos últimos anos e por efeito do desenvolvimento da cultura cerealífera, as soldadas e salários têm aumentado bastante, sendo de presumir que ainda se elevem mais nos anos de boas colheitas.
87Nos salários é onde a subida se acentua em maior escala. Sendo como são pagos em dinheiro, de contado, apenas, a diferença parece maior do que nas soldadas anuais com outras avenças. Nestas, a subida é relativamente menor em réis. Mas como ao dinheiro se adicionam forras de géneros, searas e pastos, cujo valor também se elevou, não diminuindo as unidades que os representam, os vencimentos respectivos igualmente se avolumaram, embora continuem representados por regalias idênticas às anteriormente ganhas. Um moio de trigo é sempre um moio de trigo, mas o seu rendimento de hoje é maior que outrora. E o mesmo sucede com a forra de uma vaca, de uma égua, etc.
88Com as soldadas a dinheiro somente, a alta dá-se em proporção idêntica à do salário. Em ambos os casos é grande, máximo nas sementeiras e colheitas, que se eleva a 40 % a mais dos preços antigos de épocas análogas. De Inverno também se nota o aumento* mas em escala menor – 20 a 30 % se tanto.
89O lavrador sensato não se revolta contra esta melhoria de vencimentos. Pelo contrário, aceita o facto como justo e lógico na actualidade em que tudo vale mais que nos tempos passados. O que o agricultor deplora é a escassez do pessoal para as fainas agrícolas, que duplicaram ou triplicaram de intensidade, ganhando em aperfeiçoamento.
90De Verão sobretudo, seria impossível terminar as colheitas a tempo se não fossem os ceifadores das Beiras – os ratinhos, que afluem aos milhares, e as debulhadoras a vapor. As debulhadoras generalizam-se e facilitam-se de ano para ano, e não obstante, em cada nova colheita mais se nota a falta de braços, e consequentemente a subida do salário.
Particularidades de cada ocupação
91Guarda de herdades – Entidade inconfundível, essencialmente típica. Cara de poucos amigos, emoldurada por suíças fartas, respeitosas, a quadrarem com o todo da estatura possante e autoritária.
92Traz quase sempre mochila às costas e por vezes cartucheira à cinta e carabina ao ombro. Que a espingarda não a usa constantemente, por lhe parecer traste espaventoso, revelador de preocupações de defesa, que o mundo pode classificar de receio ou cobardia. Por isso, o que é «homem» para mostrar o que pode e vale empunha de preferência um nodoso pau ferrado, distintivo eloquente do seu famoso poderio. Verdadeira vara de justiça, mas de justiça sumária, temida como nenhuma pelos ratoneiros dos povoados.
93O guarda de herdades tem como principal encargo a guardaria das searas, pastagens e montados das herdades «a sua conta», cumprindo-lhe coibir os abusos e invasões de toda a ordem, tanto dos serviçais e gados de seu amo, como do dos vizinhos e estranhos. Incumbe-lhe por conseguinte: vigiar com frequência, dando voltas repetidas e trocadas, com intervalos de observação atenta – à espreita – nas melhores avistadas (outeiros de largos horizontes). Repreender os ganadeiros que abusam por si ou pelos gados que pastoreiam. Acompanhar, até sair da guardaria, qualquer rebanho alheio que vá de passagem e «de canada», apressando-lhe a marcha para evitar logro de pastagens, com demoras cavilosas e chupistas. Participar ao amo as faltas dos ganadeiros e de outros que lhe estejam incumbidos. Largar ou guardar terra aos rebanhos com prévia consulta e assentimento do lavrador. Não consentir que os «mateiros» levantem chamiça, piorno, ou arreigotas de que se careça para o consumo da casa, ou que representem valor considerável. Governar as mulheres da monda, da bolota ou de outro serviço, não incumbido a encarregado especial. Fiscalizar as ceifas e gadanhas, sobretudo as ceifas, reparando na maneira por que vai o corte, a atada, a enrilheiração e o aproveitamento das espigas. Contar os feixes de feno nas gadanhas de empreitada, para dar conta ao lavrador das carradas a pagar. Manter em termos de recíproca vantagem a boa vizinhança estabelecida entre seu amo e os vizinhos, pelo que respeita aos limites de tolerância na entrada e permanência dos gados de uns nas terras dos outros. E, finalmente, olhar por tudo de que o encarreguem, procedendo com circunspecção, probidade e firmeza.
94Poucos reúnem todos os requisitos necessários para o bom desempenho do lugar. Mas aquele que revela os mais essenciais já goza da estima dos amos.
95Isto de guardas de herdades é ocupação em que se observam feitios diferentes, posto que em todos predomina a nota de valentia e sisudez. Alguns pecam por brigões e autoritários em excesso, ultrapassando os deveres da prudência com futilidades que chegam a degenerar em conflitos graves. Mas a par destes, encontram-se igualmente muitos outros de critério oposto, bem orientados, corajosos e sensatos. Sem alardearem pimponices de estrondo, mas colocando-se no seu lugar e a sério, respeitam-nos mais que os basófias petulantes e comichosos. E ainda se vê outro género, contraste dos dois referidos, mas não menos curioso. Pertencem-lhe aqueles em que os actos desmentem as palavras. Pândegos, que «não vêem lobos pequenos», que só falam em ferir e espancar, mas que fogem às ocasiões como o diabo da cruz. Se por acaso, e contra sua vontade, se lhes depara ensejo para demonstrarem o que aparentam, esquecem logo as bravatas e ei-los mansos como borregos. Em geral também olvidam os deveres com igual facilidade. Do que resulta não criarem raízes na guardaria. Mal se denunciam, os amos põem-nos ao fresco para que procurem outra vida.
96Que a ocupação é bastante espinhosa e a mais arriscada das do campo não resta dúvida. Todavia, nenhuma há tão apetitosa e invejada. Cobiça que se compreende, decifrando o enigma.
97O guarda de herdades, apesar dos perigos e ódios que o rodeiam e das responsabilidades constantes que sobre si pesam, goza ao mesmo tempo de certa importância que o envaidece. Livre do rigor dos trabalhos braçais, em que, geralmente, se empregava antes, passa a viver de «corpo direito» e a auferir ganâncias de alto valor, como nenhum outro criado. O que justifica o afã com que o emprego é disputado mal se suspeita a vacatura.
98O lavrador de que se presume carecer de guarda novo, vê-se assediado por toda a casta de empenhos e oferecimentos, a ponto de se sentir perplexo e atónito com a preferência. Por fim, escolhe ou aceita um, sabendo de antemão que os preteridos ficam despeitados e quem sabe se inimigos seus. Pelo menos vingar-se-ão, motejando da escolha e do escolhido em coro com os que por hábito e sistema se regalam em ridicularizar os guardas na ausência, sejam eles quem forem. Chamam-lhes impostores, brutos, preguiçosos, etc. E comentam-nos assim: “Parece-lhes que têm o rei na barriga!...” “Barofões impostores... já se não lembram do que eram...” “Bom ofício mas neja para mim... tenho bom corpo para trabalhar...” Estamos no caso da raposa às uvas...
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99A soldada do guarda consiste nuns vinte a trinta e seis mil réis por ano, trinta a quarenta alqueires de trigo ou cinquenta de centeio aos pastores de uma égua e os de uma burra, a residência gratuita dele e da família num monte pequeno dos do cómodo e o usufruto de qualquer quinchoso tapadejo ou curralório contíguo para a cultura de umas batatas, favas, couves, etc.
100Mas o essencial é a ferra da égua, que todos solicitam como principal objectivo das suas aspirações. Uma égua nas mãos de um guarda é um tesouro incalculável. Tratada a capricho nas melhores pastagens e até nos solos de bolota, essa égua, que pouco ou nada trabalha, pare quase todos os anos uma excelente cria muar, que rende aos quatorze meses noventa a cento e quarenta mil réis.
101As muares de ano mais desenvolvidas que aparecem na afamada feira de Maio de Vila Viçosa são por certo as dos guardas. Aí as vendem eles ordinariamente, se antes lhas não foram comprar à própria guardaria.
102Na feira citada torna-se curioso ouvi-los aos grupos em aporfias e confrontos sobre os mulos de cada um.
103A burra serve-lhes para cómodo pessoal e rendimento das crias. É pequeno, comparado com o da égua, mas ainda .vale uns vinte a trinta mil réis.
104Portanto, verba em dinheiro, crias e etc., somam uma continha bem boa, própria a aguçar o apetite dos estranhos e fazer as delícias dos que a ganham. O que tem sorte com a égua, sai-se em média por cento e cinquenta mil réis, e anos há que topa a duzentos e arriba. É questão de cria. Se falha, se se aleija ou morre reduz-se a metade ou menos. Questão de sorte também. Uma aventura, como eles dizem. E acrescentam: “A fortuna de um pobre está no traseiro de uma égua velha.”
105Os guardas arriscam a vida no exacto cumprimento dos seus deveres, mas sendo felizes, prudentes e cautelosos, vencem todos os atritos, e juntam suficiente pecúlio para velhice descansada. Conhecem-se muitos que compram pequenas propriedades.
106Há porém que distinguir entre aqueles que ganham o que já disse e que são evidentemente os guardas típicos, e outros mais humildes de guardarias pequenas ou mal pagas, que só vencem quatro ou cinco mil réis mensais. Guardas de «manta às costas», no dizer picaresco do povinho. Como se dissessem: “Homens sem eira nem beira, que só possuem pau e canta.” Uns valdevinos que nada têm a perder.
107No concelho de Elvas todos os guardas de herdades possuem alvará de guarda rural passado pela municipalidade, o que lhes dá o direito de acoimarem por transgressão de posturas. Por esse facto gozam o privilégio do porte de armas gratuito.
108As lavouras muito grandes, ou de herdades dispersas, sustentam dois e três guardas.
109Abegão (1) – Encarregado principal de todos os serviços desempenhados pela ganharia de que é mandante e cabeça. «Chavão da lavoura», no dizer de alguns campónios.
110Porque o lugar é de alta responsabilidade, o lavrador preenche-o com pessoa capaz já exercida no ofício, ou mete um novo, desembaraçado e fiel, que tenha «sentido» e revele «bom risco». A experimentar, entende-se: se dá, continua, e faz dele «um homem»; se não, despede-o no fim do ano.
111O abegão só recebe ordens do amo, que o considera seu imediato representante nas fainas respectivas.
112Trabalha conjuntamente com os camaradas, come com eles, mas pernoita à parte em casa própria, como referi na descrição dos montes.
113No trabalho braçal o seu lugar é à direita da gente que dirige, mas às vezes coloca-se no meio para dar saída ao serviço com «o seu corpo» e o dos outros. Na lavoura toma a frente da píscola dianteira, escolhendo para si as duas melhores juntas de bois.
114Em geral não alardeia exageros de superioridade afrontosa sobre os subordinados. Deles saiu e com eles labuta, dando-se ao respeito mas sem grandes reservas e até com familiaridade.
115Nestas circunstâncias compete-lhe:
116Governar e dirigir a lavoura propriamente dita, as cavas, acarretos, eiras, desmoitas, etc. Dar as horas de agarra, as da comida e as da solta. Pôr a mesa, partir a bois, distribuir as merendas e bradar ao almoço e ceia no Outono e no Inverno.
117Intervir na acomodação, abonos e pagas do pessoal, pela forma que enunciei nas soldadas e salários, e bem assim no reparo e assento dos dias perdidos.
118Estimular o brio dos ganhões, animando-os no trabalho, captando-lhe as simpatias, dando-lhe bons exemplos, e sendo preciso, arrumando-lhe ferroadas a tempo, conforme as circunstâncias. Numa palavra, «saber lidar com a família, levando-a com jeito.»
119Cumpre-lhe mais:
120Com a ajuda do carpinteiro ou só por si, proceder à armação ou enganche das enteichaduras, nas vésperas de se principiar a lavoura «às águas novas».
121Amanhar as mesmas enteichaduras no local da lavoura, substituindo as peças partidas ou gastas por outras novas ou consertadas, que de propósito há de reserva. Talhar apeiros, corneiras e brochas, dos couros destinados à renovação da apeiragem distribuindo a nova correama pela ganharia, a fim de cada qual amaciar (surrar) as peças que lhe tocam.
122Encozer os forcados de madeira logo que se tiram da lenha. Preparar os manguais e encabar as enxadas, enxadões e machados, lembrando ao amo a aquisição destes e outros utensílios. Tomar à sua conta a guarda e conservação da apeiragem e ferramentas. Acudir com a ganharia e com prontidão, seja a que horas for, a todo o incêndio que se manifeste nas herdades do cómodo ou nas dos vizinhos, ainda que estejam de mal com seu amo.
123Prestar igualmente auxílio e socorro aos criados da casa que lho reclamem por motivo de doença, desastre ou morte de pessoas, reses e cavalgaduras. Prover quanto possa às ocorrências inesperadas, mandando participar ao lavrador, se o caso tiver importância. E, enfim, delegar no sota, boieiro ou ganhão de ano, quaisquer atribuições a que não possa atender e que eles saibam desempenhar. Como criado dos que mais se evidenciam, os abegãos são discutidos por todo o pessoal, consoante as simpatias ou antipatias de cada um.
124Eis uma amostra dessas apreciações:
125Do que reputam desembaraçado e inteligente: «Para governar píscolas e entender de terras, tem olho e sentido... Nenhum lhes dá melhor saída... sabe-lhe das voltas e das quedas como o primeiro... E apurado... neja como alguns de mãos grandes que atrapalham, sem preceito... E para carregar!... É cada carrada como almiaras!... direitas como fusos!... Pois numa eira é que se lhe vê o risco... Ele e quaisquer dois gatos voltam um calcadoiro num assopro!... e então com a pá nas unhas, fuma-lhe a venta a passar um moitão!... Liberal até ali!...»
126Do sabedor, mas de fraco expediente: «Sabe... mas muito atadinho... Um coquinhas que se enfeza por dá cá aquela palha... Não tem fígados para ucharias grandes... Pois para mandar, nunca se entende... tão depressa manda como desmanda...»
127Do incompetente: «Ele sabe lá ser governo!... E talhar serviços, como pachaste... Sempre contra a direitura... a nunca encarrilhar. Para tudo se quer sorte... Nunca passou de ganhão reles e agora a mandar familha!... Valeu-lhe o paleio... e as imposturices... Mas deixem-no, que há-de perder a aceitação!...»
128Acontece que semelhantes juízos sofrem contestação dos que pensam o contrário, originando-se disputas acaloradas. Mas lá diz o rifão: Cada cabeça, cada sentença...
129Vale de 150 a 170$000 réis a soldada do abegão de uma lavoura grande. E em geral baseia-se no seguinte: cinco a doze moedas, ou sejam, 24 a 57$600 réis; duas searas, uma de seis a oito alqueires de trigo ou centeio em semeadura e outra de dois a quatro alqueires de trigo ribeiro ou legumes; «pão» na eira entre quarenta a setenta alqueires de trigo ou centeio; duas ou três carradas de lenha ; uma ou «meia» cabeça na vara; pastos para uma égua, vaca ou burra. Em alguns concelhos vizinhos do de Elvas também vigora a forra de pastos para uma junta de novilhos.
130Em cada lavoura divergem as adições da soldada, devendo notar-se que, por maior que seja, nenhuma abrange todos os proventos acima mencionados. O uso geral resume-se em dinheiro, seara, «pão na eira» e lenha. Tudo mais constitui excepção e resto de costumes antigos caídos em desuso.
131Será escusado repetir que quanto maior é o ganho em réis, menos importantes são as forras e searas, assim como se as achegas são avultadas reduz-se muito a verba a dinheiro. Regra invariável, sabida, tanto para a soldada de abegão, como nas de outros serviçais.
132Sota – É o substituto do abegão e coadjuva-o em tudo que possa e saiba. Por sua vez, o abegão também o deve orientar nos serviços que desconheça. Nos trabalhos coloca-se na ponta esquerda, e na lavoura governa uma ads píscolas à frente da ponta guiada.
133Não havendo semeador próprio, é ele quem semeia e embelga, ou semeia somente. E também se incumbe de governar o corte das lenhas se para isso não há encarregado extraordinário.
134De Verão, se as eiras são duas, ele encarrega-se de uma. É afinal uma espécie de vice-abegão com as atribuições e responsabilidades inerentes.
135A soldada do sota pode-se computar em 80 a 85$000 réis, provenientes da verba em dinheiro e do «pão na eira».
136Em geral, o cargo de sota serve de degrau para abegão, posto que o não seja para os apoucados que nunca trepam arriba. Aquele que apanha a chefatura na própria casa onde serve, por efeito de o amo despedir o abegão, conta logo com um inimigo no seu ex-superior. O qual, despeitado, diz dele o seguinte: Maroto... onzeneiro... não descansou enquanto me não arrebentou!... Alguém o arrebentará a ele!... Desabafos do estilo, tanto no caso presente como em outros semelhantes. Os criados de pensão despedidos pelos amos atribuem sempre o despedimento a intrigas dos companheiros de graduação. Arrebentam-nos, dizem.
137Boieiros – Costumam ser dois: maioral e ajuda. Ocupam-se na guardaria, apascentação e tratamento dos bois e novilhos de trabalho que compõem a boiada, e ainda nos serviços da ganharia, como adiante explicarei.
138O maioral distingue-se do ajuda por ser o principal responsável na guardaria dos bois e por ganhar um pouco mais. Fora isto, os direitos e deveres dos dois são análogos. A ambos e por sua altura, conforme a ocasião, compete-lhes dirigir a lavoura na ausência do abegão e do sota.
139Apesar de ganadeiros, as suas referências têm melhor oportunidade entre os serviçais da lavoura, a que de resto pertencem também, e com quem estão em maior e mais frequente convívio. O facto de guardarem reses bovinas e trabalharem braçalmente, explica-se da seguinte forma:
140A apascentação da boiada requer apenas um homem durante o dia. Mas como em algumas horas da noite nos meses de Outubro a Março são indispensáveis dois, e como a boiada trabalha geralmente de revezo, quer dizer, a metade de manhã e a metade de tarde, sendo por isso necessário um homem para cada revezo, impõe-se a existência de dois boieiros em cada lavoura. Enquanto um trabalha, o outro guarda o gado.
141O ajuda lavra com o revezo da manhã ; o maioral com o da tarde. Se a lavoura é de singelo (o mesmo gado em todo o dia), costume que geralmente se usa apenas pela sementeira do Outono, e não em toda a parte – ou lavram os dois boieiros todo o dia, sendo as reses tratadas à noite por outro homem, ou eles próprios as tratam, revezando-se, com o auxílio de um rapaz – o palheiro.
142Quando a lavoura está parada (interrompida) e o pessoal se emprega em outros serviços, anda-lhe sempre agregado um boieiro que trabalha como qualquer ganhão. Assim, na semana em que o maioral vai para a ganharia o ajuda guarda os bois, para depois se inverterem os papéis, indo o ajuda para a malta e o maiorial para o gado.
143Aos boieiros compete: fornecer e pôr os chocalhos ao gado em harmonia com os usos; fazer o cachaço aos bois com tesouras suas ou emprestadas; distribuir as juntas pelos ganhões, depois do abegão, sota e eles guardadores escolherem para si próprios tendo o abegão a primazia. O ajuda reparte o revezo da manhã e o maioral o da tarde, pelo que é ao maioral que compete distribuir os novilhos de amansia pelos ganhões que julga bons para o ensino e adomação. Ele também amansa um ou dois em cada sementeira, escolhendo-os entre todos.
144Maioral e ajuda, na lavoura e acarretos, cumpre-lhes fiscalizar o bom ou mau trato dos ganhões para com as juntas, repreendendo abusos, e indicando ao amo e abegão a conveniência de despedir os que sejam ásperos ou maldosos e conservar os macios e jeitosos. Cumpre-lhes, enfim, concorrerem quanto possam para o bom passadio dos bois, erguendo-os a miúde na pastagem e preservando-os de águas estagnadas.
145A profissão de boieiro é a mais penosa das que se exercem nas herdades do Alentejo. Mormente no Outono e Inverno, em que sofrem inclemências e incómodos tais que merecem desenvolvida exposição.
146Em primeiro lugar não dispõem de choças nem malhadas que os preservem dos temporais! E não as têm por que precisam andar por diversos sítios grande parte da noite, traiteando os bois, ora na pastagem do invernadoiro ou da coitada, ora chegando-os à palha, ou ao feno, à rama, ao alcácer, etc. Cada coisa, ou parte delas, a hora diferente e às vezes em locais algo distanciados; nuns, com o gado preso por horas, noutros, à solta, conforme a época, o costume, os recursos pascígoros, etc.
147Por conseguinte, tendo de estar «de vela» a maior parte da noite, enroupam-se quanto podem. Ao vestuário comum adicionam o clássico pelico, a pelica, os safões lanzudos, o tapa-cu e ainda o casacão ou capote aguaceiro de burel. Assim ensamarrados, munidos do guarda-chuva azul (inovação recente) e do indispensável cacheiro (cajado), passam a noite de alerta, excepto nos intervalos de descanso. O que medeia desde a socega, à entrada da noite, até às dez horas, e o da madrugada. No tempo restante, mal dormitam cabeceando, se tomam a sério a traiteação dos animais.
148Nas horas de descanso, dormem em qualquer abrigada de ocasião, onde acendem lume. Aí, ao relento, envoltos na copa, estiram-se, de forma que os pés, resguardados pelas botas ou sapatos de atanado, recebam o calor da fogueira, único meio de atenuarem o rigor do frio. Mas mesmo então, por vezes, interrompem o repouso para cuidarem do gado.
149Às dez horas levantam-no para repostar livremente no próprio invernadoiro, ou para o chegarem à palha, ao feno, rama, etc.
150Decorrido o tempo do repasto, costuma-se apartar o revezo da manhã do da tarde, para assim em separado descansarem de novo. É a hora da madorna.
151Enquanto o gado amadorna, o ajuda pega no competente tarro de cortiça, põe o cacheiro ao ombro e vai ao monte buscar a açorda para ele e o maioral almoçarem no mesmo tarro ali arrimados aos bois.
152No acto da apartação, sucede em noites escuras tempestuosas faltar um ou outro boi que se escapou acossado pelo temporal ou que por guloso fugiu para melhor pastagem ou para alguma folha.
153Se o extraviado pertence ao revezo da manhã, prestes a ir trabalhar, ao ajuda compete procurá-lo e trazê-lo imediatamente. Dada a hipótese, a missão considera-se espinhosa, atenta a escuridão da noite. Mas como se impõe, o boieiro parte a desempenhá-la, esperando auxílio no chocalho do fugitivo, cujo toque conhece de longe como os dos outros das demais reses. Sem embargo pragueja-se e maldiz a oficina e a hora em que a agarrou.
154Prosseguindo nas sagas do baldio, aqui se atasca, além cai, adiante tropeça, acolá esbarra, mas lá segue de trouxo mocho, caminhando e escutando, escutando sempre... Ouve enfim um chocalho... Escuta... é o dele, o do amaldiçoado que o fez andar às aranhas, aos baquinázios, altas horas da noite, escura como breu !... Ah boi de um filho de curta!... já mas pagas;..., exclama o encolerizado homem, apressando o passo, até lobrigar a rês.
155O boi, ouvindo aquela voz tão sua conhecida, levanta a cabeça, e, instintivamente, principia a caminhar em direcção às camas dos companheiros. Mas o guardador não lhe perdoa. Como lembrete dirige-lhe novas e mais retumbantes ameaças por entre cacheiradas certeiras que alcançam o fugitivo; este, escaramentado e receoso, abrevia a marcha, submetendo-se em absoluto.
156Se porventura não aparece a rês ou reses perdidas, o infeliz ajuda fica ainda de pior humor, não tanto pelo facto em si, como pela circunstância de que o malogro dos seus passos desacredita-o bastante. Sabe que em chegando aos arados sem um dos bois do costume, as suas barbas ficam envergonhadas diante da ganharia. Mas tem de se aguentar, cumprindo-lhe substituir o ausente por outro que sobeje ou por um dos do revezo da tarde.
157Em tais circunstâncias, o maioral aguarda o dia para, em aclarando, ir à cata da rês extraviada, como igualmente faria sendo do seu revezo. Encontrando-a, tem o direito de a conduzir à lavoura para se agarrar ao arado e ser solto o boi que a substitui. Isto traduz um ataque para o camarada e portanto só em casos imperiosos ou por pirraça recorre a esse extremo. Mas se recorre aumenta o vexame do ajuda que assim fica exautorado (2).
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158Entretanto termina a madorna, aproxima-se o alvorecer. É a hora do ajuda marchar com o revezo para os arados, onde têm de chegar antes de luzir a manhã. Cedo sempre, chova ou não. Por consequência, ei-lo a postos, de cacheiro em punho a reunir as reses. E para as pôr em andamento, solta o clássico assobio, sinal de partida, a que os bois obedecem. Se algum se esquiva, logo o cacheiro cai sobre ele, lembrando-lhe o dever. E partem todos, homens e animais.
159Os pacíficos ruminantes caminham devagar, pausadamente, ao som dos chocalhos. As mangas, os campanilhos, as sem-serras e os esquilões, toda a loiça enfim, compõem uma orquestra atraente, que o silêncio da noite faz ecoar ao longe pelos outeiros e encostas. É a alvorada do campo, hino do trabalho que por muitos minutos emudece o piar agoirento das aves nocturnas.
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160Com o referido, deixo relatados os costumes dos boieiros na época da sementeira outonal. Alguns representam deveres penosos que se agravam frequentemente com os rigores das chuvas ou do frio intenso, próprio das noites grandes, de geadas de arrepiar.
161De Dezembro em diante, a chegada dos bois à lavoura é menos cedo; mas os restantes deveres subsistem na essência com escassas variantes até à Primavera.
162Nas lavouras de singelo ou de revezo em que os bois se tratam à mão, recolhidos em cabanas, a vida de boieiro é incomparavelmente menos incomodativa. Mas esse costume é tão fora do comum neste canto do Alentejo, que poucos ganadeiros lhe gozam as vantagens. Como se sabe, prevalece a apascentação de regime manadio, que demanda sacrifícios e resistência singular.
163Com efeito, nenhuma ocupação há no campo tão espinhosa e ingrata. Todos se recusariam a desempenhá-la se a via dolorosa das noites aspérrimas, em cuidados incessantes, se prolongasse pelo ano inteiro. Felizmente não se prolonga além de Março.
164A Primavera e o Estio garantem aos rústicos boieiros algumas semanas de «boa vida», em que se desforram do passado num repouso tranquilo. De dia principalmente, dormem horas e horas, de barriga para o ar, à sombra agradabilíssima de azinheiras ramalhudas. À parte o período dos acarretos, têm então uma temporada de descanso, legítima indemnização de passados sofrimentos. Merecem-na bem, coitados.
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165Soldadas: sendo a dinheiro regulam entre 84 e 86$400 réis por ano e homem, ou seja a moeda e meia por mês. Outros vencem seis ou oito moedas (28$800 a 38$400 réis) e sessenta alqueires de trigo ou centeio. Tendo na seara e pão na eira (costume quase banido) ganham 14$400 réis, searas de seis a sete alqueires de semeadura e quarenta alqueires de trigo ou um moio de centeio. Noutros casos falta a seara e o pão na eira, mas cada boieiro vence o pegulhal de uma junta de novilhos. Cada um compra dois bezerros de ano, que vende aos dois anos, lucrando a diferença de preço.
166Ganhões – São os moços da lavoura propriamente dita e de outros serviços, como cavas, acarretos, eiras, etc. Acomodam-se e ganham pela forma e preços que referi nas Soldadas e salários.
167A colectividade que os agrupa denomina-se ganharia ou malta.
168Saídos de ajudas de entregues de gado, ou de paquetes, por vezes figuram na ganharia rapazes adolescentes de quatorze a dezaseis anos, se o serviço é de molde a tais principiantes. Mas esses galuchos só se consideram ganhões depois de lavrarem «de efectivo» toda a época de uma sementeira outonal. Os que alfim passam por semelhante prova dizem muito lisonjeados: «Este ano já fiz uma sementeira!!...» Como se dissessem: «Agora sim que sou gente!... recebi a alternativa de ganhão!...»
169Entre os ganhões de uma casa pode haver duas categorias: os «de pensão» e os rasos.
170De pensão é porventura um ou outro anual que se acomoda com a obrigação de em certo tempo destacar para tal ou qual serviço extraordinário, ou para fazer de encarregado interino por impedimento ou abalada de qualquer «governo» efectivo.
171Os rasos, ou de mãozeira (3 ), temporeiros e de dias, compõem a quase totalidade e, em regra, sempre se ocupam nos trabalhos ordinários, sob as ordens e vigilância do abegão e do sota. São a massa anónima das centenas de indivíduos que se sustentam das herdades. Delas saem todos que por mérito ou favor ascendem a «governos» ou cabeças, e nela rastejam sempre muitos outros mais humildes e infelizes que nunca logram melhor posto. O ganhão raso é simplesmente máquina de trabalho, para que só se exige robustez e um bocado de compreensão. Ganha pouco em relação aos que o mandam, mas não se sente assoberbado por incumbências difíceis. Trabalha se o mandarem e fiscalizarem: se o deixarem, como não tenha brio excepcional, mandreia à grande e sem escrúpulos.
172De qualquer maneira em lhe dando a solta, só pensa em si, se pensa. O seu viver é tão humilde e ingrato que lhe não consente cuidados. Para quê, se está cônscio de que nunca passa de ganhão, sem esperança de subir!... E assim adquire uma rudeza de independência e desassombro que bastante se acentua quando o pessoal escasseia. Isto pelo menos nos de idade adulta, na força da vida, que se julgam válidos para «um tudo». Este «um tudo» quer dizer que se consideram aptos a botar mão de todos os serviços do campo, que são de uso e costume.
173Fora das sementeiras outonais e das colheitas, em que tudo acode a ocupar-se nas ganharias, no restante do ano a melhoria do pessoal deixa as lavouras para servir de jorna nas lenhas e cavas.
174Maioral de mulas – Encarregado principal das parelhas de muares que trabalham ao carro, arado e grade. Como emprego de responsabilidade importante, escolhe-se para ele homem prático de bestas, «avezado a arreatas», com tacto para dar saída aos serviços e tino para mandar. Tomando à sua conta os outros carreiros, destina-lhes o trabalho, fiscalizando-os no tratamento do gado e no mais que esteja sob as suas vistas.
175Pela sua parte lida igualmente com uma parelha – a melhor, na maioria dos casos – colocando-se no lugar da frente.
176Compete-lhe mais: de acordo com o lavrador, distribuir as parelhas pelos camaradas, de modo que as unhas, jeito e astúcia de cada um, correspondem às aptidões, instintos e apreço dos animais que se lhes confiam. Alterar o emparceiramento das parelhas quando as circunstâncias aconselhem e com prévia consulta e aprovação do amo. Ser madrugador na «hora de agarra» e despachado nas caminhadas e na lavoura.
177Reparar no número e importância dos carreguios dos géneros que transporta por si ou pelos seus imediatos, para dar conta exacta ao amo.
178Cuidar do arroçoamento e limpeza do gado, e bem assim de o levar e mandar ir ao ferrador por ocasião das folgas e quando seja indispensável. Fazer o cachaço às parelhas (tosquiar-lhes o pêlo do pescoço), e lembrar ao lavrador a conveniência da tosquia durante as respectivas épocas (Primavera e Outono). Participar-lhe igualmente qualquer doença, manha ou aleijão que apareça em uma ou outra muar. Amansar as serreiras, educando-as com paciência, se não se incumbe a amansia a outro. Zelar pelo asseio da estrebaria e pela conservação dos carros, cangas e mais utensílios – cabrestos, burnis, mantas, apeiros, barrigueiras, arreatas, etc., etc.
179O maioral das mulas ganha anualmente umas oito a dez moedas, (38$400 a 48$000 réis), um moio e oitenta alqueires de trigo, seara de três a quatro alqueires de legumes e uma ou duas carradas de lenha, senão toda a que precisa para seu consumo. Ganhando dinheiro somente, regula aí por 80 a 90$000 réis ou mais se a pensão é grande, quer dizer, se tem muitas parelhas e carreiros a dirigir.
180Entre o maioral das mulas e o abegão torna-se frequente certa rivalidade, resultante de ambos serem «governos» e não mandar um no outro. O abegão apregoa que as parelhas comem muito e trabalham pouco; o maioral farta-se de dizer que as mulas andam sempre num sarilho e são a rodilha de todos...
181Ajuda do maioral das mulas – É o substituto do maioral para todos os efeitos. Como eles trabalha igualmente com uma parelha boa, cumprindo-lhe coadjuvar o seu chefe e camarada em tudo que lhe esteja ao alcance. Ganha uns 72 a 78$000 réis anuais, ou menos em dinheiro e coisa de trinta a quarenta alqueires de trigo.
182Geralmente, o ajuda costuma «andar» com a parelha que puxa ao carro, de cómodo pessoal para o lavrador e sua família. Esta circunstância, se por um lado lhe cerceia um pouco as folgas dos domingos e o obriga a trajar melhor nas ocasiões de saídas com os amos, por outro, proporciona-lhe muitos mais dias de buena, desforrando-se à grande, com fartas comezainas inerentes à ocupação. Sair com o lavrador e sobretudo com a lavradora, a visitar parentes, ou a romarias e compras na cidade, é caso para bater palmas. E tanto assim que o carreiro de parelha escolhida para esses actos é sempre invejado pelos companheiros. Se porventura a missão se confia a outro que não seja o ajuda ou o maioral, mais se agrava o despeito. Sabem perfeitamente o que aquilo deixa para quem gosta de trabalhar pouco e comer bem.
183Uma pechincha, que o arvorado em cocheiro procura conservar, «fazendo as vontades» aos amos. Que é como quem diz ser «bem mandado», diligente e sobretudo afeiçoar-se aos meninos da casa, entretendo-os com lérias e festas.
184Com tais requisitos não perde a papinha de conduzir os amos e vários adventícios, de que recebe boas espórtulas. Como o não hão-de invejar os companheiros! Esta acumulação de carreiro de trabalho agrícola e condutor de carro para cómodo pessoal só se usa nas lavouras pequenas e nas medianas. Nas grandes, há carro e criado próprio para transporte dos lavradores e familiares.
185O ajuda ganha uns 72 a 78$000 réis anuais, ou menos em dinheiro e coisa de trinta a quarenta alqueires de trigo.
186Carreiros (4)–Embora esta denominação seja também comum às duas entidades ultimamente referidas, emprega-se contudo de preferência para indicar os imediatos a aqueles, os carreiros rasos, que andam e trabalham com parelhas sob a vigilância e direcção dos encarregados competentes. A uns e outros também se lhes chama almocreves.
187Cada simples carreiro ganha aproximadamente uns 58 a 65$000 réis anuais.
188Todos, incluindo maioral e ajuda, untam os rodados dos respectivos carros, e todos tratam e limpam a parelha com que trabalham. Na Primavera, tempo em que as bestas se sustentam a alcácer ou verde, durante a noite, esse tratamento faz-se por escala entre todos os carreiros, ficando um de plantão em cada noite. E de manhã cedo, «antes de agarrarem», vão ceifar o verde de que precisam.
189No mês de Maio, se as parelhas passam as noites «a prado», dormindo e comendo ao ar livre no campo, como por partes se usa agora, os carreiros pernoitam próximos, ficando um de plantão a guardá-las. Se isso se não incumbe a guarda especial, o que é de maior conveniência.
190Os carreiros e parelhas folgam nos mesmos dias que os ganhões, salvo quando surgem afazeres urgentes, inadiáveis, imprevistos ou extraordinários. Para semelhantes casos não há domingos nem dias santos. Em compensação, passam o mais do tempo repimpados na taleira dos carros «com os pés no ar», no dizer dos seus émulos ganhões, que assim os comentam vendo-os de tal modo. E se vão de pé, muito direitos e firmes, sobre os carros vazios, em doidas corrimaças, como usam frequentemente, os outros que mourejam com o seu corpo, mais lhes gabam o ofício. Os gabados vibram então arreatadas tesas sobre as parelhas que dirigem e a correria torna-se vertiginosa, para mais lhes realçar as prosápias equilibristas. Pimponices imprudentes, às vezes funestas.
191Carpinteiros – Ocupam-se na construção e conserto de carros, arados e demais alfaias agrícolas de madeira.
192Além dos afazeres profissionais encarregam-se de outros estranhos de pequena demora, como por exemplo a medição do cereal para o moleiro reduzir a farinha, e o seu peso ao chegar do moinho (5).
193Outrora, os carpinteiros comiam à mesa do lavrador. Hoje comem à parte, alimentação igual à dos familiares do monte, melhor que a dos serviçais do campo.
194No Verão, além do almoço, jantar e ceia, merendam às quatro ou cinco horas da tarde.
195Nuns montes pernoitam de portas adentro em leito confortável, noutros dormem na cabana, em tarimba provida de colchão de lã.
196As grandes lavouras ocupam dois carpinteiros em todo o ano, as medianas, remedeiam-se com um efectivo, e as pequenas servem-se também com um que trabalha às semanas, alternadamente, em duas ou mais casas.
197Na época do falquejo (desbaste a machado das madeiras a empregar) é frequente a aquisição extraordinária de oficial a dias.
198Os carpinteiros anuais vencem a soldada a 100$000 réis aproximadamente, e comida, é claro. Justos «a seco» como só por excepção sucede, ganham uns 180$000 réis por ano ou mais.
199Por um ou outro sistema, se também vencem trigo na eira e forra de égua ou de burra, adições de suma vantagem que só obtêm os mestres de confiança, de aptidões notórias – a soldada a dinheiro, diminui bastante, mas menos do equivalente à importância dos proventos. E tanto que se usa calcular o valor dos pastos de uma égua entre 18 a 20$000 réis, e os de uma burra aí por 6 ou 8$000 réis, quando está averiguado valerem ambos muito mais.
200Os que trabalham de jornal, sem ou com permanência fixa, vencem trezentos a trezentos e quarenta réis e comida, ou quinhentos a seiscentos e cinquenta réis secos, conforme a quadra do ano e as necessidades.
201Os carpinteiros gozam de certa consideração, já por serem menos rudes que os homens do campo e vestirem com outro asseio, já por se darem ares de alguém, superior à ralé miúda. Como «oficiais de ofício», não reputam favor o tratamento de mestres que todos lhe dão. Mestres carpinteiros, mas de «obra grossa», «de machado e enxó» para se não confundirem com os de «obra fina». No concelho de Campo Maior nem carpinteiros de machado lhe chamam. Conhecem-nos por abegãos, dando ao verdadeiro abegão o nome de apeirador.
202Cozinheiro – As suas obrigações divergem de umas para outras lavouras. Se o lavrador e sua família reside no monte, o cozinheiro acumula as funções de amassador sempre que o movimento da cozinha e amassilho não exijam dois homens, um para cada mister. Se porém o amo reside fora da herdade, a acção do criado, com ou sem auxílio de amassador, é sensivelmente maior e mais honrosa. Por que nesta hipótese não se restringe a fazer açordas e olhas mas também é o encarregado do monte, fiel e dispenseiro de tudo que nele se encontra de portas adentro, e ainda no exterior, como galinhas, bestas de carga, cevões, etc.
203Assim, além da cozinha e asseio das vasilhas, avia mantimentos, recebe a farinha do moleiro, entrega rações, cuida das galinhas, dos porcos do chiqueiro, das bestas de albarda, da condução do leite das cabras e do fabrico do queijo respectivo. Se pode, vai nas segundas-feiras aos mercados de Elvas, a vender ovos, galinhas, queijos, etc.
204Nestes serviços é coadjuvado por um paquete (rapaz de mandados) ou pelo amassador (havendo-o), ambos seus subordinados. E igualmente o auxilia a sua própria família, se reside com ele no monte, como acontece em algumas lavouras, embora poucas.
205O lugar de cozinheiro com a permissão de ter a mulher e filhos consigo no monte, é bastante cobiçado e faz com que o indivíduo se sujeite a uma soldada pequena na aparência, pois que na realidade torna-se grande por incluir o sustento de duas ou três pessoas mais, o que traduz benefício valioso para o serviçal e ónus de vulto para o amo. Mas este prejuízo fica em parte compensado pelo asseio, ordem e importância da criação de aves, que se nota nos montes onde vivem mulheres, incomparavelmente superior à dos só habitados por homens e rapazes.
206Como quer que seja, o cozinheiro arvorado em chefe do monte, julga-se com razão criatura bem cotada, e como tal toma certa superioridade sobre os que o rodeiam. Isto e o conceito que ele merece ao amo desperta a inveja da criadagem vulgar, que o malsina quanto pode. Mas se lhes preparar bem a comida, os aleives caem por terra com a defesa calorosa dos sensatos e justiceiros.
207Entre os cozinheiros dos montes encontram-se tipos curiosos, originais. Um conheci, rabujento por sinal, que tinha pancada para a astrologia. Além de conhecer e discutir a fundo a nomenclatura popular das estrelas, no que falava todas as noites – também se entretinha com as previsões do tempo, dando sota e às aos parceiros da especialidade. Aquilo era melhor que o Borda d’Ãgua. Pelo que dizia, dispunha de auxiliares preciosos para os seus vaticínios. Como principais, apontava certo galo preto, de crista romana, o velho burro de lançamento – o Brandão – e a Farrusca, gatorra feia e arisca, que se assanhava por qualquer coisa. Assim, em o galo cantando «fora de horas», duas noites consecutivas, em o burro aparecendo de orelha murcha, e a gata se não arredando da chaminé, de rabo voltado para o lume – palpitava-lhe mudança de tempo. E se a estes prenúncios conjugados reunia outros, como rabiarem-lhe os calos, bocejar e doerem-lhe as costelas – «coisa como ponta de flato» – então, estava sabido, era chuva a cântaros. Se não viesse nesse dia, viria depois, ou no outro quarto da lua. E acrescentava, corroborando: «As purgas não obram logo... e as luas fazem enfeto três dias antes e três depois...»
208Outro havia com bossa para os ditos enfáticos, sentenciosos, que lhe davam foros de tribuno entre os ganhões a quem impingia as arengas. Probo, adoutorado e parlador, era igualmente forreta e sovina. Depois de estar doente perto de três anos, indo ao hospital como enfermo mendigo, morreu em casa de uma enteada, coberto de farrapos, mas com vinte libras no bolso.
209Por último, aludirei a terceiro, versejador de fama, que se entretinha a cantar o fado e a esgarrada, quando os afazeres lho permitiam.
210Entre os serviçais do campo, o cozinheiro é dos mais difíceis de encontrar em termos. Não porque tenha de preparar iguarias finas, está claro, mas por muito convir que esteja à prova de fiel e asseado, mormente se acumula as funções de encarregado do monte. Por conseguinte, embora seja fácil a sua aquisição, poucos reúnem os predicados necessários.
211A soldada varia conforme a pensão e as vantagens inerentes. Os de muitos encargos e de boa reputação, saem-se por 72 a 84$000 réis anuais. Há-os que vencem seara de legumes, obtendo por obséquio outra de batatas ou favas nos arredores do monte, de que eles próprios cuidam nas horas vacantias.
212Amassador – Este cargo também requer indivíduo probo, com asseio e prática do ofício. O que o desempenha com acerto, entra no número dos que o amo particularmente aprecia e dos que mais procura conservar.
213O amassador cumpre-lhe fazer tudo que diz respeito à armazenação e peneiração da farinha e ao amassilho, tendição e cozimento dos marrocates (pão de centeio) e das perrumas (pão de sêmea para cães).
214Estando o lavrador no monte, também fabrica o pão branco para os amos, e o ralo para o restante pessoal caseiro, como carpinteiros, criadas, etc.
215No preparo das diferentes variedades de pão, e sobretudo no dos marrocates, precisa ter a máxima cautela. O bom fabrico impõe-se tanto por convir à alimentação dos serviçais, como para evitar que eles os desperdicem e estraguem de propósito, o que geralmente praticam quando lhes não agrada. Sabe-se que em o marrocate sendo ruim, os ganhões só lhe comem a côdea, inutilizando-lhe o miolo, de que chegam a fazer bolas que espetam nos chavelhos dos bois, como protesto de justo e insofrido ressentimento.
216Na actualidade, é raríssima semelhante manifestação. Hoje existem melhores amassadores e todos porfiam em manipular com apuro. O que isso não consegue deixa o lugar, se antes o não despedem.
217A soldada oscila entre 60 a 72$000 réis anuais, tendo ou não seara de legumes e porventura uma carrada de lenha.
218Paquete – É o rapaz dos mandados, que se ocupa em ir aviar encomendas às localidades e em conduzir o leite das cabras para o monte, se o bardo fica perto. Também lhe incumbe o acarreto da água para os gastos caseiros, se isso não é feito por parelha de muares, em carro de pipa grande, como geralmente se usa.
219Para a grande maioria dos seus afazeres trata e serve-se de uma ou duas bestas que trabalham de albarda e carga, ou de tiro, em carrinho de varais. Bestiagas de pouco valor, que se vêem numa fona com as diabruras do rapazelho. Com presunções de escalda e atrevido – burro ou muar que lhe caia sob as pernas, por tanjão e paciente que seja, ele o despertará pondo-o ligeiro e sentido. Sob pena de o zurzir sem piedade às ocultas dos superiores. São assim os paquetes. A convivência com muita gente torna-os ladinos e manhosos, perdendo o feitio bronco dos rapazes de menos roço.
220Mandalete por todos mandado e esfregão de muitos, por vezes se insurge contra a tutela, e mais se experimenta o castigo de um soco.
221Nessa altura há-os tão atrevidos que não hesitam em responder com a frase de efeito, que por conceituosa é bastante conhecida. É a seguinte: Bata à vontade!... mas olhe que os chaparros crescem, e as azinheiros minguam... Ao que, às vezes, lhe contestam: Pois, sim... mas enquanto os chaparros não crescem... as azinheiros é que vogam... Ou por outra: Está bem... mas olha que os chaparros precisam de criação!... E então apanha lá mais este para te ires criando... que a azinheiro por ora não mingua... E em seguida o homem figurado por azinheira pespega no suposto chaparro um novo murro, que mais o enfurece.
222Esta rudeza de trato e a modéstia do emprego, faz com que o paquete pronto aborreça o lugar. Aí, aos quinze anos, mal sonha com brios de homem, aspira a carreiro ou ganhão, o que afinal consegue, metendo empenho ao amo ou aos filhos, com quem brinca e melhor se entende. Se o não promovem, mesca pela certa, batendo asas para onde lhe cheira coisa melhor.
223O paquete ganha entre 1$800 a 2$000 réis mensais. Sendo muito novo e de pouco préstimo, vence 1$200 a 1$500 réis.
224Criado dos cavalos – Tratador das cavalgaduras de sela e garanhões, acumulando as vezes de picador, moço de recados e de companhia do amo, nas jornadas distantes, a cavalo. Também em algumas casas faz de ferrador, se tem luzes do ofício. Homem, enfim, de várias lidas, conhecido por criado grave entre a maioria do pessoal campónio, que, se o pretende ridicularizar ou deprimir, também lhe chama cavalista, como que a confundi-lo e emparceirá-lo com o lançarote.
225Antes de todas as lavouras de grande movimento, havia essa entidade. Hoje, em poucas ou nenhumas se encontra como era há trinta anos. Os encargos inerentes vêem-se agora desempenhados e divididos por várias pessoas. O ensino dos poldros confia-se a um picador de direito ou de facto; o ferrador de profissão ferra as bestas, e o tratador trata do gado e faz de cocheiro se há cavalgaduras para o carro de cómodo pessoal. Fora disso, tendo vagar, também se ocupa em transmitir recados.
226De qualquer modo, pelo sistema antigo ou moderno, cocheiro ou criado de cavalos, o serviçal esse ganha aí entre 4 a 5$000 réis mensais, se o serviço é pouco. Isto, repito, nas casas dos lavradores abastados. Nas dos pequenos, nunca houve, nem há, tal emprego.
227Os afazeres que lhe respeitam, e que nestas circunstâncias costumam ser reduzidíssimos, desempenham-se, melhor ou pior, e de fugida, com os diferentes criados do monte, ou com um dos carreiros. Das cavalgaduras chega a encarregar-se o lavrador ou os filhos, na falta, ausência ou impedimento do paquete.
228Roupeiros – São os homens que se acomodam pelo tempo que vai de Março a fins de Junho, para a queijeira do alavão ou alavões de ovelhas, isto é, para o preparo e fabrico de lacticínios de tal espécie.
229Aos roupeiros cumpre diariamente: irem, em besta de carga, coadjuvar os alavoeiros nos dois ordenhos de cada dia; por meio da mesma besta, preparada com golpelha e cântaros, conduzir nela o leite, dos apriscos para a queijeira; executar com rigoroso asseio e cautela, o tempero e fabrico do queijo, atabefe e requeijões; chapotar a chamiça e fazer o lume; lavar e limpar a barreleira, cinchos, asadas, alguidares e mais utensílios; esfregar o tacho do atabefe; varrer e lavar a casa da queijeira; conduzir o queijo para os caniços enxugadores e dar-lhes as voltas e limpezas de que precisem, arejando-os ou não, conforme as circunstâncias, etc.
230Se o alavão ou alavões reúnem umas seiscentas ovelhas aproximadamente e o queijo se molda pelo tipo grande, que requer fabrico mais demorado e cauteloso que os outros pequenos, os roupeiros costumam ser dois.
231Fabricando-se queijo miúdo, ou mesmo grande, desde que as ovelhas não passem de trezentas, basta um.
232Para o cargo em questão, requerem-se homens que além de sabedores, sejam essencialmente asseados: que se lavem frequentes vezes por dia, mudem de roupa a miúde. Só assim conseguem atenuar o fétido que exalam, por efeito da ocupação. Cheiro tão repelente e activo que é de provocar vómitos aos estranhos. Um fedor pior que o das sentinas, principalmente para quem não gosta de queijo.
233Dos que preparam com apuro o clássico queijo grande, diz-se que têm «boa mão de massa». O que eles atribuem, uns, às suas aptidões, outros, à sorte. Quando sobre o assunto falam com o lavrador, observam-lhe: «A sorte é minha; mas a ganância é sua.»
234Se pelo contrário o queijo sai inferior, nenhum roupeiro se confessa culpado. Atribuem o percalço ao calibre do ano, ou a... mau olhado de alguém que os quis derrotar!... Os roupeiros de fama ganham de 7 a 7$500 réis por mês e um queijo grande por toda a época.
235Leiteiro – Rapaz que principalmente se emprega, com uma besta, no transporte do leite das cabras, para venda no mercado de vila ou cidade. Com este carácter exclusivo, é ocupação que só se vê nos centros de lavoura distantes do bardo das cabras e da povoação a que se destina o leite. Nos outros próximos, é desnecessária semelhante entidade, que se supre perfeitamente com o paquete. O leiteiro pode ganhar 1$800 a 2$000 réis por mês.
236Perunzeiro – Rapazinho de dez a doze anos, guardador dos perus nos arredores do monte. Pela idade e natureza do cargo é o mais humilde de todos os serviçais. De cana em punho, cumpre satisfeito a sua obrigação que, na maioria dos casos, é degrau para paquete ou ajuda de ganadeiro.
237Ganha 1$000 a 1$200 réis mensais.
238Hortelão – Encarregado dos serviços da horta ou quinta, anexa à lavoura. Igualmente se incumbe de ir aos mercados diários das povoações próximas vender a hortaliça e frutas que sobejam dos gastos da casa. Vai «fazer vendas» ou «fazer praças», termos que igualmente se empregam para o fim mencionado. Ganha aproximadamente 5$000 réis mensais.
239Semeador – Acomoda-se expressamente para a sementeira dos cereais, à razão de 7$000 réis por mês ou menos um pouco, se consegue ganhar também uma searinha de três ou quatro alqueires de semeadura, como alguns obtêm.
240Em certas «casas» evita-se a acomodação de criado próprio para semelhante serviço, por o desempenhar o sota ou outro criado anual. Seja quem for, quando as juntas na lavoura são poucas, o semeador embelga e semeia alternadamente, evitando a despesa de um embelgador.
241O que é desembaraçado e não embelga, semeia à vontade para vinte a trinta arados, como a terra seja limpa e em sazão de despacho.
242Apesar de haver bastantes campónios que se julgam bons semeadores, a experiência demonstra escassearem os que realmente o são. Por que o facto de saber repartir a semente por forma que à nascença não revele defeitos de sementeira é habilidade que poucos possuem.
243Já mostra entendimento o que tem a certeza na mão e bom golpe de vista, subordinando a espalhação às condições do dia, da época e da terra. O que se regula por esses preceitos essenciais muitas vezes se ilude e engana, quanto mais aqueles a quem falta o preciso critério. A verdade é que semear em termos de a seara nascer bem repartida, sem exageros de basta ou rala, na perfeição de se elogiar, torna-se coisa dificultosa pelos muitos inconvenientes que anulam ou transformam os esforços do semeador, mesmo quando a falta não deriva de imperícia ou imprevidência sua.
244Consequentemente, os semeadores de fama são disputados pelos lavradores que, à porfia, procuram acomodá-los. Não é para menos, se atendermos à alta importância do seu papel.
245Embelgador – Assim se intitula o homem que embelga para imediata sementeira, mediante o salário ou soldada de um ganhão. Embelgar, significa dividir a terra em regos pequenos, e descreverem faixas largas e compridas, que se chamam belgas. Servem para nortear o semeador na distribuição e espalhação da semente.
246A embelgação é feita com a jangada de um pequeno arado, movido por qualquer besta. Guia-se ou encurta-se segundo a caída de terra ou a disposição que traz a lavoura.
247Corta-ramas – Ganhões ou trabalhadores empregados na limpeza das azinheiras e sobreiros. Veja-se o parágrafo Cortes, do capítulo Montados.
248Melancieiro ou meloeiro – Encarregado da guardaria e tratamento do melancial ou meloal, senão de ambos simultaneamente, quando os dois estão reunidos, como se usa bastante, predominando o primeiro sobre o segundo.
249Dantes, o melancieiro era um velhote quase inválido, de meia moeda ou 3$000 réis por mês. Hoje, que os melanciais aumentaram imenso de importância e extensão, a sua guardaria incumbe-se a homem apto, no vigor da vida, que vence 5$000 réis por mês e comedorias, desde que entra em Abril ou Maio, até ao levante final da fruta, aí por Setembro fora a princípios de Outubro.
250Cumpre-lhe também o seguinte: proceder às sementeiras respectivas, se antes as não realizou a ganharia ou outros; ressemear as casas falidas; desbastar as melancieiras de boa nascença e transplantar as arredias e ventureiras para onde haja faltas; ancinhar e desgramear a terra por ocasião da cava e logo atrás dos cavadores; arrendar a ancinho os intervalos abatidos por efeito de chuvadas seguidas de calor e vento, e bem assim as casas que sofrerem do mesmo inconveniente, servindo-se do sacho para estas; raspar à enxada a erva nascida depois da cava; cuidar da extinção dos formigueiros, romeira e outros insectos nocivos, queimando e enterrando a formiga; no mesmo propósito catar a miúde o caseame todo, arrancando e enterrando as folhas e matas invadidas de piolho e da mela; descastelar (6) e carregar o melão; fazer, enfim, tudo que a experiência aconselha para que o melancial triunfe das mil eventualidades a que está sujeito.
251Em todos os serviços mencionados, o melancieiro costuma ser coadjuvado por homens ou mulheres, em número correspondente à grandeza do melancial, e à urgência do serviço.
252Não é emprego para descanso braçal, pelo menos enquanto a formiga aperta. Depois, desde que a fruta começa a desigualar, quer dizer, desde que há melancias inchadas a distinguirem-se de longe, aguilhoando o apetite dos transeuntes, se diminuem ou cessam os cuidados culturais surgem os das colheitas e aumenta o da fiscalização e guarda. As colheitas ficam sob a sua direcção, embora com o auxílio de tantos homens conhecedores quantos sejam precisos para se despachar pela fresca. A guardaria, tomada a sério, obriga a vigilância constante e atenta.
253Os melancieiros erguem no local da obrigação o competente choço, com seu sombracho exterior, onde ele e a família passam a residir. Durante o dia, a mulher e os filhos, à sombra da alpendrada, olham pelo melancial, auxiliados pelo indispensável cãozinho. Ao mesmo tempo, a mulher trata igualmente da comida e da costura, enquanto os filhos se espojam e cabriolam pelos arredores, alambazando-se de melancia à farta, se porventura já se colhe. Ele, o marido, se os cuidados de cultura ou de colheita o não entretêm, dorme à grande, lá dentro do choço, para à noite vigiar, munido de carabina e acompanhado do cão. Este é que se torna o guarda principal. O melancieiro, por via de regra e nas horas de menos perigo, com a espingarda ou com as armadilhas de cepo, caça as lebres, raposas e restante bicharia, que aparecem no sítio, atraídas pela gulodice. Mas o dano maior que mais lhe cumpre evitar são os furtos dos bichos de dois pés, gente nova das ganharias estranhas, que se pelam por de noite assaltarem impunemente os melanciais, quando a fruta escasseia e o calor a lembra... Se o melancieiro os pressente grita-lhes de largo e eles fogem; mas se o apanham descuidado, ferram-lhe o cão, quando menos o julga.
254Em vindo a abastança, cessam os assaltos. A fruta então abunda tanto e dá-se com tal franqueza, que ninguém pensa em furtá-la.
255Ganhadeiros – Tomam esta designação os homens que de empreitada ou a jornal e com ferramentas suas procedem ao corte ou gadanha dos fenos. Em regra, não saem da ganharia, mas sim de entre os que trabalham como jornaleiros nas herdades e fora.
256Ao aproximar-se a época, os que por sabedores ou vocação se afeiçoam às gadanhas, tratam de se empregar aí, para o que largam quaisquer outros serviços. Preferência que se justifica, por que nenhum labor mais rendoso se exerce no campo. Trabalho violento decerto, que nem todos sabem executar, mas também de remuneração superior a outros de esforço semelhante.
257Por conseguinte, compreende-se o interesse com que o cobiçam os entendidos, e os que o desejam ser, que para o fim a que se propõem agremiam-se aos quatro a seis, de que o mais prático ou desembaraçado se arvora em manageiro.
258Com antecedência ou na ocasião o manageiro apalavra com os lavradores os fenos que julga despachar com a sua gente. Em geral, um grupo de três a quatro gadanheiros, não pode servir bem mais de dois lavradores. Mas os da gadanha incumbem-se de quanto se lhes faculte, importando-lhes pouco acabarem ou não a tempo. Os lavradores, porém, indagam das forças do grupo e das casas que já ajustaram, e por isso se regulam, contratando aqueles que melhor o podem servir.
259A faina da gadanha dura ordinariamente desde os fins de Maio até fins de Junho ou princípios de Julho, o máximo. As lavouras de muitos fenos ocupam quatro a seis gadanheiros, nos quarenta a sessenta dias de temporada; outras de menos, basta-lhes dois a três em metade do tempo, e algumas um ou dois, aí por oito a dez dias. E até as há que denenhum carecem por desnecessários.
260As empreitadas ajustam-se a trezentos réis e comida ou quinhentos réis secos, por carrada de sessenta feixes que, enxutos a rigor, pesam quatro a seis quilos.
261Este é o sistema corrente, preferido pelos gadanheiros, que assim, e em fenos bem criados e espessos, despacham 100 e mais feixes por dia e homem. Nos ralos, que ninguém toma de empreitada, usa-se o jornal de seiscentos a setecentos réis secos. De ordinário, cada homem, não chega a cortar uma carrada.
262Após um ou dois dias de tombado, e estando enxuto, o feno é enfeixado, atado e enrilheirado pelos próprios gadanheiros, às horas da noite e da madrugada dos dias quentes e estios.
263Se está fresco, enfeixa-se a qualquer hora. E se chove adia-se a atada até enxugar.
264Enrilheiradores – Saem da ganharia ou acomodam-se expressamente, garantindo-se-lhes toda a temporada no Verão por cinco ou dez tostões mais por mês, sobre o que vencem os ganhões rasos.
265Nestes termos encarregam-se de completar o serviço das ceifas, reunindo e enrilheirando os molhos ceifados e atados pelos ceifadores. Cumpre-lhes terem o necessário cuidado a não lhes escaparem os molhos ocultos entre os bamburais e a fazerem boa enrilheiração, de rilheiros grandes e firmes, que o vento não derrube.
266O número de enrilheiradores regula-se pela quantidade dos ceifeiros, espécie da seara e suas condições de desenvolvimento. Só excepcionalmente se carecem mais de dois, e muitas vezes basta um, coadjuvado pelo tardão.
267Concluídas as ceifas, os enrilheiradores gozam um dia de descanso, indo depois para a ganharia até finalizarem a temporada.
268Tardão – Rapaz ou homem que em besta ou cavalgadura provida de cangalhas, asadas e barris, transporta a comida e água para todo o pessoal da ceifa. Nos intervalos coadjuva os enrilheiradores. Ganha a soldada correspondente à idade e aptidões. Coisa de 4$000 réis mensais, aproximadamente.
269Se os ceifeiros são poucos, o enrilheirador respectivo acumula o encargo de tardão ou mantieiro, que também assim lhe chamam em algumas partes.
270Molheiros – Rapazes já taludos, ajustados na temporada do Verão para darem molhos aos carreiros durante o acarreto das searas, indo depois para a ganharia, até ao S. Mateus.
271Ganha cada um 4$500 réis por mês, ou pouco menos. Nos acarretos de searas distantes da eira, dispensam-se semelhantes auxiliares. Como o mais do tempo se gasta nas caminhadas, são os próprios carreiros que dão molhos uns aos outros.
272Guarda da eira – Costuma ser homem já decadente, mais ou menos incapaz de trabalhos violentos. Ocupa-se apenas em guardar os rilheiros e os montões de cereal debulhado. Para tanto dorme de dia e vela de noite, no propósito de impedir furtos e outros actos de malvadez, como incêndios, etc.
273Serve enquanto se faz a debulha e vence uns 3$600 a 4$500 réis mensais, segundo os seus merecimentos e a responsabilidade. Que os há quase inválidos, que ganham menos.
274Ceifeiros – À parte as ceifas de pequena monta, desempenhadas por mulheres do sítio nas proximidades das aldeias, os ceifeiros ou ceifadores da quase totalidade das searas são em geral homens da Beira, que de propósito arribam todos os anos ao Alentejo para se ocuparem exclusivamente na sega dos cereais. Veja-se o capítulo Ratinhos, que todo lhe diz respeito.
275Tosquiadores – Há uns para a tosquia de muares e outros para o gado lanígero. Os primeiros são espanhóis gitanos que, aos grupos de dois a três, tosquiam, na Primavera e Outono, as parelhas de muares, ao preço de quinhentos réis cada uma. Os segundos, os tosquiadores de lã, em camaradas de quinze a vinte indivíduos, procedem de zonas da região, como Elvas, Vila-Boim e Barbacena, além de outros de longe, que vêm anualmente da Serra da Estrela e que por isso se lhes chama serranos. Todos tosquiam por ajustes análogos ou semelhantes. Em aperfeiçoamento são os serranos que passam por melhores.
276Desde o fim de Abril até meados de Junho (época própria), os tosquiadores demoram em cada casa três a dez dias, tosquiando a vinte réis por cabeça, indistintamente, ou a vinte réis pelas adultas e a quinze pelos borregos de ambos os sexos.
277O lavrador não lhes dá comida mas sim o caldo para as sopas do almoço, e a erva ou palha que as suas bestas consomem.
278Cada camarada tem o seu manageiro, que no acto da tosquia se ocupa exclusivamente em enrolar e atar os velos. Na divisão dos lucros no rateio como qualquer tosquiador, tendo a vantagem de comer por conta do lavrador, em comum com os pastores, e o receber um velo em cada saca, ou espórtula de 500 a 1$000 réis.
279Manageiro e tosquiadores, durante o serviço, todos se vestem de calças, blusas e sapatos ordinaríssimos, como os que menos se estragam por efeito da tosquia. O suco da lã suja, emporca-lhes tanto a roupa, que o seu aspecto no tendal é repulsivo e nauseabundo. Mas a eles não lhes causa nojo, tão habituados estão.
280A despeito da imundície que lhes escorre pelo fato, é interessante observar-lhes a destreza no manejar e tenir cadencioso das tesouras sobre o lombo das reses. As quais, apernadas e silenciosas, denunciam no meigo olhar uma certa satisfação pelo alijamento do velo. É ver-lhes a alegria com que se sacodem e pulam, mal as deixam em liberdade.
281No afã do despacho, por vezes, a tesoura golpeia os pacientes animais, que sofrem em silêncio o descuido do tosquiador. Descuido vulgar que se remedeia imediatamente, curando a ferida com fuligem das chaminés, de que se faz prévia aquisição – Moreno! – grita o tosquiador, vendo a rês golpeada. «Lá va moreno», responde o maioral ou qualquer incumbido de ministrar o pó negro para remédio das feridas. E imediatamente o golpe é pulverizado com o tradicional moreno. Se os golpes se repetem em excessiva notoriedade, o maioral e lavrador repreendem os tosquiadores.
282Cordoeiros – Gente da Galiza, que em grupos de dois homens e um rapaz passam grande parte do ano nos montes do Alentejo a fazerem cordas, redes, prisões, etc., de junça, cabelo ou linho, em quantidade correspondente às necessidades, como haja existência de material em abundância, especialmente junça que, por ser de fácil e económica aquisição, é o que mais se emprega neste género de fabrico.
283Todo o material necessário para a cordoaria é fornecido pelo lavrador. O cabelo procede do que anualmente se corta das crinas e cauda das éguas manadias e do desponte das rabadas do gado vacum; a junça, da que se ceifa nas ribeiras do cómodo, ou da que se obtém grátis e por paga nas herdades próximas; o linho, por compra em Lisboa, Porto, etc.
284Os cordoeiros trabalham de empreitada, vencem comida de ganhão e determinada quantia por cada obra que despacham. Esses feitios e preços constam da seguinte tabela:
Por | cada rede mediana de linho, para carradas de palha | Rs. | 2$000 | |
» | cada rede mediana de junça, para carradas de palha | » | 1$000 | |
» | cada corda de carregar, de cabelo ou linho, de vinte e quatro metros de comprimento | » | 200 | a 240 |
» | cada corda de carregar, de junça, de vinte e quatro metros de comprimento | » | 80 | a 100 |
» | cada corda travadeira de linho de doze metros de comprimento | » | 80 | a 100 |
» | cada corda travadeira, de junça, de doze metros de icomprimento | » | 50 | a 60 |
» | cada rolo de corda ordinária, para diferentes aplicações, como caldeiros, cangas, ete., de trinta metros de comprimento | » | 50 | |
» | cada par de arreatas, de linho | » | 80 | a 120 |
» | cada dúzia de prisões, de junça, de três metros de comprimento | » | 100 | a 120 |
» | cada colar, de linho ou cabelo | » | 15 | a 20 |
» | cada bengaleta | 10 | a 15 |
285Valadeiros – Gente da Anadia e outras terras do Norte que, de Outubro a Janeiro, aparecem nas lavouras do Alentejo para abrirem e limparem as sanjas ou valas, de que precisam os terrenos baixos pantanosos, a fim de se esgotarem das águas que os inundam de Inverno.
286Como ferramentas usam da pá estreita e comprida de que vêm munidos, e de uma enxada e pá inglesa, que o lavrador lhes fornece. Em cada lavoura ocupam-se, por alguns dias ou meses, dois a quatro valadeiros, que trabalham de empreitada ou a jornal, a seco ou a comida.
287Nas reparações e limpezas de sanjas já existentes, usa-se de preferência o ajuste a jornal, de quinhentos a seiscentos réis secos ou de duzentos e quarenta a trezentos réis e comida. Na abertura de valas novas prevalece a empreitada por metro de extensão, ao preço de uns tantos réis, que aumentam ou diminuem conforme a largura e fundura das valas e o estado e natureza do terreno a cortar.
288Nas sanjas comuns, de 0,60 m de largura por 0,50 m de fundo, cada metro oscila aí por quinze réis secos, se a terra dá despacho, ou oito a dez réis e comida; também as tomam por menos, desde que lhes não abundem as ofertas de trabalho.
289Enfim, os preços deste serviço regulam-se por circunstâncias tão diversas e variáveis, que difícil se torna fixar bases. Entre o pessoal alentejano há quem faça de valadeiro, mas ninguém com o despacho e perfeição dos homens do Norte, verdadeiros profissionais da especialidade.
290Realmente, toda a gente que os observa lhe admira a resistência e desembaraço com que, em manhãs frigidíssimas, se metem a trabalhar sobre água encaramelada, descalços e de perna nua, manejando a pá com tal destreza e acerto, que parece não sentirem os rigores do frio e das humidades! Assim passam dois e três meses, até que os chamam à terra da residência os afazeres que por lá têm. E para lá marcham satisfeitos, munidos do seu pecúlio.
291Lançarote – Homem que na Primavera se ajusta para tratar do burro de lançamento e conduzi-lo à cobrição das éguas, duas vezes por dia, uma de manhã, outra de tarde.
292Acomodado exclusivamente para esse fim, a ponto de em nada mais se empregar, cumpre-lhe arrimar o burro às éguas e facilitar-lhe o que necessário for para a cópula ir a efeito, obrigando-se a dirigir por suas mãos a introdução do pénis, quando o burro não acerte, o que é frequente em alguns.
293Outrora, tão aviltante se considerava essa ocupação, que ninguém do sítio a queria exercer, por melhor que fosse a soldada e maior a necessidade de a ganhar. Antes morrer à fome!
294Por consequência, o repudiado emprego só a custo o exercia um maltês borrachão, de que todos se desviavam com desdém, não pela miséria que exibia nos farrapos, mas pelo anátema inerente ao ofício. Coisa execranda, considerada entre o pessoal campónio como a mais abjecta das ocupações. A fantasia popular asseverava até que o lançarote era um amaldiçoado de Deus e da Igreja, sendo-lhes proibida a entrada nos templos e a confissão religiosa!
295Os criados da lavoura por princípio algum o consentiam à sua mesa, não bebendo por onde ele bebesse, nem se assentando onde ele estivesse. E como se tal desprezo não bastasse, insultavam e chasqueavam impiedosamente o infeliz, que por seu turno lhes fugia para se poupar às vaias e vexames.
296Semelhante prejuízo, tão grosseiro como estúpido, vai declinando muitíssimo. O lançarote de agora é menos escarnecido do que o de outros tempos, diminuindo também a aversão e nojo que o público lhe votava.
297O que influi para que na actualidade já se encontrem homens limpos que aceitem a incumbência, não sem tal ou qual vergonha, diga-se também. Mas, enfim, desapareceram as brutalidades do desprezo exagerado e afrontoso, e isso é o essencial como nota de adiantamento.
298A soldada do lançarote regula entre 3$600 a 4$500 réis por mês e as comedorias. Estas, para alguns, são melhores que as de outros serviçais, por constarem de pão de trigo e de carne cheia, melhoria que eles impõem no acto do ajuste. Outros, serve-lhes o pão de centeio e o trato de ganhão (7). E também os há que se acomodam a seco a 9 ou 10$000 réis por mês, comendo à sua custa.
299Além da soldada contam igualmente com as gorjetas dos lavradores estranhos que, por obséquio ou paga, mandam cobrir éguas aos reprodutores do vizinho.
Mulheres
300Mais do que se poderá supor, a grande maioria das mulheres campónias, necessitadas, empregam-se, o melhor do ano, nos trabalhos agrícolas das herdades, de que são cooperadoras valiosas e imprescindíveis.
301Desde Novembro até Julho, com pequenas interrupções, cada lavoura entretém pelo menos um rancho de mulheres, em número nunca inferior de oito a quinze, e por vezes de trinta a cinquenta.
302Os apanhos da azeitona e da bolota, a espalhação de estrumes e adubos, as mondas, as sachas e colheitas de legumes, a remoção de pedras miúdas e as ceifas de somenos importância não contratadas pelos ratinhos, são as lidas em que se ocupam centenas e centenas de braços da população feminina do concelho.
303Não se imagina a boa vontade com que tais criaturas se entregam aos labores rurais da sua especialidade. Nenhuma outra lhes agrada tanto: nenhuma também lhes faculta melhor salário, sem grande sujeição, e com o atractivo de expandirem à larga os instintos da garrulice.
304Assim, acontece que semelhante predilecção, sem dúvida antiga, nada diminui, antes se avigora e generaliza, como também vai aumentando imenso a quantidade e importância dos serviços.
305As mondas, principalmente, empregam o mulherio todo, desde a rapariga de doze a treze anos até à cinquentona de boa fibra, resistente como as moças.
306O preço do salário tem alterações, não tanto pela natureza dos diferentes serviços, que, exceptuando a ceifa, todos se regulam pelo mesmo custo em igualdade de circunstâncias, mas por efeito da época, da escassez ou abundância de braços, do estado do tempo, etc. As horas úteis e a proveniência da alimentação também variam, como adiante se verá. Nas herdades próximas dos povoados, onde reside o pessoal, usa-se o sistema a seco, à jorna, de cento e quarenta a duzentos réis por dia e mulher, e o de meios-dias, também a seco, de oitenta a cem réis por cada, começando-se às onze horas da manhã no Inverno e às doze na Primavera.
307O trabalho aos meios-dias é de recíproca vantagem para muitas das serviçais e para os amos. Os amos, a quem ordinariamente escasseia o pessoal, utilizam por essa forma os braços das que só de tarde podem largar as ocupações domésticas. E elas, as serviçais, sem prejuízo dos arranjos caseiros e do tratamento dos filhos, aproveitam as horas disponíveis, ganhando no campo. Com a vantagem igualmente apreciável de que se enfadam menos e despacham mais relativamente do que se trabalhassem todo o dia. Em geral, as mulheres nos serviços do campo, por dias completos, aí ao meio-dia da tarde sentem-se fatigadas e por consequência empregam todas as artimanhas para se pouparem quanto possam. Mas como o pessoal é pouco, em relação aos serviços e o tempo mal chega para despacho oportuno, uns lavradores adoptam de preferência o costume dos dias inteiros, outros o das tardes apenas e alguns, os dois simultaneamente, destinando o dos meios-dias para aquelas mulheres que só assim podem assalariar-se.
308Por qualquer dos usos, quer dizer, para os trabalhos cerca das povoações, as dos ranchos saem e regressam diariamente às suas residências, em marchas a pé, distraídas, em palestras jocosas, a provocarem as risadas juvenis da mocidade foliona. De manhã, à ida, e à boquinha da noite, no regresso, o mulherio sai e entra nas aldeias entoando cantigas alegres ao som do pandeiro e das castanholas. Cantigas de amores, com a tonadilha da moda.
309Para as herdades mais afastadas, os ranchos contratam-se por quinzenas e aos preços de cento e quarenta a duzentos e vinte réis secos (8), ou oitenta a cento e quarenta réis e comida de ganhão, por dia e mulher. Também se lhes faculta casa para pernoitarem e transporte em carros de muares para a ida e regresso. Em tais condições, a maioria das contratadas são raparigas solteiras, livres de afazeres domésticos, em circunstâncias de estarem ausentes da família, onde nenhuma falta fazem. E que façam, vão da mesma forma, desde que por lá tenham os namorados.
310Os trabalhos a dias completos, em qualquer parte, efectuam-se de sol nado a sol posto, com interrupção da hora do almoço e da do jantar ou merenda ao meio-dia. Este intervalo demora duas horas no tempo da sesta, nos meses de Maio e Junho. E nesse mesmo tempo senão dos meados de Abril em diante, ao cair da tarde, há um descanso de poucos minutos, a pretexto de merendarem segunda vez (9) uma côdea de pão e queijo, laranjas, etc.
311A seco ou por comida, aos dias inteiros ou aos meios, perto das povoações ou distantes, os preços máximos acima referidos só vigoram de Abril a Junho, quando as searas carecem de muita monda e se impõem outros serviços. Então não há mulheres que cheguem. Se o triplo houvesse, não lhe faltaria trabalho.
312Nas ceifas é bastante melhor o salário. Nunca menos de cento e oitenta a duzentos e vinte réis secos por suposto meio-dia, que se conta desde o raiar da aurora até às dez e meia da manhã, tendo on entretanto a interrupção do almoço, que dura das sete às oito horas. A superioridade deste salário justifica-se tanto por as ceifas coincidirem com as mondas dos trigos serôdios e colheitas de legumes, como por nem todo o mulherio ter prática de foice. A maioria não se ocupa nessa faina. Ou por que lha não querem ensinar as sabedoras, ou por relutância a aprenderem-na, como tarefa violenta para as suas forças.
313Antigamente, só algumas mulheres de Barbacena e Vila Fernando se empregavam nas ceifas. Há anos para cá o aumento das culturas cerealíferas e a escassez e carestia dos ceifeiros ratinhos deu origem a que noutras localidades se admitissem as foices por mulheres. Costume que em começo se restringiu a algumas das pequenas searas dos arredores das povoações, mas que depois se generalizou a todas dessa ordem. Nas ceifas das lavouras grandes, próximas das localidades, também alguns anos se aproveita o concurso do mulherio, mas só em parcelas de searas que se não englobaram na empreitada ajustada com os ratinhos, ou por qualquer motivo excepcional.
314No apanho da azeitona e nas vindimas dos subúrbios de Elvas e dos arredores das vilas e aldeias, igualmente se empregam ranchos numerosos, por usos e ajustes que mencionarei na devida altura. Por agora prossigamos com os que pertencem mais ou menos ao pessoal de uma lavoura.
315Nas lidas campestres cada rancho de mulheres é governado por uma das mais trabalhadoras e entendidas, que pela autoridade em que a investem denomina-se manageira. Ganha mais vinte réis por dia sobre o salário das outras.
316A manageira alicia as companheiras e nelas governa em parte, sem contudo lhe pertencer a direcção absoluta do trabalho. Desse encargo incumbe-se o guarda de herdades ou outro homem capaz, que para tanto acompanha o rancho no serviço, dirigindo-o em tudo. Não se entrega aos cuidados exclusivos da manageira por se lhe reconhecer incompetência para evitar ou reduzir a cera proveniente da tagarelice própria do sexo frágil.
317A boa da mulherzinha possui as melhores intenções, sobre o cumprimento dos seus deveres de superiora. Mas coitada, os instintos de loquacidade levam-na a prevaricar inconscientemente como qualquer, sobretudo em se tratando da bisbilhotice apimentada, prato forte e tentador, a que nenhuma sabe resistir.
318Portanto, para reprimir esses excessos e evitar os consequentes prejuízos, entrega-se a direcção e disciplina do rancho a um homem sério, de confiança. O qual, conhecendo a fundo o feitio das criaturas que governa, não as poupa em advertências, e a miúde as repreende, com frases de tom e conceito, apropriadas às circunstâncias. Primeiro, dirige-lhes um gracejo equívoco, envolvendo censura ligeira; depois, uma admoestação séria, e por último, esgotada a pachorra, larga-lhes uma apóstrofe vibrante, ameaçadora, que, como água sobre lume, apaga imediatamente o fogo da loquacidade. Remédio de ocasião, de efeito passageiro. Tão arreigado têm o vício, que lhes recrudesce com intensidade ao cabo de poucos minutos. Se lhe está no temperamento...
319A idade juvenil de muitas, a propensão de todas, o meio em que se encontram e as liberdades que o campo sugere, são factores que, longe de predisporem ao silêncio e sisudez, impulsionam irresistivelmente a actos ruidosos, expansivos, que, se se abafam por momentos, explodem afinal, a pretexto de qualquer coisa.
320O aparecimento de um lagarto ou de outro bicharoco dá ensejo a que se perca a seriedade. As moças, pelo menos, partem a correr, com alaridos de receios fingidos, que enfurecem o guarda; mas, tão cómicos se tornam, que a ele próprio se lhe esvai a ira, passando a rir como elas, até o incidente terminar.
321Se de longe ou perto se avista qualquer homem, caminhando em direcção de se aproximar, esse facto motiva maiores e mais retumbantes folias. Então, é certa a vaia ou baia (10) ao pacífico transeunte, a pretexto de se manter a tradição. Mal avistam o caminhante, o rancho embandeira, isto é, volta-se para o sujeito, e desatam a gritar-lhe: Ai, que o não tem!... ai, que o não tem!... Fora que é feio!... fora que o não queremos!... Arreda, gato velho!... Caminha bode sarnoso!... Ia bácoro de Arronches!... Não tem!... não tem!... não tem!...
322O motejado ou prossegue na marcha, nada respondendo, ou redargue «ao consoante». Se não responde, elas continuam com a gritaria até o perderem de vista; se contesta, o mulherio mais se entusiasma, na mente de protelar a folia, enquanto lho consintam. Mas, se por acaso o provocado se desvia do caminho, tomando a direcção do rancho, no propósito, real ou aparente, de demonstrar a falsidade das apreciações, a cena modifica-se logo. Ao receio de um desforço demasiado atrevido, ou por intimação enérgica do governante, moças e velhas metem a viola no saco, a fim de o homem retroceder e desistir das intenções. Se porém ele não retrocede e continua a avançar, as mulherzinhas animam-se de novo, e, esquecendo considerações, passam a segunda gritaria com entusiasmo doido, delirante. Como o encarregado consinta, as resolutas e possantes correm em massa sobre o audacioso, agarrando-o e atirando-o ao chão para lhe darem culas (11) e as velhas o apepinarem com outras patuscadas.
323Tudo por chalaça algo forte é certo, mas com que poucos se melindram, mesmo, por que as baias, levadas ao extremo das culas e acessórios, raríssimas vezes se praticam.
324Em geral, ao principiarem, e depois mesmo, os homens que as ouvem, riem-se da costumeira, seguindo silenciosamente o seu caminho, ou contestando apenas com duas ou três facécias. Outro tanto não sucede com a maioria das mulheres dando-se a hipótese contrária, isto é, sendo elas as provocadas.
325Na casa do monte, onde pernoita o rancho, os serões passam-se em variados folguedos, principalmente se a eles assistem os ganhões da lavoura ou os de outras vizinhas, que acodem ao sítio por lhes cheirar a pequename. De qualquer maneira, a pândega é certa até às dez ou onze da noite. Canta-se, toca-se, baila-se, narram-se contos de princesas encantadas, joga-se um pouco o padre cura, e namora-se muito. A execução desta última parte subordina-se a certas condições. As raparigas não podem conversar à franca com os rapazes, sem prévia licença da manageira. A qual, concedendo-a, é com a cláusula de falarem a um canto da casa, à vista de todos, ou à porta da rua: ela, a rapariga, de dentro; ele, de fora.
326Mas há ocasiões em que a governanta só permite os colóquios amorosos mediante uma dadivazinha, que lhe console o estômago ou o vício da cheiroca. Neste empenho, resiste a todas as súplicas, cedendo apenas quando os moços escorregam marrocates, queijos ou um pataquinho para meio grosso. Mas uma vez gratificada, acabam-se-lhe as negativas. Podem os pombinhos arrulhar à vontade, que ninguém os perturbará.
327Durante a Quaresma cessam os bailes, os toques e todas as cantigas que não sejam religiosas. Os jogos de prendas e as entrevistas amorosas continuam como antes, senão com mais entusiasmo.
328No domingo imediato à semana ou quinzena de trabalho, as dos ranchos vão receber as férias a casa do lavrador, na aldeia, ou à de alguém, incumbido de pagar. As moças apresentam-se muito garridas e tafulas, em trajos domingueiros, flamantíssimos, a contrastarem frisantemente com o desalinho e desleixo das maduras e velhas. Todas se mostram alegres e palradoras, a ponto de o dono da casa lhes dizer que não estão em nenhuma praça.
329Concordam todas, aceitando o lembrete e repreendendo-se mutuamente, o que atrasa um pouco o silêncio exigido. Afinal obtém-se. Mas daí a nada, cada uma chia para seu lado, intrometendo-se nas chamadas e nas pagas de cada qual. Chegam-se a acusar umas às outras de terem vencido dias a menos do que dizem e de receberem mais do que vencem. Denúncias e aclarações geralmente erróneas e infundadas, que sempre provocam disputas, averiguada a falsidade. E verdadeiras que sejam, ociosas se tornam igualmente desde que ninguém as reclama. Os enganos, se os há, todos se esclarecem e resolvem à vista da folha e das informações da manageira e do encarregado. Mas a despeito disso tudo e dos recuões que sofrem pelos atrevimentos, continuam a dar à língua, a pretexto de justificações reconciliatórias, que põem tudo à boa paz. À saída animam-se ainda mais, despedindo-se quase todas, com um dito lisonjeiro. Vozes ao vento, palavras ocas, de quem precisa agradar...
330Tudo que as raparigas solteiras ganham nos serviços do campo é «para o seu corpo» – quer dizer, para se ourarem e vestirem de ponto em branco, não só do necessário, mas ainda para os luxos domingueiros e dos dias de festa, da confissão, etc. Satisfeitas estas primeiras ambições, passam à compra do preciso para o enxoval, e do modesto mas garrido mobiliário com que se propõem ornamentar a futura habitação. Para mais facilmente realizarem esses propósitos, os pais de algumas – Deus sabe com que sacrifício – dão-lhes, no todo ou em parte, os mantimentos de que precisam quando trabalham a seco.
331Mais do que as próprias filhas, eles desejam vê-las na posse dos objectos, que em linguagem popular se chama a «casa de uma noiva».
332Para a consecução desse suspirado desideratum, sacrificam-se as necessidades de alimentação e a saúde (12). O essencial para elas é adquirirem ouro, roupas, estanho, arame, louças, vidros, trabecos, etc. A moça solteira que isso consegue reunir, considera-se feliz, e a mãe reputa-se felicíssima. O amor maternal põe-na vaidosa com o luxo da filha. Muito ufana, mostra às vizinhas e amigas as prendas que a filha adquiriu à custa de muito suor, de muita privação, de muito trabalho honrado. E as vizinhas e as amigas prestam toda a atenção aos objectos que lhes mostram, gabam-nos e elogiam a dona. Mas depois, na ausência das duas, expandindo-se em invejas ridículas, amesquinham tudo aquilo, censurando as duas. A filha é «uma impostora a querer desbancar das da sua iguala»; a mãe «uma gavazola doida, que só cuida de casar a filha». Misérias humanas que abundam em todas as classes...
Ganadeiros
333Os campónios, a quem os lavradores encarregam a guardaria e pastoreação dos seus rebanhos, são conhecidos pelo nome comum de ganadeiros, quaisquer que sejam os gados de que se incumbam. Num outro sentido genérico, mas mais restrito, também se lhes chamam maiorais, qualificativo este, que embora se aplique indistintamente em várias hipóteses, e sobretudo para o efeito de saudação, só em rigor pertence de direito aos cabeças ou chefes dos diferentes grupos de ganadeiros incumbidos das várias espécies de gados. Não obstante, quando no campo se encontra qualquer guardador de gado, sauda-se assim: Bons dias, maioral... E nunca: Bons dias, ganadeiro.
334Categorias e nomenclatura – A classe dos ganadeiros divide-se em vários agrupamentos, sendo os indivíduos de cada uma designados por nome alusivo às espécies de gado em que se ocupam. Os que guardam bois, são boieiros; os das vacas, vaqueiros; os das éguas, eguariços; os dos porcos, por queiros; os dos lanígeros, pastores, e os das cabras, cabreiros.
335Fica pois entendido que, para a apascentação e guardaria dos rebanhos, há em cada lavoura tantos grupos de ganadeiros, quantos são os géneros de gado nela existentes.
336Em cada grupo desses encontra-se um maioral chefe, acomodado com obrigação de dirigir e fiscalizar o pessoal correspondente, ou sejam todos os indivíduos que lhe estão subordinados. Estes, isto é, os imediatos ao maioral, chamam-se-lhes entregues, como os inferiores aos entregues se denominam ajudas.
337Em regra, cada rebanho ocupa dois indivíduos: um homem e um rapaz. O homem, ou é o maioral ou um entregue; o rapaz, o ajuda (13). E para auxiliar ambos, acompanha-os um corpulento e sentido rafeiro, senão dois ou três, todos de bisonho aspecto, a infundirem respeito a estranhos de qualquer ordem. Ai daqueles que lhes experimentarem os instintos!
338Nas lavouras excepcionalmente grandes, que mantêm seis e mais rebanhos de lanígeros em herdades diferentes e distantes, o maioral respectivo passa semanas e meses sem apascentar rebanho algum. Tanto tem de vigiar, dirigir, consultar e resolver, de acordo com o amo, que nessas ocasiões de mais nada se ocupa. Mas isto representa excepção fora do uso comum. O corrente, para qualquer espécie, representada por diversos rebanhos, é o maioral, auxiliado por ajuda, guardar e tratar de um – o da criação mais nova, como o que exige maiores cuidados. Os outros, ficam também sobre a sua inspecção, mas a guardaria de cada qual incumbe-se a entregue próprio, auxiliado por correspondente ajuda.
339Se por acaso, o gado de qualquer género constitui apenas um único rebanho ou manada, o seu guardador reúne os títulos de maioral e entregue, governando somente no ajuda que o acompanha.
340E não tendo ajuda, como se observa em alguns eguariços, e com todos os cabreiros grande parte do ano, o homem é, por assim dizer, maioral de si próprio.
341Um ganadeiro, além desta classificação comum, essencialmente genérica, pode reunir mais três, específicas: uma, reveladora da espécie de gado em que se ocupa; outra, definindo a sua categoria própria; e a última–a menos constante, nem sempre verificada-– como indicativo da natureza ou carácter especialíssimo do rebanho. Porque do mesmo género de animais formam-se rebanhos distintos, cada qual com nome próprio, derivado das condições das reses que os compõem e do fim a que se destinam.
342Para mais facilmente se compreenderem essas quatro classificações aplicadas a um só homem, darei o seguinte exemplo: o ganadeiro Fulano, porqueiro e entregue na Casa Branca, anda agora com os farroupos e por isso é farroupeiro. Ora, como este de farroupeiro, há outros qualificativos especialíssimos, que mais adiante mencionarei.
343Procedência – À semelhança da maioria do pessoal agrícola, os ganadeiros são naturais da região onde se empregam, e um ou outro das vizinhas. Na população rural do concelho de Elvas havia antes determinadas famílias, em que por assim dizer era hereditária a ocupação de ganadeiro, e a ponto tal que até em algumas se restringia a tendência para uma só espécie. Tem desaparecido esse costume, mas ainda se observa outro igualmente curioso – o de entre os ganadeiros de cada povoação predominarem as aptidões e preferência para tal ou qual especialidade. Assim, em Vila Fernando e Barbacena prevalecem os pastores, e em Santa Eulália os porqueiros.
344Ajustes – Maiorais e muitos entregues contratam-se por ano. Os primeiros, ajustando-se directamente com os lavradores; os segundos, por intervenção dos primeiros, fechando o amo o ajuste. Aos entregues incumbe por sua vez acomodarem e despedirem os ajudas, reclamando dos lavradores «as pagas» respectivas.
345Para acomodação e despedimento dos maiorais e entregues de ano, seguem-se as praxes usadas com os restantes criados anuais, diferindo tão somente em alguns, no que respeita a prazos e épocas de saídas e entradas. Desta maneira, os porqueiros regulam-se pelo ano civil, isto é, de Janeiro a Janeiro. No caso de despedimento de amo para criado ou vice-versa, o aviso deve-se comunicar respectivamente até ao S. Miguel. Os pastores e cabreiros saem e entram pelo S. Pedro, participando a saída ou despedida por todo o mês de Maio. E os restantes como boieiros, vaqueiros e eguariços encimam e acomodam-se pelo S. Mateus, tal qual os criados de lavoura.
346Em geral, os ganadeiros anuais não «partem o ano», isto é, cumprem o dever de servir pelo tempo que se ajustaram. Neste particular mostram maior seriedade que os ganhões e outros. Mas se abalam extemporaneamente, saem também com os pegulhais, se o amo assim exige. Se porém o lavrador os expulsa antes do vencimento, o que ainda menos se vê, e só se pratica por razões muito ponderosas, o criado tem o direito de não retirar o pegulhal, que assim continua a ser sustentado à custa do lavrador até finalizar o prazo do contrato.
347Para os entregues mensais de carácter permanente (que alguns há nestas condições), embora vençam todos os meses, como se não despeçam ou sejam despedidos com antecedência de alguns dias, o silêncio deles ou dos amos significa acordo tácito para continuação indefinida.
348Quanto aos ajudas, adoptam-se praxes semelhantes, se bem que nestes é menos duradoira a estabilidade. Ou o rapazelho abala por sua vontade com ou sem autorização dos pais, ou o camarada o despede por motivo fundamentado, ou por qualquer ninharia, se não para meter outro que mais lhe agrada. Os que são filhos dos próprios guardadores conservam-se mais, mas nem por isso se pode contar com eles em absoluto.
349Soldadas – Variam bastante, já por efeito e índole das categorias, já porque a natureza dos vencimentos subordina-se em geral à espécie dos gados a guardar e ainda aos costumes tradicionais do sítio e mesmo das próprias «casas». Se não o contrário, isto é, moldando-se nos usos implantados há poucos anos por alguns lavradores, usos esses de carácter inteiramente oposto às velhas tradições. Como quer que sejam, direi o bastante no parágrafo correspondente a cada grupo de ganadeiros. Das soldadas que se vencem aos meses, a dinheiro somente, regulam entre 4$500 a 5$000 réis mensais cada homem, além da forra da burra. Os ajudas vencem aí 1$200 a 2$500 réis por rapaz e mês, segundo a idade e importância do seu papel.
350Desde os maiorais até aos ajudas, todos se alimentam à custa dos lavradores, por comedorias semanais ou mensais, a conto, peso e medida, aviadas nos sábados ou no fim dos meses, conforme se verá adiante no parágrafo Alimentação.
351Pegulhais (14) — Antigamente o dinheiro constituía a parte menos importante das soldadas. O que preponderava, e muito, era o pegulhal, quer fosse exclusivamente do gado da espécie que o ganadeiro pastoreava, quer também incluísse «cabeças» diferentes. Como por exemplo cabras, que, além de se permitirem aos cabreiros, também se forravam a porqueiros e pastores, ou mesmo éguas que, não as possuindo a maior parte dos eguariços, eram permitidas aos vaqueiros.
352Reprovando em absoluto as forras, representadas por gado diverso do que o ganadeiro apascenta e ainda de cabras nos cabreiros (15), afigura-se-me aceitável e vantajosa para o lavrador a concessão de pegulhais de gado idêntico ao que o ganadeiro guarda. Pelo menos para os maiorais que, assim ligados aos interesses do amo, natural é mostrarem mais permanência, zelo e dedicação, do que ganhando só a dinheiro. O sistema pode trazer prejuízo ao lavrador, se o criado não for honrado. Mas neste mundo tudo tem prós e contras e não há medalha sem reverso. No caso sujeito, os prós evidenciam-se por tal maneira, que deixam na penumbra os contras mais ou menos hipotéticos.
353Outrora e hoje, os guardadores de gado miúdo, quase todos possuíam e possuem a sua burra, auxiliar valioso para transportar mantimentos e lenha para as necessidades de suas famílias. Com pegulhais de cabras poucos se encontram já. E dos outros, constituídos por animais da espécie dos do rebanho respectivo, só os possuem os maiorais e algum entregue anual, de estima e valor.
354De onde se prova que os pegulhais tendem a diminuir na proporção que aumentam as unidades em réis. Diversas causas para isso concorrem. Como principal, aponta-se o excesso de abusos dos ganadeiros de agora, menos escrupulosos do que os antigos. Sem negar nem discutir o facto, é todavia certo, que outros motivos igualmente influem para a variante do uso. Um deles – forçoso é dizê-lo – deriva de entre lavradores e criados de confiança ir afrouxando aquela arreigada e mútua afeição, resultante da paternal benevolência e bizarria dos primeiros e da estabilidade, honradez e zelo dos segundos. Qualidades e virtudes que ainda se encontram, mas que declinam evidentemente por... não estarem na moda. E é pena que assim aconteça. Porque essa mútua e leal dedicação criava antigamente uma reciprocidade de direitos e deveres, de boamente satisfeitos, honradamente cumpridos.
355Tendências e hábitos – Não obstante a diferença de soldadas de uns para outros ganadeiros, nota-se que a todos lhes chega para conforto e abastança superior ao dos de outras classes semelhantes.
356Por tais razões e porque o encargo de ganadeiro é dos menos fatigantes que se exercem nas herdades, parece que devia ter muitos pretendentes. Pois nem por isso. Na gente moça então, é notória a relutância à vida pastoril. Se em crianças a exercem a contento, pronto se enfadam, mal chegam a homens. Nessa altura, preferem servir nas ganharias, onde trabalham mais, mas, sem lhes cercearem a folga e pândega dos domingos, nas aldeias. Todavia, aqueles poucos que aí dos dezoito anos em diante continuam atrás dos rebanhos, por imposição dos pais, ou por outro motivo forte, tomam tal afeição ao gado e ao campo que, como os deixam, não mais querem outra ocupação e nela permanecem por toda a vida. Vêem-se velhos que nunca fizeram outra coisa e só numa classe de gado.
357Os ganadeiros são ordinariamente de índole reconcentrada, fugindo aos adjuntos (16), e aos excessos de toda a ordem.
358Entre os pastores, tidos como os mais pacatos de todos, há, em maior escala, pastores afamados da poesia popular, que recitam a quem lhes quer ouvir. Por versos e décimas da sua lavra ou de outros colegas, usam verberar qualquer crime ou escândalo de sensação, sucedido nos arredores, sobretudo os adultérios e desfloramentos que se tornam de domínio público.
359Um certo pastor existiu há anos que pagou cara a afeição à poesia. Tendo armado várias décimas de escacha para estigmatizar um caso de sedução, não só surziu a valer o sedutor, mas ainda beliscou forte na seduzida. Foi um acontecimento. A versalhada causou furor, a ponto de correr impressa e ser recitada nas tabernas e bailaricos, como pratinho indispensável em todo o género de reuniões.
360Mas o pai da pequena azoou com o sucesso e jurou vingar-se. Munindo-se de um cacete, apresentou-se ao festejado poeta, e, com bons modos, pediu para lhe contar as «décimas da filha», coisa de fundamento, segundo ouvira dizer.
361O solicitado hesitou ao princípio, mas tais rogos ouviu e tão envaidecido ficou, que condescendeu afinal. Recitou, recitou, mas, a certa altura, quando estava no zénite do entusiasmo, o ouvinte desanca-lhe o varapau em cima, e – agora o vereis – pespega-lhe uma tunda de rachar. Não passou a pior, pela atitude do poeta, que, suplicando clemência, soltava calorosos protestos de arrependimento. Foi o que lhe valeu. De contrário, teria de ir para o hospital, se não para o cemitério. Mas serviu-lhe a lição. Nunca mais armou décimas, nem queria que lhe falassem em tal.
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362Os porqueiros salientam-se pelo arranjo, compostura e asseio, qualidades que bastante os caracterizam. A estética preocupa-os tanto, que se lhes nota no vestuário e nos aparelhos das burras, irrepreensivelmente preparados e cuidados por eles próprios.
363Os cabreiros têm fama de aluados (17), especialmente no período da parição das cabras. Período de extraordinária responsabilidade, em que o cabreiro se considera imprescindível e absoluto. Sabe, que se então abalar, outro estranho que o substitui, não conhecendo bem todas as cabras a ponto de as distinguir umas das outras, natural é malograr-se-lhe a criação, por falta de tino da afilhação respectiva.
364Nos ganadeiros, como em nenhuns outros criados rurais, persistem hábitos antiquíssimos, merecedores de referência. Assim, como utensílios típicos, usam os seguintes: azeiteiros, de chavelho de bovinos, para azeite e vinagre; cornas para leite; coxo ou concha de cortiça, para beberem água; barquino ou serrão de pele de chibo, para depósito de água fresca no Verão ; alforges de peles de cabra, curtidas; colheres de chifre ou de pau de buxo; caldeiro de ferro, para diferentes aplicações; tarro de cortiça, como vasilha dos almoços e ceias já preparadas.
365Para os arreios e aparelhos das burras, se exceptuarmos a albarda, tudo é por eles preparado com peles de cabra, ovelha e cão. As de cão apreciam-nas extraordinariamente por se prestarem a muitos usos, e sobretudo para tapetes e cobrejões das albardas.
366O cacheiro (cajado), e as pedras são as suas armas favoritas. A pedra usa-se principalmente na freguesia de Santa Eulália, onde a manejam com admirável destreza, sem auxílio de funda. Ponto que mirem, é alcançado em cheio, mesmo de longe, como se fosse tiro de bala. Assim aproveitam a faculdade da pontaria, para reconduzirem ao rebanho as reses transviadas. É processo simples, mas tem o inconveniente de, por vezes, ocasionar fracturas ou outras diversas lesões. Doenças de cacheiro ou de pedra, como se classificam, por ironia, em fraseado campesino. Que, os ganadeiros, como possam, atribuem sempre esses desastres a outras causas diversas.
367Os porqueiros adoptam também um comprido azorrague ou açoite, por eles preparado, e com que chamam à ordem os suínos arredios. É um costume exclusivo da região elvense e vizinhas, de magnífico resultado, sem os inconvenientes do cacheiro. Naquele, no azorrague, reparam com espanto os estranhos que o vêem em acção nas feiras e mercados.
368Por sua vez, os pastores usam do gravato – varapau com gancho de ferro numa das pontas, com que facilmente seguram e apresam o lanígero que precisam agarrar. Desses é que realmente se pode dizer que são apanhados a gancho.
369A adopção da pedra, do cacheiro, azorrague e gravato, não impede que alternadamente muitos ganadeiros usem da espingarda, não por necessidade, mas para caçarem próximo dos rebanhos. E entre eles encontram-se escopeteiros de truz, habituados a dar bigodes aos caçadores de profissão. Sem embargo, e mantendo os velhos hábitos dos da sua classe, todos continuam a ser os maiores destruidores dos ninhos e criação da caça. Os ninhos de perdizes principalmente procuram-nos com particular interesse. Quantos encontrem, quantos marcam com sinais particulares, para lhes tirarem os ovos em terminando a postura. Tal olho têm para semelhantes descobertas que, por esse meio, tiram centenas de ovos, com que preparam e comem apetitosas freginadas, num requinte de satisfação glutona. Para eles, as leis do defeso, não passam de letra morta, de que zombam impunemente. Que lhes importa as leis, se menosprezando-as satisfazem as exigências do estômago, sem dissabores e despesa! De mais, só assim comem ovos em abundância, não lhes custando cinco réis.
370Trajos característicos – Apenas a pelica e as botas de focinheira com presilhas, também chamadas botas leiteiras. A pelica consiste numa espécie de albornoz de Inverno, feita com peles providas de lã. Usam-na principalmente os boieiros, vaqueiros e pastores.
371As botas de focinheira, mais propriamente se deviam chamar polainas de couro. O seu feitio é parecidíssimo com o das polainas. De botas só possuem o nome e a sola correspondente. Nem calçado são, pois que não dispensam o uso de sapatos. Pouco se usam já, sendo de presumir que desapareçam de todo. O mais vestuário é em tudo igual ao comum das populações rurais, referido no capítulo imediato.
372Malhadas – À parte as visitas aos domicílios nas vilas e aldeias, onde geralmente vão nas noites de sábados e domingos, a pretexto de irem à roupa e, de caminho, conduzirem na burra a sua carguita de lenha, os ganadeiros pernoitam nas suas respectivas malhadas (18). Choças rústicas, que temporariamente se adaptam a lar doméstico quando por lá passam temporadas as mulheres e os filhos dos maiorais e entregues. Então atingem um cúmulo de arranjo, máxime os dos porqueiros, que pela sua natureza estável, são as de maior desafogo e de melhor construção. Quantas excedem em asseio e abastança a muitas habitações urbanas de gente humilde!
373Exceptuando as malhadas dos pastores, todas mais se assemelham às cubatas africanas, quer dizer, mostrando a configuração cónica e o revestimento de mato. Aqui, o revestimento é sempre de piorno. As dos pastores, pela circunstância de ser forçoso mudarem-se com frequência e facilidade, são o que há de mais rudimentar em choças. Não passam de simples abrigos, representados por uma cancela convexa, tecida de colmo, amparada por duas mais pequenas, uma de cada lado.
374Mas boas ou deficientes, de qualquer ganadeiro que sejam, tornam-se tugúrios queridos desses rústicos indivíduos que passam a vida no campo, atrás dos rebanhos. Com pouco se contentam tão prestimosos serviçais. Alheios ao burburinho das multidões e aos trabalhos de esforços violentos, a existência desliza-lhes tranquila e risonha, numa invejável paz de espírito. Nas malhadas ou nos prados, a miúde se lhes proporcionam horas e horas de ócio, sobretudo na Primavera, em que o gado come à farta, abastecendo-se depressa. E então, ao ar livre ou na choça, ocupam-se em entretenimentos úteis e pacientes, que dão nome à chamada indústria pastoril. Pequenos objectos de uso caseiro, muitos, artisticamente esculpidos à ponta de canivete, em madeira, cortiça e chavelho. Deles todos dou menção desenvolvida em artigo próprio, que se encontrará noutro capítulo.
375Chocalhos – Todos os ganadeiros os possuem em quantidade suficiente às necessidades dos rebanhos. Os porqueiros carecem de poucos por não ser costume enchocalharem-se os porcos, posto que isso se veja excepcionalmente num ou outro suíno de tendências vadias. Mas os boieiros, os vaqueiros, eguariços, pastores e cabreiros, como tenham recursos, possuem larga provisão de chocalhos, para, devidamente arreados, prenderem ao pescoço dos animais, deixando outros de reserva para suprirem extravios e estragos.
376No Outono e no Inverno cada ganadeiro emprega toda a loiça (19) de que precisa e de que pode dispor, preferindo a maior e mais retumbante. Na Primavera e Verão conservam apenas a miúda e só numa ou outra rês de cada rebanho.
377O luxo e vício mais vulgar entre ganadeiros são os chocalhos. Dispensam-lhe os melhores cuidados e neles empatam capital importante, que gastam de boamente, com ufania. É notória a emulação que a este respeito há de uns para com outros. Também merece reparo a usança de se procurarem reciprocamente para fazerem trocas e compras do artigo em questão, comentando os recursos e o gosto de cada qual na matéria supradita.
378Os chocalhos fabricam-se nas Alcáçovas, vila do distrito de Évora onde se vendem para serem revendidos nas feiras de toda a província. Que a loiça grossa, de maior preço, é mais frequente adquirirem-na directamente na localidade do fabrico onde os maiorais igualmente vão ou mandam consertá-la.
379Nos diferentes modelos de chocalhos há as seguintes variedades: Tipo grande – mangas, sem-serras, castelhanas, etc. Tipo pequeno – chocalhas, campanilhos, picadeiros, chocalhinhos, etc.
380Com a mesma designação de loiça, e para aplicação análoga à dos chocalhos, mas restringida aos bois e cabras – usam-se também os esquilões e as esquilas – espécie de sinetas reduzidíssimas, de toada semelhante à das campainhas. Entre os esquilões, há os toeiros, de som áspero, e os finos, de som agudo. E mais um terceiro modelo – as sinetas – o maior de todos, aliás pouco usado. Empregam-se somente para adornar as boas juntas de bois ou novilhos que se apresentam nas feiras.
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381Por aqui finalizo as notas mais ou menos comuns a todos os ganadeiros. As referentes a cada especialidade adiante se encontrarão.
Guardadores de gado vacum
382Compreendem: Boieiros, Vaqueiros, Açougueiro, Novilheiro.
383Boieiros – Pela circunstância de, alternadamente, trabalharem com os ganhões, a sua descrição figura entre os criados de lavoura propriamente dita, como se pode ver de páginas 80-84.
384Vaqueiros – São dois: maioral e ajuda. Se a vacada é muito grande, e por esse facto se divide temporiamente em dois rebanhos, um, o das vacas paridas e prenhes, continua a cargo do vaqueiro e ajuda. O outro, das reses novas e forras, chamadas de alfeiro, confia-se a entregue extraordinário, que se designa por alfeireiro.
385Aos vaqueiros cumpre apascentar a vacada, sendo o maioral particularmente incumbido de afilhar as paridas, prender e soltar os bezerros «à estaca» (20), assinalá-los nas orelhas durante esse período, e bem assim retamar (21) as mães, quando precise desmamar-lhes as crias.
386Soldadas: O maioral ganha aproximadamente 72$000 réis anuais, não tendo pegulhal. Possuindo-o, de uma ou duas vacas e égua, senão somente égua ou vaca, vence menos em dinheiro o valor atribuído aos pastos dessas forras – 18 a 20$000 réis para os da égua e 9 a 10$000 réis para os de cada vaca. Alguns, sem pegulhal, ganham, além da verba em réis, uma certa quantidade de trigo ou centeio, que igualmente reduz o vencimento em dinheiro.
387Açougueiro – Apascenta a açougaria, isto é, as reses bovinas apartadas para engorda e venda com destino aos açougues públicos. O encargo de açougueiro dura desde Janeiro até Maio ou Junho. A soldada regula entre 4 a 5$000 réis por mês.
388Novilheiro – Trata exclusivamente da apascentação dos novilhos, se estes são tantos que não convém trazê-los na vacada ou boiada, o que só sucede nas lavouras muito grandes. Nestas mesmo, algumas há onde semelhante ocupação dura apenas alguns meses. A soldada regula pela do açougueiro.
Guardadores de gado cavalar
389Limitam-se ao eguariço e, muito excepcionalmente, a um ajuda e a um poldreiro.
390Eguariço – Como único encarregado da manada das éguas, mais se designa por eguariço do que por maioral. Os seus principais deveres são: guardar e apascentar a manada; reparar na viciação das éguas para quando estejam aluadas (22) as levar ao lançamento, regulando-lhe os saltos, pelas horas e intervalos em uso; assistir e dirigir esse acto, peando antes a égua a cobrir e segurando-a pelo cabresto durante a cópula: fiscalizar o lançarote, repreendendo-o quando lhe notar abusos, negligência ou desleixo; usar de todas as cautelas possíveis para a parição das éguas ir a efeito, sem desastre nas crias; tomar a direcção da cobra nas debulhas das eiras, munido do competente açoite; tosquiar as crinas e rabadas das éguas e poldras; lembrar, enfim, a ferragem das mesmas nas vésperas de debulha, e a cravejação e referração precisas durante essa faina. De Verão, se a manada é grande e avultados os calcadoiros a debulhar, o eguariço tem ajuda extraordinário, saído dos ganhões, o qual governa a segunda cobra.
391Soldada: Sendo só a dinheiro, oscila entre 54 a 72$000 réis anuais. Ganhando trigo ou centeio e forra de égua, ou só uma das duas coisas, abate-se-lhe o correspondente à média desses valores. Os pastos da égua reputam-se entre 18 a 20$000 réis, como já disse.
392Poldreiro – É o encarregado da pastoreação dos poldros e machos de um a dois anos. Em geral, só se torna necessário na Primavera, ou noutra época em que, por qualquer circunstância, se impõe a apartação do gado novo.
Porqueiros
393Afora os rapazes ajudas, de que nada temos a especificar, o grupo dos porqueiros compreende:
394Maioral, que é o chefe.
395Entregue das porcas, o que guarda as porcas parideiras.
396Farroupeiro, encarregado da corrida dos farroupetes ou farroupos.
397Vareiro, o que anda com a vara ou porcos de engorda.
398E ainda outros entregues, sem nomenclatura especialíssima, por igualmente a não terem os rebanhos em que se empregam.
399Todos em geral, e cada qual respectivamente, incumbe-lhes o tratamento do rebanho a seu cargo, bem como a conservação e asseio da malhada, já procedendo a pequenos reparos, já renovando com frequência as camas dos porcos, de modo a haver a máxima limpeza nas pocilgas e pocilgões.
400Quando as malhadas, de construção rústica, carecem de consertos grandes, aos porqueiros incumbe executá-los, com auxílio de pessoal estranho.
401A condução da comida para os porcos igualmente lhes compete, transportando-a nas suas burras, do celeiro para a malhada, se aquele está próximo: ficando longe, dispensa-se desse serviço.
402maioral – Além da fiscalização que uma vez por outra, nas horas disponíveis, deve exercer sobre os entregues, incumbe-lhe muito particularmente, a afilhação das porcas e a criação das bacoradas. Esta é a sua maior e mais espinhosa missão. Para bem a exercer, não guarda rebanho algum, grande parte do ano, passando quatro meses ou mais na malhada respectiva (23), ora a assear com escrúpulo as várias acomodações das porcas e bácoros, ora cuidando da alimentação das mães e filhos, principalmente dos bácoros, que, até completarem dois meses, carecem de cuidados constantes e especiais.
403À medida que as porcas vão parindo, cumpre-lhe distribuir com equidade os leitões recém-nascidos, para que umas não continuem sobrecarregadas em demasia e outras nimiamente poupadas. Portanto, às de maior prole ou fracas, deve subtrair os bacorinhos em excesso, matando os raquíticos e aproveitando os imediatos para os reunir e amamentar às outras menos fecundas ou robustas. E quando assim não cheguem para todas ficarem bem afilhadas, terá de ir pedir leitões às malhadas dos colegas vizinhos, onde por certo lhos darão se lá sobejarem, como igualmente ele os cederia, dando-se a hipótese inversa. É da praxe.
404Realizada a desmama dos leitões, o maioral forma com eles um rebanho de que continua a tratar não só na malhada mas por fora, em pastoria, com auxílio de ajuda. E com os bácoros permanece até às vésperas de nova parição, época em que os confia a outro porqueiro, para se ir dedicar à criação em perspectiva. Entretanto, as porcas não parem, trata de pôr em ordem as pocilgas que lhes destina.
405A assinalação dos leitões na pocilga, a escolha de marrãs para casta e dos bácoros para varrascos, a castração dos suínos machos, e a assistência à mesma operação nas fêmeas, são outros deveres imperiosos do maioral, como também lhe compete proceder ao encabeçamento do montado, se disso o amo o incumbe.
406Soldada: Consiste no pegulhal e em dinheiro. O pegulhal é forrado em condições tão diversas de umas para outras «casas», quanto ao número de cabeças permitidas e ao tempo de permanência das criações de bácoros, que se não pode mencionar com absoluta exactidão. Salvo ligeiras variantes, aproxima-se do seguinte: uma burra, porca afilhada e uma cabeça de engorda na vara.
407Por «porca afilhada» subentende-se o sustento de uma porca parideira e o das suas duas criações anuais, de seis a sete bácoros cada uma. Se a porca pare menos, ou se parindo seis ou sete, lhe morrem alguns ou todos, durante a época convencionada para o sustento à custa do lavrador, o porqueiro tem o direito de preencher as faltas com bácoros da mesma idade, que adquira em qualquer parte. Doutrina esta igualmente aplicável para as forras de cabeças adultas que lhe venham a faltar.
408A forra da criação erviça, nascida em Dezembro ou Janeiro, dura aproximadamente nove meses, ou seja, até ao «S. Miguel» seguinte; a montanheira, nascida no fim de Junho a princípio de Agosto do ano anterior, termina também em Setembro, quando os bácoros têm treze ou quatorze meses. Nesta altura, já está nascida uma nova criação montanheira, que prossegue criando-se, para sair em igual tempo no ano imediato.
409Daqueles de nove meses ou dos outros de treze a catorze, o maioral reserva um para corrida como farroupo, a fim de, no ano seguinte, o meter na vara.
410Quer, porém, haja ou não este costume, fica entendido que os nove meses para os erviços e os treze a quatorze para os montanheiros são em regra os prazos máximos estipulados para a sua permanência no pegulhal. Devo porém advertir que, tão longo prazo, pode considerar-se costume exclusivo das «casas» dos lavradores (aliás bastantes) que usam vender as bacoradas pelo «S. Miguel», incluindo, na venda ou vendas, os bácoros dos criados, por preço igual ao dos seus, em igualdade de circunstâncias.
411Nas «casas» dos lavradores, que vendem as criações suínas antes de Setembro e nas de outros que, adoptando sistema oposto, as conservam indefinidamente, para as recrearem e engordarem, os bácoros dos pegulhais são, em geral, vendidos ou retirados antes de terem a idade atrás referida, senão todos, alguns pelo menos.
412Se, como prática já raríssima, o pegulhal vai além dos usos mencionados, compreendendo também forras de corrida, neste caso prossegue uma das aludidas criações (no todo ou em parte), que o lavrador continua a sustentar depois do «S. Miguel», não como criação, mas como farroupetes de corrida no montado, e nas ervas até ao fim de Maio, como farroupos. Só até ao fim de Maio, tempo em que fatalmente hão-de sair, à excepção da cabeça para a vara quando tal forra haja, o que nem sempre se verifica. Havendo-a, está claro que o correspondente farroupo continua a permanecer, até engordar, no montado.
413O pegulhal com porca afilhada e simultaneamente farroupos na corrida e cabeça na vara, atinge uma importância tão avultada, que poucos existem nessas condições, embora em tal hipótese a verba em dinheiro se reduza a 8 ou 10$000 réis anuais.
414Na actualidade, a soldada vulgar em maioral de porcos, de «casa grande», consta de 24 a 27$000 réis anuais e do pegulhal de forras semelhantes às que aludi em princípio, isto é, à burra e à porca, com as criações mais ou menos demoradas. O que tudo monta a verba relativamente importante, se as criações vingarem e se venderem por preços medianos ou altos. Assim como também pode ficar reles e ínfima, no caso de morrinhas ou de preços baixos no gado. Para o lavrador sempre sai bastante dispendiosa a soldada em que predomina o pegulhal de porcos, atenta o elevado custo da sua manutenção. O duplo ou o triplo do que antes era, já pelo maior valor das rações, já por hoje se tratarem com mais abastança do que outrora.
415Para se aquilatar isso com aproximação, darei mais adiante uma nota de tal despesa, discriminada por parcelas. Custo para o amo, bem entendido, porque para o criado só representa um pequeno emprego de capital, com probabilidades de auferir lucros que nunca ganharia acomodando-se a dinheiro somente. Com o pegulhal pode sair-se em média por 150$000 réis e muito mais em alguns anos, ao passo que ganhando dinheiro apenas, somente vencerá uns 90$000 réis, quando muito.
416Antigamente, maioral e entregues de porcos, todos tinham o pegulhal avolumado com forras de dez ou doze cabras, entre os rebanhos dos suínos, mas só nos meses de Janeiro a fins de Setembro e princípios de Outubro. Nos três meses restantes (época do montado), era do ajuste retirarem-nas, indo colocá-las fora de invernadouro, pagando os maiorais quatrocentos a seiscentos réis pelos pastos de cada uma. Acabaram de todo essas forras, verdadeira anomalia, que nenhuma razão justificava.
417Entregue das porcas – Guarda e apascenta as porcas criadeiras, conduzindo-as à malhada, tanto à noitinha para lá pernoitarem, como ao meio-dia (estando paridas), para darem mama aos bácoros.
418Ao aproximar-se a parição das mesmas cumpre-lhe vigiá-las atentamente, providenciando, primeiro, para que vão parir às pocilgas e não à revelia no campo, onde se lhe podem facilmente estragar os leitões; segundo, acudindo de pronto aos bacorinhos recém-nascidos das porcas que escaparam à sua vigilância, devendo nesse caso conduzir logo mães e filhos para a respectiva malhada. É também do seu dever auxiliar o maioral no acto da afilhação.
419Soldada: sendo ganha por homem de confiança e sabedor, aproxima-se da do maioral, diminuindo um pouco ná verba em dinheiro e nas forras que, em geral, não abrangem farroupos nem cabeça de engorda. Se porém a soldada consiste apenas em réis, o que é frequente e próprio de entregue justo aos meses, regula aí por 5$000 réis cada mês.
420Farroupeiro – Entregue incumbido dos farroupetes no tempo da corrida e depois das mesmas cabeças também, mas já como farroupos nas ervas e agostadouros.
421A sua soldada é em tudo semelhante à do entregue das porcas, havendo igualdade de aptidões entre ambos. Quer dizer, se o farroupeiro tem pegulhal, e em condições iguais às do do entregue das porcas; se ganha dinheiro somente, anda também isso por quantia análoga à do outro, em hipótese igual. Pode ganhar um pouco mais, se a farroupada for grande, o duplo ou triplo da manada das porcas, como é frequente suceder.
422Vareiro – Encarregado de vara de engorda no montado, desde o 1.° de Novembro ou antes, até à venda dos porcos.
423O vareiro ou é um entregue qualquer, que no tempo de vara toma este encargo, ganhando portanto soldada semelhante às duas últimas referidas, ou se acomoda expressamente, para o fim em questão, a 4$500 ou 5$000 réis por mês.
424Quaisquer outros porqueiros entregues que ainda haja na mesma «casa», não têm nome específico. Assim, àqueles que guardam bácoros no impedimento do maioral, chama-se-lhes apenas entregues e não bacoreiros.
CUSTO CALCULADO À SOLDADA DE UM PORQUEIRO, COM PEGULHAL DE CRIAÇAO E CABEÇA NA «VARA»
criaçao erviça
Ervas parta porca (de Janeiro a Mato) | 600 |
Rações para a porca, nos meses da criação erviça (Janeiro e Fevereiro | 1$500 |
Sustento «a saco» dos seie bácoros, desde os trinta dias de nascido até fim de Maio, ou sejam cento e vinte dias, ao preço de dezoito réis por dia e bácoro | 12$960 |
Agostadouro dos mesmos, nos meses de Junho, Julho e Agosto, a Setecentos réis por cada | 4$200 |
Ração para os ditos bácoros, no mês de Setembro, ao preço de vinte réis por dia e bácoro | 3$600 |
Total da despesa com a criação erviça, até à venda pelo S. Miguel | 22$860 |
CRIAÇÃO MONTANHEIRA
Agostadouro de porca (Junho a Setembro) | 1$500 | |
Sustento dos seis bácoros montanheiros, desde os trinta dias de nascença (fim de Julho) até entrarem no mato a comerem bolota, ou sejam noventa dias de camida «a saco», custando a ração dezoito réis por dia e bácoro | 9$720 | |
Monitado de corrida dos mesmos, calculando o preço de 2$000 réis para a montanheira de cada um, em toda a época | 12$000 | |
Idem, idem, para a porca | 4$000 | |
Custo idas ervas para os mesmos, a trezentos réis cada um, desde Janeiro a fim de Maio . | 1$800 | |
Agostadouro para os aludidos bácoros, de Maio a fim de Agosto ou Setembro, a oitocentos réis cada . ... | 4$800 | |
Total do custo da criação montanheira, até aos treze ou quatorze meses | 36$520 | |
Ervas do farroupo | 600 | |
Agostadouro | 1$400 | |
Corrida | 3$000 | 5$000 |
Forra de uma cabeça de engorda no montado | 12$000 | |
Pastos de uma burra | 4$000 | |
Soldada a dinheiro | 24$000 | |
Custo total da soldada (excluindo comida) | 104$380 |
Pastores
425Pondo de parte os ajudas, que nada oferecem digno de menção, os pastores constam: do maioral das ovelhas, que é o chefe; do carneireiro, que guarda os carneiros, e de dois, três ou quatro entregues mais, sem denominação especial, por igualmente a não terem os rebanhos que apascentam. Quando se apartam os alavões – rebanhos de ovelhas que na Primavera se ordenham para o fabrico do queijo –, os entregues e ajudas respectivos chama-se-lhes alavoeiros.
426Os pastores – além de guardarem e apascentarem o gado ovino – cumpre-lhes mais o seguinte: mudar os bardos, ou redis, uma ou duas vezes por dia (24), conforme a época, para aproveitamento dos estrumes; limpar as reses das cagaitas volumosas que se lhes formarem na lã, próximo das tetas, dos testículos e da cauda; catarem, com atenção, o seu rebanho, logo que o suspeitem invadido de ronha ou de bexiga, marcando as «cabeças» que encontrarem atacadas, procedendo ao seu imediato curativo (25) e repetindo-o enquanto for necessário ; finalmente, regular as horas da solta e recolhimento dos animais, em harmonia com a época, escassez ou abundância de pastos, condições do gado e estado do tempo.
427Maioral – Chefe de todos os pastores, apascenta igualmente um rebanho, sempre o que demanda maior dedicação e cuidados. Assim, no Outono e no Inverno, anda com o das ovelhas próximas a parir e as recém-paridas, ou seja, a chicada mais nova. Na Primavera e no Verão, guarda o dos borregos ou borregas, e na falta destes, outro que também careça de pastor experimentado.
428Afora os deveres comuns a todos os pastores, cumpre-lhe: de acordo com o lavrador e em resultado das ordens e autorizações que tiver dele, indagar do passadio e do estado sanitário dos rebanhos, fiscalizando os entregues e recomendando-lhes o que for conveniente; empregar as cautelas possíveis para diminuir as probabilidades de invasões epizoóticas, sempre que essas doenças existam nos gados dos vizinhos; esforçar-se por atenuar semelhantes estragos quando por ventura a moléstia acometa aqueles que estão sob a sua responsabilidade, já obrigando os entregues a empregarem os tratamentos que lhe forem recomendados, já auxiliando-os nesse propósito. Mais lhe compete: contar, de vez em quando, o gado todo, inquirindo do número de reses mortas e das supostas ou verdadeiras causas que as vitimaram, participando tudo ao amo, prender as ovelhas recém-paridas que rejeitem as crias para, deste modo, conseguir que as aceitem afinal, como é provável; dobrar os borregos, quando sejam menos que as ovelhas, por efeito de morrinhas; assinalar nas orelhas, o gado novo e bem assim cortar-lhes o rabo, se este antigo costume ainda persistir; ferrar no focinho, com o ferro da «casa» e durante o Inverno, os malatos e malatas ; com auxílio dos entregues, rabejar, nas vésperas de se apartarem os alavões, as ovelhas respectivas, tosquiando-lhes a lã dos úberes e partes vizinhas que estorvem o ordenho; fazer as apartações consentâneas a cada época e às necessidades de ocasião; escolher os borregos para carneiros de casta; capar os malatos e os carneiros incapazes de prosseguirem como reprodutores; refugar as badanas, assinalando-as; marcar a cal branca no gado preto e a pez no branco, todas as reses lanígeras, uma vez por ano, quinze dias depois da tosquia; repetir o mesmo sinal ou pôr ainda outro, nas partidas de gado que forem a qualquer feira ; assistir, enfim, ao tendal da tosquia, superintendendo e auxiliando esse serviço.
429Soldada: Antigamente, consistia numa simples moeda de ouro (4$800 réis) anual e no pegulhal que era importantíssimo. Havia-as de cem a cento e cinquenta ovelhas, burra, doze cabras e as respectivas criações.
430Esse sistema tem-se modificado, minguando as forras à proporção que se eleva o vencimento em réis. Hoje, a soldada corrente do maioral de ovelhas, de «casa grande», regula aproximadamente pelo seguinte: 24 a 27$000 réis e as forras de sessenta a oitenta ovelhas, burra e as respectivas criações.
431Tanto noutros tempos como na actualidade, o leite das ovelhas dos pastores pertence ao lavrador. Os outros produtos – lã e crias –, constituem receita absoluta dos donos dos pegulhais. A lã vendem-na conjuntamente com a do amo e por preço igual ; os borregos têm de sair até ao S. Pedro, prazo máximo para a sua permanência nos rebanhos do lavrador. A cria da burra deve retirar ao ano de idade, por atingir o limite permitido para este género de forras.
432Entregues – Acomodados a dinheiro, sem mais forras que a da burra, ganha cada um 4$500 a 4$800 réis por mês.
433Ajustando-se com pegulhal, vence cada um 12 a 14$000 réis anuais e as forras de quarenta a cinquenta ovelhas e a de uma burra, tudo nas condições estabelecidas para o maioral.
434Alavoeiros – Costumam ocupar-se dois para cada alavão. Tanto podem ser entregues de carácter permanente, como outros, acomodados de propósito para este fim.
435Seja como for, desde que não tenham pegulhal, vencem 4$800 a 5$000 réis mensais ou uns 500 ou 1$000 réis mais por mês do que estavam ganhando como simples pastores. A subida justifica-se pelo encargo de ordenharem as ovelhas duas vezes por dia, com o auxílio dos roupeiros. Os alavoeirçs são também gratificados com um queijo ou requeijão por dia, a fim de mudarem os apriscos (26) todos os dias, e não de longe em longe, como antes se praticava.
Guardadores de gado caprino
436Cabreiro – Costuma ser um apenas – maioral e entregue de si próprio, por assim dizer, durante os meses em que as cabras não trazem crias a mamar. Mas desde que parem (de Outubro a Dezembro) até à desmama dos chibos (princípio de Março), o cabreiro é auxiliado por um ajuda.
437Ao cabreiro cumpre: apascentar a cabrada com todo o zelo, não tendo preguiça em lhe dar o repasto da noite; coadjuvar a construção do bardo, dos chiqueiros dos chibos, e da choça para ele; afilhar as cabras com o tino preciso, de modo que, logo de princípio, conheça o chibo ou chibos que pertencem a cada uma, para distribuir os filhos pelas mães, e nunca os baralhar, arrimando-os a estranhas, o que transtorna o bom êxito da afilhação; ordenhar com presteza e regularidade nas horas; fazer as camas nos chiqueiros, renovando-as quando seja necessário; assear o bardo, varrendo-o a miúde ; lavar os ferrados do leite; assinalar nas orelhas a criação; ferrar no focinho, com o ferro da «casa», os anacos e chibarras, durante o Inverno; escolher os chibos e chibas para casta; capar os que for necessário; refugar o gado velho ou achacado, para o amo o vender; etc.
438Na ordenhação, cumpre-lhe ser cuidadoso, saceando todo o leite que não for indispensável aos chibos. E, se estes já não mamarem, mais escrupuloso e completo deve ser o ordenho. Em tais circunstâncias, o leite que ficar nos úberes, representa prejuízo para o lavrador e dano para as cabras. As que são muito leiteiras podem enserilhar-se (chagarem-se-lhes as tetas), não sendo bem mungidas.
439Soldada: Consistia antigamente em 2 a 3$000 réis por mês e o pegulhal de burra e doze cabras, ou, em substituição, quinze a vinte chibos. O leite das cabras vendia-o o maioral em sua casa, ao público, ou queijava-o por conta própria; as crias desfazia-se delas por ocasião da desmama, em Março, ou pelo «S. Pedro», tempo em que fatalmente haviam de sair. Sendo as forras constituídas por chibos, o cabreiro comprava-os aos quatro ou seis meses de idade, para os vender no ano seguinte como anacos. Lucrava a diferença do valor de um para outro ano.
440Este costume, que ainda vigora em alguns concelhos, está extinto no de Elvas, onde, para o caso em questão, só se usa a soldada a dinheiro – 4 a 5$000 réis por mês.
441Chibateiro – Rapaz ou homem que guarda e apascenta os chibos ou chibatos. Na maior parte das «casas» é ocupação transitória, limitada à Primavera e Verão. A soldada respectiva varia sensivelmente. Se as cabeças a guardar são poucas e novas, e as guarda um rapaz, este vence 1$200 a 1$500 réis por mês; se pelo contrário, o gado é adulto e numeroso, e o apascenta qualquer homem, a soldada eleva-se a 4$000 réis mensais.
Alfeireiros
442São todos os entregues de qualquer espécie que se ocupam com rebanhos de alfeiro. Por alfeiro denomina-se o gado novo (27) de um ou de ambos os sexos, que constituem rebanho em separado, sem nele se misturarem reses paridas ou de prenhez adiantada.
Alimentação
443Em regra, a alimentação de todo o pessoal de uma lavoura é à custa do lavrador. O guarda de herdades, os ganadeiros e poucos mais fornecem-se por meio de comedias ou comedorias (28), aviadas no fim da semana, senão às quinzenas ou aos meses, como por excepção também se vê.
444O pessoal do monte, a ganharia, a carraça, os carreiros e outros, têm comida preparada por conta do amo, em harmonia com os usos e práticas, que mais adiante mencionarei.
445Os avios que competem por semana a um homem ou rapaz, justo por comedorias, são os seguintes: nove a dez quilos de pão ; trezentas e quinze gramas ou três quartas de toucinho; trinta e cinco centilitros ou um quartilho de azeite; dois litros ou um selamim cogulado de legumes e sete queijos. Estas são as chamadas comedias direitas, que, sem embargo, não constituem regra geral ou inalterável, antes variam um pouco de «casa» para «casa» e de ocupação para ocupação.
446Noutros tempos, quando os porqueiros e pastores dispunham de pegulhais completos e grandes, os mantimentos que venciam limitavam-se ao pão, azeite e legumes, não tendo queijo nem toucinho, por se entender que esses víveres eram de sobejo supridos respectivamente pelo leite das cabras, rendimento da lã e engorda do porco na vara.
447De há anos para cá tem-se banido tal sistema, generalizando-se o das comedorias direitas – único racional.
448Aos sábados, todos que as ganham, afluem aos montes com as éguas e burras, para se aviarem dos seus mantimentos e das perrumas para os cães. Tudo por conta, peso e medida, a que eles próprios assistem, para verificarem a exactidão. Aviados de vez, carregam as bestas, dependuram-lhes os azeiteiros das albardas e assim marcham com as comedorias para as malhadas ou domicílios, de onde os vão consumindo. Há porém ganadeiros que deixam no monte os legumes, o toucinho e parte do azeite, para lá lhes prepararem as ceias e eles ou os ajudas as irem buscar nos tarros todos os dias à tarde.
449Os boieiros, raríssimas vezes têm mantimentos. O usual é receberem comida feita, como se usa para os ganhões.
450Os cabreiros, durante a época do ordenho, não recebem azeite para almoços, pois que, em vez de açorda ou coisa semelhante, almoçam leite quanto querem.
451O pessoal do monte, de portas adentro, almoça, janta e ceia, em todo o ano, a horas indeterminadas, que se retardam ou adiantam conforme os afazeres. Os almoços constam de umas sopas quaisquer, ou migas; o jantar, de olha (29), e as ceias, de sopas de leite, de atabefe ou açorda, queijo, azeitonas, etc., etc. O pão é de trigo ou de centeio, conforme os usos da «casa». Para os carpinteiros é sempre de trigo, comendo à parte dos outros serviçais.
452As olhas, tanto dos carpinteiros como do cozinheiro amassador (30), etc., são melhoradas com carne ensacada, excepto nas sextas e sábados, que se temperam de azeite. De tudo que se come aos almoços, jantares e ceias, nada é regulado por conta, peso ou medida, pois se dá a sobejar, principalmente se o lavrador reside no monte. Se vive fora, na cidade, vila ou aldeia, faltando no monte a fartura própria da residência de um lavrador, as comidas dos criados aludidos são menos variadas, mas nem por isso deixam de ser melhores que as dos ganhões.
*
453Para a ganharia, carreiros, carraça e mais gente que trabalha por fora, a comida é dada em refeições, que variam de qualidade e hora, segundo a época que vai decorrendo. Em todas e em qualquer tempo, predomina o pão de centeio, conhecido por marrocate, que o pessoal come à franca na quantidade que lhe apetece.
454Para o fim em questão, o ano agrícola divide-se em duas épocas: a primeira, desde o começo da sementeira outonal (22 de Setembro) até ao último de Maio; a segunda – a de Verão –, desde o 1.° de Junho até ao «S. Mateus».
455Em ambas, no intervalo das comidas, é corrente qualquer serviçal comer a sua cunha ou pedaço de pão, sendo isso uso geral durante a lavoura propriamente dita, por ocasião da primeira aguada de manhã e também na da tarde, imediata ao meio-dia.
Comidas habituais na época das sementeiras e alqueives, desde o «S. Mateus», até ao fim de Maio
456Almoço – Às três horas da madrugada, no tempo da sementeira outonal, o abegão ou o sota levanta-se, sai da sua casinha e vai bater à porta da dos ganhões, a quem acorda, gritando-lhes: «Vá de levantar e calçar.» Os de dentro respondem, e o de fora, cônscio de que foi ouvido, dirige-se à cozinha do monte, a tratar do almoço, como disse noutro lugar, ao descrever a vida nos montes.
457O almoço consta ordinariamente de açorda com azeitonas (31). Da clássica açorda alentejana, cujo caldo o abegão prepara num instante, lançando a água a ferver em cachão sobre os barranhões, onde o cozinheiro depôs os temperos – azeite (32) e sal pisado com alho, poejos ou coentros e pimentão. Escaldado o azeite, prova-se, corrige-se a água do sal, e, pronto, está o caldo feito, exalando o cheiro activíssimo dos temperos.
458Com o caldo a evaporar, o abegão ou o sota conduzem-no nos alguidares para a mesa, de antemão posta por eles. Só faltam as sopas que, em breve, serão migadas pelos ganhões. Para que estes venham imediatamente, o abegão sai à rua e solta o brado do estilo: «Ao almoço!...». Brado estridente, retumbante e prolongado, que, nas madrugadas serenas, chega a ouvir-se a mais de dois quilómetros de distância. O «governo» que tem boa garganta timbra com o espaçar, gritando alto, muito alto, para que ao longe o ouçam e lhe gabem a voz.
459À chamada, acodem todos. Entram, tiram os chapéus e assentam-se à mesa por ordem. O abegão ocupa a cabeceira, o sota fica-lhe na frente. Em seguida, cada qual puxa da navalha e todos passam a migar o pão para os alguidares, até mais lhes não caber.
460Amolecidas as sopas, o «governo» exclama: «Com Jesus!» E todos principiam a comer, em comum, dos barranhões mais próximos, num silêncio profundo, em que só se ouve o ruído das colheres de lata e de chavelho, quando tocam no vidrado dos alguidares.
461É demorado o almoço, assim como todas as refeições. O homem do campo tem por hábito comer devagar, aguardando que a comida arrefeça. Não lhe agrada quente, pela preocupação de que lhe estraga os dentes. E o certo é que quase todos os possuem magníficos, não lhes dispensando cuidados.
462Cada grupo de quatro a seis ganhões come num só alguidar, sendo da praxe, cada homem, meter a colher somente no sítio onde encetou. O que transgride o preceito, é repreendido pelos outros, como glutão e malcriado.
463Almoçam enfim. O abegão, vendo que todos deixaram de comer, dá o sinal de retirada, pondo-se de pé a despejar a mesa com o auxílio do sota.
464Os ganhões saem para a rua, põem o chapéu e atiram fora com os caroços das azeitonas. Depois, vai de cigarrada, em volta da chaminé, na casinha. Um instante apenas, a pretexto de se munirem dos apeiros ou de quaisquer ferramentas que tenham de levar para o trabalho.
465A partida, pronto a anuciam os «cabeças», saindo do monte com o saco das merendas, em atitude de marcha. Os carreiros igualmente deitam fora as parelhas, para também se porem a caminho...
466Marcham todos. A noite ainda persiste, mas as estrelas anunciam a aproximação da aurora.
467Isto, repito, no Outono, «na forças das sementeiras». Depois, madruga-se menos, almoçando-se ao amanhecer, e de dia claro, em Março, Abril e Maio. Mas a açorda subsiste, salvo nos dias «de nomeada», que, a seu tempo referirei.
468Merenda – Tem lugar das onze ao meio-dia, no local do trabalho, ao ar livre, suprindo o jantar, que não é de uso fornecer-se nos serviços de arado e de outros ligeiros, durante a época a que venho aludindo (33).
469A merenda consta de pão e queijo. Um para cada homem, com o pão que tiver na vontade, pouco ou muito que seja.
470«Tirem os queijos, oh familha» — diz o abegão, apresentando o taleigo aberto à ganharia. E acrescenta: «Metam a mão, mas não escolham... Tirem o que lhes calhar...»
471Por sua vez, cada qual tira o queijo que lhe compete e igualmente se apossa dos marrocates que calcula comer.
472O tamanho e qualidade dos queijos dão origem a comentários. O ganhão, que é desconfiado, persuade-se de que tirou dos mais pequenos, invejando a sorte do companheiro próximo, que tem um que se lhe afigura maior e de melhor aparência que o seu. Destas suposições, surgem pequenas disputas, em gracejo, que muitas vezes terminam pela troca dos queijos, se a desigualdade não é evidente. Sendo, o possuidor do maior, que em começo fingia querer trocar, recusa-se por último, chacoteando o outro que o tomou a sério.
473Durante a merenda, a malta não está silenciosa. Pelo contrário, falam a propósito de tudo. Os solteiros formam grupo à parte, comentando a seu capricho, os namoros dos ausentes e dos presentes. Ouvem e dizem muita piada, de que uns se riem à socapa, de que outros se formalizam, e de que alguns se envaidecem, avolumando-as a seu sabor, como gabarolas que são.
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474O abegão é o primeiro a merendar. Os ganhões espaçam quanto podem, mas, afinal, concluem também. Todos então fazem os cigarros com a morosidade do estilo, acendendo-os com fuzil e isca.
475Nesta altura, acontece que um dos motejados na conversa sobre namoros aproveita a ocasião para exibir uma bolsa nova de petiscos, bordada a missanga pelas mãos do derriço. Obra de luxo e de fantasia, que ele mira e remira muito ufano, a despertar a atenção dos camaradas. Estes, reparando na prenda, chamam-na a si para a apreciarem e comentarem, segundo seu critério. De entre os que a gabam há quem fixe o possuidor e lhe diga: «Caramba, Zé, que isto cheira a fêmea! Viva o bem feito!... Bem se vê que ela tem mãos de prata!...» E a sorrir-lhe malicioso, conclui: «Ah, maroto! que já a ganhaste!...»
476A tais amabilidades o Zé fica derretido. Todo baboso, responde: «Ora adeus, as coisas dão-se a quem as merece!...»
477E nestes dichotes prosseguem, até o abegão recomeçar a faina, dando a merenda por finda. Uma hora de interrupção, aproximadamente.
478Ceia – No tempo das sementeiras e do alqueive é a principal refeição da ganharia. Efectua-se ao anoitecer logo à chegada do trabalho. Consta de olha de legumes com batatas ou hortaliças, adubada com toucinho ou azeite, conforme os dias da semana (34). Nas olhas com toucinho, também se usa couve em vez de legumes.
479Os domingos, terças e quintas são dias de bóia (35). Nas segundas-feiras, quartas, sextas e sábados condimenta-se com azeite. Por este motivo, além do cozido, há, para cada homem, o conduto de meio queijo, ou azeitonas à franca.
480Nas lavouras em que, nos domingos de folga, a maioria dos ganhões não recolhe ao monte por ficar nos povoados em bailaricos e coisas semelhantes, a ceia dessas noites costuma ser adubada com azeite, transferindo-se o toucinho para o dia imediato, a fim da bóia ser partilhada por todos.
481Antes, durante a Quaresma, as olhas preparavam-se sempre com azeite, excepto aos domingos, que eram «de carne». Hoje, a alimentação dos criados durante a Quaresma subordina-se em tudo aos usos ordinários.
482As rações de legumes e condimentos não são iguais em todas as «casas», mas pouco diferem. Na maioria delas, os pesos e medidas do costume para cada homem e ceia são os seguintes: três decilitros de legumes aproximadamente e dois a três centilitros de azeite, ou cem a cento e quinze gramas de toucinho. Havendo mistura de batatas, os legumes entram em menor quantidade.
483Ao anoitecer, dá-se a ceia. O abegão ou o sota, senão os dois, põem a mesa, vasam a olha da asada para os alguidares, separam a bóia (quando a há) e conduzem a comida ao seu destino. Depois, um deles sai à rua e grita: «À ceia!...» Grito forte, que se ouve distintamente. Fraco que fosse, ouvir-se-ia também, atenta a impaciência com que os ganhões o aguardam.
484Mal pois o ouvem, todos entram no monte, todos se descobrem e todos se sentam à mesa nos lugares habituais. Como de costume, o abegão preside, sentado à cabeceira
485Primeiro, migam-se as sopas sobre o caldo da olha. Tantas quantas possam ficar embebidas. Feito isso, o «governo» profere a invocação do: «Com Jesus!» e a ganharia passa a comer vagarosamente, com o silêncio e ordem que notei ao tratar do almoço.
486Quando todos deixam de comer os legumes ou a couve, o abegão – se o dia é «de carne» – puxa a si a palangana do toucinho e parte a bóia (36) em tantas rações iguais quantos são os homens. E oferece-lha para que a comam em seguida, ou a guardem como entendam, para a comerem quando queiram (37).
487Ao terminar a refeição, o abegão, ou se levanta imediatamente sem mais cerimónias, para que os outros retirem, ou mantendo o costume antigo, outrora de rigoroso uso, junta as mãos e diz: «Demos graças a Deus.»
488À voz de graças todos põem as mãos e ninguém deixa de rezar, pelo menos aparentemente. Os homens continuam sentados; os rapazes levantam-se, rezando de pé. Nenhum termina sem o abegão se benzer. Este, conclui afinal e, benzendo-se, diz: «Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!»
489Ouvido o «louvado», velhos e novos benzem-se também, e tudo sai em debandada. Os rapazes novéis, antes de sairem pedem e recebem a bênção dos pais, dos avós, dos tios, dos velhos e do abegão (38).
*
490Num momento, os ganhões dispersam pelo terreiro do monte, em grupos vários, correspondentes às diversas idades e inclinações: os velhos e pacatos recolhem à casinha, onde pernoitam; os novos, folgazões, nem sempre os acompanham. Por vezes marcham à pressa para as aldeias ou para onde têm os namoros.
491Entretanto, o abegão e o sota levantam a mesa. E, acto contínuo, do que sobeja nos barranhões e do que de propósito ficou de reserva na asada, arranjam a ceia dos malteses, adicionando-lhe as sopas que julgam necessárias.
492Se isto reputam insuficiente para abastecer a maltesaria, preparam-lhe mais uma açorda. Como quer que seja, agarram nos alguidares da comida, saem à rua, chamam e entregam-na.
493«Aí a têm...», diz o abegão dando a ceia aos malteses, que a vêm receber.
494«Venha ela...», respondem os vadios, recebendo-a.
495«Bem empregada !...», resmunga por vezes, baixinho, o «governo», ao voltar-lhes as costas, de caras ao monte.
*
Refeições da época do Verão desde o 1.° de Junho até ao «S. Mateus»
496Almoço – Realiza-se às sete horas da manhã. Consta habitualmente de sopas de cebola, tendo por conduto azeitonas e meio queijo para cada homem, que o pode comer ou arrecadar, como tiver na vontade.
497O intervalo do almoço não demora menos de meia hora, nem mais de uma.
498Jantar – Dá-se ao meio-dia, aproximadamente. Consiste em olha de legumes com toucinho e morcela ou badana, excepto nas sextas-feiras e sábados, «dias de azeite». As quantidades de legumes e de azeite são as mesmas das ceias no tempo das sementeiras e alqueives. As de toucinho e as de morcela regulam por cinquenta e cinco a sessenta gramas para cada homem, ou sejam cento e dez a cento e vinte gramas de gordura e enchido. Mas se a morcela se substitui por carne fresca de badana, como se usa durante os serviços das eiras, essa ração vai a vulto, isto é, sem ser a peso; todavia, calcula-se uma rês para o jantar de dezasseis a vinte ou vinte e quatro homens.
499Julga muita gente que uma badana é sempre uma ovelha magra. Pode não ser. E nunca é, no Verão, único tempo em que se abatem reses para os criados.
500Assim como às vacas e bois velhos se chamam açougueiros, e como tais, depois de gordos, se vendem para consumo – da mesma forma as ovelhas, em iguais condições, se denominam badanas, e nessa qualidade são vendidas para os açougues públicos, ou se matam nos montes para consumo do lavrador e da criadagem. O facto de serem velhas não impede que engordem. A questão é estarem sadias e terem pastos em abundância.
501Ora, os pastos escasseiam-lhes de Inverno, e esta circunstância, aliada à outra de estarem paridas então, influi para que, nesse tempo, as badanas emagreçam mais que as ovelhas novas. Deriva pois dessa notória magreza o baixo conceito em que o vulgo as tem, conceito que, se é justo no Inverno, não o é depois no Verão, quadra em que se mostram gordíssimas, por virem comendo quanto querem desde o princípio da Primavera. E tanto assim, que na feira de Fronteira, a 29 e 30 de Junho, os marchantes compram quantas aparecem, para fornecerem os talhos dos arredores de Lisboa.
502Em resumo, a carne de badana é apreciadíssima pelos criados de lavoura, preferindo-a ao toucinho e à morcela. Quando lha apresentam, reservam e guardam cuidadosamente toda que lhes sobeja, para a comerem depois, a qualquer hora disponível, como petisco saboroso e reconstituinte.
*
503Voltando ao jantar, resta dizer que, nos «dias de azeite», cada homem, além da olha, recebe metade de um queijo. Se o não quiser comer, dispõe dele à vontade.
504Na maior parte dos serviços do Verão, depois do jantar, dorme-se a sesta, o que tudo entretém duas horas. Nas eiras em que se trabalha pelos antigos processos de debulha com éguas, não costuma haver sesta. Portanto, o intervalo do meio-dia, restringe-se a uma hora ou pouco mais.
505Merenda ou ceia – No Estio, a última refeição diária toma o nome de merenda ou ceia. Varia-se de termo, não pela qualidade de comida, mas como indicativo da hora em que tem lugar, que não é a mesma em todos os serviços. Se se come ao sol posto ou antes, chama-se-lhe merenda; se de noite, denomina-se ceia.
506Merenda ou ceia, consta quase sempre de caspacho (39), acompanhado de azeitonas, ou de metade de um queijo para cada homem. Para variar também se usa substituir o caspacho por batatas cozidas, temperadas de azeite e vinagre.
507Em algumas «casas», nas sextas e sábados, põe-se de parte o caspacho e as batatas, e dá-se leite de cabras, em porção que satisfaça a todos. Estas merendas são as preferidas pelos ganhões. Tanto as desejam, que as solicitam dos amos com particular empenho, mostrando-se muito agradecidos se lhas concedem.
508Quando a merenda se efectua muito antes da solta, ainda com bastante sol, o que é raro praticar-se, há, para isso, meia hora de intervalo. Depois, volta-se à labuta, para se largar definitivamente ao sol posto, ou, depois, ao escurecer.
509Na maioria das lavouras da freguesia de Santa Eulália é vulgar, na época própria, as refeições dos criados terminarem por sobremesa de melancia, em quantidade proporcional à existência da «fruta» na «casa» respectiva. Se abunda, franqueia-se à larga, para todos se abarrotarem à vontade; se escasseia, dá-se por parcimónia. No princípio da época cabe apenas uma talhadinha a cada indivíduo. O suficiente para provas de «molhar a guela» e todos se «fazerem novos».
510Nas lavouras das outras freguesias, também o pessoal se contempla com as frutas que abundam, como laranjas, ameixas, melão, figos, etc.
511Em toda a temporada do Verão, a ganharia e outros criados semelhantes não comem em local certo, mas sim onde fica a jeito; nos montes, de portas adentro ou na rua, no sombracho da eira, e no próprio sítio em que se trabalha.
512Na hipótese de se comer por fora, usa-se o seguinte: o almoço vão recebê-lo ao monte dois ou três ganhões, que imediatamente lho entregam em alguidares, põem estes à cabeça e marcham para o seu destino. O jantar transporta-se, em reluzentes asadas de cobre, sobre as cangalhas de uma besta, conduzida pelo paquete ou cozinheiro. A merenda ou ceia é, em geral, preparada pelo abegão ou sota no próprio sítio do trabalho, para o que dispõem dos recursos indispensáveis. Nas tardes em que se serve leite, vai o paquete levá-lo em cântaro, logo que chega do bardo.
513Qualquer que seja a refeição e o local em que se realize, nunca se observa a seriedade e compostura que se vê à mesa do monte, nos almoços e ceias do Outono e Inverno.
Comidas melhoradas em dias de nomeada (40)
514pelas matanças do fumeiro – As matanças dos porcos gordos para o preparo do fumeiro proporcionam ao pessoal da lavoura melhoria de alimentação. Nas manhãs dessa faina, todos que a desempenham bebem o seu copito de aguardente, a pretexto de aquecerem o estômago e matarem o bicho.
515Depois, ao almoço, concluída a chacina, regalam-se à vontade com boas talhadas de chouriço e morcela frita, acompanhadas de azeitonas e vinho. A superioridade dos puxativos estimula-os a encherem e emborcarem os copos com frequência, pondo-se todos meio tachados e alguns a cair.
516Em geral, a pinga dá-lhes para se pesarem na romana que serviu para os porcos, havendo antes palavreado de aporfias, sobre o peso de cada um.
*
517Desde a primeira matança até à última, carreiros e ganhões costumam ser contemplados com mais dois almoços melhorados: o primeiro, deveras apreciadíssimo, consta da tradicional cachola (41) ; o segundo, de migas com torresmos. Comidas gordas, de avariar o estômago a muita gente boa, mas neja eles, que os têm à prova de bombas para resistirem impunemente a toda a espécie de fartotes.
518Durante o carnaval – Na quinta-feira de «compadres», na de «comadres», no domingo «magro», e nos três últimos dias de entrudo, o almoço compõe-se de sopas e carne de porco ensacada. À ceia, além da olha do costume, há morcela, chouriço e farinheira em abundância tal que sempre sobeja.
519Nas lavouras onde mais se observam as tradições antigas, a ceia do domingo gordo, ou o jantar de terça-feira de entrudo, quando não é uma e outra, além do cozido com chouriço e morcela em fartura, consta de um prato de meio – galo capado, ou galinha com arroz – e sobremesa de arroz doce, ou filhoses com mel. O vinho é acessório certo e em quantidade que não consente tristezas.
520Antes do banquete terminar, já os efeitos do álcool se patenteiam à grande, em crescente animação. Animação de carnaval, que faz esquecer reservas e afoita a atrevimentos.
521Por contágio e sugestão, as criadas aproximam-se da mesa e de chofre enquanto umas enfarinham e mascarram alguns dos comensais, outras puxam os assentos dos descuidados, que assim vão a terra antes de se precatarem. Estrugem então as gargalhadas francas e estrepitosas por entre um reboliço doido, quase saturnal.
522Os homens, sarapintados de negro e branco, procuram a desforra, agarrando-se às mulheres para as mascarrarem também. Elas escapam-se-lhes como podem, e se alguma é filada, grita às outras que lhe acudam, que lhe valham... As que não recebem socorro, arriscam-se a um estimulante esfregão de barbas, com o seu apertão de costelas, ou pelo menos a partilharem da mascarra e farinha que lançaram sobre os homens. Sem embargo, prossegue a retouça e cada qual ataca e defende-se como pode, em lutas de corpo a corpo, por entre um tiroteio de laranjas, ovos, talos, etc. De tudo se lança mão, em batalha desenfreada, delirante e brutal. Só termina por intimação dos amos ou por os combatentes abandonarem o campo, extenuados de forças, inundados de suor. Do ardor da refrega resultam rasgões de vestidos, amolgadelas de brincos e também, às vezes, galos, arranhaduras, etc. Mas como foi por estúrdia, relevam-se os prejuízos e as contusões. Os rapazes nunca encordoam.
523Por parte das raparigas, se as há «que vão à serra», as outras, mais complacentes, amansam-nas logo, pedindo-lhes que não desconfiem, que vai de adevertimento, de gozo... e que no «entrudo passa tudo...» E passa. Num momento os amuos esvaem-se como fumo, ficando todos em boa paz.
524No dia da agarração – Nesse dia, em que se ferra o gado vacum e cavalar, melhora-se sensivelmente o almoço ou o jantar da criadagem, dando-se-lhe carne ensacada, ou ensopado (42) e vinho. Da pinga resultam as alegrias e expansões que é fácil prever. Vai isso, por miúdos, no artigo Ferras.
525pela páscoa – No domingo da Ressurreição – também chamado da «Festa de Flores» – era outrora uso geral darem-se bolos a todos os criados, e folar completo aos de maior categoria, como abegão, sota, guarda, maioral das mulas, etc. Este costume tem acabado em muitas casas, mas persiste noutras. Ontem e hoje, a dádiva dos «bolos da festa» é sempre de iniciativa da lavradora, e é ela própria que os distribui no sábado de Aleluia à noite ou no domingo de manhã.
526O folar completo, para os criados de pensão, consta de dois ou três bolos grandes de manteiga, e de outros tantos biscoitos, também avultados. Um dos bolos, ornamentado com fitinhas, leva ao centro três a quatro ovos cozidos, mas inteiros, sendo por isso aquele que mais particularmente representa o folar.
527Para os ganhões e restante criadagem, cada folar limita-se a um bolo de manteiga, de um quilo aproximadamente e de um biscoito taludo, ou somente do bolo.
528O abegão e outros criados que, por circunstâncias especiais, se querem distinguir, recebem oferta maior. A cada um desses, a ama avia-lhe o pano, onde, além do folar comum, introduz outros bolos diferentes. Se os filhos do criado são afilhados dos lavradores ou de sua família, recebem também folar próprio, distinto do dos pais: os dos rapazes, representam um lagarto ou um borrego; os das raparigas, uma pintainha ou uma pomba. Em uns e outros, figura sempre um ovo cozido.
529Em dia de ascensão – Em algumas lavouras, aliás poucas, o leite das cabras do ordenho da manhã deste dia é dado, como almoço, aos ganhões, ou em vazilhas, para que o levem às famílias.
530Na freguesia de Santa Eulália e outras, o leite de um dos ordenhos do dia da Ascensão, senão o dos dois, distribui-se à pobreza dos arredores que, à hora própria, corre aos montes para receber essa esmola. Segundo a crença popular, o lavrador que, em dia de Ascensão, der, de boamente e com fé, o leite aos pobres e aos criados, está livre de ter sarna na cabrada.
531pelos «santos» – Noutros tempos, era de uso, na véspera do dia de Todos-os-Santos, melhorar-se a ceia dos criados, dando-lhes feijão amarelo, queijo de ovelhas, uvas e frutas secas, como castanhas, passas, nozes, etc. No dia seguinte, cada criado recebia um bolo grande, dos chamados «de manteiga». Eram os «Santos». Acabou de todo este uso.
532pelo acabamento da sementeira – A ceia do dia em que se acaba a sementeira temporã (outonal) distingue-se das ordinárias por ter chouriço, morcela, vinho e castanha, tudo à franca e a sobejar. O vinho produz uma algazarra dos demónios e bastantes bebedeiras.
533Por ocasião de casamentos e baptizados – Naquelas lavouras onde, até certo ponto, os serviçais são quase considerados como pessoas de família, eles partilham também das festas dos amos, por efeito de bodas ou baptizados.
534Nesses dias, todos almoçam e jantam ensopado, carne de porco, galinha com arroz, bolos, vinho, frutas, etc., tudo em extraordinária abundância. Se a festa é por celebração de casamento, também se usa dar folga ao pessoal, para mais realçar o festejo.
535À noite permite-se bailarico de criadas com criados, ao som do pandeiro e de cantigas de roda.
536Nas casas de lavradores que estão de luto carregado, pela morte de parente próximo, não há folares nem melhorias de comida em dias festivos. O luto não se coaduna com esses regabofes.
537Jejuns – Eram antigamente celebrados nas ganharias e restante pessoal, senão todos, que a Igreja preceitua, pelo menos os das festas de maior devoção, como o da véspera do dia de Todos-os-Santos, o do Natal e o de quinta-feira de Endoenças. Presentemente, em poucas ou nenhumas lavouras se satisfaz a formalidade dos jejuns. Digo formalidade, porque não era outra coisa. Esses jejuns, mais pareciam pretexto para fartas comesainas, do que actos de devoção e penitência. Tanto assim era que nenhum criado havia que, propondo-se-lhe escolher entre a alimentação ordinária e a usual em dias de jejum, não optasse sempre pela última.
538Jejuando, o sacrifício limitava-se à abstenção do almoço, quando se abstinham, porque muitos nem isso, comendo às escondidas pão e queijo, de que se muniam sorrateiramente na ceia anterior. Mas mesmo que nada almoçassem, pouco se incomodavam. Às onze horas da manhã ou antes, em vez da habitual merenda do pão e queijo, aparecia-lhes um farto jantar de feijão branco ou amarelo, muito bem condimentado, frutas e queijo grande de ovelhas. Queijo bravo, como em frase picaresca lhe chamam os criados, querendo assim dizer que esse queijo é de superioridade e apreço tal, que poucas vezes o apanham... Depois do jantar havia, à noite, a ceia, que se diferenciava das ordinárias por constar de arroz com bacalhau, queijo de ovelhas, passas, nozes, vinho, etc. Enfim, uma penitência muito suportável!... Passou à história, e suponho que sem prejuízo para a salvação das almas.
Dias feriados
539Além dos habituais domingos de folga, imediatos ao fim das quinzenas ou semanas de trabalho (43), a ganharia e os outros criados que se empregam nas chamadas ocupações braçais, guardam, a rigor, os seguintes dias santificados: Ano Bom, Reis, Ascensão, Corpo de Deus, S. João, Todos-os-Santos, Nossa Senhora da Conceição e Natal. O meio-dia da tarde de Quinta-feira Santa e o da manhã de Sexta-feira, não são tão geralmente guardados, havendo lavouras onde se trabalha nesses dois meios dias para se folgar em segunda-feira de Páscoa ou na imediata, a dos Prazeres de Nossa Senhora, também chamada segunda-feira de Pascoela, ou de «passar águas» (44).
540Para os dias de Nossa Senhora das Candeias, de S. Pedro, do Coração de Jesus e Santa Maria de Agosto não há regras invariáveis, guardando-se ou não, conforme a urgência dos serviços ou a vontade dos lavradores e dos criados. Nos dias de S. José e de Nossa Senhora da Encarnação não se usa folgar.
541Na freguesia de Santa Eulália sempre se dá feriado na segunda-feira de Páscoa. Nas de Barbacena e Vila Fernando guarda-se, pela mesma forma, a segunda-feira de Prazeres.
542Pelos três dias do Carnaval só se folga no Domingo Gordo e na tarde de terça-feira. Mas na quarta-feira de Cinzas, vai de descanso também, pelo menos em muitas partes. Este feriado torna-se forçoso, em consequência do pessoal não comparecer ao trabalho, por ficar arrombado das folias carnavalescas.
543Em conclusão de feriados, há ainda os dois dias do fim e princípio do ano agrícola, por ocasião do S. Mateus a 21 e 22 de Setembro e outros por motivo de festividades locais, cuja guarda, claro está, que se restringe à zona onde se celebram os festejos.
544Os criados cujas ocupações reclamam assistência permanente, nunca, em regra, gozam de dias feriados. Quando podem e precisam, escapam-se por algumas horas aos afazeres.
545Nas noites dos sábados ou dos domingos, a grande maioria desses serviçais vão sempre a casa a mudarem de roupa e ver a família. Se precisam estar ausentes da obrigação por um ou mais dias, pedem licença ao amo e saem, fazendo-se substituir por pessoa idónea, a quem pagam do seu bolso. Ou o amo os manda substituir por sua conta, descontando-lhes os dias perdidos.
Notes de bas de page
1 Em Campo Maior chama-se-lhe apeirador, dando-se o nome de abegão ao carpinteiro de carros.
2 Costume antigo da freguesia de Santa Eulália caído em desuso.
3 Chamam-se de mãozeira por trabalharem o mais do ano à mãozeira do arado – à rabiça, como se diz noutras regiões.
4 Mulateiros, lhes chamam nos concelhos do Crato, Alter do Chão e outros.
5 Nalgumas casas este serviço compete ao cozinheiro ou amassador.
6 capar, diz-se em aigumas zonas.
7 Comida de ganhão, quer dizer, comida igual à dos moços de lavoura.
8 Indo a seco levam avios (comestíveis) para toda a quinzena ou semana.
9 Merendam segunda vez, se ao meio-dia merendarem pão e queijo, ou qualquer coisa própria de farnel. Se porém jantarem olha de legumes ou semelhante, a merenda da tarde é a primeira e única.
10 As baias representam um costume antiquíssimo. Usam-se de mulheres para homens e vice-versa. Mas só as provoca e dá. o pessoal que anda a trabalhar e unicamente para as criaturas de outro sexo. Com a diferença que às mulheres consente-se-lhes o uso em todas as fainas do campo, ao passo que aos homens só lhes é tolerado no serviço da lavoura propriamente dita. Elas e eles coibem-se de baias às horas do descanso e da comida.
11 Dar culas significa segurar o paciente pelos pés e cabeça, e em posição horizontal, bater-lhe os costados e nádegas sobre o solo, bamboleando-o entretanto repetidas vezes, qual manequim com que se brinca à vontade.
12 Tanto as raparigas solteiras sacrificam as necessidades de boa alimentação aos exageros do vestuário e do mobiliário doméstico, trabalhando a seco, no campo, o mais do ano, que, a maioria, vê-se anémica, ao passo que os rapazes entretidos em trabalhos mais violentos, mas comendo sempre por conta dos lavradores, mostram-se pelo contrário vigorosos e sadios.
13 Excepto nas boiadas e nas vacadas grandes, em que o ajuda é um homem como o maioral.
14 Em terminologia alentejana o vocábulo pegulhal significa o animal ou animais de qualquer pessoa que não seja o lavrador, e que este, por favor, paga ou forra, consente nos seus rebanhos, onde pascigam conjuntamente com o mais gado. Aos pegulhais dos ganadeiros também se lhes chama forras, em determinadas circunstâncias.
15 E inconveniente a forra de cabras aos cabreiros por que a separação do leite da cabrada do das do pegulhal, presta-se facilmente aos abusos fraudulentos, de importância bastante sensível.
Com os pastores não pode haver esse contra, porque o leite das suas respectivas ovelhas pertence ao lavrador.
16 Por adjuntos mencionam-se as reuniões de indeterminado número de pessoas entretidas em palestras ou a beberricarem nas tabernas. As aglomerações de gente em qualquer parte chama-se-lhes grandes adjuntos de familha. Expressão muito plebeia, entende-se.
17 Estouvados e imprudentes, refilando grosseiramente por qualquer coisa, com alaridos de frases e gestos intempestivos.
18 Tem excepções este costume. Para os boieiros nada lhes é aplicável, como já tive ocasião de dizer. Os vajqueiros, eguariços e cabreiros adoptam-no apenas na parte da noite que não repastam os gados. Portanto, são os porqueiros e pastores aqueles que mais aproveitam as malhadas.
19 Nome com que os ganadeiros designam genericamente toda a classe de chocalhos e esquilões.
20 Prendem-se à estaca, nos primeiros dias de nascidos, por terem pouca resistência para acompanharem as mães na pastoria, ou para não mamarem em excesso, quando as mães têm leite em abundância, de sobejo.
21 Inutilizar temporiamente as tetas da vaca por qualquer processo que obste a mama das crias.
22 No campo usa-se dizer aluada ou viciada de qualquer fémea que mostre excitação genética.
23 Em duas épocas de dois meses cada uma.
24 O mais usual é mudarem-se os bardos uma vez por dia, nos meses de Setembro a Fevereiro; duas, de Março a fim de Maio; uma, em Julho, e de dois em dois dias, durante o Verão.
25 Pelos processos geralmente conhecidos de todos os pastores, além de outros que lhe forem indicados, como terei ocasião de referir quando tratar dos gados.
26 Em terminologia alentejana os apriscos não são os bardos onde pernoitam quaisquer reses ovinas, mas sim aqueles exclusivamente destinados ao ordenho das ovelhas.
27 De um a três anos no gado vacum e cavalar, e de ano a ano e meio nos suínos, lanígeros e caprinos.
28 Em linguagem plebeia empregasse o termo de comedias e não o de comedorias.
29 Por olha denomina-se o cozido de legumes ou hortaliça preparado com gorduras, toucinho ou azeite.
30 Estes dois comem, em alguns montes, conjuntamente com as criadas do serviço doméstico, da comida que sobejou dos amos.
31 Em alguns domingos do Outono, em que se não folga, usa-se em certas «casas» almoço de migais em vez de açorda.
32 Na quantidade de três centilitros para cada homem.
33 Se por excepção, nesta época, a ganharia se ocupa em trabalhos violentos, como cavas, etc., não há merenda à hora do meio-dia, mas sim jantar de legumes, semelhante às ceias próprias do tempo. Na hipótese de haver jantar, a ceia consta de uma segunda olha, ou de quaisquer sopas.
34 Em certos dias festivos do ano, as ceias ou os jantares são sensivelmente melhorados, como terei ocasião de referir.
35 Nas lavouras do Alentejo chama-se bóia aos nacos de toucinho com que se aduba a olha dos criados, e que depois é por eles comido também de mistura com pão.
36 Fulano é quem parte a bóia – diz-se nos campos de Elvas quando se elogia alguém atribuindo-lhe a primazia de manifesta superioridade em qualquer coisa, sobre outros indivíduos de condições semelhantes. Evidentemente, o conceito da frase procede daquela prerrogativa do abegão.
37 Alguns arrecadam-na em marmitas.
38 Na região elvense, poucas são as lavouras onde ainda persistem estas práticas.
39 Ca’spacho ou gaspacho, que por ambas as formas se pronuncia, consiste numas sopas de pão em água fria e vinagre com azeite, sal e alho pisado, ao que algumas pessoas adicionam pedacinhos de pimentões verdes, cebola crua e tomates crus. Quanto mais fria está a água, melhor sabor tem o caspacho. É comida própria dos dias de calor, assaz vulgaríssima em todo o Alentejo e Estremadura espanhola. Serve-se não somente aos criados de lavoura, mas também em todas as casas das vilas e aldeias, desde a gente pobre até à mais abastada.
Os criados do campo, quando vão comer essas sopas, é frequente dizerem: «Vamos caspachar.»
40 Dias festivos.
41 Guisado ide fressura e sangue de porco com muitas gorduras e temperos, predominando a pimenta e o pimentão.
42 Guisado muito semelhante ao conhecido «carneiro com batatas». Difere em quase nunca ser carne de carneiro, mas sim de chibo, cabra ou ovelha, cortada em grandes pedaços, que se chamam presas.
43 Por ocasião das sementeiras, e no tempo das eiras, usa-se trabalhar por períodos de quinzenas, não se considerando de folga o domingo intermediário. Nas restantes épocas do ano trabalha-se às semanas, descansando-se todos os domingos. Se porém na semana há um dia santificado em que se folga, trabalha-se no domingo anterior ao dia santo, ou no imediato.
44 Por antigamente se usar, neste dia, ir-se às ribeiras a passar as águas, como preservativo contra a sarna.
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