Os montados
p. 47-72
Texte intégral
III
1Muitas herdades do Alentejo, a maioria talvez, são povoadas, no todo ou em parte, de importantes arvoredos de azinho e sobro de diferentes idades, valor e extensão, a que se dá o nome de montados (1).
2Este é o termo próprio, clássico por assim dizer, mas não o corrente em linguagem popular, pelo menos no distrito de Portalegre, onde frequentemente o substituem por outro – o de matos – sobretudo se se trata apenas do arvoredo e não dos seus respectivos produtos ou aplicações. O que não impede que na mesma região, seguindo o uso geral, igualmente se denominem matos os matagais de esteva, e outros arbustos silvestres, que abundam em maior ou menor quantidade nos terrenos bravios, incultos, ou de cultura quinquenal, com ou sem arvoredo.
3Por conseguinte, no campo e por via de regra, o termo de montado emprega-se num sentido quase restrito à novidade da bolota, ou para melhor, nas frases alusíveis à engorda dos porcos com aquele fruto. Exemplificarei:
4Quando se passa por um montado e se lhe aprecia a novidade pendente, diz-se: “Este montado está bom (ou mau, conforme o caso).”
5Todavia, se se atravessa a mesma ou outra zona, e se se trata do arvoredo exclusivamente, já se empregam outros termos. Exemplo: “Mato velho, sim senhor, mas sadio.” “Mato assim está para viver.”
6As árvores de azinho e sobro representam duas espécies distintas com muitos pontos de contacto. Ambas são de folha permanente, áspera, de puas aguadas (menos no sobro) de cor verde-escuro (muito carregado no azinho), de tronco e pernadas robustíssimas, que chegam a atingir proporções gigantescas, majestosas. O azinho predomina no sobro, pelo menos no distrito de Portalegre, onde os montados exclusivos de azinheiras são em quantidade muito superior.
7Enquanto novas, ou melhor dizendo, até adquirirem mais de metade do seu desenvolvimento, as árvores das duas espécies têm o nome comum de chaparros. Em adultas chamam-se-lhe azinheiras, às de azinho, e sobreiros ou sobreiros, às de sobro. Em caducas, os sobreiros conhecem-se por alcornoques e as azinheiras por vários qualificativos. Exemplos: azinheira touqueirosa (a de tronco oco); enraivada (a de esgalhos ou pernadas secas ou musgosas) ; remelgosas ou molgueiras (as muito decrépitas, de pouca rama e lenha); cabreiros (as de tronco baixo, curvo, por onde as cabras trepam, roendo-as, etc.). Os chaparros de azinho bastante desenvolvidos, que tomam a roda ou copa de azinheira, designam-se também por chaparros.
8Uma terra povoada de chaparros ressalvados, chama-se-lhe chaparral; e a de azinheiras azinhal, nome que em boa verdade pouco se emprega, preferindo-se o de «mato», aliás impróprio e nada específico. Mas há que aceitar as costumeiras. Em todo o caso, quando as árvores se mostram copadas, grandes e sadias, chama-se-lhes mato real. Se estão velhas ou raquíticas, galego ou ratinho.
9Dá-se o nome de frade ao coto restante das pernadas tronchadas ou partidas pelo vento, assim como o de faro aos detritos do folhedo e outros fragmentos vegetais que se depositam e acumulam no interior dos mesmos tocos. Esses resíduos, de combustão facílima, apressam a destruição do arvoredo velho por ocasião de incêndios.
10Criação – Tudo faz supor que os montados antigos se criaram quase espontaneamente, concorrendo pouco a acção do homem para o seu desenvolvimento.
11Pelo que se observa ainda hoje em terrenos incultos, cheios de carrascos e chaparros, depreende-se que as azinheiras e sobreiros que aí vemos aos milhares, distanciados ou próximos, em pequenos e grandes agrupamentos, sem a mínima regularidade, antes em disposição caprichosíssima e variada – provêm de antigos carrascais, que dantes ocupavam as terras bravias, Deus sabe desde quando.
12A hipótese dos montados serem o produto de bolotas semeadas, ou deixadas pelas aves, afigura-se-me inverosímil sob o ponto de vista geral. Quando muito, pode isso admitir-se para casos isolados de somenos importância.
13Os carrascais ocupavam áreas enormes, incultas, de mistura com outros matos silvestres, exactamente como ainda hoje existem em zonas reduzidas. E entre uma vegetação tão espessa, natural era que a mais vigorosa – a do carrasco – fosse triunfando das outras e criando grandes moitas, quase inacessíveis aos gados. Disposição que dava ensejo a que os rebentões maiores e mais defendidos fossem crescendo a pouco e pouco, ao embate de mil contingências e destroços, até se destacarem tanto, que despertavam a atenção do lavrador. Fraca atenção, que se restringia a limpá-los antes ou depois das queimadas, que de oito em oito ou de dez em dez anos costumavam fazer nas terras sujas, a fim de as semearem e lavrarem «à face». Mas as roças representam um vandalismo inaudito.
14Chaparrais imensos havia, e até sobreirais e azinhais, entre manchas enormes de extraordinária altura, que se roçavam imprudentemente, não se resguardando o arvoredo com aceiros e arruadas espaçosas, que os defendessem, ou sequer poupassem, dos estragos do fogo. O lume largava-se à valentona, e tudo aquilo se transformava em chamas gigantescas, sob o sol ardente de Agosto, por entre nuvens de fumo negro, que se avistava a dezenas de léguas. Era medonho! Os pobres dos chaparros, uns morriam logo, outros ficavam meios queimados, e os mais resistentes lá conseguiam escapar, mas com a rama afogueada, em aspecto desolador.
15Mas ninguém estranhava. Era estilo. E por ser costume, pouco importava que ardessem. Por muitas que se queimassem algumas escapariam. E se todas se perdessem, lá ficava a cepa vigorosa, que outros criaria tão bons ou melhores. E a cepa criava-os efectivamente, embora com atraso. Porque fosse como fosse, a despeito de todas as selvajarias, os montados vetustos existem em larguíssima escala por toda a província, atestando o triunfo da natureza sobre o vandalismo dos homens. Triunfo relativo, porque, certamente, se não houvesse devastações, maiores e melhores arvoredos existiriam.
16Com os montados modernos, pouco se praticam os sistemas bárbaros, primitivos, ainda muito em voga há cerca de vinte e cinco anos. Mas a sua origem é a mesma que a dos antigos. À parte excepções insignificantes (2), são-filhos do carrasco e desenvolvem-se onde por acaso nasceram. Com a diferença que se tratam melhor que antes, beneficiando-se com arroteamentos e limpezas que os preservam de estragos sensíveis.
Tratamento
17Consiste nos seguintes serviços: lavoura; limpeza das terras; limpeza das árvores, e nos desbastes.
18Lavoura – Se não fora o inconveniente de estragar pastagens e ocasionar despesas de vulto, conviria praticar-se anualmente nos montados, pois quanto mais a miúde se lavram, mais se desenvolvem e melhor fruto dão.
19Como porém há que atender também a razões económicas, lavram-se apenas de três em três, de quatro em quatro, ou de cinco em cinco anos, conforme o maior ou menor afolhamento em que a herdade se divide. A lavoura repete-se uma e duas vezes contando-se os «ferros» do alqueive e o da sementeira de cereais.
20Nas roças, limita-se ao «ferro» da sementeira. E há montados de terrenos tão ordinários que se lavram somente para seu exclusivo benefício.
21Limpeza das terras – Executam-se desde o princípio de Janeiro a fins de Maio, precedendo a lavoura de alqueive, ou depois, de Agosto ao S. Miguel. Consiste na destruição total ou parcial do mato propriamente dito. Faz-se por três sistemas: um radical – o arranque ou arroteamento–; dois superifiçais – a desmoita e a roça.
22Arroteamento – Significa a extracção de todo o raizame de arbustos daninhos. Espécie de surriba por meio de alvião em que a terra se desbrava e se deixa povoada de carrasqueiras, que pelo seu vigor possam criar os chaparros necessários à constituição do montado, ao seu aumento, renovação e substituição.
23Deste trabalho, moroso, feito a braço de homem possante e experiente, pago ao salário de trezentos e sessenta a quatrocentos e tantos réis, secos, colhe-se muita cepa, que se aproveita para carvão. O restante raizame, bem como o folhedo e chamiços, juntam-se em caminheiros distanciadas das árvores, e aí se queimam a descoberto ou previamente tapadas com terra, tomando neste caso a denominação de moreias. Assim, a queima torna-se inofensiva e mais útil por que se impede em absoluto o desenvolvimento e estrago resultante das chamas, com a vantagem de se obter muito sisco e cinza, que depois se espalha pela terra como adubo proveitoso. Enfim, o arvoredo beneficiado com arroteamentos, radicula-se e cresce à vontade, a ponto de nos cortes subsequentes se poderem reduzir as moitas ressalvadas, deixando-lhes apenas as vergônteas escolhidas para vingarem, isto é, os chaparrinhos. Os quais, ressalvados de vez, vão adquirindo as formas consentâneas às limpezas que recebem.
24Por outro lado, as árvores grandes e pequenas, livres de toda a imundície, crescem a palmos, rejuvenescem, e a cortiça e bolota melhoram de volume e qualidade.
25Tudo lucra, incluindo a terra, que assim agricultada se aproveita também na cultura dos cereais. Não obstante – convém acentuar – os arroteamentos absorvem capitais avultados, que não possuem muitos dos pequenos lavradores. E de entre os que dispõem de dinheiro, há os que receiam empregá-lo em tais empreendimentos, por não terem a certeza da estabilidade, sendo como são simples rendeiros, por períodos de dois e três anos.
26As vantagens manifestam-se, é certo; mas só remuneram cabalmente passados muitos anos, e persistindo-se no propósito. E, entretanto, se não alcança o fim almejado, o rendeiro pode ser despedido para dar lugar ao vizinho invejoso e vil que lhe foi subir a renda para lhe escamotear as benfeitorias. Sobejam os exemplos.
27Por conseguinte, da incerteza deriva em parte a relutância dos lavradores tímidos e desconfiados para empresas duvidosas, ao passo que os resolutos as empreendem, arriscando-se às contingências.
28Aqui ressalta claramente a vantagem dos arrendamentos das herdades a longo prazo, pelo menos por períodos não inferiores a dez anos. Lucravam todos: o senhorio e o rendeiro.
29Pode-se objectar que às vezes se oferecem seareiros para, à sua custa, arrotearem e limparem terras, mediante a concessão de as disfrutarem com searas por dois e três anos consecutivos, e que portanto se deviam aceitar essas propostas vantajosas, como processo de limpeza radical, fácil e económico.
30Admitida a objecção, respondo:
31O oferecimento desse concurso aceitam-no do melhor grado os lavradores inteligentes que se lhes proporciona com êxito, e por semelhante meio vai-se desbravando muita terra e melhorando muitos montados. Mas também existem outros sujos, em terrenos de pobreza tal, que nenhum seareiro os pede ou aceita. E para tomarem os melhores, é preciso dá-los por dois e três anos, como já disse. Ora os arrendamentos curtos embaraçam ou impedem esses contratos que para terem plena execução e serem proveitosos ao lavrador rendeiro, carecem em muitos casos de prazo maior que o do arrendamento. Isto fora outros inconvenientes, como por exemplo a herdade ser invadida por estranhos pouco conscienciosos que entendem estar em país conquistado.
32Por tais contras, alguns arrendatários preferem manter a rotina a dispensarem concessões a terceiros, com que eles rendeiros nada lucram, caso saiam da herdade.
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33Desmoita – Corte superficial, de ligeiro descabeçamento no piorno, giesta, trovisco, etc. À medida que o mato se vai cortando junta-se com forcados, aos montes ou caminheiros, nos intervalos das árvores onde se queima, com as cautelas necessárias. A desmoita costuma ser feita por trabalhadores justos a jornal, ou de empreitada.
34Nesta hipótese avalia-se o trabalho pelo número de dias que pode entreter um homem. Supondo que demorará vinte dias diz-se: «há aqui vinte homens de desmoita». Cada jornal ou «homem» ajusta-se a cento e vinte ou cento e cinquenta réis com as respectivas comedorias.
35Roça – Processo primitivo, que tende a desaparecer, mas antes muito usado para destruir temporariamente as manchas de esteva e outros arbustos que infestam as terras incultas por mais de cinco anos.
36Por este uso, o matagal é tombado à roçadoira – roçado – ficando no chão conforme cai – estendido a esmo, a secar em esteira farta e interrupta até a época em que se permitem as queimadas, de 15 de Agosto em diante. Então larga-se-lhe fogo e tudo arde em poucas horas.
37Antigamente, repito, pouco ou nada se defendia o arvoredo das queimas. Hoje já se adoptam precauções de aceiros, insuficientes em todo o caso.
38Por que a despeito de cuidados preventivos, as roças deixam sempre vestígios destruidores, próprios de uma velharia estúpida e vandálica, verdadeiro flagelo dos montados. Dos que a sofrem, quase se pode dizer como daqueles enfermos que melhoram da moléstia mas que morrem da cura.
39Na melhor das previsões não passam de limpezas temporárias imperfeitíssimas. A terra continua com o raizame do matagal ardido, que renova na Primavera seguinte com maior pujança numa rápida vegetação e que em breve avassala os chaparros. O contrário da arroteada que extingue de vez o mato de cepa e reduz muitíssimo a renovação do saragaço e esteva. Esta acaba de todo, se se persiste no seu aniquilamento. Basta arrancá-lo à mão em pelas sucessivas, anuais, durante três anos. Serviço barato que se executa com mulheres nas épocas invernosas de salários baixos.
40Resumindo: os montados que se beneficiam com limpezas radicais e persistentes mostram aspecto viçoso, luxuriante, que contrasta com o raquitismo avariado dos que estrebucham ao abandono, enegrecidos e dizimados pelo fogo das queimadas.
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41Das limpezas das terras, passarei à das árvores, designada pelo nome de cortes. Uma é o complemento da outra. Em geral, a de cima (a das árvores) precede a de baixo (a da terra). Mas também se efectuam as duas simultaneamente.
42Os «cortes» – Renovam-se de cinco em cinco anos, de seis em seis, ou de sete em sete, começando em Dezembro e concluindo-se em Março ou Abril.
43Arvoredo por limpar mais de um sexénio, notoriamente se prejudica. As árvores definham-se, enchem-se de musgo, enraivecem-se e sobretudo escasseia-lhe a bolota, que chega a faltar de todo.
44Torna-se, por conseguinte, indispensável a limpeza quadrienal ou quinquenal, a malho (machado) que, aplicada com prudência e critério, é tão útil como a do arado e enxadão.
45Há vários sistemas de cortar, cada qual útil e apropriado às diversas circunstâncias em que se encontra o «mato» e até a cada árvore em especial. O que é excelente num dado caso, pode ser nocivo noutro de condições opostas.
46Nas azinheiras altas, sadias e vigorosas, a experiência aconselha que se abram apenas, deixando-lhe as pernadas reais e outras que não sobrecarreguem em excesso, todas providas de suficientes polos ou ramos. Copadas e enrameadas, aptas a produzirem bolota no ano seguinte.
47Se são novas mas baixas por não terem sido guiadas em chaparros, despontam-se um pouco, logo adiante dos vergontões – verigalhões – que tendem a elevar-se, para readquirirem a precisa altura e a copa que perderam.
48Nas que mostram decadência, com ramos secos e arejados, recuam-se ou troncham-se sem dó, como processo único de se lhe atalhar a decrepitude. Da mesma forma que ao enfermo que tem uma perna gangrenada, o cirurgião lha amputa como remédio heróico para lhe salvar a existência, assim a árvore decrépita necessita que lhe inutilizem as pernadas doentes para ficar só «no são» e rejuvenescer, embora não mais alcance a primitiva corpulência. Mas antes pequena e viçosa do que grande e doente, condenada a morrer breve. Que só nestes casos extremos se impõe a troncharia. Noutros é um crime despojar as árvores, no todo ou em parte, das pernadas sãs com que muito bem podem e que tantos anos demoram a criar.
49Nas azinheiras velhas, ocas e nodosas, de há muito recuadas, a limpeza restringe-se ao indispensável.
50Os sobreiros deixam-se com as pernadas mais nuas e guiadas, quero dizer, menos compostas de ramos, que as outras do azinho.
51Os velhos alcornoques, prestes a extinguirem raras vezes permitem limpeza vistosa; assim acontece com a azinheira de análoga vetustez.
52Os homens empregados nos cortes designam-se por corta-ramas.
53Uns saem da ganharia, outros ajustam-se expressamente à razão de cinco a seis mil réis por mês, comida e umas duas carradas de lenha. O manageiro ganha um pouco mais.
54O corta-rama antes de subir para a árvore que se propõe limpar, encosta-lhe ao tronco o burro (esteio chanfrado a servir de escada) e por ele trepa a galgar o ponto desejado. Sempre de pé, e munido do machado, procede à limpeza saltando de umas para outras pernadas, como pode e sabe. Em que disposições difíceis, incómodas e perigosas ele tem de se aguentar muitas vezes para se sair do trabalho com desembaraço proveitoso!
55Do alto da azinheira, no quase extremo de uma das hastes, sem outro apoio, além dos próprios pés, mal se concebe como esse homem se equilibre, e possa vibrar o machado sobre a lenha num vaivém sonoro e cadenciado.
56Mas vibra e com foiteza. Os golpes sucedem-se certeiros e rijos, tanto que o madeiro, fendido em volta, num instante estala, esgarra e cai, vencido de todo pelo ousado trabalhador. Destemida criatura que nem sequer pensa no perigo. Um ligeiro descuido ou imprevista casualidade, e ei-lo da árvore abaixo, aos trambolhões. A quantos têm sucedido desses percalços que alguns pagam com a invalidez ou a morte. Coitados, fazem parte do martirológio do trabalho rude e obscuro, ignorados das multidões sem os elogios das gazetas.
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57A boa conservação e aumento dos montados merece especial protecção das municipalidades alentejanas. Nos códigos de posturas de todas ou quase todas, cominam-se multas aos que derribarem árvores, chaparros e pernadas reais, sem motivo justo. Nas escrituras de arrendamento também os senhorios se acautelam dos rendeiros por abusos semelhantes.
58Os senhorios mandam examinar os cortes por pessoas de sua confiança. Os munícipes incumbem igualmente de semelhante serviço os rendeiros ou zeladores. Quando uns e outros encontram transgressões, entendem-se com o lavrador, resolvendo-se a questão amigavelmente, por indemnizações pecuniárias ao senhorio. Mas se a conciliação se torna impossível recorre-se aos meios judiciais, com a vistoria de peritos ajuramentados. Recurso extremo pouco usado por receio d’e chicanas e incómodos. O alentejano tem horror às demandas. Prefere pagar às boas, a meter-se com a justiça.
59Como curiosidade oportuna, eis algumas frases correntes na apreciação dos cortes, ao serem vistos por entendedores.
60Dos que se limparam com demasiada cautela: «Foi muito poupado... cortaram a medo... podiam chegar-lhe mais...», etc.
61Dos bastante castigados: «Que grande troncharia!... que esnoca!... por pouco que as não deixam pelas trepas!... Foi a matar!... sem dó!»
62Dos recuados por necessidade absoluta: «Chegaram-lhe de firme, mas precisavam disto... Estavam que metiam medo... velhas... musguentas... arejadas... Verão como agora reverdecem... Para o ano estão como repolhos... Com bolota à esgarra... Mato assim quer malho.»
63Dos cortes bonitos, apurados, em arvoredos viçosos: «Sim, senhor, não há que dizer... fartas de rama... golpe a preceito... bem rodadas... todas compostas... Quem por aqui andou sabia da poda...»
64Desbastes – Justificam-se e impõem-se sempre que as árvores existam em demasia, a toearem-se umas nas outras. O arvoredo intenso, sombrio e excessivo, definha, envelhece, e quase se esteriliza produzindo menos e pior bolota do que produziria regularmente distanciado, em condições de se desenvolver e bracejar à vontade. Acresce ainda, que o «mato» basto em excesso, sombreia a terra, inutilizando-a para searas e pastagens.
65Há pois vantagens incontestáveis nos desbastes quando as circunstâncias os reclamam e se realizam sob um plano metódico e racional. Isto é, arrancando-se o arvoredo caduco, para dar espaço ao novo, e do novo dizimar o supérfluo e pior para vingar o melhor, sacrificando-se a azinheira ao sobreiro, cuja superioridade produtiva ninguém contesta.
66As distâncias de umas para outras árvores regulam de seis a dez metros, se assim o permite a disposição do arvoredo. Desbastam-se, cortando o tronco da árvore uns sessenta centímetros acima da base, ou derrubando-a pela raiz, depois de paciente escavação em volta do pé.
67Os cotos dos pés cortados chama-se-lhes pitões.
Produtos
68Consistem na bolota, lenha e rama, pelo que respeita ao azinho. O sobro dá a mais a cortiça e a casca ou entrecasco.
69Bolota – Fruto seco, oleoso, de cor escura e forma oblonga. A de azinho avantaja-se à de sobro em sabor e qualidades nutritivas. Constitui a principal receita da azinheira e a segunda do sobreiro. Tem alta importância para a economia rural da província. Além de ser um bom alimento para gados de todas as espécies, que como tal, o procuram com avidez em cima e por baixo do arvoredo – aplica-se principalmente, com notória vantagem, na criação, sustento e rápida engorda de muitos milhares de suínos. Para estes é sem dúvida o melhor dos alimentos. Com razão se diz que a Natureza criou a bolota para os porcos, e que os porcos nascem para a bolota.
70Considerada sob o ponto de vista geral, a sua colheita é, em regra, diminuta, comparada com a das outras árvores.
71No sobro predominam as produções periódicas: nuns anos novidade cheia; noutros nada.
72Com o azinho observa-se menos esse fenómeno. Em regra, e em maior ou menor escala, num mesmo «mato» há em abundância árvores ventureiras e estéreis por entre algumas castiças. Destacando sempre as de produção escassa insignificante.
73Com efeito, se repararmos bem na enorme quantidade de azinheiras de um montado grande, e depois soubermos da sua produção, mesmo nos anos abundantes, reconhece-se logo quanto é fraca. Só dois alqueires que desse cada árvore, os montados produziriam três ou quatro vezes mais da média habitual. Mas assim como são, se por acaso uma azinheira grande, excepcional e castiça, produz trinta ou quarenta decalitros, centenas existem que nem meio dão, e muitas nada mesmo em anos consecutivos. A que dá dez alqueires de bolota já se considera muito boa. É, pois, difícil calcular a produção média de cada árvore mesmo por que o seu número total em cada montado ignora-se ordinariamente.
74O azinho produz uma só camada de bolota, variando muito em tamanho e qualidade, conforme as castas, a natureza do terreno e os cuidados de culturas. A bolota criada nas terras bravias é amarga e miúda, sobretudo no arvoredo basto, assim como é grossa e de melhor sabor nas terras cultivadas, de «mato» ralo. A bolota miúda chama-se pombeira por ser a preferida dos pombos bravos, pela facilidade com que a ingerem.
75Em igualdade de circunstâncias, quanto a terrenos e tratamentos, os arvoredos velhos produzem fruto superior aos novos.
76A bolota de sobremesa, apreciada por muita gente, escasseia bastante. Só por entre dezenas e dezenas de azinheiras se encontra uma ou outra de frutos saborosos e por acaso alguma doce, no rigoroso sentido da palavra. Estas são estimadíssimas, tendo nomes próprios, como amendoinhas, a dos malteses, a do pé caído, etc.
77As lebres denunciam a bolota doce. Onde a haja roída por elas é com certeza de superior qualidade.
78A azinheira principia a florir ao despontar da Primavera, pouco depois dos marmeleiros. Pela novidade dos marmelos formulam-se juízos sobre a produção dos montados. No conceito popular a floração dos marmelos aparece sempre em abundância ou escassez igual à que se verifica semanas depois nas azinheiras e sobreiros.
79Como quer que seja, no fim de Maio ou começo de Junho, reparando-se bem, já se divisa a bolota como cabeças de alfinetes. A que traz o pé curto considera-se viável – vivedoura – sã e resistente; se mostra pé comprido, reputa-se inferior, de péssimo augúrio, propensa a estragar-se por contingências atmosféricas, como chuvas no Verão, seguidas de calores intensos, etc. Mela e perde-se bastante.
80Em Agosto a bolota de azinho é do tamanho de avelãs, meia envolvida no cascabulho, mantendo a cor verde, primitiva, que em Setembro se modifica, amarelando um pouco, ao atingir maior desenvolvimento, para em Outubro se completar, raiando de escuro – pintana –. Em Novembro escurece por inteiro, com a cor semelhante à das castanhas.
81Depois, em princípios de Dezembro, abrilhanta-se e aloira, após a queda em perfeito estado de maturação. A caída é morosa, variando de árvore para árvore, em análogas condições, aparentes pelo menos. Ao passo que a de umas azinheiras cai logo que amadurece, a de outras conserva-se por Dezembro fora e até Janeiro, e ainda indefinidamente precisando varejar-se para se não avelar e recozer-se em cima.
82Mas, desde que nasce até amadurecer, quanta se inutiliza com o granizo das saraivadas – pedrisco – ou por efeito de doenças, principalmente no período final da criação, em que singa (cai) avariada!
83As chuvadas de Setembro e Outubro açoitam os matos, derrubando-lhes prematuramente muita bolota em agrás – meia verde. Mas nesta altura, já se não estraga em absoluto, porque a aproveita com apetite toda a espécie de gados. Nenhum a desdenha, embora com peco – (deteriorada). E ainda uma madura, mas pendente das árvores, sofre imenso com as geadas grandes acompanhadas de vento do suão. Escaneves (como lhe chama o vulgo) que deixam a bolota como que ardida. Recozida, diz-se também. Mas só a pendente, repito. A já caída nada sofre, antes se conserva perfeitamente no chão não lhe chovendo muito. Quando se molha grela, sim, um pouco, mas estraga-se menos do que estando arrecadada e amontoada em casa de pouca ventilação. Aí arde e sua, isto é, fermenta e apodrece se não se beneficia com voltas amiudadas.
84O sobreiro produz três camadas de bolota: bastão, lande e janeirinha, que se distinguem pelo tamanho e época em que sazonam. O bastão é grosso, escasso, temporão, vindo em Outubro e Novembro. A lande, menos volumosa, constitui a melhor camada, por em regra abundar como nenhuma. Amadurece em Dezembro. Resta a janeirinha, assim conhecida por vir em Janeiro. É a menos importante por miúda e tardia. As três passam por fases e contingências iguais às do azinho, salvo nos estragos do burgo, que, pelo visto, não ataca o sobreiro, sensivelmente.
85Cortiça – Casca grossa, fendida e bastante leve que reveste o tronco e pernadas do sobreiro. Em atingindo um certo desenvolvimento, perde na época própria (Maio a Agosto) as propriedades de aderência, desagregando-se facilmente sem prejuízo da árvore. A qual, descortiçada uma vez, passa a dar cortiça melhor, demorando a criação de cada tiragem oito ou nove anos nos sobreiros novos e dez ou onze nos velhos. A primitiva chama-se-lhe virgem,. É assaz ordinária por grosseira, muito rugosa, servindo apenas para combustível, inferior e desagradável, e para cortiços de abelhas, na melhor das hipóteses. A das tiragens subsequentes à virgem, denomina-se amadia. É a cortiça por excelência, apreciadíssima para diversas aplicações, tendo por isso alto valor no mercado.
86Entre a amadia e o corpo lenhoso da árvore, existe um segundo revestimento menos grosso que o primeiro, que vem a ser a casca propriament dita, também conhecida por enetrecasco.
87Logo que o tronco do sobreiro alcança a grossura igual à da perna de um homem ou mais, usa-se descortiçá-lo da virgem no tempo próprio, preparando-o assim para a boa produção corticeira. No pé entende-se, e não nas pernadas que continuam no estado primitivo, para só receberem aquele benefício anos depois, a pouco e pouco, à medida que se robustecem. O descortiçamento prematuro retarda e prejudica o desenvolvimento da árvore.
88Do princípio de Junho a fim de Agosto procede-se à tiragem da cortiça por conta dos compradores, geralmente com homens experientes assalariados a quatrocentos ou quatrocentos e vinte réis. Trabalho simples a que se procede com o auxílio do machado. Aproveitando quanto possível as fendas naturais golpeiam perpendicularmente nos sítios a descortiçar e à cautela, de modo a não ferirem o entrecasco. Em seguida, com o cabo do machado e um pequeno impulso desagregam a cortiça que, dando bem, salta em canudos e pranchas de maior ou menor volume.
89Após a tiragem, reúne-se em grandes montões em carros ou à carga e fica aí a enxugar uns quinze dias, sendo depois aferida (aparada) e enfardada em costais, que, pesados ou não, seguem para as fábricas e estações do caminho-de-ferro.
90Por via de regra, este produto pertence aos senhorios das herdades, e não aos rendeiros que só por acaso dele dispõem, se representa quantidade insignificante.
91Costuma ser a carga a unidade aceite para os cálculos da produção, e também, às vezes, para o preço da venda. Cada carga regula por oito a dez arrobas, variando o preço, segundo a qualidade, a procura e a cotação. A primeira circunstância varia muitíssimo, dependendo bastante da natureza do terreno que sustenta o sobreiro, seu estado, etc. Mas parece-me não se errar muito atribuindo-se o valor em média de setecentos a oitocentos réis por arroba, justa na árvore sem mais despesas para o vendedor primitivo.
92Também se usa, e talvez em maior escala, o sistema de venda «a olho», em globo, para sair de uma vez ou por diferentes tiragens, algumas em futuro distante – dez anos e mais.
93As vendas adiantadas garantem-se por escritura pública e sinal avultado – um terço, metade ou coisa que garanta bem. Está claro que quanto maior for o adiantamento em dinheiro e o prazo para a tiragem, mais depreciada fica a mercadoria.
94As grandes tiragens são compradas pelos grandes industriais e fabricantes, e as pequenas por uma aluvião de compradores algarvios, que de muitas parcelas adquiridas em várias herdades chegam a dispor de porções importantes.
95Em Abril e Maio começam a aparecer os algarvios, chouteando em anafados machos, aos grupos de dois e três, de herdade em herdade, a farejarem o negócio e a comprarem quanto podem. Por vezes, gueirreiam-se uns aos outros, sem escrúpulos ou considerações.
96Há coisa de quinze anos, toda essa gente fazia contratos esplêndidos, embarrilando os vendedores, que, ao tempo, por inexperientes, desconheciam a importância do artigo. Tal houve então que, julgando vender por uma exorbitância, vinha depois a saber que transaccionara por metade ou dois terços menos do valor real. Imagine-se o desapontamento.
97Hoje em dia já se conhece melhor semelhante especulação. Ninguém ignora quanto a cortiça é procurada e paga por preços que pareceriam fantásticos aos nossos avós, se eles porventura sonhassem semelhante coisa. Porque antigamente quase se lhe não dava apreço. Era tão ínfimo o seu valor que muitos sobreiros velhos, seculares, permaneciam com o tronco e pernadas cobertas de cortiça virgem, cheia de musgo, atestando bem o abandono e desprezo a que os votavam.
98Assim, compreende-se que outrora se preferissem as herdades de azinho às de sobro, exactamente o inverso do que se passa na actualidade. Hoje, o sobreiro é um símbolo de produção. Está para com os arvoredos como a ovelha para com os gados. Uma e outra, despem-se para vestir o dono...
99Dos antigos sobreirais alguns têm sido derrubados para lhes extraírem e venderem o entrecasco, que também vale um dinheirão.
100Mas, para contrabalançar esses arranques – que nem sempre se justificam em absoluto, antes, algumas vezes, representam um expediente de apuros financeiros, para remover embaraços – surgem em quantidade bastante maior, sobreirais novos, extensíssimos, luxuriantes, que aumentam e progridem dia a dia num crescendo espantoso.
101Devo porém advertir que no concelho de Elvas não há esse aumento de riqueza. Os sobreirais aqui, tanto velhos como novos, restringem-se a parcelas minúsculas, insignificantes, relativamente.
102Ostentam-se, contudo, em grande escala nos vizinhos termos de Arronches e Monforte, e ainda em importância maior nos de Portalegre, Crato, Ponte de Sor e outros. E como riqueza de vizinhos, tão caracteristicamente alentejanas, não julgo descabidas estas ligeiras e incompletas referências.
103Lenhas – Resultam dos cortes, dos desbastes, das árvores secas e do raizame das arroteadas. Há diversas classes de lenhas, que se podem englobar em três: a grossa, como madeiros, pitões, rachas, etc.; a mediana, compreendendo, achões, achas e raízes ou cepa – e a miúda, representada por achas pequenas, delgadas. Isto sem falar do chamiço ou chapota que fica da traça, à roçadoira, rebotalho de tudo.
104Os madeiros e pitões são partidos a machado, serrotes e cunhas; as achas e achões, a machado, apenas, e a miúda à roçadoira ou pódoa.
105Como se sabe, as lenhas destinam-se a combustível, já no estado natural, mas «feita» (traçada) já reduzida a carvão para o gasto local e abastecimento dos mercados de Lisboa e outros.
106O gasto da lavoura, compreendendo monte e dependências, consome parte importante, senão toda, como acontece nas herdades de montados pequenos. Só quem presencia esse dispêndio pode fazer ideia da sua importância.
107Noutros tempos em que havia muito mais lenha e bem menos compradores, os terraços dos montes eram ornamentados com medas gigantescas, piramidais, de todas as dimensões, artisticamente erguidas pelos criados de lavoura nas vagaturas. Por este meio armazenavam-se porções avultadíssimas, que assim permaneciam anos, até se derribarem por necessidade de consumo. E além das medas, amontoavam-se a esmo quantidades semelhantes para queimar nos primeiros tempos. Calcule-se, pois, a quanto montaria a totalidade!
108Actualmente acumula-se muito menos lenha e economiza-se um pouco mais, mas ainda se gasta bastante nas lareiras dos montes e na que se dá aos criados, por costume, favor ou condição. E a esta temos de adicionar a que os mateiros furtam de fugida.
109As lenhas de azinho são as melhores que se conhecem. A sua combustão é duradoira, intensa e odorífera.
110Nada mais atraente no Alentejo do que passar o serão de uma noite frigidíssima em volta da clássica chaminé, provida do bom lume de azinho. Conforto delicioso que deixa a perder de vista quantos fogões se inventem.
111Já li algures que a lareira une a família e que o fogão separa-a. Deve ser assim... máximo se o lume for de azinho.
112Antes de se despejar o corte, o carpinteiro, ou outro homem habilitado, vai assinar os paus que pela sua configuração especial servem para «madeira» – isto é, as peças apropriadas a empregar no fabrico de carros e outras alfaias agrícolas.
113Para carros: massas, pinas, raios, miúlos, cãibras, eixos, limões, travessas, cangas (meios e suadouros), etc.
114Para arados: gargantas e pontos (timão); arados (dentes) rabanejos, aivecas, cangas direitas, etc.
115Para diversas alfaias – grades, pegões, esteios, forcados, cangalhos, etc. No capítulo – Alfaias agrícolas – encontrar-se-á a descrição correspondente a estes utensílios.
116Por agora, basta dizer que semelhante madeira segue em bruto para o monte a fim de ser falquejada (desbastada). Se sobeja das precisões da «casa», a de excesso é vendida aos lavradores que a precisam. Mas chega para as encomendas.
117As lenhas a mais do consumo da respectiva lavoura e correspondentes encargos são vendidas ao industrial de carvão ou «feitas» por conta do próprio lavrador. O carvoeiro contrata por vários processos: ou compra por junto «à carga cerrada» tal qual a lenha caiu das árvores, ou por uns tantos réis fixos sobre cada saca ou arroba de carvão que se venha a produzir, ficando a seu cargo as despesas todas. As sacas variam de capacidade.
118Se o lavrador faz lenha por sua conta e risco, vende-a às carradas para as povoações próximas, ou reduze-a a carvão, que fornece directamente aos grandes armazéns, de cento e quarenta a duzentos réis po rarroba, posto no caminho-de-ferro ou no centro do consumo.
119Há ainda outro sistema, misto dos mencionados, que vem a ser o lavrador preparar, reunir e empinar a lenha em fornos, e nesta altura vendê-la em globo ou por fornos aos grandes carvoeiros que por seu turno completam o fabrico.
120As lenhas tinham antigamente valor baixo, quase nulo. Mas aí por 1876 a 1878 subiram bastante, atingindo preços elevados, nunca vistos, que depois decaíram até chegarem à barateza em que estavam há pouco. Presentemente voltaram a subir.
121É de notar que semelhantes oscilações dão-se apenas nas zonas próximas dos caminhos-de-ferro, por efeito da maior ou menor afluência de carvão ao mercado de Lisboa, e quiçá das combinações e acordos dos carvoeiros açambarcadores. Quanto às lenhas distantes das vias aceleradas, os seus preços são sempre insignificantes, assim como permanecem altos nas das regiões muito populosas escassas ou folhas de arvoredo. De onde se deduz serem as lenhas um artigo de valor instável e relativo.
122Dá-se até o seguinte curioso facto: a chamiça que sobeja da traça dá receita importante nas zonas escassas de combustível, como se observa nos arredores de Elvas, onde toda é pouca para a comprarem os burriqueiros do sítio, que em cargas e carros a vão revender à cidade.
123Pois este mesmo artigo, noutros pontos em que superabunda e a população escasseia, como sucede em grande parte do concelho de Arronches, longe de produzir receita, ocasiona despesas. Aí, a chamiça, não obstante facultar-se grátis a quem a queira, sobeja na quase totalidade, tendo de se juntar e queimar para a terra ser limpa e lavrada sem impedimento.
124Como quer que seja, uma carrada de lenha comprada no corte, já «feita», é barata, por mil réis, se for de achas e achões, e não de madeiros e rachas.
125A chamiça ou chapota vale uns trezentos a seiscentos réis a carrada, quando muito, onde tem valor, entenda-se.
126Nas lenhas e carvão – carvoarias – empregam-se centenas dos melhores jornaleiros das freguesias próximas, como Santa Eulália, Assumar, Alegrete, Arronches, etc., e também os de outras distantes, sobretudo os do Pego, que têm o epíteto de pegachos.
127Os de Santa Eulália passam por muito desembaraçados e sabedores, a ponto de serem tradicionais as suas aptidões no género. Tanto que, desde tempos remotos, os habitantes daquela freguesia são apodados de carvoeiros. Apodo com que alguns bisonhos encordoam, e de que os sensatos se riem por conhecerem outros mais deprimentes, aplicados aos moradores de povoações vizinhas.
128De Janeiro a Junho, «fazem-se» as lenhas. Cada negociante carvoeiro dispõe de uma, duas e três camaradas de quinze a trinta homens, ao salário de trezentos e sessenta a qutrocentos e vinte réis secos por «quinzena» ou temporadas de treze ou vinte e um dias. A alteração de preços só se efectua no começo da quinzena à segunda-feira de manhã. As tabernas das localidades acumulam nesse dias as funções de bolsa para a cotação do salário. Por entre a matadela do bicho, com um governo de aguardente ou duas decilitradas, sobem ou descem as ofertas dos manageiros, reguladas pela carência do pessoal ou pela abundância, no caso de baixa.
129A alta também às vezes deriva do álcool que esquenta o miolo dos encarregados basófias. A pinga e a emulação predispõe-os a despiques de ofertas, a ver qual apanha melhor familha, sobretudo se têm ousadia (carta branca) dos amos. Os assistentes ouvem as propostas mas fingem-se moucos, para entreterem tempo e fazer jogo. Quando muito, dizem: “Vou para quem mais me der..." “Quando o pau dá, tira-se-lhe a casca, etc.”
130E nisto passam a manhã, a «fazerem praça» e beberricarem em grande algazarra, até que, meios tortos, se decidem a sair, seguros de que o preço não trepa mais.
131Ajustados finalmente, vão a casa, aviam os mantimentos, e, em conclusão, lá marcham para o trabalho, de sertã na mão, e saco às costas. A sertã é utensílio típico.
132As mulheres e mães de alguns acompanham-nos à saída para se certificarem em absoluto do destino que tomaram. E ao verem-nos já distantes, fazem comentários sobre os gastos de cada qual, no vinho e no tabaco.
133Entretanto, aguardam-nos saudosos até ao regresso, que se efectua na manhã de sábado, fim de quinzena, ou na última sexta-feira se foram por temporada de três semanas.
134Carvão – Cada camarada, com seu manageiro, faz a traça para carvão, dividida em grupos a trabalharem no mesmo corte. Um deles, munido de cunhas, alviões, marrão, serrote e «malhos» (machados), corta a lenha grossa, como madeiros, pitões, pernadas, etc. Os madeiros custam um trabalhão insano e paciente, que só a perícia consumada consegue abreviar.
135Outro grupo, somente com os machados, prepara de pronto e a golpe certeiro os achões e achas, e ainda outro ou o mesmo, mas à roçadoira (podoa), leva a eito e de firme a restante gandaia miúda e o que se pode apurar da chamiça.
136Simultaneamente, ou no fim, toda a lenha preparada acarreta-se em carros de muares e bois para os diferentes sítios de «boa caída» (baixas) em que se hão-de erguer os respectivos fornos. Para cada um distribuem-se de trinta a sessenta carradas.
137Os que ficam com vinte ou menos, chamam-se-lhes bagageiros. Cada forno empina-se pelo seguinte modo: Primeiro faz-se-lhe a «cama» colocando na base os grandes madeiros, cujos intervalos são preenchidos pelos pequenos. Depois, sobre a lenha grossa, os achões, as achas, e por último a gandaia miúda, previamente desbilrada, isto é, cortada em pedacinhos, ali mesmo no acto da enfornação. Com eles se preenche e remata artisticamente a superfície do forno – figura oblonga com um pequeno vão na base que «respira» pela «boca» e «cuada».
138Concluída a empinação, aterram-se ou tapam-se os fornos em termos de se lhes largar lume e «arderem» por quinze a vinte dias, que tanto demora o período da carbonização, chamada cozimenta. Durante esse tempo adoptam-se as precisas cautelas e vigilâncias, de maneira que, se por acaso rebenta o forno, irrompendo as chamas, se possa abafar imediatamente com mais terra, por evitar prejuízos totais ou parciais.
139Após a cozimenta, extrai-se o carvão a pouco e pouco, separando-se dos tiços para ir arrefecendo e se aprontar o imediato transporte em sacas ou a granel.
140Tiços, chama-se aos pedaços de lenha mal carbonizada que por isso tem de ser recozida.
141Para o carvão sair bom é necessário ficar bem cozido, o que se conhece se der toada de sineta quando cair um ou outro. E o superior, é o de canudo, de achas medianas, preferindo-se o de azinho ao de sobro. Podendo ser, as lenhas de cada são enfornadas à parte.
142Desde o largar do lume até final, este fabrico confia-se a homens experimentados – os forneiros – sendo o de mais confiança arvorado em mestre. Cada negociante emprega dois ou três forneiros, à jorna de quatrocentos e cinquenta a seiscentos réis secos.
143Escuso de frisar o aspecto desses homens cheios de pó escuro, acumulado durante semanas, sem limpezas de nenhuma ordem. Excedem em repulsão qualquer negro da Cafraria. Mas trabalham satisfeitos, comendo e dormindo admiravelmente, como se estivessem muito limpinhos.
144Rama – É o folhedo da lenha. Enquanto verde e tenra, aproveita-se para forragem dos gados bovino, caprino e lanígero, que, de propósito e em determinadas horas, se conduz e «chega» a comê-la pendente dos ramos, caídos no próprio local do corte, nos meses de Dezembro a Março. A fome obriga as rezes a aceitar com avidez esse parco sustento, quando passam «a meia tripa». Mas rejeitam-no ou desperdiçam-no se se abastecem com melhor coisa. Salvo os caprinos, que nunca a desdenham em absoluto, pelas suas tendências roedouras.
145Se como alimentação exclusiva, é insuficiente, como acessório e aperitivo de outras medianas e melhores tem valor apreciável. Aquece o gado, afirma-se no campo.
146Que para as cabras, crê-se ser o complemento de uma boa pastoria. Com erva bastante e rama em fartura, põem-se em condições de produzirem muito leite.
147Nos grandes cortes de «matos» intensos, sobeja a maior parte da rama. A sua enorme quantidade nunca está em relação com os gados do lavrador, e nem com o de alguns vizinhos que, não a possuindo, aproveitam a alheia que lhes facultam.
148Precisamente o inverso do que se passa nos montados pequenos de pouco «mato». Aí a rama é comida «por conduto» derribando-se a, pouco e pouco, com receio de que não chegue para as necessidades do Inverno, agravadas pela escassez de pastos.
149A de sobro é melhor e mais tenra que a do azinho. Mais macia, dizem os ganadeiros. E entre a de azinho prefere-se a das azinheiras à dos chaparros, que por ser áspera chama-se-lhe carrasquenha.
150Encabeçamentos ou lotação – Para se aquilatar da sua importância, e também para o disfruto ou venda das novidades em criação, os montados avaliam-se pelo número de «cabeças» de porcos adultos que a bolota respectiva pode engordar. Por isso, a tais avaliações chamam-se-lhe encabeçamentos.
151Por «cabeça» ou «cabeça inteira» considera-se o porco já criado, não inferior a dois anos; o de ano a dezoito meses passa por «meia cabeça».
152Para a completa engorda da cabeça inteira julgava-se outrora bastante um meio de bolota. Era insuficiente para o porco grande sair «feito» – a tombar de gordo. Hoje está reconhecido serem necessários noventa alqueires.
153A bolota calculada para a engorda de cada meia cabeça parece que devia ser a metade da da cabeça inteira. Mas não é. Bem averiguado reconhece-se que monta aproximadamente a dois terços, como também ascende a dois terços o valor e peso do bácoro de ano a dezoito meses, comparado com o do farroupo superior a dois anos, se o desenvolvimento e corpulência de ambos estiver em relação com a idade.
154Em rigor, isto de cabeças e meias cabeças não passa de unidade convencional, arbitrária, como farei ver no capítulo referente ao gado suíno.
155A bolota atribuída a cada cabeça de montado vale doze mil réis aproximadamente. Nos anos escassos pode elevar-se até a catorze ou quinze.
156Como observei no capítulo Herdades, cada montado grande pode fazer em média cem a cento e cinquenta cabeças; outros oitenta a cem, os vulgares cinquenta a oitenta, e os pequenos de vinte a cinquenta. Menos de vinte, não se consideram montados de lote. Um montadito, apenas. E se o arvoredo peca por ralo, diminuto, muito disperso, nem por montadito passa. Chamam-se-lhes árvores arredias sem importância de maior.
157Todos os montados e árvores que se distinguem em produção certa, mediana ou abundante, classificam-se de castiços. Os de natureza oposta, de ventureiros.
158Noutros tempos, havia homens «entendidos», afamados, a quem os lavradores incumbiam da avaliação das boletinhas.
159Era quase sempre trabalho gratuito, mas honroso. O vulgo que via os avaliadores atravessando os montados a mirarem as azinheiras «contra o sol» para lhe verem bem o fruto, olhava-os com respeito, como homens de tino, de lume no olho e tacto na cabeça. E eles, vendo-se alvo de reparos lisonjeiros, sentiam-se ufanos a fazer os encabeçamentos. Depois, davam conta da incumbência em termos claros ou ambíguos conforme as convicções que sentiam.
160Se acertavam, cresciam-lhe os créditos; se erravam, haviam pretextos de sobejo para justificar o engano.
161José Francisco Moura, lavrador no termo de Arronches, foi o avaliador de maior nomeada no seu tempo em todo o distrito de Portalegre. Era um homenzarrão, sobre-negro, de meter medo a um exército, com força prodigiosa, que só se emparelhava à sua grande bonomia e génio galhofeiro. Conta-se que de uma vez tirara a pulso de um poço um novilho de dois anos que para lá havia caído.
162Pelos intróitos do S. Miguel e depois, era curioso ouvi-lo e vê-lo escarranchado em bojuda égua, de monte em monte, a informar os compadres e amigos. Todos o escutavam com particular agrado não tanto pelos informes que prestava como pelas facécias que dizia. Por entre os pinches (cômputos) que botava a este ou àquele montado, saíam-lhe apartes picarescos e historietas das suas «alarvidades» em forças, como ele próprio as classificava. Um alegrista original, fazendo gala em passar por «bruto», sem o ser. O inverso de muitos...
163Ao presente, procedem às avaliações os guardas das herdades respectivas, os porqueiros batidos, nos terrenos, e até o lavrador.
164A prática, como o estar-se muito visto nos matos, a observação constante, e, sobretudo, a comparação da novidade existente com outras anteriores, habilita a cálculos melhores do que o do avaliador de ocasião que, embora, perito, erra com facilidade.
165Eis uma nota das frases usuais na apreciação dos montados por motivo de encabeçamentos. Do conceito de cada uma, ressalta, evidentemente, o caso a que se aplica.
166Nas novidades escassas: «azinheiras, sim... mas bolota... viste-a... Nada de jeito... Um “pingo”, nas melhores... não, em todas... Muitas, nem raça... Vá-se lá avaliar isto... Se lhe botarem trinta, não faz quinze... Assim vê-se um homem “atólico”...
167Nas medianas: «Escapa... podia estar melhor... mas consola... Está às “cordas”... Numas partes, nada, noutras muita... Não é carga geral... Meia novidade... Mas vamos... tomaram muitos...»
168Nas boas: «Tem bastante... vê-se uma à outra... E sadia... segura... Todas têm... Nalgumas, é à esgarra...»
169Nas abundantes: «Coisa asseada... Está “reviradinho”... Em muitas aos cachos... a não poderem com ela... mais do que folhas!... É uma “nobrezia”... Um “esbarrunto”... este ano põe marco!... Vê-se de longe, às pinhotas... Bem podem vir porcos... Se lhe fizeram cem, metam-lhe duzentos... Chega a tudo!...»
Fruição
170Do «S. Miguel» aos «Santos» a bolota que vai caindo é comida por todo o gado indistintamente, sem estorvo de ninguém. Mas o melhor quinhão cabe aos suínos. Em vindo Outubro os porqueiros largam-lhe brocha, e eles, os da tromba, sentindo-se à vontade, ei-los à vadia, a baldão, em grupos e a sós, a correrem como galgos por essas herdades fora, dos donos e das alheias. É a malta.
171Cada porco come por onde quer, estragando o que lhe apraz. Se se enxotam uns, aparecem outros e outros, cruzando-se por toda a parte, ao cheiro da moleza (boleta). Os que à noite recolhem à malhada, fazem-no por instinto, livremente. Mas a maioria fica «a monte» onde lhe anoitece, exactamente como os animais bravios!
172Bastante primitivo este costume de malta, com os seus ressaibos de socialismo, que muitos lavradores reprovam, mas que outros aplaudem.
173Tem acabado nalguns concelhos, mas noutros, como o de Arronches, mantém-se inalterável. É estilo, diz-se.
174Geralmente falando, todos os porcos lucram com a malta, que os melhora a valer, sem despesas sensíveis. Mas, em troco, extraviam-se alguns, cuja falta só se reconhece quando se acaream no final da época. Os lavradores que por este motivo perdem um ou outro, pagam assim as custas dos seus e as dos vizinhos felizes, que nenhum se lhes sumiu. Vai a quem toca. É o caso do Deus disse: «quem ganhasse que se risse».
175Por diferentes sistemas se usufrui a boleta.
176Primeiro: na egorda dos porcos – varas. É o mais comum, principalmente nos arvoredos de importância. Segundo: com o gado suíno «de vida» – corridas. Adopta-se nos montados pequenos, de árvores arredias. Terceiro: apanha-se para venda ou consumo do próprio lavrador. Apanha-se geralmente em todos os montados, mas só em parcelas pequenas, relativamente. Quarto: vendendo-se a novidade pendente em globo, no todo ou em parte, por ajuste particular, ou em hasta pública, aos lavradores da província e aos espanhóis, em resultado de anúncios nos jornais e nas portas das igrejas. Na feira de S. Miguel, em Sousel, costuma haver bastantes anúncios deste género, afixados no exterior das igrejas próximas do recinto da feira. As transacções desta natureza usam-se principalmente com os montados das coutadas dos municípios e dos da Casa de Bragança. Dos de particulares, só se vendem alguns de lavradores pequenos ou medianos, que não querem ou não podem ter porcos. Ainda há outro processo de aproveitamento, consequência forçosa de circunstâncias extraordinárias em anos anormais, escassos de ervas e pastos. Refiro-me aos montados que se lhes disfruta a novidade com gado de qualquer espécie, ou de algumas simultaneamente, para os melhorar com rapidez, ou salvar de uma crise de forragens que lhes comprometa a existência. É, por conseguinte, um facto excepcional que não constitui uso. Dadas estas noções, entrarei nos pormenores indispensáveis ao exacto conhecimento dos costumes vulgares. Dos mais comuns, que dos restantes basta o que ficou dito.
177Primeiro: Engorda de porcos em rebanhos de maior ou menor número com o nome de varas.
178No primeiro de Novembro, começa a guardaria da bolota, que afinal só se executa a rigor uns três dias depois. Entretanto há que fechar os olhos a uma ou outra cabeça tresvairada – perdida – que ainda se não agrilhou ao rebanho, em regresso da malta. Conseguida enfim a evacuação, dispõem-se as coisas de modo que as «folhas» fracas em bolota, destinam-se ao piso, e as melhores ficam de solo, guardando-se o rigor máximo.
179As do piso passam logo a ser corridas pelos porcos, motivo porque se lhes dá aquela classificação. É a traita habitual.
180As do solo deixam-se de reserva até acabar a comida das outras. Depois largam-se-lhes também, mas em termos de aproveitamento relativo, somente às horas do almoço e ceia para comerem «à farta».
181No final da época, ou antes, se se reconhece que a bolota sobeja da vara, ou se mesmo não sobejando é indispensável alguma para outras aplicações, apanha-se a que excede ou a que se precisa. Toda a restante que os porcos estraçoam ou que rejeitam por muito amarga, miúda, ou podre, constitui a migalha que se aproveita com suínos «de vida», os quais, aí dos meados da época em diante, entram também no «mato» atravás da vara, mas «correndo» somente a terra de que já foge o gado gordo.
182Os porcos da vara saem «feitos» (gordos) de 15 de Janeiro em diante, até 10 ou 20 de Fevereiro. Se demoram mais, entraram tarde, ou encurtaram-lhe a comida em princípio.
183Quando a bolota acaba antes de meados de Janeiro, o gado sai ordinariamente «por fazer», em nutrição incompleta. Ou a comida foi menos do que se calculava, ou os porcos excederam ao encabeçamento.
184Segundo uso: Aproveitamento com «gado de vida», corridas e porcas de criação.
185Nestas circunstâncias não se destina piso nem solo.
186Os rebanhos correm o «mato» em voltas constantes, atrás ou adiante dos porqueiros, que de varejão ou manganilha em punho batem o arvoredo, quando a bolota lhes escasseia. Necessidades bastante alásticas por via de regra, mas sempre de valor e importância muitíssimo menor que as do da «vara».
187Aos bácoros dá-se-lhes a manterem-se regularmente, para crescerem e medrarem. Com os farroupos e porcas não há sombras de generosidade. Comem «por tempero», «a consolar». O bastante para se irem «sustendo» em termos de passadio sofrível. Tanto, que em a bolota caindo muita de repente, ao efeito de ventanias e chuvadas, encurtam-se as voltas, restringindo-as quanto possível.
188Mais podia acrescentar sobre a criação e engorda dos porcos nos «matos». Mas isso cabe melhor na parte que tenciono dedicar aos gados. Aí relatarei pois esses detalhes com o desenvolvimento que merecem. Os que deixo referidos, saíram por associação de ideias e factos que não podia esquecer agora. Resta o apanho.
189Além da bolota existente nas parcelas do solo, evitadas dos porcos, recolhe-se mais a seguinte: a das ribanceiras dos ribeiros, para não ser arrastada pelas cheias; a das estradas, subtraindo-a à cobiça dos transeuntes, e por último a das semeadas (searas), se o dono não manda «comê-la» com os porcos, pelas manhãs de geadas intensas em que a terra está dura, inacessível à fossa. Portanto, em condições de se não estragar a sementeira com a passagem dos suínos.
190O apanho efectua-se com mulheres, de Dezembro a Fevereiro, ao jornal de cento e quarenta réis (secos), ou de empreitada a quinze ou vinte réis o alqueire. Por empreitada só se toma no arvoredo basto de boas soladas.
191Por um ou outro ajuste, formam-se ranchos nas aldeias, que saem para os montes durante semanas e quinzenas. O mulherio marcha satisfeito, principalmente as solteiras. Bem sabem que o serviço lhes proporcionará serões estúrdios e bailaricos alegres com os rapazes que namoram. Felizes criaturas que após um dia de trabalho, muitas vezes de chuva e frio intensíssimo, ainda sentem pachorra, para se entreterem com folias!
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192À maneira que a bolota se apanha entra para cestos, que se despejam nos sacos, os quais seguem em carros de muares para os celeiros do monte de onde se vai consumindo ou vendendo. Para a venda sobejam os compradores, desde que o preço não seja exagerado.
193Antigamente, alguns produtores importantes possuíam casas – secadeiros– para secarem a bolota ao calor de lumes brandos. Avelavam-na, e por conseguinte preparavam-na em condições de conservação demorada. Viam nisso melhor sistema de aproveitamento pelo ano fora.
194Hoje está banida a usança, por ser desnecessária, atenta o aumento do consumo.
Contingências prejudiciais
195Como todas as coisas, os montados e suas respectivas novidades estão sujeitos a prejuízos grandes, além dos referidos. Os mais sensíveis, são os roubos dos boleteiros, as invasões dos pombos bravos, e a doença chamada burgo.
196Boleteiros – Assim se classificam os homens que, no tempo próprio, tomam por indústria os assaltos aos montados para furtos importantes de bolota que depois vendem como sua. Por enquanto, só lhes dedico a referência. No capítulo Malfeitores terão as honras dos pormenores.
197Pombos – Causam perdas extraordinárias. Anos vêm, em que de Dezembro em diante arribam aos bandos sobre os montados cuja bolota devoram audaciosamente em quantidades incríveis.
198Só se pode avaliar sabendo-se que um pombo ingere, em média, seis a oito bolotas. Calcule-se por aqui quantas comerão milhares deles. O que vale é que semelhantes arribações são pouco frequentes e nunca demoradas. Quando os pombos se mostram assim, mudam de poiso a toda a hora, tomando rumos diversos em voos altíssimos de caprichosas evoluções. As dormidas no mesmo sítio pouco se repetem.
199Nos fins do ano de 1870 e princípios de 1871, o concelho de Elvas e limítrofes foram acometidos por uma tal invasão de pombos bravos que os nascidos não se lembravam de outra igual ou semelhante, sequer. Nuvens deles caíam como avalanches sobre as azinheiras e solos, levantando em algumas horas dezenas de moios de bolota.
200Por toda a parte se viam nuvens de pombos nos montados e fora deles, como praga semelhante às do Egipto. Os lavradores traziam criados a espantá-los com tiros e foguetes. Por seu turno, os caçadores não cessavam de atirar também, obtendo resultados espantosos ainda hoje memoráveis.
201Foi um acontecimento sensacional que aterrou os lavradores. Felizmente nunca mais se viu outro semelhante. A gente do povo, que tudo quer explicar, atribuía o caso à guerra franco-prussiana. «Lá pelo teatro da guerra os pombos sentiram-se tão apavorados com o tiroteio dos beligerantes que em massa debandaram para cá.» Não podia ser outra coisa, dizia o povo.
202O burgo – De há muito que os montados de azinho (não os de sobro) de certas regiões e limitadas zonas, sofrem uma doença devastadora, motivada por um pequeno insecto a que vulgarmente se chama burgo. O bichinho, esse desenvolve-se nas árvores, durante a Primavera, por entre o «olho» ou gomo do folhedo tenro, e de aí, passando por diferentes metamorfoses, generaliza-se pelo arvoredo todo, estragando-lhe o fruto embrionário – a bolota – e as próprias folhas. E prossegue na sua marcha destruidora, até ao Verão, em que morre, deixando as azinheiras seminuas e enegrecidas. A tal ponto estragadas que a produção reduz-se a menos da décima parte da média ordinária senão a zero, por dois ou três anos consecutivos.
203O burgo que se manifesta numa dada zona aumenta progressivamente nos primeiros anos, atingindo proporções fabulosas nuns, reduzindo-se noutros, até que ao cabo de oito, dez ou doze anos declina manifestamente, acabando por se extinguir de todo, sem se saber por quê. «Levanta», diz-se.
204Os montados novadios de terras vermelhas são os mais atacados, e menos os das arenosas.
205Supomos que se desconhecem as causas primordiais que determinam o burgo, e não nos consta que haja antídoto eficaz para o combater e destruir.
206Quando entre a população rural se comenta o caso e se procura conhecer a sua origem, após mil conjecturas fantasiosas conclui-se assim:
207«Ora, que sabemos nós; é calibre do ano...!» E fica-se nisso, concordando todos. Eu também concordo, à falta de melhor razão...
208De positivo, só se sabe que, tendo alguns agrónomos visto os montados invadidos, nada consta lhes fizessem de proveitoso, ou que pelo menos aconselhassem os lavradores a qualquer providência de jeito.
209O que, a meu ver, ninguém considera desdouro para os ilustres profissionais. Em assuntos de tal ordem, sem dúvida complexos, quaisquer tentativas para tratamento prático, exequível e vantajoso, sob o ponto de vista económico, hão-de esbarrar em dificuldades e embaraços invencíveis, que esterilizam os melhores desejos.
210Nota curiosa: Antigamente, havia lavradores que pediam e conseguiam dos párocos irem benzer-lhes e exorcizar os montados para os preservarem do burgo.
211«Era uma fé» - explicavam eles a quem mofava da esconjuração!... Gente ingénua, sempre propensa ao sobrenatural e maravilhoso...
*
212Outras doenças de somenos importância acometem as azinheiras e sobreiros, sobretudo estes.
213De resto, em todos os montados, e nuns mais que noutros, morrem anualmente algumas árvores – facto normal a que se não liga importância.
Longevidade
214É bastante longa a vida das azinheiras e sobreiros. Consequentemente, a sua criação e desenvolvimento é assaz demorada.
215No quase estacionamento da idade adulta permanecem dezenas e dezenas de anos, e mais longo ainda é o período da decadência que decorre lentamente através de séculos. A azinheira sobretudo, é de uma longevidade incalculável, se causas fortuitas ou estranhas lhe não cortam a existência. Velha, mutilada, carcomida e seminua – um gigante reduzido a pigmeu, corcunda e manco – exibe a sua decrepitude grotesca, ante o desfilar de muitas gerações. Por último, já sem préstimo, com as raízes podres e o esqueleto escalavrado, cai enfim agonizante, ao impulso de um vendaval de Inverno ou ao golpe rijo do machado vulgar. Desse mesmo instrumento que tantas vezes a limpou durante séculos, que lhe robusteceu a vida nas épocas de prosperidade, mas que depois a foi reduzindo, até por último lhe abater o tronco e a sua valetudinária existência. De quatrocentos anos talvez, e quem sabe se de muitos mais...
Notes de bas de page
1 Em herdades estranhas ao concelho de Elvas também existem carvalhos; por darem bolota igualmente se incluem nos montados. Mas a sua quantidade é bastante diminuta em relação ao azinho e sobro.
Ainda em menor escala encontra-se em um ou outro montado umas árvores raras que o vulgo chama seriqueiros. São como que a transição do azinho para o sobro. A casca da lenha e a bolota assemelham-se às das azinheiras, mas a folha parece-se com a do sobreiro. Dão pouca bolota.
2 Estas excepções consistem nas plantações e sementeiras de sobreiros que se têm realizado em alguns pontos, como por exemplo na tapada real de Vila Viçosa e em uma ou duas herdades do concelho de Elvas. Nada, comparativamente, com a chamada criação espontânea.
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