4 O suq das vaidades
Escolhas e performances corporais femininas em Marrocos
p. 54-71
Texte intégral
1Este texto fala de um grupo de mulheres marroquinas que procuram sobreviver num mercado difícil. Conta a sua destreza social num mundo de fracos recursos económicos e abundância simbólica, onde não hesitam em lançar mão, nas suas escolhas e performances corporais,1 da modernidade ou da tradição, conforme mais lhes convém. Tradição e modernidade existem, de facto, enquanto categorias de representação e conceptualizadas como tal, embora na prática múltipla das estratégias quotidianas se desdobrem e esvaziem de qualquer interpretação monolítica.
2Não pretendo alargar as ilações aqui construídas à enormidade do mundo islâmico e nem sequer a outros estratos sociais, géneros ou contextos. Penso, como Eickelman, resumindo Geertz, que
o laço entre a unidade de estudo do antropólogo e o topo mais vasto não é o laço que une microcosmos a macrocosmos — como foi muitas vezes entendido ingenuamente por anteriores gerações de estudos de comunidade —, mas sim o de uma área cujo estudo permite a elaboração de hipótese em torno de certos processos culturais (Eickelman, 1989: 21).
3O termo constelação parece-me sugestivo para definir aquilo que entendo como unidade de estudo do antropólogo porque lhe dá uma coesão interna ao mesmo tempo que lhe concede abertura para dialogar com outras constelações, em outros contextos — temáticos ou geográficos — permitindo a pouco e pouco construir um mapeamento de culturas.
4O universo a que me refiro forma uma constelação baseada numa rede de vizinhança, parentesco e amizade feminina, criada com base em porções de redes preexistentes, mas tecida em torno de mim, durante o trabalho de campo que desenvolvi entre 1991 e 1993 em Marrocos. Esta rede (egocentric network) foi constituída ao longo dos vinte meses em que vivi num bairro popular da medina de Salé,2 e, ao que sei, sobreviveu à minha partida. As mulheres que a constituem são todas muçulmanas convictas e praticantes; árabes e/ou berberes; emigrantes da L’arubia3 (campo, província) de primeira ou segunda geração; filhas, esposas ou mães de pequenos artífices ou funcionários públicos, algumas com ambições a serem mais do que isso, viúvas ou divorciadas servindo como criadas em casas estrangeiras ou da bourgeoisie de Rabat, ou constrangidas à prostituição; quase todas sabendo escrever, todas arabófonas e muitas conhecendo o francês, muitas das jovens com o ensino básico, algumas no ensino liceal, muitas com desejo de emigrar, raras com ambições universitárias ou optando pragmaticamente por pequenos cursos técnicos (turismo); vizinhas umas das outras, amigas de algumas.
5Utilizarei, ao longo do texto, descrições sumárias de situações vividas durante a minha estada em Salé que possibilitem um adensamento descritivo (Geertz, 1973) da realidade etnográfica a que dizem respeito. Elas servirão o argumento de que o Islão, tal como se demonstrou compatível com a modernização (contra as expectativas de Weber e seus seguidores, cf. Turner 1994: 78), pode acolher, contextualmente, práticas e performances que entendemos como típicas da nossa pós-modernidade.4
Tradition says…
6A tradição islâmica, dizem os manuais, exerce a sua força reguladora sobre dois objectos preferenciais: o corpo e a mulher. O corpo da mulher é, então, duplamente constrangido pela religião. Ele é sujeito ao silêncio, à contenção, mas também a uma ritualização constante, prescrita meticulosamente pela purificação a que os ritmos femininos obrigam periodicamente. As mulheres em estado de impureza maior — decorrente das actividades sexuais, por exemplo — devem fazer as suas abluções no hammam.5 Isso implica, por um lado, a socialização da sexualidade e, por outro, a publicitação da virilidade do marido, que, por isso, a deixa ir livre e frequentemente aos banhos. Bastam estas pequenas observações — às quais poderíamos juntar muitas mais, sobretudo no campo inesgotável das categorias do puro e do impuro—para nos apercebermos de que, ao lado das imagens eróticas difundidas por um orientalismo que, ainda hoje, marca o nosso imaginário relativamente ao mundo muçulmano, existe um discurso islâmico relativo ao corpo que o regula, constrange e define quase a um nível ansiogénico. Em todo o caso, e aceitando a postura de Bouhdiba, “o Islão é reconhecimento, e não desconhecimento, da sexualidade” (Bouhdiba, 1975: 127); o corpo sempre constituiu, ali, um lugar de crenças e práticas reguladoras da identidade, e, na verdade, alguns dos pressupostos que Weber primeiro e Foucault depois encontraram exclusivamente no Ocidente para o despoletar do corpo na modernidade e da sua importância na definição pessoal de auto-identidade, sempre residiram no discurso islâmico. Ao afirmá-lo, repetimos apenas aquilo que Turner afirma para o cristianismo: “O corpo sempre foi, nalguns aspectos, um projecto, pois requer disciplina, vigilância e regulação” (Turner, 1994: 192).
7Para compreendermos, então, as performances corporais actuais no quotidiano contemporâneo urbano muçulmano, sem as entendermos automaticamente como simples importações ocidentais, temos, em primeiro lugar, de aceitar que a tradição islâmica (tal como o Ocidente cristão) contém em si disposições favoráveis à constituição daquilo a que veio a designar-se, no quadro da alta modernidade (Giddens, 1991), pelo corpo como projecto.
8Mas a tradição, para as mulheres de que falo aqui, não é apenas o Islão. O seu corpo é marcado, por vezes draconianamente, por outras inscrições de simbolismo público — resquícios da pré-modernidade, para utilizar a linguagem dos sociólogos da pós-modernidade —, da filiação tribal, género e estatuto, que são estranhas à religião. Na verdade, a tradição assimila atitudes que lhe são mesmo contrárias, como a da prática da tatuagem, da magia (shur), das performances de possessão, da medicina tradicional e outras. E quanto mais popular, mais parece a religião ter treinado a aptidão à bricolage entre ortodoxia e heterodoxia, entre universal e local, entre local e importado. As mulheres, em terras de poucos recursos, sempre foram peritas em fazer a colagem das técnicas e dos motivos que lhes chegavam por diferentes vias. Copiaram os trajes andaluzes, os motivos dos tapetes de outras paragens, os movimentos de anca de danças longínquas. Desde sempre que o corpo, sobretudo o feminino, no Magrebe, foi palimpsesto das escritas mais francas e eclécticas.6 Mas, mais do que isso, também, e como Chebel (1984) entre outros bem o demonstra, desde sempre que essa escrita no corpo foi transformada em fala de sedução. O uso do véu e dos olhos sublinhados com khul são disso o emblema mais turístico. É preciso então aceitar em segundo lugar que, para compreendermos as performances corporais actuais no quotidiano contemporâneo magrebino, sem as entendermos novamente como simples imitações ocidentais, temos de reconhecer a capacidade de bricolage e reciclagem que a tradição, sobretudo nos meios populares e, mais ainda, femininos — aqueles que detêm um capital social e económico menor —, potencializa ao nível das necessidades de sobrevivência. Isso permite uma melhor compreensão da adopção pacífica das práticas em patchwork, sobretudo no que diz respeito às técnicas corporais, que nos habituámos a entender como típicas da “nossa” pós-modernidade.
9Acrescentando a tudo isto importa, no entanto, lembrar que, na linha daquilo que Foucault bem explicitou, a intensificação da regularização e do poder sobre o corpo aparece associada ao desenvolvimento demográfico e urbanístico novecentista. Ora os processos colonial e pós-colonial no Magrebe repetem e acentuam esse tipo de controlo, que se exprime, entre outras formas, pelos projectos internacionais de planeamento demográfico, desenvolvimento médico-sanitário, etc.7 Dito isto, ao quadro local da tradição expressa na sua vertente islâmica e na sua vertente local, já por si predisposto a uma cultura em que o corpo se afirma como importante na definição e percepção das identidades, convém acrescentar os processos típicos da modernidade que, por via do processo colonial e de globalização, se lhe aliam.
Tradition is not what it use to be…
10Miriam e Sumia, a sua melhor amiga, entraram com baldes, toalhas, henna, gliasul,8 e todo o aparato com que se equipavam semanalmente para ir ao hammam, pedindo-me para tomar banho em minha casa (a única no bairro com um duche moderno porque o antigo locatário trabalhava numa empresa de sanitários), dizendo que isso era muito melhor do que ir ao hammam. Naquele momento, eu, que à partida pensava abordar os banhos públicos como um dos espaços privilegiados de interacção feminina, vi literalmente o meu objecto de estudo ir por água abaixo. Felizmente, nem todas as mulheres tinham o mesmo à-vontade que elas para mo pedirem (embora outras viessem a fazê-lo) e, além disso, a minha humilde casa de banho9 veio a mostrar-se insuficiente para algumas das funções que o hammam ainda preenche: o da convivência e coscuvilhice.10 Mesmo assim, Miriam e Sumia passaram a alternar as lavagens em minha casa com as surtidas aos duches e hammama-s do bairro. Decidi aproveitar profissionalmente a ocasião e ia, com a sua ajuda, preenchendo o meu caderninho de glossário com os nomes dos cosméticos. Lembrei-me, então, de que tinha uma encomenda de uma amiga que me garantira ter comprado em Marrocos uma espécie de henna preto, que eu desconhecia. As mulheres, esses repositórios obedientes da tradição, depois de terem chegado a acordo sobre o que poderia ser, ditaram-me, maternalmente, o termo na sua língua. Só quando fiz a transliteração do “árabe” compreendi o que tinha escrito: “Kerastase”!
11Histórias como esta são cada vez mais frequentes na literatura etnológica que, para desdramatizar angústias se entretém a parodiar as suas próprias inépcias. Sabendo isso, rapidamente me conformei com as características menos exóticas do meu objecto de estudo. Mas passei então, levianamente, para outra perspectiva (não menos exótica…): aquilo era a cultura do kitsch — pensava entusiasmada —, da colagem, do barroco, da forma avassaladora sobre um conteúdo impotente, da aldeia global, engolindo aos poucos a tradição. Isso era a cultura, ali, agora. Passei a divertir-me quando saía com as raparigas e era obrigada a parar nas pequenas montras da ksairia11 para observar as tqxita-s12 bordadas à mão com fio de ouro sobre uma estampagem que exibia a assinatura multiplicada de Pierre Cardin, a que as costuras eram indiferentes. Deleitava-me quando no rol de presentes do noivo, na hedia, que se ostentava numa carroça pelas ruas da medina, aparecia ao lado dos cinco pães de açúcar, dos dois quilos de henna e do borrego, uma samsonite avec les cosmetiques. Substituíra o purismo por outra forma de paternalismo ao olhar para as antenas de televisão que já só competiam em altura, porque em quantidade há muito ganhavam, com os imensos alminares das pequenas mesquitas omnipresentes. Deixava-me levar pela ideia básica, apriorística e confortável de que “mudam as formas mas fica, ainda, a estrutura”. Comportava-me, enfim, como um turista, o turista actual, sofisticado, aquele que já não procura o puro, o autêntico, porque já descobriu que, em todo o caso, isso só por encomenda, mas que se deleita na ingenuidade, na naiveté que substitui os camelos por camiões nos tapetes eternamente coloridos. Caía, então, na pior armadilha do relativismo pós-moderno, aquela que legitima algumas das críticas de Gellner (Gellner, 1992: 26): a da repetição elitista e incongruente dos erros românticos, uma outra forma de folclorização. Fazia-o afinal porque, renitente ao risco de perder todas as referências, construía ainda a realidade como a sobreposição de dois modelos estáticos que mediam forças entre si e que não eram nem mais nem menos que o da tradição eodamodernidade. Daí a entender a cultura local como a luta patética da tradição decadente contra a alta cultura ocidental, inevitavelmente vencedora, ia um passo perigoso: graves riscos de derrapagem para o paternalismo típico dos caçadores de pintura naïf, que agora substituem, em Marrocos, os românticos que aí procuravam o absoluto dos desertos, ou a sexualidade dos puros.
12Mas o modo ambíguo e descomplexado, mais ainda, criativo, com que as raparigas seleccionavam, integravam ou recusavam elementos das duas culturas levou-me a rever a minha atitude.
13Iasmin, Sarah e Hannah passavam todos os dias por minha casa, quando saíam do liceu. Invejavam-me pela minha liberdade e pelo meu guarda-roupa. Tomavam-me como confidente dos seus amores e ameaçavam mesmo demolir todo o edifício meticulosamente construído da minha reputação ao utilizarem essas visitas como álibi para outras saídas interditas. Gostavam de ir para o meu quarto experimentar roupas e cosméticos, e sempre que compravam une robe collante ou faziam uma desfrisagem no salon da mãe de Iasmin procuravam a minha aprovação. Durante o Ramadão, eram capazes de adiar o fTur13 para não perder o fim do folhetim egípcio, ou mesmo do outro mexicano (dobrado em árabe clássico), prolongando, com isso, o tempo de jejum. Mas também gostavam de pintar as mãos com henna, recusando os modelos beldi-s,14 locais e grosseiros, típicos das barrania-s15 em detrimento dos traços finos dos Sauditas, que copiavam das mãos das primas emigrantes nas Arábias do Golfo. Sarah pintava a mão direita — que exibia mais, para comer — com henna e, na esquerda — que podia esconder de seu pai mais facilmente —, pintava as unhas com verniz cor-de-rosa nacarado.
14Um dia, Iasmin contou-me descontraidamente: “A Hannah hoje disse que, se calhar, para o ano vai pôr o hijab”16 (lembro-me de ter pensado se ela não está espantada, eu também não devia estar…). Então perguntei-lhe com um ar “espontâneo” ensaiadíssimo: “Porquê? Logo a Hannah que adora andar com roupa rumi,17 com calças e minissaias.” Ao que me respondeu: “Sabes que todas as raparigas passam por esses períodos, mais tarde ou mais cedo. Todos os anos aparecem algumas na minha turma que decidem usá-lo. É a moda. Eu própria também já pensei nisso, mas ainda sou muito pequena…”
15Até aí, eu tinha pensado que, se no meu trabalho viesse a abordar o fenómeno do hijab no meu bairro, seria apenas para referir a sua quase inexistência, combatendo todos os avisos alarmistas com que muitos estrangeiros e marroquinos de Rabat me tinham tentado dissuadir de instalar em Salé — um verdadeiro “ninho de integristas”.18 Descobrira agora que teria de rever a questão embora não relacionasse, de maneira imediata, o hijab com o fundamentalismo militante. Sabia já, como Gellner explicitou claramente, que a típica mulher muçulmana que vive numa cidade muçulmana não usa o véu pelo facto de a avó o ter usado, mas sim porque esta não o fez (Gellner, 1992). Pensara, olhando sobretudo para as mães de família, para as viúvas e divorciadas — usassem elas o litham19 ou não —, que o seu empenhamento desesperado pela sobrevivência não lhes permitia distraírem-se com projectos a longo prazo. Sabia também que “quando se vê uma filha e uma mãe com hijab é certo que quem o pôs primeiro foi a filha”.20 Nas filhas não encontrava grandes vestígios do quadro sociológico dos manuais — descontinuidade geracional em termos geográficos, culturais, formação universitária seguida de profundas frustrações profissionais e socioeconómicas — que as impelisse a decisões militantes para além das surtidas clandestinas à la chasse de um partido Labbas ‘ali (proveitoso) para casamento, ou a tentar um lugar ao sol no suq das pequenas funcionárias administrativas em Rabat. A não ser que fossem essas mesmas militâncias que as movessem também a ponderar a possibilidade de usar o véu….
16Em todo o caso, elas pareciam saber aquilo que queriam, e a sua escolha não se estreitava nos departamentos standard, da tradição e da modernidade. O seu gosto passeava-se por prateleiras bem mais coloridas, categorias muito mais complexas do que as nossas dicotomias etnocêntricas.
O jogo da distinção
17Quando uma rapariga se quer distanciar socialmente de outra e, com isso, distinguir-se, diz, por exemplo: “MesKina, hia barrania. (Coitadinha, ela é uma provinciana).” Este género de comentário — que abrange um leque de atributos como provinciana, parola, sem maneiras, ignorante, ou mesmo boçal — acompanha categorias como as de L’arubia (do campo, da província, ou montanheira), também por vezes xleuh (berbere)21, opondo modos de vida rural (al bauadi) à etiqueta urbana (al hadara)22 que é aquilo que distingue os slaui-s — os verdadeiros habitantes da cidade, de Salé. O que é valorizado neste jogo particular é um capital simbólico de tipo tradicional, genealógico: os verdadeiros ahl al bled (gente da terra) são os ualad al nas (literalmente, filhos da gente, isto é filhos de alguém), como se a cidadania em Salé só se adquirisse pelo sangue depurado pelas gerações múltiplas. De tal modo se pensa assim que ainda hoje se reconhecem as mulheres slauia-s pela sua tez e cabelo claro, hoje atribuída confusamente a misturas hispânicas, indício de superioridade civilizacional (hadara), que atestam na sua postura algo arrogante face aos barrani-s. A sua imagem é altiva, rica e caprichosa, ciosa dos costumes e tradições religiosas que atesta nas posturas e indumentárias, e o estereótipo serve hoje para identificar qualquer mulher que vista bem esse padrão, criando-se-lhe, se necessário, uma ascendência que o justifique.
18Mas, no mesmo jogo da distinção, pode recorrer-se a um capital simbólico de tipo diferente: a categorias, como a de Labbas ‘ali (“bem na vida”)23 — ou de bourgeoisie (em francês) que se opõem também à dos msakan24 (os pobres, coitados). Nestas categorias — e ao contrário do que acontece com os slaui-s — o estatuto socioeconómico elevado aparece associado a formas e posturas ocidentalizadas — rumi, xiKi25 — modernas, que contrastam com as escolhas pobres da medina, essencialmente beldi-s — locais e tradicionais, de certo modo ligadas à terra, ao campo, às origens rurais.
19Cada uma destas noções — slaui e barrani, rumi, beldi e as que lhes são adjacentes — está sujeita a constante negociação conjuntural e devem ser encaradas, em primeiro lugar, como categorias culturais mais do que como classes ou estratos sociais particulares (Brown, 1976). A sua interpretação tem necessariamente de ser enquadrada em jogos de inclusão e de exclusão, de distanciação e de aproximação, enfim, nos jogos de distinção cujas regras Pierre Bourdieu tão bem explicitou, esses sim estruturantes do dia-a-dia da medina. Mas por trás desse dinamismo — que envolve propriedades sociais, económicas, educacionais — é possível reconhecer a importância de um capital simbólico de reconhecimento, fortemente ligado a valores locais, religiosos e tradicionais, condensado na categoria dos slaui-s. Osslaui-s beneficiam ainda de uma espécie de patina aristocrática de cariz religioso. A esse capital é facilmente associado um outro, de origem recente, que, embora de tipo diferente, é também religioso, tradicional e socialmente valorizado e que se cristaliza no hijab. O hijab, ao apelar assim para o Alto Islão,26 o Islão elitista e puro das mesquitas universitárias, aparece como o símbolo de um novo estatuto social valorizado. A revalorização social desse tipo de capital simbólico é evidente na difusão dos modelos de designer dos véus entre a nova aristocracia egípcia.27
20As raparigas parecem ter compreendido bem que os valores destas diferentes formas de capital são convertíveis e cambiáveis. Jogam, por isso, o jogo da distinção com todos os trunfos de que dispõem.
21O processo de aceleração e rentabilização das diferentes formas de comunicação — media, transportes, turismo —, mais do que veicular e, por isso, implicar a massificação dos valores que exporta com a sua tecnologia, rentabiliza todos os elementos, formas e valores culturais dos diferentes contextos que toca — sejam eles locais, tradicionais, ou importados —, aumentando e diversificando o stock de produtos para a construção de identidades, estratégias, representações dos agentes, sem que por isso este perca a percepção da natureza e origem de cada um deles. Utilizando sumariamente a linguagem de Bourdieu dir-se-ia que através do alargamento e complexificação do campus, o capital local é rentabilizado e progressivamente assimilado pelo habitus e posto em evidência na hexis corporal. Deste modo, os agentes utilizam de forma criativa nas suas estratégias colectivas ou individuais símbolos que colhem das representações que eles próprios fazem da tradição ou da modernidade. Isto é especialmente visível nos percursos da mobilidade social nas performances corporais femininas em Marrocos, pela possibilidade de expressão que dão às raparigas num universo em que a apresentação pública do self é ainda bastante restrita.28
Mulheres e self
22Compreendi então que a definição feminina do self destas raparigas se ancorava tão profundamente nas representações religiosas da feminilidade como nas revistas francesas de moda que vinham buscar a minha casa, escolhendo sempre as que ostentavam os vestidos mais felinos e coleantes.
23Sabia que, independentemente das estatísticas, muitas mulheres justificavam a sua adesão ao hijab ou por coerção do engajamento militante familiar, ou por táctica de sobrevivência no mundo do assédio, pelo baixo custo de uma opção que nos meios universitários pode camuflar a pobreza, ou como estratégia subversiva de encobrir comportamentos e posturas menos conformes.29 Mohammed Tozy30 garantia que em Marrocos a adesão das mulheres a um ou outro grupo fundamentalista raramente se traduz numa entrada na hierarquia política31 e que o seu empenhamento é frequentemente passageiro. Para ele tudo se explicava em termos de mobilidade espacial e social. Estava claro para mim que, para além do empenhamento político e nacionalista explícito de mulheres como as hezbollah iranianas, o uso do hijab tinha, antes de mais, de ser entendido como uma escolha pessoal e não meramente cultural. E para estas raparigas o hijab era, antes de mais, um dos muitos produtos de que sabiam dispor no seu supermercado cultural e que associavam à ideia de feminilidade. Essa é uma ideia, apesar de tudo menos confusa para elas do que para os rapazes por quem podem, inclusive, vir a usar o véu. Sabendo isso, as raparigas recorrem assim a tácticas aparentemente incongruentes, mas que vão ao encontro das ambiguidades com que sabem ser, ao mesmo tempo, desejadas e temidas pelos rapazes.
24Foi Melika e sua mãe que mais insistiram para que eu mandasse fazer uma jilaba. Foi ela que foi à ksairia comigo escolher o corte de seda sintética,32 que, apesar dos meus esforços em contrário, era de um azul berrante (cor que me ficava muito bem, por eu ser loura!33). Foi ela quem me ensinou a dançar como as xikha-s,34 que me bordou a tqxita para a minha festa de despedida, discutiu o volume dos chumaços dos ombros com o alfaiate, e me apresentou às mais conceituadas pintoras de henna da medina. Era ela que me aconselhava os perfumes em voga para eu oferecer por ocasião de algum aniversário, ou criticava o coupe carrée de alguma vizinha, e que misturava com mestria o naKar marroquino com o rouge à lèvres de contrabando de Ceuta. Melika, aos dezoito anos, com três tentativas de casamento abortadas com o auxílio da mãe, dominava o leque completo de técnicas do look na medina. Acompanhava-a, um dia, nas ruas do suq quando a discussão entre dois homens subiu de tom e um deles gritou: “Fazes da tua filha uma prisioneira.” Os homens discutiam a propósito do uso do hijab. Mais adiante, Melika comentou casualmente: “O meu pai proibiu-me de usá-lo.35 Disse-me que o Islam36 deve estar no coração e não no hijab.” Perguntei-lhe então porque se pronunciara ele a esse respeito, e ela disse-me que uma vez tinha querido pôr o véu. Disfarçando a minha perplexidade, indaguei: “Mas ainda há pouco tempo, quando começaste a trabalhar em Rabat, me vieste mostrar, vaidosa, as tuas saias novas, mais curtas!!” — “Pois é. É por isso que ainda não me decidi. É que ainda sou muito nova, e gosto muito da maquilhagem e roupas xiKi, mas, na verdade, também gostaria muito de usar o hijab.” Quando o disse, reconheci-lhe o ar sonhador que já tinha visto nos olhos de outras raparigas quando apontavam com admiração e respeito cantoras ou actrizes de novelas egípcias que, cobertas de fama e sucesso, riqueza e reconhecimento, se ocultavam agora sob um hijab estilizado. Ao mesmo tempo, reconheci nela também a expressão de sua mãe quando me contara da sua vaidade juvenil e de como gostava de exibir os olhos sublinhados com khul escondida sedutoramente no litham.
25Já depois disto, estando eu em Portugal, recebi uma carta de Melika dizendo (sic):1
Para mim, “Melika”, há uma novidade, o patrão da minha companhia está apaixonado por mim e quer casar-se comigo e vai comprar-me um apartamento em Agdal e em meu nome, e um carro, na condição de que eu aceite. Mas ele é casado e tem quatro filhos (...) A minha resposta foi “Não”, Aicha37 também recusou. Mas ele não perdeu a esperança mesmo sabendo que eu conheço outro homem, mesmo assim ele está louco. (...) Para o meu trabalho eu comecei a sair em deslocação para Casa38 e da próxima Fes e Marrakexe, é bom para mim e estou muito contente e é por isso que agora não penso em casamento. Porque eu andava perdida mas agora encontrei “Melika”.
26Melika construíra, um self sem hijab nem marido de conveniência, com a ajuda das novelas egípcias, ou mexicanas traduzidas em árabe clássico, que entretinham as tardes sonolentas do Ramadão na medina, alimentando a ideia de um casamento por amor, romântico e, com ele, construindo subterraneamente uma narrativa individual, para si (Giddens, 1992: 58).
Isto é pós-modernismo?
27Na verdade, o que pode haver de mais pós-moderno — na sua dimensão estética, hedonista, autocentrada, reflexiva, corporal e sincrética — do que uma mulher que (como muitas em Marrocos) decide tirar a tatuagem que tem desde menina (e que o Islão proíbe), pintar as mãos com henna (o que o Islão exalta) e maquilhar o rosto com naKar local e as sombras e fond de teint importado de trabando39 de Ceuta? Só um homem marroquino que decida casar-se com ela sem hesitação. Parece isto uma charada feminista, mas não é.
28Diz Giddens (1992) que as mulheres desempenham um papel fundamental no processo em curso de democratização da vida pessoal, via emancipação e revolução na intimidade.40 Elas são uma espécie de social experimenters de uma liberdade nova. Renitentes ou corajosas porque, na verdade, abandonam a segurança pública que o controlo masculino indiscutível lhes reservava nas sociedades pré-modernas.41 Mas, em todo o caso, são os homens os mais renitentes. O controlo crescente sobre as crianças e a educação, fruto da diminuição progressiva do agregado familiar e da tendência crescente para o casamento neolocal, e a consequente deslocação do centro doméstico da autoridade patriarcal para a afeição maternal,42 foram passos importantes para pôr em causa o que Giddens designa como os princípios de uma masculinidade que, só agora, começa a ser problemática.43 Este processo de democratização das relações de género e da decomposição de uma masculinidade não problemática típico da alta modernidade, que Giddens refere como consequência de um projecto ocidental,44 tem lentos e complexos paralelos na actualidade magrebina. O caso de Melika é bem exemplar:45 na sua carta ela demonstra bem ter assumido experimentar o risco (Giddens, 1990) de viver a modernidade independentemente do plano protector divino — abandonando a ideia do hijab — e masculino — adiando o casamento.
29Será, então, que esta nova dinâmica dos géneros é algo que acompanha simplesmente a invasão imperialista e devassa da cultura global? Estabelecer semelhanças automáticas entre os processos aqui e lá seria incorrer nos erros precipitados de algumas feministas que quiseram exportar (ou importar) os modelos de emancipação ocidentais. E se a tradição, como a entendíamos, duradoura, genuína e inalterável, já morreu, a história tem-se mostrado mais resistente do que aquilo que apenas há alguns anos se julgava: isso porque, na verdade, o Ocidente negligenciava a capacidade de resposta local e a imprevisibilidade dos efeitos da globalização. Por exemplo: é verdade, tanto para o Ocidente como para o contexto magrebino, que se deu uma deslocação do poder doméstico da autoridade patriarcal para a afeição maternal. Será importante sublinhar, no entanto, que no caso concreto das sociedades magrebinas, tal como Berque o refere, essa deslocação foi acentuada pelo processo de colonização46 em que a mulher foi promovida à guardiã da cultura e da identidade nacionais. É apenas tendo em conta esse quadro particular que podemos compreender fenómenos aparentemente tão desconcertantes para a modernidade como o uso do hijab. É colocando-nos no lugar preciso desse encontro que podemos compreender como a emancipação feminina passou — e pode ainda hoje passar — pelo uso do hijab. O fundamentalismo reage contra a cultura dominante do hedonismo, do corpo e do consumismo. Neste sentido, ele aproxima-se do feminismo. Tanto um como o outro recusam a cultura hegemónica — que ao mesmo tempo os engendrou — sobre o corpo, a mulher e o consumismo. É apenas neste sentido que se pode entender o integrismo como um feminismo muçulmano e aceitá-lo como um discurso pós-moderno: no sentido em que é consequência da modernidade. Mas vistos nesse prisma, um e outro, feminismo e fundamentalismo, podem também ser apenas encarados como lifestyles, ao lado de outros que a sociedade de consumo multiplicou: não é o pós-modernismo a adopção caleidoscópica da diferença de lifeworlds, mesmo daqueles que o contestam sob a forma integrista?
Salão Ramadão
30Iasmin, que tinha então treze anos, andava aborrecida e ansiosa. Contava-me com inveja que Sarah já cheirava a suor: “É uma mulher.” Só ela não tinha ainda o período. Mas, naquele dia, entrou radiante em minha casa: “Chegou a minha vez, já sou uma mulher.” Contou-me irritada que Umm Duch, a sua mãe de leite, a exasperara dizendo: “Então, agora já estás contente? Veio aí a porcaria e o mau odor e a necessidade de te lavares a todo o momento. Haxuma!”47 Acrescentou depois, aliviada: “O que eu mais temia, é que o sangue não chegasse a tempo de eu fazer este ano o Ramadão, como uma verdadeira mulher.”
31Foi ao ouvi-la que compreendi definitivamente a complexidade do jogo tradição/modernidade que as rapariguinhas tinham de aprender desde cedo a jogar para encontrar a sua identidade. Ao lado disto, as tabelas do puro e do impuro de Mary Douglas (1970) pareciam uma brincadeira. Umm Duch guiava-se por elas, querendo obrigar Iasmin a submeter-se às categorias tradicionalmente impuras do ser mulher. Mas Iasmin tinha ao seu dispor um leque muito mais diversificado de valores femininos. Na verdade, ao ambicionar cumprir o jejum do Ramadão, ela pretendia alcançar concomitantemente o grau de mulher e de muçulmana, uma espécie de cidadania, de estado de “pessoa”. Iasmin, filha de uma das famílias imigradas com mais posses no bairro e a melhor aluna da sua turma, tentava afirmar-se recorrendo a uma linguagem religiosa que aprendera a valorizar socialmente ao invejar as velhas senhoras aristocráticas de Salé. Enquanto as suas amiguinhas mais pobres se deleitavam com as minissaias compradas em segunda-mão no suq de Temara, idealizando o estilo rumi — xiKi —, Iasmin, de uma forma quase snobe, criticava o modo grosseiro como elas olhavam os rapazes de soslaio quando regressavam do liceu, chegando mesmo a cortar relações com Sarah, a mais atrevida. Ao mesmo tempo, sonhava com o dia em que obtivesse o seu diploma de medicina, ou, noutros dias, o seu brevet de piloto…
32Posteriormente, outros episódios relativos à vivência do Ramadão pelas mulheres do meu bairro, às reinterpretações do discurso religioso sobre o corpo e a dieta nesse período sagrado, vieram animar outras áreas do debate colorido entre a tradição e a modernidade.48 Os preparativos começam no mês anterior, com grandes festas de catarsis feminina, as danças de possessão dos Gnaua-s.49 Convém então, se se pretende fazer uma limpeza de pele ou ir ao cabeleireiro, fazer desde logo a marcação, advertem os anúncios dos salons de beauté. É que o Ramadão, o mês por excelência da purificação, é também, para as mulheres, o mês do bem estar consigo própria, de se sentir bonita. Mais ainda porque é um período altamente erotizado: os gracejos trocados pelas mulheres a caminho do hammam — “Se precisas de ir ao hammam é porque andaste a fazer alguma coisa!…” — multiplicam-se; virtudes afrodisíacas são atribuídas às ementas calóricas e festivas; ouvidos indiscretos encostam-se às paredes finas para no dia seguinte servirem relatos picantes à vizinhança; em nenhum outro período ouvi falar tanto de sexo como durante o Ramadão. O corpo, posto ao serviço de Deus, é ao mesmo tempo sexualizado e transformado em objecto de sedução.
33Por outro lado, o corpo é sujeito a demonstrações de autodisciplina que o obrigam, nesse mês sagrado, a esforços suplementares sobre o jejum: nunca vi tanta gente fazendo jogging ou praticando outro desporto como durante o Ramadão. Os campeonatos de futebol na medina, que se realizam entre os diferentes bairros mantendo vivas as rivalidades (tanafus) bairristas dos jogos juvenis tradicionais, são marcados para esse período, e os rapazes orgulham-se da sua capacidade de resistência assim levada aos limites. Muitos aproveitam então para deixar de fumar e algumas raparigas convertem o esforço num treino dietético que as ajude a cumprir um padrão de beleza que já não corresponde ao de suas mães. A manutenção de uma prática que, todos os anos, sobretudo naqueles em que o mês lunar sagrado coincide com o Verão, faz grande número de vítimas entre os mais idosos e provoca um período economicamente morto num país que não tem tempo a perder se quer sobreviver aos sobressaltos políticos e sociais que o ameaçam, já não se justifica, cegamente, no dogma religioso mas na explicação da racionalidade moderna desse dogma (que assim deixa, aparentemente, de o ser): a purificação convive bem com a ideia de desintoxicação, as abluções com o tratamento cosmético, e o discurso religioso é justificado em termos higienistas.
“O que hei-de vestir amanhã para ir o ao suq?”, perguntou Melika olhando para o espelho
34A “(…) sobriedade divina” que Turner refere para o corpo do século XIX europeu convive na medina com
A estrutura da população em transformação (...) um novo discurso demográfico, centrado num regime de dieta, jogging e cosméticos, de modo a controlar os cidadãos alienados das zonas residenciais para reformados (Turner, 1982: 168)
35típica do capitalismo tardio.
36Mas em todo o caso, de uma maneira ou de outra, a modernidade, o corpo como projecto, são descobertos no interior do Islão. E é nessa possibilidade, nessa disponibilidade da tradição, sobretudo da mais popular, em aproveitar, economizar, colar, articular, desdobrar, que residem, paradoxalmente, processos de resposta à modernidade semelhantes àqueles que convencionámos como típicos da “nossa” pós-modernidade. Serve esta constatação, que mais não seja, para relativizar um outro tipo de dogmatismo pernicioso dos nossos tempos: o que crê ainda que a postura fundamentalista é uma emanação, algo incontornável porque inerente ao próprio espírito islâmico.
37Turner diz que
O estilo de vida das classes médias, com a sua ênfase no lazer, na gratificação e no hedonismo, tornou-se num padrão normativo global, moldando as aspirações e estilos de vida das classes subordinadas, as quais, ainda que possam não consumir directamente, consomem ao nível da fantasia (Turner 1994: 91).
38Isto mostrou-se-me evidente nos sonhos acordados das raparigas de Salé. Mas o que importa acrescentar é que a globalização difundiu com ela outros modelos que não o ocidental, outros símbolos e lifestyles que, ao lado de estereótipos locais também valorizados socialmente como tradicionais, povoam igualmente as fantasias das raparigas. O modelo islâmico — produzido e divulgado pelos meios técnicos e culturais que a modernidade pôs ao seu serviço — entra no pacote de lifestyles- ao lado de outros introduzidos pelos media, turismo, etc. É vendo as coisas neste prisma — um dos muitos possíveis —, que podemos compreender a convivência desconcertante do hijab com a minissaia e com as jilabas locais com as assinaturas de Pierre Cardin e admirar a capacidade recreativa e recreativa das raparigas de Salé nas suas performances corporais. E é partindo do seu exemplo que devemos passar definitivamente a encarar a globalização como um processo que suscita respostas locais e pessoais diversificadas — afirmar com Featherstone (Featherstone, 1990: 10) que é preferível falar de culturas globais no plural, e relativizar a ideia universalista da aldeia global — e acreditar na variedade de recursos e improvisos culturais dentro do Islão. Vale a pena então, dando voz ao local, retomar os percursos do corpo indicados por Weber, Foucault, Bourdieu, Giddens e outros na sua senda, para compreender, aí, uma modernidade que é bem mais complexa do que a sobreposição imposta da nossa modernidade sobre uma tradição moribunda e convulsiva.
Notas
39Este trabalho de campo e a investigação documental com vista à elaboração da tese de doutoramento em Antropologia na F.C.S.H-U.N.L., foram apoiados em períodos e por formas diferentes pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, pela Fundação Calouste Gulbenkian, e pelo Centro de Estudos Africanos e Asiáticos do Instituto de Investigação Científica e Tropical.
Bibliographie
Des DOI sont automatiquement ajoutés aux références bibliographiques par Bilbo, l’outil d’annotation bibliographique d’OpenEdition. Ces références bibliographiques peuvent être téléchargées dans les formats APA, Chicago et MLA.
Format
- APA
- Chicago
- MLA
Ahmed, Akbar S. (1992), Postmodernism and Islam, Predicament and Promise, Londres e Nova Iorque, Routledge.
10.4324/9780203390085 :Ahmed, A., e Donnan, H. (orgs.) (1994), Islam, Globalization and Postmodernity, Londres, Routledge.
10.1515/9781400873586 :Baykan, Aysegul (1990), “Women between fundamentalism and modernity”, in Theories of Modernity and Postmodernity, Londres, Sage.
Berque, J. (1960), Les Arabes d’Hier a Demain, Paris, Ed. du Seuil.
Bouhdiba, Abdelwahab (1982) (1975), La sexualité en Islam, Paris, PUF, Quadriga.
10.3917/puf.bouhd.2010.01 :Bouhdiba, Abdelwahab (1984), “La société maghrébine face a la question sexuelle”, in Cahiers de Sociologie, vol. LXXVI.
Bourdieu, Pierre, (1972), Ésquisse d’une Theorie de la Pratique Précedé de Trois Études d’Ethnologie Kabyle, Genebra, Lib. Droz.
Bourdieu, Pierre (1979), La Distinction, Paris, Minuit.
Brown, Keneth (1976), People of Salé. Tradition and Change in a Moroccan City 1830-1930, Cambridge, Harvard University Press.
Chebel, Malek (1984), Le Corps dans La Tradition au Maghreb, Paris, PUF.
Eickelman, Dale (1989) (1981), The Middle East — An Anthropological Approach, Nova Jérsia, Prentice Hall.
Featherstone, M. (1982), “The body in consumer culture”, in The Body, Social Process and Cultural Theory, Eds. Featherstone, M., Hepworth, M., e Turner, Bryan S., Sage, 1991.
10.1177/026327648200100203 :Featherstone, M. (1990), “Global culture: an introduction”, Theory Culture and Society, Vol. 7.
10.1177/026327690007002001 :Geertz, Clifford (1978) (1973), A Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Zahar Editores.
Gellner, Ernest (1992), Postmodernism, Reason and Religion, Londres, Routledge.
10.4324/9780203410431 :Giddens, Anthony (1990), The Consequences of Modernity, Cambridge, Polity Press.
Giddens, Anthony (1992), The Transformation of Intimacy — Sexuality, Love and Eroticism in Modern Societies, Cambridge, Polity Press.
Granovetter, Mark S. (1973), “The strength of weak ties”, American Journal of Sociology, vol. 78, n.° 6.
10.1086/225469 :Hassar-Benslimane, Joudia (1992), Le Passé de la Ville de Salé dans tous ses États, Paris, Maisonneuve & Larose.
Hannerz, Ulf (1983) (1980), Explorer la Ville, Paris, Ed. Minuit.
Herber, J. (1929), “Les peintures au harqus”, Hespèris, t. IX, pp 59-77.
Herber, J. (1948), “Notes sur les Tatouages au Maroc”, Hespèris, t. XXXV-3/4, pp. 11-46 e 289-297.
Khatibi Abdelkebir (1974), La Blessure du Nom Propre, Paris, Denoel.
Laibidi, Lilia (1989), Çabra Hachma. Sexualité et Tradition, Tunes, Dar Annawaras.
Machado, José Pedro, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte.
Mernissi, Fatima (1983) (1975), Sexe, Idéologie, Islam, Paris, Tierce.
Schilling, Chris (1993), The Body and Social Theory, Londres, Sage.
10.4135/9781473914810 :Tozy, Mohammed (1984), Champ et Contre Champ Politic — Religieux au Maroc, tese de doutoramento em Ciências Políticas, Université de Droit, d’Économie et de Sciences d’Aix-Marseille.
Turner, Bryan (1982), “The discourse of diet” in The Body, Social Process and Cultural Theory, Eds. Featherstone, M., Hepworth, M., e Turner, Bryan S., Sage, 1991.
10.1177/026327648200100103 :Turner, Bryan (1991), “Recent developments in the theory of the body”, in The Body, Social Process and Cultural Theory, Eds. Featherstone M., Hepworth, M. e Turner, Bryan S., Sage, 1991.
10.4135/9781446280546 :Turner, Bryan, (1994), Orientalism, Postmodernism and Globalism, Londres e Nova Iorque, Routledge.
10.4324/9780203427255 :Watson, H. (1994), “Women and the veil: personal responses to global process”, in Eds. Ahmed, A., e Donnan, H., 1994, Islam, Globalization and Postmodernity, Londres, Routledge.
Weiland, Petra (1993), Inside the Third World Village, Londres, Routledge.
10.4324/9780203420508 :Weiss, Anita M. (1994), “Challenges for muslim women in a postmodern world”, in Eds. Ahmed, A., e Donnan, H., 1994, Islam, Globalization and Postmodernity, Londres, Routledge.
Notes de bas de page
1 Embora me refira fundamentalmente às indumentárias e cosmética, quis manter o termo performance para incluir o movimento completo que vai da escolha de elementos precisos — cosméticos, peças de vestuário, adornos —, passando pela sua bricolage, até à sua exibição contextualizada.
2 A medina de Salé, cidade irmã de Rabat na outra margem do Bou Regreg, em tempos glorificada como uma das cidades de “civilização”, funciona hoje, magoada no seu orgulho, como franja urbana da capital marroquina. É, por isso, lugar misto de nostalgia das famílias dos notáveis que partem e de sonho dourado dos imigrantes que ambicionam uma posição em Rabat. Foram essas características de entreposto que me levaram a optar por Salé como lugar privilegiado para observar uma sociedade em mudança.
3 A transcrição dos vocábulos árabes segue aqui de perto a versão simplificada que José Pedro Machado utiliza no Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Na maior parte dos casos refere-se ao dialectal marroquino, pelo que o seu rigor ortográfico não é aferível.
4 Este argumento não contradiz a preocupação de Turner quando afirma que “o Islão não consegue lidar de forma satisfatória com uma pós-modernidade que ameaça desconstruir as mensagens religiosas — tornando-as em meros contos de fadas — bem como o mundo quotidiano através do desafio da diversidade cultural” (Turner, 1994: 78), apenas a relativiza, demonstrando como a flexibilidade tradicional nos meios populares permite a escolha e a adopção de outras respostas locais que não as fundamentalistas à “pluralização dos life-worlds proporcionada pela expansão de um sistema de consumo global e diversificado” (idem).
5 Banhos públicos.
6 Ver, por exemplo, J. Herber, “Les Peintures au Harqus”, 1929, pp. 59-77; “Tatoueuses Marocaines”, e “Notes sur les Tatouages au Maroc”, 1948, pp. 11-46 e 289-297; Malek Chebel, 1984; Abdelkebir Khatibi, 1974, 1986.
7 Bouhdiba, em defesa de um modelo islâmico literalmente virtuoso e tolerante, e lamentando a sua adulteração progressiva — ora endógena ora importada — refere num artigo revoltado: “Uma dimensão (o controlo da natalidade) tão essencial e íntima, e que é do domínio do sexual tradicional, encontra-se literalmente internacionalizada! Pior: ela é o objecto de análises econométricas. Há especialistas que não hesitam em calcular, a partir dos dados disponíveis, uma taxa de natalidade ‘islâmica’.” E, mais adiante: “Para muitos magrebinos (...) a incitação ao planeamento familiar foi sentida como uma violação da consciência tradicional e como um verdadeiro atentado ao pudor, mais do que como uma indiscrição” (Bouhdiba. 1984).
8 Argila utilizada para o tratamento e embelezamento dos cabelos.
9 A única no bairro equipada com um termoacumulador, porque o antigo locatário trabalhava na empresa que os importava.
10 E mesmo a sua vinda a minha casa veio a demonstrar-se profícua para a análise de algumas representações do hammam pela paródia que faziam ao entrar, tratando-me por Gelaça — a recepcionista —, perguntando, como as mulheres fazem sempre ao entrarem nos banhos públicos, se a água estava bem quente, se estava muita gente, etc.
11 Zona do mercado onde se vendem os produtos mais valorizados: ouro, tecidos finos, etc.
12 Fato feminino de cerimónia
13 Refeição com que é quebrado, ao pôr do sol, o jejum.
14 “Tradicionais”, locais, para elas, provincianos.
15 As forasteiras, imigradas recentes.
16 O véu das fundamentalistas, em geral de inspiração iraniana e que se distingue, claramente, na cor, no tipo de tecido, na maneira de se usar, do véu tradicional: o litham, ou ne-Gab. Em Marrocos são também hoje comuns as versões estilizadas dos véus de designer, lançados no Egipto (ver nota 19).
17 Ocidental, “moderna”.
18 As “projecções” fundamentalistas sobre Salé — emitidas sobretudo pela classe média de Rabat — baseiam-se fundamentalmente em três pressupostos inconsistentes: o do empobrecimento e marginalização progressiva da cidade (que em geral aparece associada às posturas contestatárias mais radicais); o do tradicional rigorismo religioso que sempre foi o emblema de Salé; e o do facto concreto de um dos líderes fundamentalistas mais populares em Marrocos — A. Iacine — se encontrar, com residência fixa nos subúrbios da cidade.
19 Tipo de véu tradicional do vestuário magrebino que cobre a cara deixando apenas os olhos à vista e que nada tem a ver com o moderno e importado hijab (ver nota 16).
20 Comentário de Mohammed Tozy (1984) em entrevista não publicada.
21 O termo, que na realidade designa um grupo berbere específico, serve para designar os Berberes de modo generalizado.
22 Esta visão conservadora encontra-se ainda presente em obras recentes, como “Le Passé de la Ville de Salé dans tous ses États”, de Joudia Hassar-Benslimane, 1992.
23 De Labbas — que, na forma interrogativa, corresponde ao francês: “Ça va?”.
24 Plural de mesKin.
25 Do francês chic, indicando indumentária e postura ocidentalizada.
26 Utilizando a contestada mas sugestiva terminologia de Gellner (ver Gellner: 1992)
27 Cf., entre outros, Watson, 1994.
28 As mulheres dominam magistralmente a manipulação destes símbolos: recorrem às indumentárias entendidas como “tradicionais” — a jilaba e mesmo o hijab — como estratégia eventual de sedução pela conformidade com os valores locais, mas, paralelamente, para obtenção reflexa de maior liberdade através do garante de reputação que elas conferem, e debaixo das quais se podem tomar atitudes mais “modernas”, isto é, de maior liberdade, mesmo sexual.
29 Estas últimas parecem já ter sido descobertas por alguns rapazes menos simpatizantes dos princípios fundamentalistas, que entendem o hijab como mais uma “manha” feminina, como todas as outras que a literatura erótica islâmica já desmascarou.
30 Ver nota 20.
31 O exemplo mais utilizado para contradizer esta afirmação é o da filha de A. Iacine, o líder fundamentalista mais popular em Marrocos, que ocupa oficiosamente um lugar de relevo no seu movimento.
32 Até ao início do século, Salé era grande produtora de algodão. Foi, depois, invadida de sedas e outros tecidos orientais que agora dão um novo colorido ao vestuário feminino, enquanto os tecelões de Gandura-s e qafTan-s de cores cruas envelhecem nas suas oficinas.
33 Quem me conhece sorrirá…
34 Dançarinas que animam as festas dos homens com danças sensuais e insinuantes. O termo assume hoje a conotação global de prostituta. As mulheres da medina reúnem-se frequentemente para ver, em conjunto, vídeos de xikhat-s, imitando-as e tentando aprender as suas danças e movimentos eróticos num ambiente descontraído e divertido.
35 A atitude do pai de Melika, que não é de modo nenhum singular, merece análise desenvolvida que aqui não cabe, mas é, entre outras coisas, muito sintomática dos receios renovados das tácticas femininas, por parte dos homens.
36 O Islão, mas também a ideia que preside ao radical semita, de submissão.
37 A sua mãe.
38 Casablanca.
39 Contrabando, em dialectal marroquino.
40 Parece-me possível alargar o processo descrito por Giddens em The Transformation of Intimacy — Sexuality, Love and Eroticism in Modern Societies ao contexto magrebino em algumas das suas vertentes, que são aquelas que aqui referenciarei.
41 Ver Giddens, 1992: 122. Um dos argumentos frequentemente explicitados para justificar o uso do hijab é o da protecção face à violência contra as mulheres. O caso Tabit, o de um comissário da polícia de Casablanca que violou centenas de mulheres registando as atrocidades em vídeo, despoletou, em 1993, uma crise de consciência a este nível. Muitos comentários — mesmo femininos — atribuíam culpas às mulheres envolvidas (negligenciando a prepotência policial evidente), pelo facto de estas terem possibilitado um encontro com um homem, que não o seu, num local que não a sua casa, ou seja, por se terem “exposto”. As vítimas foram condenadas por terem arriscado sair da segurança da redoma estrita dos códigos tradicionais.
42 Mary Ryan citada em Giddens 1992: 42.
43 “1. a dominação dos homens na esfera pública; 2. a vida dupla; 3. a divisão, associada às mulheres, em puras (casáveis) e impuras (prostitutas, meretrizes, concubinas, feiticeiras); 4. o entendimento de que a diferença sexual foi estabelecida por Deus, pela natureza ou pela biologia; 5. a problematização das mulheres como opacas ou irracionais nos seus desejos e acções; 6. a divisão sexual do trabalho” (Giddens, 1996: 77).
44 Acrescenta, no entanto: “A abordagem destas questões e a forma de lidar com elas envolverá, no entanto, e inevitavelmente, concepções e estratégias derivadas de contextos não-Ocidentais” (ibidem).
45 A atitude do patrão de Melika é também paradigmática: uma tentativa desajeitada de articular a tradição (poligamia) com a modernidade (amante com apartamento) numa fase em que as mulheres começam a impor socialmente o seu desagrado relativamente à poligamia e a sua intolerância relativamente à coabitação das esposas.
46 Berque, J., Les Arabes d’Hier a Demain, Paris, Ed. du Seuil, 1960.
47 Um dos conceitos a respeito dos quais muito se tem escrito na literatura etnológica feminina do Magrebe (por exemplo, Fatima Mernissi para Marrocos, Lilia Labidi para a Tunísia) e que implica a noção de “vergonha”, por oposição a “honra”, embora, como todos os conceitos do mesmo tipo, e como bem demonstrou P. Bourdieu, as extravase largamente. É um conceito fundamental que pontua e marca o ritmo da definição do habitus, sobretudo para as raparigas.
48 Como Turner demonstrou, para outros contextos (cf. Turner, 1982: 157-169).
49 A confraria com performances mais exuberantes e a mais popular entre as mulheres de estratos socioeconómicos mais baixos.
Notes de fin
1 No original: “Pour moi ‘Melika’ il ya une nouvelle, le patron de mon societe est Amoreux de moi et il veut se marier avec moi et qui’il va m’acheter un appartement à agdal et ecrit sur mon nom, et une voiture, à condition que j’accepte. Mais il est marier et il a quatre enfants (...) Ma réponse etait bien sur ‘Non’, Aicha a aussi refusé. Mais lui n’a pas perdu l’espoire meme il sait bien que je connais un autre homme, il est tout á fait fous. (...) Pour mon travail j’ai commencé à sortir en déplacement a Casa et pour la prochaine fés et marrakeche, c’est bien pour moi et je suis très heurese et ce pour cela que je pense pas au mariage maintenant. Parce que jétais tout perdu mais maintenant jái trouvé ‘Melika’.”
Auteur
Nascida em Faro em 1960 é, desde 1984, responsável pelos contextos árabes no âmbito da disciplina de Culturas não Europeias no Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa. A investigação para o seu doutoramento incluiu dois anos de trabalho de campo em Marrocos (1991-1993), na medina de Salé, com pesquisa incidente sobre o universo feminino urbano em meio popular muçulmano e as tácticas de articulação entre a norma e a prática, a tradição e a modernidade, o local e o global.
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
Maria Cardeira da Silva (dir.)
2013
Etnografias Urbanas
Graça Índias Cordeiro, Luís Vicente Baptista et António Firmino da Costa (dir.)
2003
População, Família, Sociedade
Portugal, séculos XIX-XX (2a edição revista e aumentada)
Robert Rowland
1997
As Lições de Jill Dias
Antropologia, História, África e Academia
Maria Cardeira da Silva et Clara Saraiva (dir.)
2013
Vozes do Povo
A folclorização em Portugal
Salwa El-Shawan Castelo-Branco et Jorge Freitas Branco (dir.)
2003