VI
p. 169-249
Texte intégral
Os cantadores do fado. – De D. José de Almada à Custódia. – Da Custódia ao Calcinhas. – Do Calcinhas à Cesária. – Da Cesária ao Hilário. – Os cantadores modernos. – As cantadoras modernas. – Uma cantiga descritiva. – Os cantadores provincianos.
1Enunciaremos agora os mais notáveis cantadores do fado. D. José de Almada e Lencastre, escritor e jornalista, não tocava guitarra, mas cantava o fado de uma maneira verdadeiramente comovedora. D. José de Almada era filho natural do Visconde de Souto de El-Rei (que morava ao Campo de Sant’Ana) e de uma cigana. Em pequeno, como a mãe habitava no Largo da Bempostilha, andava por ali feito gaiato, acarretando até bilhas de água do chafariz do Campo de Sant’Ana. Puseram-lhe a alcunha de «Pirralho». Afirma-se que a Viscondessa de Souto de El-Rei – uma santa e virtuosa senhora – sabendo da existência do filho de seu marido, dava, a ocultas deste, dinheiro para o petiz ir à escola e vestir-se.
2D. José de Almada aprendeu as primeiras letras com grande aproveitamento, revelando logo alta inteligência. Quando já rapazote, foi para casa do pai, porque a viscondessa dissera a seu marido que considerava aquele rapaz como filho dela, e que, portanto, o lugar do pequerrucho era em sua casa. Estudou com distinção no Curso Superior de Letras e escreveu várias peças teatrais, como: A Profecia ou a Queda de Jerusalém, que deu enchentes sucessivas ao Teatro de D. Maria ii, e as comédias: Um Jantar Amargurado, Vamos para Carriche – que fez época nas Variedades–, a Lição, o desforço, Um Autor Pateado, por lhe terem pateado A Meia do Saloio, etc. Escreveu também O Orador Sagrado, colecção de sermões, e vendeu muitos ao padre Aguilar, que os fazia passar como seus. Foi redactor do Século XX – onde escreveu brilhantes artigos, sendo o mais notável aquele que intitulou Ave Crux! –, da Nação e do Católico, folhetinizou no Jornal do Porto sob o pseudónimo de «Vítor», e concorreu a uma cadeira do Curso Superior de Letras, quando este se criou.
3D. José de Almada, homem de carácter exemplaríssimo, gostava muito de ouvir cantar o fado, e ele mesmo o cantava deliciosamente, mas só na intimidade e entre amigos, porque, na guitarra, só sabia tirar os arpejos para acompanhar o canto. O seu mote dilecto era este:
O pobrezinho que pede
Arrimado ao seu bordão,
Tanta caramunha faz,
Que alguma coisa lhe dão.
4Os amigos íntimos de D. José de Almada eram, além dos redactores de A Nação, Luís de Vasconcelos de Azevedo e Silva, D. António de Lacerda, os velhos actores do Teatro de D. Maria II – Epifânio, Tasso, Teodorico, Assis e Rosa, José Maria de Andrade Ferreira, por alcunha «O literato dos pés grandes», Baltazar de Sousa Meneses, pai do gazetilheiro e revisteiro «Argus» e grande amador do fado, Luís de Araújo e o «Figueiredo do 14» (que parava muito na botica da Praça da Alegria). O Sousa do Casacão também era muito amigo de D. José de Almada, e com ele realizava belos duetos de canto de fado. Todos eles iam, a miúdo, jantar à falada Padeira da Praça da Alegria, onde se cozinhava o saboroso pato com. arroz1. Aí havia sempre cantoria até à noite, à hora em que saíam todos para o teatro.
5D. José de Almada morava numa hospedaria estabelecida no segundo andar do prédio que faz esquina para o Rossio e Largo de S. Domingos, em cuja loja estava a casa-de-pasto «Estrela». Àquela casa subiu, muitas vezes, o Luís de Vasconcelos, redactor da Lei, para ouvir D. José de Almada cantar o fadinho nacional com música religiosa, conforme a expressão usada por aquele ilustríssimo cantador. E este escritor, que viveu sob o regime fatal do romantismo e que adorou o fado como se adora a musa, merece bem uma lágrima e uma saudade...
6O Damas e o Bâgre foram os dois mais notáveis cantadores antigos. O Damas – cantador fino – cantava às flores, tinha bonito estilo e bonita voz. Realçava o seu canto por estes dois predicados essenciais num bom cantador. O tocador que, ordinariamente, o acompanhava era o famoso António Casaca. O Damas reformou o canto do fado, foi o «Calcinhas» daquele tempo. Era de Alfama, sapateiro e filho do «Alcochete», um que fizera parte da quadrilha do Diogo Alves e que exerceu, depois, as funções de agente da polícia secreta. O Damas morreu em 1865, pouco mais ou menos, lá para as bandas do Limoeiro, onde morava. Eis um mote dele:
Musa, inspira-me teu estro,
Já a doce lira soa,
Permite que eu diga em verso
O mal que me magoa.
7O Bâgre tinha voz roufenha e obra muito menos interessante. Dois motes do Bâgre eram estes:
Tenho um papagaio amarelo,
Criado nos Olivais,
Tenho uma pulga parida
Com trinta e cinco pardais.
Cantar e saber cantar
São dois pontos delicados,
Os que cantam são sem conto,
Os que sabem são contados.
8O Pedro Banana, cantador alfamista de linda voz, vinha muito à Mouraria para cantar os versos dos poetas pedestres, esses que não sonham em encerrar na música dos ritmos poéticos a chama dos pensamentos generosos e o frémito das carícias de amor, como se encerra um vinho precioso num frasco incrustado de gemas. Uma vez, em Alfama, um fadista, a quem ele suplantara na cantadoria, mimoseou-o com uma facada.
9O Inácio Torto, charuteiro, cantador de Alfama, cantava com o Damas. O Pizão, carpinteiro, hoje asilado, habitava para os lados de Alcântara, e cantava na Mouraria; e o Pizão sobrinho, cordoeiro, também vinha cantar à Mouraria, que era, por assim dizer, o sacrum flumen onde se fazia o baptismo dos novos adeptos do fado. Um grande cantador de fado, há trinta anos, era o Pedro, cocheiro do Marquês de Viana, valente batedor que batia nas esperas de toiros, guiando um carrinho levíssimo, a que tinham posto o nome de «giraldinha».
10Outros cantadores da época de 1860 a 1875 eram: o Neves da Fábrica de Fósforos, o José Maria Enguia (de Alfama), o Aquino (da Graça), o Cag...dinheiro (da Mouraria), que cantava menos mal e agora governa a vida vendendo bilhetes à porta dos teatros, e o cocheiro Maradas, grande batedor, que morreu toureando a cavalo na Nazaré.
11A esta plêiade pertence o Joaquim Enguia, um guitarrista cego que cantava o fado nas hortas. Pertencem, pouco mais ou menos à mesma época, os seguintes cantadores: o Rachado, de Sacavém, o Machado, do Campo Grande, o Farelo, de Azeitão, o José Chapim, dos Terramotos, o José Cecílio, carpinteiro da Azenha, o Adelino, de Coimbra, o Chico, o Chato, o José Maria Artilheiro, o preto Martinho, criado de umas fidalgas aos Anjos, o famigerado Luís Palhinhas e o Miguel Calceteiro. Podemos acrescentar-lhes mais os seguintes cantadores e autores: Sebastião da Vitória, carpinteiro, do Calhariz de Benfica, e Carlos Peixinho, tecelão, irmão do velho toureiro Peixinho; e os seguintes cantadores não autores: Joaquim Ferreira, do Calhariz de Benfica, e o cauteleiro Pontapénacara.
12De entre 1875 e 1880, citaremos estes cantadores: o Sebastião polidor, o Teotónio carpinteiro, o Alfredo Bacalhau, carpinteiro, e a Emília do Belo, cigarreira.
13Nos tempos do Conde da Anadia, floresceu uma cantadeira de primeira ordem – a Custódia. Formosa, alta, com os glóbulos sanguíneos carregados da força eléctrica da mocidade, dotada de boa figura e de bonita voz, cantava esplendidamente os fados, sobretudo o do Anadia, em cuja execução era inexcedível. Fácil lhe foi, portanto, conquistar popularidade, apesar de pertencer ao tiers état da galanteria encurralada na Travessa dos Fiéis de Deus. Custódia Maria – assim se chamava ela – cantou primeiramente o fado da Persiganga, contemporâneo do fado do Anadia, e depois é que cantou este, ensinado pelo Botas toureiro. Muitas vezes se fez ouvir perante numeroso auditório, na estalagem que fica por detrás do Teatro de D. Maria II. O fado da Custódia era composição dela mesma e de dificílima execução. Foi o cantador Paixão quem primeiro lh’o apanhou de ouvido e tocou na guitarra. A voz da Custódia, pura como cristal, vibrante como o vermelho de uma granada e de uma grande facilidade ascendente, escalava, com rara elasticidade, os mais escarpados cumes da gama cromática. A Custódia realizava o quadrado da hipotenusa da arte fadistense: boniteza, bela voz, audácia e desenvoltura.
14Dois motes que ela glosava frequentemente eram os seguintes:
Este meu cantar é arte,
E condão que Deus me deu,
Pois arreia o teu estandarte,
Que começo a içar o meu.
Fui ao jardim d’açucenas,
Onde a Primavera nasce,
Não achei flor mais linda
Que contigo comparasse.
15A Custódia amancebou-se com o valente António Feital, chalante ou contratador de gado, irmão do Ignácio Mastaréu, marujo, e filho de uma mulher que tinha a quinta fronteira à casa do Conde da Anadia a Entre-Muros, para onde ela mudou residência e onde morreu. Com a sua morte, apagou-se um dos mais flamantes sorrisos da Lisboa fadista...
16Para muitos dos que vão beber na fonte sagrada da recordação, a Custódia foi a suprema cantarina de fado que tem existido. Estes colocam-na acima da Cesária – estrela de primeira grandeza na plêiade dos grandes cantadores. O encanto vencedor da arte especialíssima da Custódia, segundo a especialíssima estética musical do fado, não se pode definir, porque a definição eterizar-se-ia e desapareceria como o espírito de um filtro. Debaixo deste restrito ponto de vista, a Custódia era pourrie de talents d’agrément, como diziam os Goncourts na Renée Mauperin. Soube deixar uma dessas recordações categorizadas entre as reminiscências singulares, que flutuam como cortiça na superfície da nossa memória. Foi um sol radiante do fado, foi consagrada nos altares da glória fadista.
17No Bernardino Ferreira Saldanha e no cordoeiro João da Mata, dois bons cantadores, predominava o canto à Escritura. O primeiro é de Queluz e tem casa de venda na Porcalhota. Bernardino Ferreira Saldanha foi ferreiro e estabeleceu-se depois com casa de venda de vinho e comida naquela localidade. Conta agora 80 anos, sendo, portanto, o decano dos cantadores. Foi notável cantador e autor, talvez o único que cantasse versos exclusivamente seus. Principiou por cantar à desgarrada e ao fandango, canto que é feito de improviso, por ter de se cingir à deixa do adversário, e, na resposta a dar-lhe, ter de fazer rima com a palavra com que este terminou. Segundo informações que recebemos do próprio Bernardino Saldanha, os principais cantadores à desgarrada e ao fandango – há sessenta anos bem puxados – eram: o Aldeia, o José Moleirinho, de Aldeia-Galega, e o bufarinheiro Manuel Simões.
18Quando se principiou a cantar o fado, foi posto de parte o canto do fandango, e o Bernardino Saldanha abandonou este para encetar aquele, que começou então a ser moda popular. Bernardino Saldanha evidenciou-se como improvisador hors ligne nesse terno fado, na popular cantiga que se diria ter brotado de algum sonho oriental, de um desses sonhos cheios de fosforescências, de brilhos estelantes, de lantejoulamentos metálicos, de um desses sonhos inarráveis em que se vêem catadupas de sóis liquefeitos caindo da Eternidade no Infinito...
19Segue-se uma cantiga de fado, original do Bernardino Saldanha:
O dinheiro é um bom metal,
Grande coisa é podê-lo ter,
A uns dá felicidade,
A outros deita-os a perder.
Diabólicas invenções
Esta obra do dinheiro,
É dos valentes primeiro,
É a força das nações;
Há homens que têm milhões,
Outros não têm um real,
Quem muito tem, muito vale,
É o ditado espanhol,
P’ra tudo que cobre o sol
O dinheiro é um bom metal.
Cá no meu fraco sentido,
Assim penso, amigos meus,
O dinheiro é mais que Deus,
Deus por ele foi vendido;
A quem falta oiro luzido
Não tem força nem tem poder,
Embora tenha o saber
Pouca gente lhe dá valor,
Seja de que sorte ele for,
Grande coisa é podê-lo ter.
O dinheiro tudo encobre,
Quem o tem, tem estimação,
Seja assassino ou ladrão
É reputado como nobre;
De que serve honrado e pobre
E só falar a verdade?
Na roda da sociedade
Não figura porque não tem,
Mas um homem portar-se bem
A uns dá felicidade.
Sem dinheiro não se é nada,
Não se tem força nem valia,
É a planta que se cria
Sem nunca ser cultivada;
Gente ao dinheiro agarrada
É bem capaz de o morder,
Quantos tem qu’rido enriquecer
Pelo meio da ambição!
A uns vai a coisa a feição,
E a outros deita-os a perder.
20Seguem-se alguns motes originais de Bernardino Saldanha :
Duas coisas há no mundo
Que eu não posso compreender:
Que é o ser padre e pecar,
Ser cirurgião e morrer.
Oh senhor padre, eu pequei,
Eu fiz um grande pecado,
Por ter dado à sexta-feira
Um beijo ao meu namorado.
O pobre do Zé-Povinho
Por todos é enganado,
Ainda corre a foguetes,
E por fim fica pasmado.
Quando Jesus faleceu
Quebraram-se as pedras duras,
Tremeu o céu e a terra
E abriram-se as sepulturas.
21Seguem-se três motes de João da Mata, que cantava obra dos outros:
Subi ao teu pensamento,
Nunca tão alto me vi,
Descaí da tua graça,
Outro subiu e eu desci.
Escrevi ao Deus Cupido
Uma carta a perguntar:
Se um amor ofendido
Devia deixar de amar.
Vive o artista no mundo,
Noite e dia a trabalhar,
Por fim, desgraçadamente,
Seus dias vem a acabar.
22Na casa do Silvestre Tanoeiro, na Rua do Arco do Bandeira, realizaram-se muitas sessões musicais de fado, em que tomou parte o Bernardino Saldanha.
23O Falua, grande cantador no canto a atirar ou ao desafio, era do Seixal e andava principalmente pelo Bairro Alto. Havia outro cantador notável neste género, o David. E o Augusto Tecelão, cantador de Alfama, frequentava muito a Mouraria há trinta e tantos anos.
24José Luís Peixoto, conhecido por José Borrego, torneiro na Calçada de Sant’Ana, possuía certa graça faceciosa no que cantava e dispunha de uma voz aguda, que se ouvia muito longe. O Maia guitarrista acompanhou-o algumas vezes. O José Borrego e outro cantador que cantava muito bem, o José da Burra, iam muito às esperas de toiros no Campo Pequeno. O José da Burra trabalhou como cocheiro do Silvestre dos ónibus e morreu tísico. José Borrego e José da Burra foram dois cantadores do género puramente fadista, cantando com tonalidades roucas e soluçado langor, esmaltando-se de todos os quindins fadistários, dando a última fórmula e o último tic em moda na arte.
25Seguem-se quatro motes de José Borrego:
Se tens valor de matar-me,
Tirana, fere-me o peito,
Que eu também tenho valor
De morrer por teu respeito!
Fui a Belas p’ra ver Belas,
E às belas Belas lhes dei,
Belas como há em Belas,
Belas belas não encontrei.
No Paço do Bemformoso
Encontrei a minha amante,
Ela riu-se e eu... chorei,
Foi um passo bem galante.
Pus-me a mijar de joelhos
P’ra não sujar o capote,
Levantei-me e dei... dois pulos,
Glosem-me lá este mote.
26O mote predilecto do José da Burra era este:
Eu ando como um cãozinho
Farejando após de ti,
Tu me foges, eu te sigo,
Não tens compaixão de mim.
27Por ocasião da morte de José Borrego, houve um poeta especialista, o Adrião, que dedicou estes versos do fado à sua memória:2
Deste mundo mais um ente
A cruel morte roubou:
Chorem do canto amadores,
José Borrego expirou!
ó parca, potente horrível,
Com o fero poder teu,
Cobriste com negro véu
Quem p’ra nós era aprazível,
Teu furor é bem temível,
Não poupas nenhum vivente;
Com tua ira imponente
Afrontaste a sociedade,
Levando p’rá eternidade
Deste mundo mais um ente.
Era um artista decente,
Laborioso e honrado,
Por isso, bem estimado
Foi sempre de toda a gente;
A prova é que ultimamente,
Quando a doença o cercou,
Muitos amigos achou
P’ra conforto do seu mal
Esse infeliz, que afinal
A cruel morte roubou!
De pequeno se inclinou
Ao doce canto do fado,
E seu estilo engraçado
A fama lhe conquistou.
Os loiros que ele alcançou
Não foram meros favores,
Mas sim mer’cidos louvores
Ganhos pelo estilo seu;
E agora que ele morreu,
Chorem do canto amadores!
Na classe de cantador
Foi tido por cavalheiro;
Em decência era o primeiro,
Não tinha competidor.
O lar do nobre amador
Muitas vezes frequentou,
Lá sua voz levantou,
E adquirir glória soube;
Porém, já ninguém o ouve,
José Borrego expirou!...
28O Patusquinho levava três e quatro noites a cantar sobre o mesmo assunto, e com um só mote cantava vinte cantigas e mais. O Patusquinho, que ainda é vivo, predominava no canto a atirar. Eis alguns motes seus neste género, em que ele era insolentíssimo:
Ah! ladrão, que m’atiraste
Sem eu te atirar a ti!
Já me deste uma picada,
Que eu, sem ver sangue, senti!
Eu cá por mim sou de cera,
Em tudo mostro brandura
Se canto é p’ra me livrar
D’ alguma descompostura.
És d’uma raça d’animais,
Que, quando estão c’o acidente,
Ferram com as mãos no chão
E dão coices para a gente.
Ao passar p’la tua porta,
Se tu me tornas a ladrar,
Meto-te um chifre na boca
Para te obrigar a calar.
29O Charepa, serralheiro de ofício e morador em Alcântara, formava na primeira fila dos bons cantadores. Um dos seus motes favoritos era este:
Tenho corrido mil terras,
A maior parte da Beira,
Nunca achei melhor amigo
Que o dinheiro na algibeira.
30O Charepa de S. Cristóvão tinha muito menor cotação. Mas o Minuto, que possuía uma voz agudíssima e que se ouvia a grande distância, era muito apreciado nos círculos da boa cantadoria. Um seu irmão também cantava o fado razoavelmente.
31Na Fonte Santa existiu um fadistão (cujo nome ignoramos), que cantava muito bem. O seu mote querido era:
Só o trevo é que se atreve
Entre o trigo a vegetar,
Eu sem ser trevo me atrevo
A entrada no canto dar.
32O Campanudo predominava na improvisação sobre a Escritura Sagrada. Exercia o ofício de poceiro e dava indicações à polícia secreta referentes aos gatunos. Larapiava as cantigas ao cantador Paixão, segundo este nos contou. Morreu tísico em 1902. O Costa Marreco tomava parte nas sessões nocturnas de cantadoria do fado nas esperas de toiros no Campo Pequeno. Vivia lá para as Fontainhas (a Santa Bárbara) . O Nicolauzinho do Calhariz de Benfica tinha muita obra, mas não era boa firma, principalmente quando o vinho o fazia titubear das pernas. Cantava e dançava o fandango lindamente.
33O Máximo dos Terramotos, pedreiro, cultivava o canto a atirar, mas, como na notação musical, nem sempre mantinha as regras da proporção e harmonia. Por outras palavras, desmandava-se e no seu canto abundavam as pachuchadas plebeias e os destampatórios salobros. O José Russo, papeleiro, distinguia-se na improvisação ao fado e no canto ao fandango. Cantou muito com o José Um. O José Carlos d’Assunção, tipógrafo, era cantador moral; o José Maria Fadista (que já morreu) enfileirava com os bons cantadores, e o Frederico, um que fora militar, cantava muito bem, especialmente as produções do João Vidraceiro, um poeta tecelão que escrevia versos para os cantadores de Alfama. É deste o mote seguinte:
Quem, te viu, oh Portugal,
No teu trono d’elegância,
Brilhavas entre as nações
Com coragem e com constância!
34O Bâgre parodiou este mote assim:
Quem te viu, oh bacalhau,
Naquela taberna à Esp’rança,
Brilhavas entre as batatas
Com coragem e com constância!
35José do Nascimento ou o José Um, polidor, nascido na Mouraria, cantava com uma graça desopilante. Tinha bela voz e bom pulmão. Era grande frecheiro de corridas de toiros. Hoje, velho gaiteiro, ainda canta com chiste no género abrejeirado. Seguem-se motes originais de José Um:
Eu já me senti morrer,
E achei o morrer tão doce,
Que por gosto a vida dera,
Se outra vez a morrer fosse.
Este fado veio ao mundo
Para alívio da pobreza,
Quem anda no triste fado
Não tem paixão nem tristeza.
Se me vires ser ingrato,
Não te admires, meu bem,
Que uma ingrata me ensinou
A ser ingrato também.
Cupido quando nasceu,
Beijinhos à mãe pediu,
Cupido é mais brejeiro
Que a mãe que o pariu.
Minha mãe me deu pancada
Por eu dar o que é meu,
Minha mãe tudo governa,
Mas n’isto governo eu.
Má vida a do burriqueiro,
Qual d’elas a mais cansada,
Levantar para a limpeza
Sobre a fresca madrugada.
Coitado de quem padece,
Mais sofre quem tem o mal,
É melhor estar na cadeia,
Que jazer no hospital.
Adeus Praça da Figueira,
Onde costumo ir às vezes,
Tive lá uma chicana,
Que me durou nove meses.
Segue-se um mote glosado, original de José Um:
O amor é uma albarda
Que Se põe em quem quter bem;
Eu, p’ra não ser albardado,
Não tenho amor a ninguém.
Consultei certa velhinha,
D’aventuras superior,
Só p’ra ver se ela adivinha
Que coisa no mundo é amor.
Eu lhe digo, oh meu senhor,
Diz-me a velha toda inchada,
Quem de ele se não guarda
Vai perjurar a sua fé,
Eu lhe explico o que é:
O amor é uma albarda.
É o albardão mais pesado,
Que no mundo a gente atura,
A uns tem arruinado,
Outros leva à sepultura;
É um mal que não tem cura,
E que nenhum remédio tem,
Que não perdoa a ninguém,
Que não saiba conhecê-lo,
Porque é grande pesadelo
Que se põe em quem quer bem.
Sobre d’amor os poderes
Desde que isto ouvi contar,
Tomei ódio às tais senhoras,
Que nem para elas posso olhar;
S’alguma vez vou passear,
E me faço encontrado,
S’alguma vez, descuidado,
Alguma chega à janela,
Nem sequer olho p’ra ela,
Eu, p’ra não ser albardado.
D’essas doidas tentadoras
Ando sempre fugitivo,
Tomei ódio às tais senhoras,
Que sem elas passo e vivo;
Eu não quero dar motivos
Para que m’albardem também,
Porque se no mundo há alguém
Que me deseje o meu laço,
Faça o mesmo que eu faço,
Não tenho amor a ninguém.
36O Paixão, cocheiro batedor de fama, cantava admiravelmente e primava no canto amoroso. Possuía uma voz maviosíssima e obra original em barda. Ele mesmo se acompanhava com a guitarra, que tocava bem. Em 1862, compôs o fado do Paixão, que teve imensa voga, mas que ainda está inédito. Depois de ter abandonado a profissão de cocheiro, o Paixão estabeleceu uma casa de pasto em Corroios, na Outra Banda, e, finalmente, uma loja de ferrador em Almada, alternando a sua nova profissão com a arte cinegética, de que é amador. A sua antiga amante, a Amélia do Paixão, foi uma chibante batedora de fado, pondo afrodisíacas ondulações de baiadeira nos seus meneios. Em seguida publicamos um mote glosado, original do Paixão:
Se tu, galo, bem soubesses,
Quanto custa o bem querer,
Nunca tu, galo, cantavas
Quando está para amanhecer.
D’um amante dilatado
É de noite a alegria,
Para que, galo malvado,
Cantas em sinal do dia?
Menos fora a tirania,
Se tu amor me tiveras,
E entre lençóis estiveras
Gozando de um doce bem,
Olha o gosto que isto tem,
Galo, se tu bem souberas!
Mas tu, como no poleiro,
Não se te dá de quem pena,
Por isso na alva cena
Sois penoso pregoeiro;
Oh galo, se um dia inteiro
Estivesses sem um bem ver,
Quando vem a amanhecer
Tu farias mais demoras,
Se o não fazes é que ignoras
Quanto custa o bem querer.
Mas, quando a horas amenas,
Por discreto as atrasas,
Quando lá bates as asas,
Tu multiplicas as penas;
Rompes em vozes serenas
E no dano não reparas,
Galo, se tu bem pensaras
O que nesta ocasião
Sofre um triste coração,
Nunca tu, galo, cantaras.
E no dano não reparas
Com que o dia certificas,
Para mim me publicas
O defeito de eu penar;
Cuida, galo, em te calar,
Não te dês a aborrecer,
Que eu não sei se pode haver
Uma estupidez tão atroz,
Como a d’ouvir a tua voz
Quando está para amanhecer.
37O Hermenegildo Ratado era guitarrista e cantador dotado de muito espírito. Tinha o ofício de charuteiro, mas pouco trabalhava, porque andava sempre na berra, conforme a expressão usual contemporânea. Amistou-se com uma rapariga chamada Mariana, conhecida na Rua dos Vinagres, mas, antes disso, tivera um quarto em casa do Marquês de Castelo-Melhor, que lhe dispensava a sua protecção, e a quem ele acompanhava nas esperas de toiros, para tomar parte nos descantes obrigatórios do Campo Pequeno. O Hermenegildo Ratado estava sempre no café que existiu defronte da igreja do Socorro. Cantou muito ao desafio com o Damas e o Bagre.
38Segue-se um mote do Hermenegildo Ratado:
Quantos andam para ver
O fim à nossa amizade,
Cada vez há-de ser mais,
Cada vez com mais vontade.
39Caetano Calcinhas foi o reformador do canto do fado, o criador de uma nova escola. Enfin Malherbe vint... Caetano Calcinhas iniciou o canto do género fino. Procurou assuntos menos triviais, abandonou as estradas batidas pelos outros cantadores – para cujo fim lia e estudava muito – e cantou os homens do mar, as flores, etc. O Calcinhas tinha o ofício de sapateiro de calçado de senhora, ofício que quase completamente abandonou para enveredar pelo trilho da malandrice. Tocava guitarra, mas era, acima de tudo, um eminente cantador, mas um cantador que parecia ter sido educado na escola das cigarras parnasianas. A sua voz melíflua dava todas as doçuras, todas as meias-tintas musicais, comovia profundamente, achava com facilidade o caminho do coração, cujas fibras vibravam, de repente, no triunfo das harmonias estimulantes. Tinha essas felicidades de expressão, a que Rivarol chamava na escrita – rencontres d’une plume en bonne fortune.
40Nas corridas de toiros por amadores, era da praxe convidar-se o Calcinhas, que também assistia ao jantar que se seguia à lide, onde ele tinha ocasião de improvisar a respeito da toirada, a qual sempre descrevia minuciosamente em verso, à guitarra. Muitas das suas versejaturas venderam-se em folhetos anónimos. Improvisava com extrema facilidade. Aquilo era fogo viste, linguiça! Estando, certa ocasião, no Casimiro do Poço dos Mouros, deram-lhe este mote, que ele glosou num pronto:
Casou um bonzo na China
Co’uma mulher feiticeira,
Nasceram três filhos gémeos:
Um burro, um frade e uma freira3.
41E fez e glosou o seguinte mote às peças então mais aplaudidas nos teatros de Lisboa:
Fiz «Uma viagem à China»
Pelo «Lago de Killarney»,
E «Um rapaz pobre» encontrei
Flanando co’a «Morgadinha».
42O Calcinhas andou muito na ganga da moina, na vida paródica da Mouraria, e, graças aos seus méritos de cantador superfino, colheu simpatias entre as gajas locais, entre o femeaço bairrista.
43Suspeitando-se de que fora autor da morte de uma mulher fácil da Rua do Arco do Marquês de Alegrete, chegou a estar preso por este motivo, mas soltaram-no depois de se reconhecer a sua inocência. Neste pretenso crime, achavam-se implicados o Calcinhas e dois outros indivíduos. Quem os defendeu no tribunal foram os drs. João da Silva Matos e Vale.
44O Calcinhas cantava todos os fados, mas principalmente o fado corrido. Morreu tísico em 1894. A sua arte quebrara os moldes do fado antigo e preparara o advento do fado moderníssimo, o fado latest-style, o fado que se sujeita à pauta dos portadores de lira e ao compasso dos que conhecem a harmonia, a fuga, o contraponto e todos os meios de fazer bulha com metais, cordas e peles de burro. Caetano Calcinhas foi, portanto, uma individualidade marcante no mundo da arte fadistal.
45Os motes seguintes são originais do Calcinhas:
Eu rendo culto à pena
Não rendo culto à espada,
Quem mata p’ra ter glória,
Cá p’ra mim não vale nada.
O ser bonita no mundo
Causou a minha ruína,
E hoje morro de fome,
Encostada a uma esquina.
Defronte d’esta prisão
Vejo as árvores balouçando,
Alegres os passarinhos,
De ramo em ramo saltando.4
Vou contar minha crónica
Com palavras bombásticas
E p’ra o canto raquítico
Peço paciências elásticas.
Não existe a Divindade
Nas regiões siderais,
Nelas só vê a ciência
Matéria e nada mais.
O meu coração, coitado,
Nada neste mundo espera,
Nem as delícias do fado
Que canta a nossa Severa.
O «Calcinhas» imortal
Vem junto a vós, traz as calças,
Que o fado nacional
Já entrou no rol das valsas.
Aceita a chave do portão,
Considera-a como tua,
Porta-te bem, porque senão
Vais outra vez p’ró meio da rua.5
46O Calcinhas cantava não só obra sua, mas também a de outros polidores de rimas, sendo os principais: F. A. Correia, tipógrafo e colaborador d’O Pianinho, e Antino Vigas (António Viana), colaborador d’O Pimpão. E, a este propósito, publicamos um fado político de Antino Vigas, inserto n’O Pimpão n.° 149 de 1879:
a qualquer dos ministros
(Cantigas do fadinho)
Com cantigas se governa
Muita gente nossa amiga,
E por isso a mal não leves,
Pois não deves,
Que eu te largue esta cantiga6
Do estado o «catraio» amarra,
Que de «nau» vaidoso alcunhas,
Salta em terra e se tens unhas,
Vem p’ra aqui tocar guitarra.
O fadinho não mascarra
Os teus brasões; traça a perna,
E esta cantiga moderna
Escuta do o teu descanso,
Já que há muito o país manso
Mole e tanso
Com cantigas se governa.
Escuta, pois: – p’ra que montes
Do governo a burra manca,
Ralei-me a dar co’uma tranca
Nas duras costas do Fontes.
É justo, pois, que tu contes
Co’a minha inane barriga;
Não consintas que ela diga
Que – ingrato – não largas nada,
Conforme já por i brada
Escamada
Muita gente nossa amiga.
Por ti levei um tabefe
Que inda parece que estoira,
Eu rejeitei uma «loira»,
Que me dava um cabo-chefe.
O voto de um magarefe
Comprei na loja do Neves,
E paguei aos almocreves
Muito vinho que foi gasto.
Tenho, pois, direito ao pasto,
Não me afasto,
E por isso a mal não leves.
Com as provas que eu exibo,
Mereço, por ser um «alho»,
Um lugar cujo trabalho
Seja passar o recibo.
Eu conheço enorme tribo
Que assim vive sem fadiga
E já que por balda antiga
Isto é roupa de franceses,
Não esperes muitos meses,
Que mais vezes,
Eu te largue esta cantiga.
47Segue-se o fado (trovas) com que António Viana satirizou o primeiro concerto de guitarras no Casino Lisbonense:
Três cantadoras do fado,
De cuia, estupenda e alta,
A cantarem no Casino,
Eu vi, à luz da ribalta.
Eram quatro tocadores
De banza, nada macanjos,
E, entre eles, brilhava o Anjos,
Dedilhando os seus primores;
Findaram estes senhores
Seu concerto sublimado,
E entram dai a bocado,
Com a força de uma bomba,
Três mocetonas d’arromba,
Três cantadoras do fado.
Salva ruidosa e estridente
De palmas e d’assobios,
Saudou os primeiros pios
D’aquela trindade ingente;
Depois d’um coro excelente,
Em que não houve uma falta,
Veio então a mais peralta
Chimpar-nos uma cantiga,
Trajava de cor d’ortiga,
De cuia estupenda e alta.
Veio outra logo em seguida
Largar a sua piada,
Era gorducha e corada,
De cor-de-rosa vestida;
Deixava entrever, garrida,
Belo seio alabastrino,
O seu porte era tão fino,
Que alguém que ali ’stava, crera
’Starem damas d’alta esfera
A cantarem no Casino.
De vestido cor de cana
A terceira veio à frente,
E cantou optimamente
Com requebro e voz magana;
Acabou, e toda ufana
Não quis dar bis, fez-se à malta,
O povo p’rá frente salta,
E os rapazes mais trocistas,
Qu’rendo papar as artistas,
Eu vi, à luz da ribalta.7
48Chegamos agora a uma cantadora famosíssima, a uma digna continuadora das magnas tradições da Severa e da Custódia – a Cesária ou a mulher de Alcântara. Esta rapariga trabalhava numa fábrica em Alcântara e amancebara-se com um fadistão. Tinha voz agradabilíssima e muita livraria, isto é, na sua memória conservavam-se armazenados, como num fonógrafo, centenas de versos, que depois lhe brotavam dos lábios coralinos em expectorações ininterruptas. Uma vez, estando a cantar numa casa de pasto em Alcântara, entrou aí um grupo de amigos, amadores do fado, grupo que era composto do Cesário Sales, canteiro8, do Morais Náutico, professor de pilotagem, e de João Muzanti, que tinha cocheira na Travessa da Palha e que, depois, teve ónibus para Belém.
49Uma cantadora contemporânea da Cesária, Luzia, a Cigana, teve muitos desafios ao fado com ela na casa do José Patrício, um homem que tinha uma salsicharia e tenda em Alcântara, e, defronte destas, um quintal, onde se faziam amiudadas sessões de fado. Houve um descante, em que a Cesária e a Luzia brilharam à compita, e que durou dois dias e uma noite. Um desafio entre os principais cantadores do tempo, que se realizou na fábrica de chitas em Sacavém, chamou lá mais de trinta carruagens cheias de gente. E as duas cantadoras citadas, o Cesário Sales, o guitarrista Carreira, o Muzanti e o Morais Náutico, andavam em rapiocas de fado de durarem três e quatro dias, e em que se traduzia à letra o Nunc est bibendum de Horácio. Ãs vezes, o Morais Náutico ferrava consigo na quinta da Pimenteira, e aí se deixava ficar oito dias, em jantares dignos de Luculo e em descantes de fado, nos quais tomavam parte o Calcinhas e o Patusquinho, que ganhavam quatro coroas diárias cada um, além do jantar.
50No café da Quitéria, em Arroios, travaram-se desafios ao fado, em que entrava a Cesária, e que duravam dois e três dias.9 O guitarrista que acompanhava a Cesária era o Carreira, um pândego que fora retroseiro e a quem o Cesário dava dez tostões diários para a acompanhar e ensaiar.
51Num duelo que a Cesária empenhou com a Luzia, aquela atirou a esta o seguinte mote, como que tirando-a a campo de zombaria:
Gri gri gri, queres mais toucinho ?
Dizia a Cigana ao Judeu10
E o Judeu por gratidão,
Todo o toucinho lhe comeu.
52Mas a Luzia aziumou-se, pôs um crepe no seu sorriso e fanfou-lhe com este mote atrevido como um golpe de espada:
O Cesário comprou há anos
Uma burra bem segura,11
Porém já estava arrombada
No segredo da fechadura.
53O primeiro mote e a glosa respectiva eram de Ernesto Marecos. Mas isto necessita de uma explicação. O João Muzanti estomagara-se com a Cesária por causa de uma ofensa desta. O Muzanti quis pregar-lhe uma peça, e, como sabia todos os motes da Cesária, pediu a António Viana (Antino Vigas) que lhe compusesse cantigas em resposta, e foi entregá-las à Luzia. Sempre que esta se defrontava com aquela em desafios de fado, pespegava-lhe com respostas que vinham mesmo ao pintar e eram cortadas numa ironia em ângulos agudos, o que fazia com que a Cesária e respectivo Cesário dessem a cardada ao demo. Esta guerra a picadas de alfinete tornou-se memorável nos anais do fado.
54Outra cantadora contemporânea da Cesária, a Isabel do Morais, possuía boa voz e cantava muito bem com aquela. Quem lhe escrevia as cantigas era o Morais Náutico, seu amante, e por sinal que eram todas muito espirituosas. Os que escreviam versos para a Cesária e para diversos cantadores da época eram: Ernesto Marecos, António Viana (o Antino Vigas de O Pimpão), barbeiro no Largo do Corpo Santo, F. A. Correia, tipógrafo e autor de cenas cómicas (já falecido), José Adrião, Boaventura Henriques de Carvalho, Carmo e Sousa, Luís de Araújo, J. Inácio de Araújo, etc. Os versos cantados pela Cesária eram mandados fazer tout exprès pelo seu amante Cesário, que os chegou a pagar a dez libras aos autores.
55Publicamos cinco motes mui queridos da Cesária:
Alerta, refertadores!
O clarim toca a rebate!
Os ecos repetem – guerra!
E a guerra diz – combate!
Portugal sente-se ufano,
Tem bom dinheiro cunhado,
Mas quem o tem chama-lhe seu
Ou herdou ou tem roubado.
No tempo de barb’ras nações
Pregavam os ladrões nas cruzes,
Hoje, no sec’lo das luzes,
Pregam as cruzes nos ladrões.
Que grande carnificina
Que na França e na Prússia vai,
Tanta mulher sem marido
E tanto filhinho sem pai.12
Defender os pátrios lares,
Dar a vida pelo rei,
É dos lusos valorosos,
Carácter, costume e lei.
56Como todo o cantador que se preza, a Cesária teve o seu fado, o fado da Cesária ou o fado de Alcântara, que foi composto pelo guitarrista Ambrósio Fernandes Maia em 1870.
57A Cesária não aprendeu música, é certo. Mas também o rouxinol perla as gamas da sua ternura sem se ter previamente submetido à ferula professoral; mas também a cigarra de La Fontaine se apaixonou pelo canto sem que ninguém lhe incutisse a paixão da arte. A Cesária tivera por madrinha uma filha póstuma de Júpiter e desconhecida no mitologismo – a Musa do fado. No mundo da arte fadistal, a Cesária tornou-se uma actualidade – essa flor caprichosa e que um nada desbota, como diz Augusto Villemot. Conquistou o aplauso incondicional de todos os sinhedrios musicais especialistas e os supremos sufrágios de todos os exegetas do fado. Foi a Eva musical coroada num Eden de harmonias... de guitarras. Como a Patti encarnou a Rosina sonhada pelo Beaumarchais e pelo Rossini, ela corporalizou a cantadora sonhada pelos grandes amadores da lusitaníssima canção popular. A música esquisita da sua voz de sereia vibrou, por largo tempo, na memória de todos os que amavam e compreendiam a alma elegíaca daquela canção, que faz palpitar as fibras mais secretas da sensibilidade amorosa, daquela melodia embaladora como as redes balouçadas pelas mãos blandiciosas das mucambas moquencas nas chácaras brasileiras. E a Cesária aparece a nossos olhos como a figura melancólica e fantástica de uma espécie de Mimi Pinson, com as ares tocantes de uma vaporosa Ofélia au petit pied, flutuando, de flores na mão, pelo veio cristalino do rio das recordações...
Umas trovas do fado, muito cantadas no tempo da Cesária, foram as seguintes, originais de Boaventura Henriques de Carvalho, então colaborador de O Pianinho:
Não vás ido ermo à capela,
Ninguém de noite lá vai,
Dois fantasmas saem d’ela,
Dois amantes mortos já.
Eram de branco -vestidos
Os vultos que descobri,
Quando de mais perto os vi,
Quase perdi os sentidos;
Soltando agudos gemidos
Como o vento na procela,
Ouvi dizer: «Virgem bela,
Não me deixes, vem comigo,
Repousa no meu jazigo,
Não vás do ermo à capela.»
«A sorte não permitiu
Que em vivos fôssemos juntos
Hoje, que somos defuntos,
O destino nos uniu;
O nosso amor ressurgiu,
Vem, pois, ninguém nos verá,
Porque eu creio que não há
Quem descubra este mistério,
E também que ao cemitério
Ninguém de noite lá vá.»
Detiveram-se os dois amantes
Unidos por estreito abraço,
E depois de longo espaço,
Juraram em ser constantes;
Passados breves instantes,
Ouvi dizer: «Minha estrela,
Deixa a ermida singela,
Onde alguém nos pode ver,
Receio que vão dizer:
Dois fantasmas saem d’ela.»
«Receio que novamente
Seja o nosso amor vedado,
Por isso vem, que a meu lado
Tu serás eternamente.
Oh ! meu doce bem consente
Que eu te conduza ’té lá,
Que por nós esperando está
Esse funéreo lugar,
Onde devem repousar
– Dois amantes mortos já!»
58Do tempo da Cesária é, igualmente, o poeta José Rodrigues Adrião, que principiou a poetar em 1852 e que ainda hoje verseja para o fado. São seus os seguintes motes inéditos:
Desejava me dissessem
Esses sábios da ciência,
Se estaria em seu juízo
Quem se tira a existência.
Alerta, oh liberais,
Não temamos a reacção,
Batalhemos até morrer
Contra a falsa religião!
Com a pena e com a espada
Em muitas ocasiões,
Mostrou qual o seu valor
Luís Vaz de Camões.
Tu és cravo e eu sou rosa,
Qual de nós tem mais valia ?
Tu és cravo não sei de quê,
Eu sou rosa d’Alexandria.
Eu sou cravo e tu és rosa,
Qual tem mais aceitação?
Tu és rosa d’Alexandria,
Eu sou cravo do Maranhão.
Já lá vai já se acabou
O tempo em que eu cantei bem,
Hoje só me podem ouvir,
O que nenhuma graça tem.
Houve um Saldanha cantor
Em outro tempo passado,
Ainda vive, não morreu,
Mas velho e acabrunhado.
Descobriram finalmente,
Da ciência os professores,
Dar fim à tuberculose
Por meio de escarradores.
Visto que nada escapa
À vil falsificação
Deve ser analisado
O fabrico da geração.
Segue-se uma cantiga inédita de José Rodrigues Adrião:
Quanto é delicioso
Pela fresca madrugada,
O ouvir os passarinhos
A fazerem chilreada.
Foi o autor da natureza,
A quem nada é impossível,
Com o seu poder invisível
Quem formou tanta grandeza;
Tudo no mundo é beleza,
Tudo é maravilhoso,
P’ra tudo ser grandioso
Até criou avezinhas,
E ouvi-las, coitadinhas,
Quanto é delicioso!
Que lindo, ao romper do sol
Na manhã bonita e bela,
Estar sentado à janela
A escutar o rouxinol;
Ver lá ao longe o farol,
Ver a montanha serrada,
Ver a campina elevada,
Descobrir o esplêndido mar,
E avezinhas a voar,
Pela fresca madrugada.
É rudemente magistral
O débil cântico frouxo
Do suave pintarroxo,
E da toutinegra real;
Não há nada mais ideal
Do que ver sobre os tronquinhos
As avezinhas nos ninhos,
Para os filhinhos gerarem,
E, depois de os criarem,
O ouvir os passarinhos.
No magnificente jardim
Ouve-se o som delirante,
Do melro a voz vibrante,
Escondido no alecrim;
E vê-se a rama do jasmim
De pássaros apinhada,
E logo, em debandada,
Voando p’rós regueirinhos,
A molharem os biquinhos,
A fazerem chilreada.
59Na décima seguinte, explica José Rodrigues Adrião como principiou a fazer versos para o fado:
Quinze anos contava então,
E nada de si supunha,
Já o seu verso compunha
José Rodrigues Adrião;
Por lhe verem a propensão
Foi p’las musas cativado.
O seu estro já falado
Os amadores procuravam,
Seus versos utilizavam
Diversos cantores do fado.
60Outra cantarina da época da Cesária, embora de menos fino quilate que o desta, era a Coxa. Maria das Neves, a Coxa, casou com o cantador Augusto Peludo (discípulo de José Borrego), que foi cocheiro de tipóias de praça até que baixou a moço de segurar cavalos no Largo de Santa Justa, e, por fim, à sepultura em 1902. A Coxa empenhou sabatinas de fado com a Cesária. Um mote do Augusto Peludo era este:
Com a minha mão direita
Fiz uma cova no chão,
Para enterrar os meus olhos
Que tão desgraçados são.
61Seguem-se dois fados cantados pelo Augusto Peludo:
Canta o soldado na guerra,
Canta o nauta sobre o mar,
Cantando se passa a vida,
Esquecem-se as dores a cantar.
Canta o índio indolente
À sombra da bananeira,
Canta o vento na palmeira,
Quando passa docemente;
Canta o proscrito ausente
Saudades da sua terra,
Canta o pastor na serra
O seu amor terno e querido,
E até da bala ao zumbido
Canta o soldado na guerra.
Canta o rio murmurando
Nos freixos da verde margem,
E ao sopro da branda aragem
Ouvem-se os freixos cantando;
A mãe o filho embalando
Junto ao berço vai cantar,
Canta o artista a lidar,
Canta o camponês n’aldeia,
E em noites de lua cheia
Canta o nauta sobre o mar.
Cantam os padres no altar
Hossanas ao Deus criador,
E os arcanjos do Senhor
Na glória estão a cantar;
Canta a velhinha no lar
A lenda tão conhecida,
A cantar o mal s’olvida,
A cantar esquecem tormentos,
A cantar esquecem lamentos,
Cantando se passa a vida.
Ao romper a aurora bela,
Canta alegre o rouxinol,
Como triste ao pôr do sol
Canta a triste filomela;
Canta a tímida donzela
O amor que vai cativar,
E até mesmo no lupanar
Cantam tristes pecadoras,
A cantar passam as horas,
Esquecem-se as dores a cantar.
Morre um afecto outro nasce,
Vai-se um desejo outro vem,
Depois de um sonho outro sonho,
De tantos que a vida tem.
Como a flor hoje nascida,
Mimosa, linda e louçã,
Que o vento sul d’amanhã
Deixa na haste pendida,
Assim é a nossa vida
Que entre mil prazeres renasce,
Com leve sopro desfaz-se
À beira da campa fria,
Como nasce e morre o dia
Morre um afecto outro nasce.
A vida é um turbilhão
Cheio de crime e virtude,
A vida é sonho que ilude,
Mas tem curta duração;
Ansioso o coração
Não se contenta com o bem,
A ambição nos mostra além
Um rival feliz e contente,
E neste anseio ardente,
Vai-se um desejo outro vem.
Hoje a esp’rança de ventura,
Amanhã o luto e a dor,
Hoje uma jura d’amor,
Amanhã esquecida a jura;
Infeliz de quem procura
No mundo porvir risonho,
Cheio de mágoas, tristonho,
O porvir lhe surgirá
Que esta vida só nos dá
Depois d’um sonho outro sonho.
Só uma eterna verdade
No mundo existe, é a morte,
Mas dos prazeres no transporte
Não lembra à humanidade;
Ela zomba da saudade,
Do amor de pai e de mãe,
Zomba do mal e do bem,
Tudo quanto vive é mortal,
É o desengano final
De tantos que a vida tem.
62José Maior (o sr. José Joaquim Emídio Maior) foi, e ainda é, um cantador notabilíssimo, de voz de bom timbre, embebendo-se de emoção a cada passo, dando os mais subtis cambiantes do fado com um colorido todo de velaturas. Artista ensamblador de raro mérito, discípulo da escola de Leandro Braga, entregou-se, nas horas de ócio, ao estudo da guitarra e do canto do fado, logrando atingir a perfeição ideal do amador, que consegue dar quinau aos profissionais. Muitas vezes tomou parte em grandes descantes de fado no Retiro dos Pacatos e se defrontou com o Calcinhas, sem que este jamais lhe levasse a melhor. Tem muitas produções suas, algumas das quais insertas n’O Pianinho.
63Os motes que se seguem são originais seus:
Pegando no livro da vida
Vai-se lendo e meditando;
Vem a morte e diz-nos «Fim,
Que adiante ias passando».
Pobre foi meu nascimento,
Pobre fui, pobre hei-de ser,
Pobre será minha dita,
Pobre serei no morrer.
Sentado às portas da morte,
Triste a morte me encontrou;
– Venha cá, morte, não siga,
P’ra morrer é que aqui ’stou!
órfão no mundo perdido,
Quanto é triste meu viver!
Onde o ser pobre é desprezo,
Quem me dera já morrer!
Que me importam outras flores
De perfume rescendente,
Se as flores da minha vida
Murcharam rapidamente.
64António de Albuquerque, o António Maluco, cortador, cantador de merecimento, ainda hoje sabe atirar a sua piada, acompanhando-se à guitarra. Teve duelos de cantadoria com a Custódia. A esta eminente cantadeira fez ele o seguinte mote:
Canta, Custódia Maria,
Rainha dos cantadores,
Eu hei-de mandar-te c’roar
Com uma c’roa de flores.
65A. J. Ribeiro, o Ribeirinho, um rapaz que viveu entre a média boémia de há vinte para vinte e cinco anos, tinha uma voz agradabilíssima de cantador melísono como um tenorino e fazia ouvir frequentemente as legendas rosses e apimentadas dos fadinhos nas esperas de toiros, nas rapiocas das hortas e noutros sítios. O Ribeirinho dispunha de uma voz adequada ao canto do fado. Ora se molhava de lágrimas, ora filtrava os gemidos recônditos da saudade, ora soava triste como um dobre de finados, ora se repassava de morbidezas gaiatas. Às vezes, parecia que um espírito maligno lhe estava fazendo cócegas na glote... Muitas vezes fez chorar o círculo dos seus auditores, enquanto o guitarrista tirava acordes do instrumento, feria sustenidos pela oitava, subia diatonicamente, arrancava sons gemebundos às toeiras e às primas, às segundas e aos bordões...
66O Ribeirinho compôs um fado, que ele cantava, mas que ficou inédito. As suas prendas de cantador seduziram Francisco Palha, que o escriturou como actor do Teatro da Trindade, onde representou operetas e o Ditoso Fado com a actriz Josefa de Oliveira.
67Faleceu vítima da tuberculose. Eis alguns motes que ele cantava:
Oh bela pombinha branca,
Não te deixes apanhar,
Depois de tu estares presa
Ninguém te pode soltar!
Oh cipreste verde e triste,
Cópia da minha figura,
Verde qual minha espe’rança,
Triste qual minha ventura!
Não sabes, oh prostituta,
O fim que foste buscar,
Teu corpo feito em bocados
Na vala irá acabar!
Para matar a fome, um dia,
Fui a minha honra vender,
Hoje peço à sociedade
A honra que me fez perder.
Oh meu pai, meu querido pai,
Não fui eu só a culpada,
Era nova e não pensei,
Caí em falsa cilada.
Eras qual maga visão,
Que os sentidos me prendia,
Eras, mulher, um encanto
De volúpia e de magia!
Os meus beijos não se vendem,
Nem meu corpo é p’ra leilão,
Desprezo oiro e brilhantes,
Que pela honra me dão.
Oh meu bem, quando eu morrer,
Vai na sepultura pôr,
Uma letra em cada canto:
A. M. O. R. – Amor.
Eu convido os meus amigos
P’ra uma ceia que vou dar,
P’ra sobremesa há pinhões
E o mais que queiram levar.
Três dias depois de morto
Perguntou-me o frio chão:
– Se eu era rapioqueiro ?
Eu lhe respondi que não.
68Um cantador que desfrutou certa notoriedade foi António Maria Monteiro, o Diguidão, irmão do cavaleiro tauromáquico José Casimiro Monteiro.
69O Marrequinho da Mouraria, um zé ninguém, um pilrete giboso, tinha o ar lúgubre de seguir o seu próprio enterro. Cantava bem. Chegavam a pegar nele ao colo para o levar às tabernas, onde queriam ouvir a sua voz pardacenta como cinza que cai.
70Segue-se um mote do Marrequinho da Mouraria:
Agradeço aos senhores
Todo o bem que estão fazendo,
Já que não posso pagar-lho,
Paciência, fico devendo.
71O Josèzinho de Alfama, outro bom cantador, tinha o ofício de pedreiro e foi degredado por ter morto um galego na Rua da Prata. Quando esteve preso no Limoeiro, entretinha-se a cantar às grades da prisão, enquanto o Minuto lhe respondia cá em baixo, da Rua da Adiça.
72Antes de botar da barra em fora para o degredo, compôs a seguinte cantiga de despedida à cidade de Lisboa:
Adeus, oh pátria querida,
Aonde eu fui baptizado!
Adeus, parentes, amigos,
Que eu cá vou degredado!
Com penas do coração
Me despeço d’aqui primeiro,
Adeus, grades do Limoeiro,
Adeus, Rua do Barão;
Adeus, Aljube, prisão
Onde estão moças da vida,
Quero dar a despedida
Nesta ocasião tão boa,
Adeus, oh Sé de Lisboa,
Adeus, oh pátria querida.
Adeus, Santo António da Sé,
Adeus, Rua da Padaria,
Peço à Virgem Maria
Que me dê boa maré;
Tenho esperança e fé
Que por ela sou guiado,
Meu peito vai encerrado,
Meu coração se inflama,
Adeus, Santo Estêvão d’Alfama,
Aonde eu fui baptizado.
Adeus, Rua dos Sapateiros,
Manda-me embarcar quem governa.
Adeus, Rua Madalena,
Adeus, Rua dos Retroseiros;
Adeus, Rua dos Fanqueiros,
Adeus, Terreiro dos Trigos,
Que eu cá vou metido em p’rigos,
Que é o que mais me mata,
Adeus, oh Rua da Prata,
Adeus, parentes e amigos.
Se eu em Angola morrer,
É isso o que mais me custa,
Adeus, oh Rua Augusta,
Adeus, oh Rua do Ouro;
Adeus, Público Tesouro,
Adeus, Pelourinho gabado,
Adeus, Arsenal do estado,
Adeus, oh Nova Conceição,
Adeus, igreja de S. Julião
Que eu cá vou degredado.
73O Josèzinho de Alfama amancebou-se em África com a famigerada Maria Petiza, uma tarântula da Mouraria, uma chinfrineira que tinha o corpo pintalgado de tatuagens. Esta celebrada megera perpetrara dois assassínios por meio de navalha na noite de 11 de Dezembro de 1859, na lôbrega alfurja do Capelão. Poucos dias antes, partira a cabeça com um tamanco ao Calcinhas do Cais do Sodré na taberna do Bento Chico, defronte da Rua dos Canos, junto ao pátio da sacristia de S. Domingos. As duas pessoas assassinadas foram o Eusébio da flauta e o António da Praça, moço da botica que estava à esquina da Rua do Capelão, vendedor da Praça da Figueira e amante da Maria Petiza. Julgada no Tribunal da Boa-Hora, onde a defendeu o Dr. Silva Bruschy, e onde caiu a Mouraria em peso para assistir ao julgamento, foi condenada em quinze anos de degredo para a África, atendendo a ser menor de 21 anos.
74Maria Petiza, alta e desempenada mocetona – ao contrário do que a sua alcunha inculcava – enamorou-se do Josèzinho de Alfama durante a sua forçada vilegiatura em África. Mas estes amores finalizaram em tragédia. Ela, certa noite, armou uma ariosca para assassinar o Josèzinho, mas este, dando-lhe na trilha, aplicou-lhe uma tareia mestra e pô-la fora da porta, onde o relento da noite lhe provocou uma febre, que lhe serviu de passaporte para a outra vida. O Josèzinho de Alfama regressou a Lisboa, já casado e com certos meios de fortuna. Seguem-se motes cantados pelo Josèzinho de Alfama:
Pus um pé na sepultura,
Onde estava o corpo humano,
E uma voz ouvi dizer:
Não me pises, oh tirano!
Escurecem no céu as estrelas,
Murcham no jardim as flores;
Triste sorte a do Zèzinho,
Beijinho dos cantadores.
Sou rapaz, gosto de ver
As pernas às raparigas,
Se são grossas ou delgadas,
Se são curtas ou compridas.
O tanque das lavadeiras
É a escola da maldade,
Ouve lá muitas asneiras
Quem espreita por certa grade.
Senhores, morreu o galego
Que tinha posto uma quitanda,
Foi p’ró Alto de S. João
Levado por uma gâmbia.
No dia vinte d’Agosto
Foi-me um amigo visitar,
E eu lhe dei oito vinténs
Para umas solas me comprar13
75O cantador popular José Augusto foi uma celebridade das ruas. Como cantador de fado, chegou a ganhar um prémio num concerto realizado no teatro do Príncipe Real. Mas a sua voz rouquenha predispunha-o mais para Demóstenes de carnaval e pregador do enterro do bacalhau ou da serração da velha, o último avatar da tipóia de Tespis. Em seguida publicamos o mote da cantiga, que cantou naquele teatro:
Eu sou médico exótico,
Prático e científico,
Curo ataques epilépticos
Com o meu saboroso específico.
76As duas cantigas seguintes – a que conservamos a metrificação e o sentido – são do José Augusto da primeira maneira, o José Augusto revolucionário e republicano, o mesmo que depois havia de evolucionar para monárquico e ordeiro:
Deus, diabo, inferno e céu,
Baptismos e confissões,
Sermões e missas cantadas,
Tuido isso são palões.
O que é o catolicismo?
É o título mais infame,
D’uma caterva ou enxame
De sectários do egoísmo;
Quem domina o fanatismo
É a vítima do ateu,
E nega firme como eu,
Não ser santo seu ministério,
Conhece, por vitupério,
Deus, diabo, inferno e céu.
Não me fio nos conselhos
Dos padres, chusmas malditas,
Que se dizem parasitas,
Neste mundo, meus espelhos;
Os encontro de joelhos
Nos templos fazendo orações,
Com as péssimas intenções
De nelas me fazerem crer,
Quando só vivem de fazer
Baptismos e confissões.
Os ministros da religião
Essa indecente canalha,
Dizem ao povo: trabalha!
Mas eles mexerem-se, não;
A sua árdua missão
É sim das mais engraçadas,
Dizem latim às carradas,
Papam hóstias, bebem vinho,
Impingem ao Zé-Povinho
Sermões e missas cantadas.
Tem cada um uma ama
Nova e que seja peixão,
Que lhe trate da refeição
E durma com ele na cama;
À vida do padre se chama
Vida de mortificações,
Inzoneiros e mandriões,
D’onde só o mal germina,
O seu Deus, sua doutrina,
Tudo isso são palões.
Destruir a monarquia
Haver no mundo igualdade,
São dois pontos sublimes
Por que pugna a sociedade.
De que serve à pátria o rei,
Toda a imbecil nobreza,
Que p’la força da riqueza
E p’la posição são a lei?
O poder que ao vil darei
A desordem e à anarquia,
A vileza e a tirania,
Tudo isso deve acabar,
Cumpre ao povo sem esperar,
Destruir a monarquia.
Destruída, tereis então
De cumprir sérios preceitos,
Gozareis de os direitos
De um povo livre em acção;
Quem ama a sua nação
Odeia a cruel majestade,
Realeza – nulidade,
A dizer há quem se atreve,
P’ra nossa ventura deve
Haver no mundo igualdade.
Reis, príncipes e rainhas,
Duques, marqueses, barões,
Medalhas, comendas, brasões
D’estado régias gracinhas;
Oh Povo, que isto tinhas,
Eras um réu de vis crimes,
Domaste-te como os vimes,
A tal caterva singular,
Porque o roubar e o matar
São dois pontos sublimes.
O rei vive ocioso,
C’roado de louro e carvalho,
A sombra só do Trabalho,
Do pobre laborioso;
Descei do trono ditoso,
Oh germen da ociosidade!
O povo é rei, e há-de
Não cessar contra a súplica,
Dando vivas à república
Por que pugna a sociedade.14
77O João França, pedreiro, irmão do popular José Augusto, canta e compõe cantigas para os outros cantadores. É repentista. É certo encontrá-lo, aos sábados à noite e aos domingos, no Retiro dos Pacatos ou no Retiro da Montanha, tomando parte nos descantes de fado.
78Segue-se o mote da cantiga, que ele fez à morte do bandarilheiro José Peixinho:
A morte cruel, infame,
Mais uma vida roubou,
José Peixinho, toureiro,
À fria campa baixou.
79Existia, e ainda existe, o Augusto Palhetas, cantador e tocador que anda principalmente pelos arredores de Lisboa, nas festas saloias. Toca guitarra, fazendo-se acompanhar de uns guizos que enfia nos dedos. Tem apenas meia dúzia de cantigas, sendo a sua favorita aquela que começa: Adeus, oh Serra de Sintra! O Augusto Palhetas é um melro de bico amarelo, um patusco de letra muito miúda, um marau com tretas. Ignora o uso do sabão, e só muda de camisa quando a lua muda de fisionomia. Outro cantador da mesma laia e com idênticas baldas é o Saloio da Portela, um vaganau com ronha. Eis um mote seu :
Amanhã é qu’anda a roda,
Quem me compra uma cautela!
Dizia um cauteleiro
Ao Saloio da Portela.
80Na seguinte cantiga a atirar, recolhida em Lisboa em 1874, citam-se os principais cantadores da época que decorre de 1865 a 1875, a idade áurea do fado:
Os cantadores deram a mão
E juraram de me vencer;
Que venha um por cada vez,
Minha memória combater.
De Angola o «Josèzinho»,
De Sacavém o «Rachado»,
Do Campo Grande o «Machado»,
E da Baixa o «Patusquinho»;
O «Calafate» setub’lão,
E o seu amigo «Leitão»,
Venha o «Farelo» d’Azeitão,
E o título de «Plateia»,
P’ra me darem volta à ideia
Os cantadores deram a mão.
Venha d’Alcântara o «Pizão»,
E o seu amigo «David»,
Dos Terramotos o «Chapim»,
«Campanudo» d’Apelação;
Venha também o «Paixão»,
Porque tem um grande saber,
Eu estou pronto a responder
À bela obra do «Calcinhas»,
Venha de fora o «Palhinhas»,
Que juraram de me vencer.
Da Porcalhota o «Zèzinho»
E o bom «João Saldanha»,
«José Cecílio» da Azenha,
Venha da Graça o «Aquino»,
De Coimbra o «Adelino»,
Ouvir cá um bom português,
Venha servir d’entremez
Da Mouraria o «Marreco»,
O «Chico» mais o «Charépo»,
Que venha um por cada vez.
Venha o «Zé Maria Enguia»,
E também, o «Zé Augusto»,
Qu’a mim não me metem susto,
Tragam «Chato» em companhia;
«Artilheiro» co’ a artilharia,
O «Máximo» fogo a fazer,
Que venham todos para ver
Se me vêm meter no fundo,
Venha o «Damas» d’outro mundo
Minha memória combater.
81Na ala dos cantadores modernos enfileiram-se o bandarilheiro José Petiz (já falecido), o Taborda cortador (um tipo baixinho), D. Fernando Pombeiro – uma voz muito sentimental – e Rodrigo José Roldão, cantador, tocador e autor do fado do Roldão. Seguem-se alguns motes do Roldão:
Nas frias e negras campas,
Onde tudo é cinza e pó,
Ouviam-se os esqueletos
Cantando o fado liró.
Tenho sido nos amores
Tantas vezes enganado,
Qu’em vendo ao longe uma saia,
Deito a fugir assustado.
Pouco perco em te perder,
Tu perdes mais em deixar,
Eu perco quem me não ama,
Tu perdes quem sabe amar.
Debaixo das tuas asas,
Meu anjo, presta-me abrigo!...
Quando ao céu te remontares,
Quero também ir contigo.
82Podemos acrescentar aos cantadores acima indicados os seguintes: Isidoro Pataquinho, de S. Cristóvão (mas residente em Alfama), que era bom cantador e inventor de cantigas para os cantadores à court d’imagination; o cauteleiro Trolaró (já falecido); o Russo, bom cantador alfamista da Rua da Galé, falecido em 1900; Manuel Mota, azulejador, que canta muito bem e foi discípulo do Isidoro Pataquinho; o Rosa, sapateiro dos sítios da Graça; o cauteleiro Pai António; o Jorge Cadeireiro, o Júlio Janota, de Campo de Ourique, o Espanta, de Santo Amaro, o João Caeiro, de S. Sebastião da Pedreira, o Carcanholas, fabricante de algodões, o Sapateirinho da Adiça e o Batata (dois rivais), o Chico torneiro (já falecido), o João Peixinho, o Alberto Machadinho, aprendiz do França pedreiro (irmão do José Augusto), o China de Campo de Ourique, o Barata, cigarreiro, o Carocha, serralheiro, o José Albardeiro, Manuel Jorge, grande fabricador de cantigas, e Fernando de Azevedo, corista da Trindade. Podemos juntar a estes: o Santos Melo, um boémio coimbrão, Rafael Ferreira Roquete (Salvaterra) , actor da Trindade, Carlos Harrington, cantador e poeta, e Eduardo Fernandes, o espirituoso Esculápio das gazetilhas. Acrescentaremos mais estes cantadores modernos: António Mateus, pedreiro, da Ajuda (cantador e autor), Eduardo Calcinhas, canteiro, Joaquim Sapateiro, por alcunha o Joaquim Real (cantador e autor), Joaquim Sapateirinho, da Portela de Carnaxide, o Surriba e o Milhinho, cantador no género socialista.
83A seguir publicamos a Última Balada de Santos Melo, «que o grande boémio cantava à guitarra deliciosamente, olhos cerrados e cabeça à banda, aquela cabeça doida de cabelos revoltos, que a Morte vergou tão cedo»:15
Canta ao largo a viola branda e grata,
Choram mágoas os doidos bandolins...
– Vibra em coro a divina serenata
Que a nossa alma atravessa e arrebata,
Como chuva de lírios e jasmins...
A natureza inteira treme ansiosa
Ao ouvir a suavíssima guitarra...
E morre no horizonte d’oiro e rosa,
Como queixume d’oração radiosa,
A extrema voz d’uma canção bizarra.
84Segue-se um fado cantado pelo Rafael Roquete (Salvaterra) :
As tuas tranças escuras
São o relicário idos beijas,
Que te dou a sós contigo
P’ra matar os meus desejos.
Quando me enrosco e enlaço
Nos teus braços apertados,
Esqueço os meus negros fados
No perfume d’esse abraço;
Então, fatigado e lasso,
Vertigens sinto e tonturas,
Enquanto, querida, procuras
Enxugar os prantos meus,
Prantos d’um prazer dos céus,
As tuas tranças escuras.
Em curvas mansas, airosas,
Da cabeça aos tornozelos,
Vão descendo os teus cabelos,
Às ondas largas, graciosas;
Tem o perfume das rosas,
Da madresilva, e poejos,
Despedem negros lampejos
Como os mais negros brilhantes,
São a gruta dos amantes
E o relicário dos beijos.
Fio a fio a vou beijando,
Quando tu, oh! minha amada,
Nos meus braços reclinada,
Vais dormindo, em mim sonhando...
Cada beijo vai matando
As saudades que te ligo,
Minha esp’rança, doce abrigo,
Teu cabelo é confidente
D’esse beijo enorme ardente,
Que te dou a sós contigo.
Branca visão, minha amada,
És no mundo a minha estrela,
Constelação a mais bela
Da vida na minha estrada;
E as tuas tranças de fada,
Em que deponho os meus beijos
Cheios de candura e de pejos,
É o prazer mais profundo,
Que acho aí por esse mundo,
P’ra matar os meus desejos.
85Segue-se um fado original do actor Ãlvaro Cabral e cantado pelo Rafael Roque te (Salvaterra):
Malditas casas de prego,
São a minha perdição,
Vou deitar fora as cautelas,
Que já foi tudo a leilão.
Minhas venturas são poucas,
Em tudo sou infeliz,
A Providência assim quis,
Adeus, baixelas e roupas!
Que horas de ideias loucas
A que às vezes me entrego,
Antes queria ser labrego
Ou então não ter nascido,
Sou já um homem perdido,
Malditas casas de prego!
Perdi todo o meu tesouro,
Já tive agora não tenho,
Mas, todavia, convenho,
Ser pobre não é desdouro;
Garraram as jóias d’ouro
Com toda a tripulação,
Fugiram da amarração
Do porto dos malfeitores,
Estas casas de penhores
São a minha perdição.
Já não posso pandegar
Porque não tenho elementos,
Da vida azedos momentos
Me fazem desalentar;
Levo a vida a recordar
O feito das berzundelas,
Bendizendo as horas belas
Em que tanto pandeguei,
Agora, amigos da lei,
Vou deitar fora as cautelas.
Adeus, cadeia e brilhantes,
Inscritos nesses papéis!
Adeus, relógio e anéis
De pedrinhas flamejantes!
Adeus, folias constantes,
Ecos da minha paixão,
Adeus, que eu vou ferrar cão
Desde o pão até ao vinho,
Não tenho nada no pinho,
Que já foi tudo a leilão.
86Seguem-se os motes feitos de improviso pelo cantador Carlos Harrigton, que se distingue como improvisador:
Ch busto feito de pedra,
Devias ser animado,
Tornando-se em fios d’oiro
O teu cabelo ondeado!
A amizade verdadeira
Nasce sempre da gratidão,
A ridente flor imita
Neste mundo de ilusão.
Como em belo prado, a flor
No meu infeliz coração,
Vi brotar alegremente
A amizade e a gratidão
87O Hilário (Augusto Hilário da Costa Alves) merece uma referência à parte, porque o seu renome transcendeu as balizas locais, galgou os muros de Coimbra e espalhou-se por todo o país. O Hilário era um estudante coimbrão, matriculado no terceiro ano de Medicina da Universidade. Oriundo de Viseu, onde viera à luz em 7 de Janeiro de 1864, cursou mais a boémia à Mürger do que a faculdade universitária, e conquistou as glórias evanescentes de inigualável cantador do fado, graças à sua bela voz de barítono, ao seu talento de improvisador sujeito à augusta tirania do ritmo, à sua frase pueril e cantante, à sua arte de guitarrista, ao seu fado original e ao seu culto pelo idealismo à outrance nesta época de um materialismo aflitivo. Tinha a emoção comunicativa, que electrizava um auditório e o fazia palpitar sob o encanto da sua voz de modulações cariciosas, de uma ternura enamorada. Os seus versos molhavam-se de lágrimas como as flores se molham de orvalho. A sua guitarra parecia sangrar sob os seus dedos eloquentes. E as lágrimas, que ele fazia manar, eram bálsamo para muitas dores, licopódio para muitas feridas... O Hilário destaca-se «com os seus fados-serenatas, de uma contextura nova, verdadeiramente peninsular».16 O Hilário morreu em 3 de Abril de 1896, às dez horas da noite, na sua terra natal, onde estava em férias. A musa popular chorou compungitivamente sobre a campa do Hilário:
O Hilário já morreu,
Um rapaz tão resoluto!
Já não há quem cante o fado,
As guitarras estão de luto.
88Eis alguns motes do Hilário:
As minhas canções vermelhas
Rimá-las-ei com martírios,
Ao ritmo das abelhas,
Nas folhas roxas dos lírios.
Um canto ao vento flutua,
Começa a aurora a cantar;
Oh noite, vai-te deitar,
Rasga o pandeiro da lua!
A minha flácida lira
Tem duas cordas variadas:
Uma que chora e suspira,
Outra que dá gargalhadas.
O Mondego vai fugindo
Com quem me dera agarrar!
O amor é como o rio,
Foge e não torna a voltar.
Se os anjos são tão lindos,
E castos como a cecém,
Com certeza a minha amada
É um anjinho também.
És a alma do meu canto,
Gemendo na viração!
Estrofes de enlevo tanto
Só as tem o coração!
Cordas da minha guitarra,
Luzidias, prateadas,
Foram cabelos roubados
As minhas doces amadas.
Sou o fado do Hilário,
Sou o fado dos desejos,
Tenho um rosário na boca,
Que só se reza com beijos.
Na fina areia da praia
Tracei: «Paixão infinita».
Corre a vaga sobre a areia
E apagou a minha escrita.
Foge, lua, envergonhada,
Retira-te lá do céu,
Que o olhar da minha amada
Tem mais brilho do que o teu.
Os teus olhos são escuros
Como a noite mais cerrada;
Apesar de tanto escuros
Sem eles não vejo nada.
Calem-se os sons da guitarra,
Porque o Hilário morreu,
E foi cantar serenatas
Às virgens brancas do céu.
89Mas os moderníssimos cantadores de primo cartelo, os que constituem a mais fulgente constelação no sistema planetário da arte do fado actual, são os seguintes: Manuel Alves Serrano (o mais antigo), que canta só o fado corrido, mas que o canta admiravelmente; Júlio Sepúlveda (empregado na alfândega) ; Reinaldo Varela (guitarrista brilhante); David (empregado na empresa cerâmica, à Estrela); Loforte, que canta magnificamente o fado Lamparina; Romeu Amann (filho da célebre empresária do Passeio Público em 1879, Madame Josephine Amann) ; Marinho (empregado na Bolsa de Lisboa), que canta no estilo da Mouraria; e Octávio Vecchi, estudante.
90Seguem-se dois motes do cantador Serrano:
Até o próprio dinheiro
Me fugiu da algibeira;
Não me faz falta nenhuma,
Vivo da mesma maneira.
Que se divirta por lá,
Deixá-lo girar, coitado,
Que eu cá por mim, d’ele já
Estou desacostumado.
91Seguem-se dois motes cantados pelo cantador Sepúlveda:
Eu quisera ser a brisa
Que te oscula a tez mimosa,
Quisera ser a camisa
Do teu corpo cor-de-rosa.
A boca da minha amante
É uma flor delicada,
Após os meus beijos quentes
Fica pendida e murchada.
92Seguem-se dois motes cantados pelo cantador Reinaldo Varela:
Dizem que o amor que mata,
Ai, quem me dera morrer!
Mais vale morrer d’amores
Do que sem eles viver!
O rosto às vezes cora,
A flor se murcha ao tufão,
Cai a folha, foge a aurora,
Só não muda o coração.
Seguem-se dois fados originais do cantador Romeu Amann:
Quando o sol lhe dá um beijo
Vai surgindo a madrugada,
Ouvem-se os galos n’aldeia
Dar o toque d’alvorada.
As aves a chilrear,
Saltitando nos cerrados,
Com seus alegres trinados
Vêm os noivos despertar;
Ele tem de ir trabalhar,
Beija-a no último ensejo,
Faz ainda com que o pejo
De rósea cor a cubra,
’Té a aurora fica rubra
Quando o sol lhe dá um beijo.
Um beijo teu, donzelinha,
Na terra me dá o céu,
Dá-me um beijo, nada custa,
Dou-te em troca um beijo meu.
Beija o sol a flor mimosa,
Beijam-se os peixes no mar,
As avezinhas no ar,
Beija a planta a mariposa;
Nessa boquinha formosa
Delícias meu peito adivinha,
Dá-me, pois, inocentinha,
Teus lábios para beijar,
Que feliz me há-de tornar
Um beijo teu, donzelinha.
Motes cantados pelo mesmo cantador:
Tu não vês, meu amorzinho,
A lua além a chamar?
Diz-lhe adeus c’o teu lencinho,
Que é mais branco que o luar.
Uma mantilha bizarra
Envolva meu coração;
Das tábuas d’esta guitarra
Quero feito o meu caixão.
Oh rio que vais correndo,
Passas por quem eu adoro,
Se te faltarem as águas,
Leva lágrimas que eu choro!
93Além das chanteuses que temos citado até aqui, o belo sexo forneceu mais algumas que cantavam com aqueles tons plangitivos de uma sentimentalidade vadia, com aquela indolência mórbida pesada de volúpias exaustivas, com aquela poesia ligeira dos sonhos libertinos, com aquela deliciosa lassidão peculiar ao fado. A Coxa, uma cantoneira da Travessa dos Fiéis de Deus (de entre 1840 e 1845), cantava optimamente o fado do seu tempo, pondo no seu canto pungido todos os requebros fadistas. A Amélia do D. Quixote, mulher do Joaquim D. Quixote, com casa de venda em Benfica, possuía, e continua a possuir, apesar de velha, uma voz penetrante como um perfume da brisa; e Emília Mendes, a Emília Midões, que ainda cantarola, tinha o quid obscurum da arte musical fadista.
94A Ana do Porto17 e a Borboleta acumularam o exercício de cantadoras do fado com o de sacerdotizas de Vénus – a sensual e etérea deusa. A Borboleta (Bebiana Vieira de Castro) foi uma rigoleuse encantadora e capitosa como um bouquet de voluptuosidades. Diziam ser irmã do grande tribuno Vieira de Castro e recebera fina educação, mas os baldões da sorte deram com ela em fadistona. Vestia-se de homem – como a Mademoiselle de Manpin e a George Sand –, andava em suciatas nocturnas por cafés e tabernas, bebia como um marujo inglês, batia e aparava o fado com gracioso despejo, guiava pimponamente as tipóias, batendo num arranque de rópia em que ia tudo raso, arriscava-se em petulâncias doidas, pendenciava à facaia, derrancava-se em pândegas que se prolongavam até ao minuto róseo em que a luz do gás desmaia aos beijos da aurora, e, muito azevieira, com clarões maliciosos no olhar, largava a sua piada ao som da banza. Na sua presença, até os fadistões se metiam nas encospas. Eles sabiam perfeitamente que, para lá, iam de carrinho... Amancebara-se com um fidalgo de antiga linhagem, o M. L., e morava na Calçada de Sant’Ana. Um dia, em que o amante a fora visitar acompanhado de alguns amigos, a Borboleta pediu-lhes que esperassem um bocadinho, porque ia tomar banho. Momentos depois, abriu a porta do quarto e mandou-os entrar. E toparam-na na frígida situação de uma mulher a quem caiu o vestido e
La chemise fii
La même chose que lui.
95A Borboleta cursou a carreira meretrícia, essa carreira de tão pesados encargos e de tão terríveis coeficientes; dispersou a sua mocidade aos quatro ventos dos amores sem dia seguinte, em caprichos mais efémeros que as rosas de Malherbe, até que se foi esmirrando pela tísica e faleceu no Porto, em 1884 ou 1885. Se já se tem dito que Lamartine foi uma sorte de D. Juan sentimental, em que a poesia se fez mulher e a mulher poesia, também poderemos parodiar a frase literária dizendo que a Borboleta foi uma sorte de Manon Lescaut estúrdia, em que o fado se fez mulher e a mulher fado.
Um cantador de fado dedicou esta cantiga à Borboleta:
A Borboleta, coitada,
Tanto à luz se aproximou,
Que morreu asfixiada
Pelo brilho que a fascinou.
Quando o mau fado persegue
Dos homens a geração,
Quer nobre ou cidadão,
Ninguém fugir-lhe consegue;
Por mais doutrinas que pregue
Uma pessoa ilustrada,
Em nascendo malfadada
Torna-se a mais criminosa
Como foi a viciosa,
A Borboleta, coitada.
S’em seu colo de alabastro
Nutrisse uma conduta sã,
Desmentiria ser irmã
Do fraco Vieira de Castro;
Estava escrito no cadastro
A sorte que os malfadou,
Matou o irmão quem matou,
Foi irmã a prostituta,
Que d’essa senda corrupta
Tanto à luz se aproximou.
Por cego amor seduzida,
Recebendo a negra seta,
Deixando a senda correcta
Pela mais desenvolvida;
De tanta mulher perdida,
Pelo gozo deslumbrada,
Só ela foi alcunhada
Do mais inconstante insecto,
E tanto amou o dilecto
Que morreu asfixiada.
Quis fazer qual mariposa
Toda embevecida na luz,
Seu corpo a cinzas reduz
Nessa esfera luminosa;
Pousando de rosa em rosa
Tantos perfumes desfrutou,
Que por fim se envenenou
Com o perfume do rosal,
Trocando a vida real
Pelo brilho que a fascinou.
96A Maria José do Galvão – uma que observava os ritos galantes de Cítera – temperava a cantadoria do fado com uma salsa picantíssima. Era uma cachopa toda sécia, de olhos negros que pareciam conter toda a febre dos lupanares, de cabelos d’un noir d’enfer, como diria Musset, de boca carnuda esfumada por uma suspeita de buço prometedor, e de dentes de uma brancura simétrica luzindo num sorriso de esmalte doirado de mocidade. Fazia acordar o gosto da graça, que dorme no fundo das nossas almas latinas. A sua vida exauriu-se em amores que duravam o lapso de uma longa insónia. Quando lhe dava na tineta, trajava ao bizarro, vestindo-se de homem e pimponando nas esperas de toiros. Grudaram-lhe ao nome aquela alcunha, porque estivera amancebada com o ourives Galvão, depois proprietário de casas de jogo.
97O trajo de campino ficava à Maria José do Galvão como uma luva. Numa noite de espera de toiros, depois do Galvão e um seu amigo regressarem de um passeio a Oeiras, resolveram todos ir esperar o gado. Tentaram arranjar uma tipóia, mas debalde, porque estavam todas alugadas. Não se amofinaram, porém, por tão pouco. Alugaram uma sege de enterro, a Maria José enfarpelou-se de campino, empunhou o pampilho – que ela manejava como um dandy maneja um frágil stick –, montou a cavalo, e lá partiram todos, de gangão, para a espera dos toiros, enquanto o disco da lua brilhava como uma salva de prata polida, o luar derramava uma claridade doce como um fumo de leite, e as estrelas, esburacando o veludo sombrio do firmamento, pareciam piscar, trocistamente, os seus olhinhos de diamante sem jaça...
98A Maria José do Galvão – que nunca atingiu as esferas da alta galanteria – sabia estar numa sala e tinha uma elegância de pisar de rainha, assim como era instrumento de prazer que sabia exprimir as mais finas notas perversas e as mais belas sensações passionais.
99Pobre sentimental para quem o amor era um bromureto pacificante, débil joguete nas mãos do Desejo e da Fatalidade, sentiu os primeiros rebates do reumatismo na cabeça, dedução lógica da sua vida exaurida num train d’enfer. A graça que ela exalava como um perfume evaporou-se, o brilho dos seus olhos húmidos amorteceu, a linha sugestiva dos seus seios quebrou-se, a sua linda boca de coral, a sua linda boca de púrpura de Tiro, a sua boca cinzelada para o beijo desmaiou...
100E a responsabilidade de tudo isto podia-se endossar ao bambino alado, que usa o pseudónimo fabuloso de Cupido. Ah! Ela esquecera-se de que o amor se pode transportar em muitos tons, mas que, no fundo, é sempre a mesma ária, a mesma canção, o mesmo lied-motiv melódico, velho como o mundo, triste e fastidioso como ele...
101O indomável coraçãozito da Maria José do Galvão, esse relógio desarranjado, imobilizou-se em 1884.
102Entre os cantadores femininos de há trinta anos, florescia uma bonita rapariga – um morceau de prince – que cantava o fado com essa voz histérica dos momentos de delírio amoroso, e que aparecia muito nos rega-bofes do Dafundo e nas esperas de toiros, acompanhada pelo falecido conde de Oeiras – um fadistófilo patau e um guitarrista abaixo da craveira comum, o que não impediu que tivesse o seu círculo de amigos e, talvez, de admiradores, tão verdadeiro é o dito irónico de Henri Heine: «Há mais tolos que homens.» Aquela rapariga trocou depois as glórias mundanas de diva do fado pelos triunfos mais sólidos de divette de opereta, e obteve tantos aplausos na cena como obtivera na vida alegre.
103Uma filha da Bazalisa, locandeira na estrada de Sacavém, garganteava primorosamente as plangências do fado, intervaladas de ais! soluçantes. Na locanda da Bazalisa deram-se memoráveis sessões de fado, que valiam por banhos eléctricos.
104A Rosa dos Camarões, a Maria Pia, a Beatriz e a Maria José Loira – frineias muito admiradas pelos areópagos de entre 1870 e 1875 – também sabiam trinar na garganta os fados em circulação. Uma brilhante cantadora no género fino foi a Emília Adelaide ou Emília dos Caniços. Puseram-lhe esta alcunha por ter tido uma locanda na quinta dos Caniços, ao Arieiro.
105Chegou a representar no Teatro da Trindade. Morreu na quinta do Rato, onde estabelecera casa de pasto. Segue-se um mote original da Emília dos Caniços:
Coitadinho de quem morre,
Que ao Paraíso não vai,
Quem cá fica come e bebe,
E a paixão logo se esvai.
106A preta Cartuxa cantava bem. Esta cantatriz tresandante ao fartum da catinga chamava-se Maria do Carmo, nascera e criara-se ao laré na Rua do Capelão, e era filha da negra Tia Joaquina e de um preto trabalhador no Gás. Foi mulher endiabrada, excessivamente bulhenta, useira e vezeira em chegar a roupa ao corpo aos que se faziam finos com ela ou que imaginavam que todo o mato é orégão. Chibava com tanto desplante impúdico entre a biltraria do bairro como brilhava de intervaleira nas toiradas do Campo de Sant’Ana. Foi a sucessora de outras intervaleiras célebres: a Maria Chirita, a Mugiganta, a valente Maria Rosa de Castelo-Branco e a Maria Formiga. Alguns pretos se notabilizaram igualmente neste trabalho: o Benedicto, o Firme, o Bumba no Caneco, o Campos, o José Maria, ministro espanhol da rainha do Congo, o Simão, o Pai Paulino velho, o Pai Paulino novo e o Domingos, cego de um olho. A par dos negros, havia os intervaleiros brancos: o José da Avó, o Macanjo, o engraçado França, o Galamba e o Torra-ossos. A irrequieta Cartuxa morigerou-se, abandonou a vida regalona dos alcouces pelintras e expirou sossegadamente na Rua do João do Outeiro, onde habitava com um tal Joaquim Bolacheiro.
107Das cantadoras de agora citaremos as primaciais: a Albertina – autora do fado da Albertina ou de Alcântara ou do Manuel Casimiro – e a Leopoldina, uma cantadeira de sangue na guelra, que já morreu. Cantavam o fado à compita e tiveram duelos que podiam meter na sombra o famoso duelo da Marquesa de Polignac com a Marquesa de Nesle, duelos que se empenhavam, não à espada e em honra de qualquer Marquês de Arlincourt, mas em canto ao desafio e em honra do querido fado. Certa ocasião, numa casa de venda em Alcântara, chegaram a arremeter, de garfos e facas em punho, uma contra a outra como duas harpias prestes a despedaçar-se. Mas, a falar verdade, reconhecemos que já não há uma cantadora como a Custódia ou a Cesária, uma cantadora que leve o sursum corda ao sentimento, uma dessas cantadoras que os idólatras do fado seguiam quase religiosamente como os preux seguiam o penacho de Henrique iv.
108Há, todavia, no canto do fado da última maneira, no fado século xx, uma cantadora justamente celebrada como a legítima cantatriz modernista, a superfina cantante nouveau siécle, a pura cantadeira dernier soupir, a última depositária de todos os segredos do fado. É a Cacilda Romero. A aristocracia do seu canto, ajudado pela guitarra tocada pela própria Cacilda, é de tal forma, que os ouvintes sentem-se subjugados por uma força magnética envolvente, como naqueles indescritíveis momentos de espasmo físico em que nos sentimos rolar para um misterioso e delicioso abismo...
109A Cacilda tem um fado original seu, e improvisa com tanta facilidade que, quase todos os dias, tem coisas novas para cantar. Reproduzimos, em seguida, algumas quadras originais da Cacilda:
Dai-me a guitarra e o fado,
E bendirei minha sorte,
Quero ouvi-lo até na morte,
Ser com ele amortalhado.
Se tu fosses como eu sou,
E os génios fossem iguais,
Darias, como eu te dou,
A vida e tudo o mais.
Da Cacilda o canto belo
Nem todos têm escutado,
Quem a Cacilda nunca ouviu,
Nunca ouviu cantar o fado.
Os lábios de falar calam,
Quando as palavras se prendem,
Também as flores não falam,
E pelo aroma se entendem.
A luz da pálida lua,
Em noite serena e quente,
Eu jurar-te que sou tua,
Seres meu eternamente.
E então, já feita a jura,
Que descrevo em breves traços,
Ter a suprema ventura
D’assim morrer em teus braços.
E a lua tão bondosa,
Amiga dos namorados,
Sorria maliciosa
D’assim nos ver abraçados.
Eis aqui a fantasia
D’este sonho que eu sonhei;
Que triste melancolia...
Tudo ilusão... e acordei...
Meus Deus, para quê acordar,
Para quê volver à vida!
Eu, quisera não despertar
P’ra ficar adormecida.
110Cacilda Romero, que está na idade tão apreciada por Balzac, tem uma individualidade própria – coisa difícil de se ter, seja no que for –, o que a torna uma das primeiras tributárias, senão a primeira tributária, da crónica do fado moderníssimo. Aloja a paixão do fado num lóbulo do seu cérebro, como outros alojam a paixão do mando, da celebridade, da riqueza, da glória. A Cacilda dispõe de um bom talento de imitadora, a ponto de reproduzir, com a máxima exactidão, as vozes do Serrano, do Sepúlveda, do Varela, do Vecchi, do Marinho, de toda a flor da élite dos cantadores. A sua voz emocional, vivaz, dominadora, cheia de elegâncias sentimentais, seduz como um sorriso de pérolas engastado numa boca de rubis, atrai como esses negros olhos fluminenses, em que treme a luz da alma brasílica. É uma voz talvez um pouco volumosa, o que não obsta a que seja meiga como as blandífluas carícias das harpas eólias.
111Nos lábios da Cacilda, voam as notas musicais, coloridas e brilhantes, para depois estalarem em feixes eléctricos, para depois luzirem como centelhas de fogo na obscuridade da noite, para depois caírem num chuveiro omnicolor e fosforeante de esmeraldas, safiras, topázios, ametistas, crisólitas auriverdes, bérilos cor de sinopla e granadas cor de sangue arterial; na sua garganta argentina, ritornela admiravelmente o fado, a portuguesíssima cantiga que conhece todas as portas secretas do coração humano, a nacionalíssima cantiga que é o grito da alma, o gemido do amor e a lágrima do sentimento, a supernal canção em que o espírito lusitano parece reencontrar as suas asas para se librar no éter diamantino, a magni-loquente canção em que parecem latejar todos os sonhos peninsulares, essa canção divina que nasceu entre o duplo infinito e o duplo azul do céu e do mar, entre o esmalte diáfano da vaga e a porcelana translúcida do firmamento, entre a graça opaca da onda e a graça fluida do cariz celeste, entre as convulsões azuladas do salso-argento e as vibrações cinzentas da atmosfera marítima...
112Remataremos o capítulo sobre os cantadores, referindo-nos aos mais famosos cantadores provincianos. O primeiro, na ordem hierárquica e na ordem cronológica, é António Maria Eusébio, o Eusébio Calafate ou o Cantador de Setúbal. O provecto cantador, que já conta oitenta e dois anos de idade, tornou-se famoso pela sua admirável facilidade no trovar, e pela originalidade das ideias satíricas, que, nos descantes, maravilhava os ouvintes pela justeza e pelo incisivo do traço, quer nos versos que vinham de memória, quer nos improvisados ali, conforme explica o sr. Henrique das Neves nas linhas biográficas que acompanhavam o livro do Cantador de Setúbal, livro em que aquele ilustre escritor coligiu algumas produções poéticas do trovador octogenário18. Como amostra dos seus versos, onde, muitas vezes, põe de manifesto a nota satírica, mas onde também, muitas outras, se espelha a bondade do seu coração, damos a seguinte décima:
o AUTOR
Nunca fui mal procedido,
Nunca fiz mal a ninguém,
Se acaso fiz algum bem
Não estou d’isso arrependido.
Se mau pago tenho tido
São defeitos pessoais;
Todos seremos iguais
No reino da eternidade,
Na balança da igualdade
Deus sabe quem pesa mais.
113O cantador Manuel Alves, o Cavador, trovista da Bairrada, um analfabeto a quem alguém coligiu as poesias num livro intitulado Versos do Cavador, morreu em 1901. A sua feição poética é antética da do Eusébio Calafate, porque se este vibra a nota satírica, mordaz, aquele vibra a nota amorosa, profundamente elegíaca. O Alfaiate de Mafra canta, toca guitarra e improvisa superiormente. O Marcolino do Porto, um pobre músico ambulante, improvisava fados (música), mas nunca foi cantador. Ainda é vivo. O Pedro Marié, do Porto, esse sim, esse é que foi cantador famoso. Teve a sua época. Improvisava cantigas do fado, mas, tão obscenas, que fariam corar uma papoila. O seu estro era como que um abcesso maduro, que se abria ejaculando pus. Estas mesmas cantigas ainda hoje são cantadas pelo Carlos Pistótira, empregado no Teatro S. João.
114Em Coimbra existe um cego que se ocupa em tocar guitarra e cantar o fado. Chama-se José Monteiro e faz-se ouvir, habitualmente, num botequim parrana da Rua da Sofia. Tem voz de barítono. Este homem era oleiro e cegou aos 20 anos. Possui algumas cantigas originais suas. Eis dois motes que ele glosa ao som do fado do Hilário:
O cego vive em tristeza,
O louco vive contente,
O cego sente e não vê,
O louco vê e não sente,
É bem. triste a triste vida
Em que vive um desgraçado,
Fico às vezes sem esmola
Por ser pobre envergonhado.
Notes de bas de page
1 A Padeira da Praça da Alegria já existia em 1816.
2 Versos publicados n’O Pianinho.
3 Quadra de Bocage.
4 Este mote foi feito quando o Calcinhas esteve preso.
5 Neste mote e respectiva glosa, contava o Calcinhas como travara amores com uma velha rica, que, por fim, o expulsara de casa.
6 Este quebrado substitui o trolaró. É uma inovação no fado corrido. (Nota de O Pimpão.)
7 Este fado foi publicado na p. 8 de O Pianinho, 2.° ano.
8 José Cesário Sales, canteiro, era irmão de João Cesário Sales, ourives e grande valentão, mas a quem também chamavam o Sales canteiro, por seu pai, Francisco Sales, e seu irmão terem oficina de canteiro na Rua dos Algibebes. Foi José Cesário Sales, então distinto aluno da Academia Real de Belas-Artes, quem dirigiu toda a obra de cantaria para a reedificação da igreja de S. Julião, que ardera em 1817 e que reabriu restaurada em 1849.
9 Dois locais onde, nesse tempo, se fadejava muito eram a locanda do José dos Passarinhos, defronte da Horta Navia, em Alcântara, e o retiro do Rouxinol, nos Terramotos.
10 Aludia ao Josué dos Santos, distinto guitarrista.
11 Referia-se ao contrato bilateral, que fez transitar a Cesária para a posse de Cesário Sales.
12 Aludia à guerra franco-prussiana, em 1870.
13 Esta quadra era dirigida ao Minuto, que o fora visitar à cadeia do Limoeiro.
14 No Correio de Cintra de 10 de Dezembro de 1899, existe uma cantiga do popular José Augusto intitulada Improviso.
15 Trindade Coelho. In illo tempore, p. 318.
16 Preâmbulo de César das Neves no ii volume do Cancioneiro de músicas populares.
17 Uma sua homónima, que surripiava carteiras e bolsas, morava num beco ao Coleginho, e deu sete facadas num fadistão, que lhe forçara a porta de casa.
18 Versos do Cantador de Setúbal acompanhados de um prefácio de Guerra Junqueiro e de «Algumas palavras acerca da vida do autor» pelo Coleccionador, que é o sr. Henrique das Neves.
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