V
p. 93-168
Texte intégral
As fases do fado. – Terminologia do fado. – A guitarra. – A voz para cantar o fado. – Os versos do fado. – Os fados antigos. – Motes antigos para o fado.
1O fado apresenta duas fases completamente distintas: a primeira, a fase popular e espontânea, em que o fado é executado nas baiucas onde os fadistas derramam o vinagre das suas vozes, nas vielas onde flutua o perfume letárgico da tragédia, e nas casas de hospitalidade fácil onde os viageiros e os fervorosos das Vénus fraldiqueiras acham, aqueles, um abrigo, e, estes, um altar; a segunda, a fase aristocrática e literária, em que o fado é executado nas salas e nas praias da moda. Podemos fixar o fim da primeira e o começo da segunda entre 1868 e 1869. E nesta última fase, enquanto a guitarra sobe das espeluncas aos salões, vemos o piano descer dos salões aos botequins safardanas. No entanto, que diferença entre um e outro instrumento!... Na família dos instrumentos, o piano é a cortesã amimada, que se estadia tolamente nos lugares de prazer; a guitarra é a sua irmã volitante, sentimental, traquinas, com candonguices inflamatórias de carioca, uma estouvada perdida pelo seu amor às serenatas, às romanzas e ao fado. Ó ironia e inclemência do destino!...
2Os cantadores de fado têm uma terminologia privativa da sua arte. Chamam canto a atirar ao canto ao desafio ou à desgarrada; chamam canto sagrado, canto ao Divino, ou canto à Escritura, quando o canto se refere a assuntos religiosos ou a assuntos da Escritura; e chamam ao canto do fado em geral – a cantadoria. Ter obra significa ter produções originais, ser autor de versos do fado, e também significa ter cantigas para cantar; e ter muita livraria é dispor de uma grande reserva de cantigas, suas ou de outrem.
3Os métodos de guitarra preceituam no que respeita à atitude do corpo e à posição que o instrumento deve tomar, quando se toca. O corpo deve estar firme e airoso; depois, o tocador pega na guitarra, coloca-a com o braço para o lado esquerdo, apoia-a sobre a perna direita, e inclina-a de forma que o caravelhal fique à altura do sangradouro do braço esquerdo e a caixa de ressonância um pouco inclinada para o peito. É isto o que estabelecem os métodos de amestramento. Mas, para o fadista, estas normas preceptivas são vacilantes como uma luz numa corrente de ar. Vemo-lo antes sentado, cruzando uma perna sobre a outra e inclinando desleixadamente o tronco sobre o braço da guitarra, que descansa na coxa, ou então levantado, com o tronco caído negligentemente para cima do quadril, a perna encurvada com o pé para fora, à facaia, o pescoço reteso como o de um galo a cucuritar, os olhos afogados numa agonia suave, enquanto vai beliscando os arames da banza e desfiando os episódios de algum fado, virgulados de ais dolorosos e de zoras arrastados – todo o zing corroborativo de manhas fadistinhas.
4A guitarra, dizem os métodos de ensino, admite cinco afinações: a afinação natural, a afinação natural com quarta (muito empregada para acompanhamentos), a afinação do fado, a afinação transportada (afinação mais baixa meio tom) e a afinação do violão. Mas as afinações que propriamente lhe com- petem são a natural e a do fado, sendo preferível a última. Os tocadores antigos, os tocadores do lídimo fado, executavam-no em ré menor. E, circunstância a notar, antigamente o cantador não se acompanhava a si mesmo, mas fazia-se sempre acompanhar de um guitarrista. Os dedos ágeis do tocador corriam rapidamente sobre as cordas da guitarra e davam voo ao pensamento harmonioso dos autores dos fados, enquanto as rimas do cantador batiam asas. Hoje, quase sempre o cantador se acompanha a si próprio.
5A voz para cantar o fado é uma voz inclassificável, sui generis, com modulações e inflexões não sujeitas ao jugo tirânico dos métodos de canto, uma vez que não se subordina aos ditames catedráticos dos professores do Conservatório. E aí está o motivo porque o Tamagno ou a Patti poderiam fazer fiasco cantando o fado ao pé do Serrano ou da Albertina. E eis aí a razão por que um intérprete de uma partitura deliquescente de Puccini ou de uma partitura descritiva de Wagner pregaria um estenderete raso, se quisesse cantar o fado da Severa ou o fado do João Black.
6As primeiras trovas do fado, devidas à mecânica espiritual do povo, eram em quadras; depois usaram-se em quadras glosadas e em décimas; e ultimamente, com o fado modernista, empregam-se de novo as quadras e também as quintilhas. O fado principiou por se cantar com versos ingenuamente populares, improvisados à la va comme je te pousse, de que damos as amostras seguintes:
Ulisses era brejeiro,
Era o pai da brejeirada,
Era um bom sapateiro,
Trabalhava numa escada.
Encontrei Frei João
Numa manhã de geada,
Com um instrumento na mão,
Vinha a ser uma guitarra.
O coelho é manhoso,
Dorme c’os olhos abertos,
Eu durmo c’os meus fechados,
Porque tenho amores certos.
Na cabana do Zé do Sacho
Há uma cruz de madeira,
E nela um Cristo pregado,
Feito de pau de gingeira.
Muitos me chamam António,
E eu António não sou,
O meu nome não é este,
Foi alguém que m’o trocou.
7No Cancioneiro Popular do Sr. Teófilo Braga vêm três quadras fadistas de época indeterminada:
Se o Padre Santo soubesse
O gosto que o fado tem,
Viera de Roma aqui
Bater o fado também.
Eu hei-de morrer no fado,
Sofrer os destinos seus,
O chinfrim será meu brado,
A banza será meu deus.
Tudo quanto o fado inspira
É o que só me entretem,
Pois quem do fado se tira
Não sabe o que é viver bem.
8Antes de se principar a cantar o fado, havia o canto à desgarrada e o’canto ao fandango. Foi o canto do fado, que destronou estes dois cantos, assim como foi a dança do fado (diferente do bater o fado) que destronou a dança do fandango. Ainda existe um homem que brilhou como cantador à desgarrada e ao fandango, e que, depois, veio a brilhar como distintíssimo cantador de fado – o Bernardo Ferreira Saldanha, da Porcalhota.
9O fado mais antigo é o fado do marinheiro. Segue-se-lhe o fado corrido, que parece ter sido o primeiro modelado por aquele, e que se cifra na execução do acompanhamento, sem variações. Quando o fado não é tocado para acompanhar o canto, os guitarristas bordam sobre ele os arabescos da sua fantasia musical, arrancam ao instrumento variações que percorrem toda a gama cromática dos êxtases amorosos, das idealidades cismadoras, dos afectos jubilatórios. A primeira mulher que tocou o fado corrido na guitarra foi a Manazinha, catraia da Madragoa em 1850. Foi ela que o ensinou ao cantador Paixão, o primeiro também que tocou o fado corrido na guitarra. Ao fado corrido segue-se o fado da Cotovia, cuja letra desconhecemos. Depois, vem o primeiro fado de Pedrouços, original de A. Branco, composto em 1849, e o fado choradinho, anterior a 1850, que serviu de modelo a outros fados. Este fado canta-se com os versos seguintes:
Quem tiver filhas no mundo
Não fale das desgraçadas,
Porque as filhas da desgraça
Também nasceram honradas.
Não sei que quer a desgraça
Que atrás de mim corre tanto;
Hei-de parar e mostrar-lhe
Que de vê-la não me espanto.
Fui encontrar a desgraça
Onde os mais acham prazer;
Amor, que dá vida a tantos,
Só a mim me faz morrer.
Das filhas da desventura
Devemos ter compaixão,
São mulheres como as mais,
Filhas de Eva e de Adão.
Eu quero bem à desgraça,
Que sempre me acompanhou,
Não posso amar a ventura,
Que bem cedo me deixou.
Eu fui a mais desgraçada
Das filhas da minha mãe,
Todas têm a quem se cheguem,
Só eu não tenho ninguém.
Debaixo do frio chão,
Onde o sol não tem entrada,
Abra-se uma sepultura,
Finde o fado a desgraçada.
E Deus que tudo perdoa,
E a Virgem Nossa Senhora,
Hão-de ouvir a alma que implora
Salvação à pecadora.
10Depois destes fados, aparece o fado da Severa, que remonta aos meados do século xix, porque foi composto em tempo da mulher que lhe deu o título, e que, como vimos, morreu anteteriormente a 1850. Atribuem a paternidade deste fado ao Sousa do Casacão. Os colectores do Cancioneiro de músicas populares consideram-no como o tipo primordial dos fados popupares lamentosos1. A versão coimbrã do fado da Severa, recolhida e publicada pelo sr. Teófilo Braga a páginas 140 do seu Cancioneiro Popular, é como se’ segue:
Chorai, fadistas, chorai,
Que uma fadista morreu,
Hoje mesmo faz um ano
Que a Severa faleceu.
Morreu, já faz hoje um ano,
Das fadistas a rainha,
Com ela o fado perdeu,
O gosto que o fado tinha.
O Conde de Vimioso
Um duro golpe sofreu,
Quando lhe foram dizer:
Tua Severa morreu!
Corre à sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
Adeus oh! minha Severa,
Boa sorte Deus te dê!
Lá nesse reino celeste
Com tua banza na mão,
Farás dos anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.
Até o próprio S. Pedro,
A porta do céu sentado,
Ao ver entrar a Severa
Bateu e cantou o fado.
Ponde nos braços da banza
Um sinal de negro fumo
Que diga por toda a parte:
O fado perdeu seu rumo.
Chorai, fadistas, chorai.
Que a Severa se finou,
O gosto que tinha o fado,
Tudo com ela acabou.
11Mas o Cancioneiro de músicas populares insere este fado, tendo três quadras com as variantes seguintes:
Corre à sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
Severa, linda Severa,
Boa sorte o céu te dê!
Levantou-lhe um monumento
Com dois ciprestes ao lado,
E num dístico: «Aqui jaz
Quem foi rainha do fado.»
Chorai, fadistas, chorai,
Que a Severa faleceu;
Rapariga como aquela
Nunca o fado conheceu.
12Conhecemos mais seis quadras com variantes, que nos vieram pela tradição oral:
No braço da sua banza
Um laço de fumo armou,
Quando lhe vieram dizer:
A Severa já expirou!
No braço da sua banza
Um laço bem preto apertou,
Quando lhe vieram dizer:
A tua Severa acabou!
Zora lá na mansão celeste
Com a viola na mão,
Farás dos anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.
O Conde de Vimioso
Ai! quase que enlouqueceu,
Quando lhe foram dizer:
A Severa já morreu.
O Conde de Vimioso
Um duro golpe sofreu,
Quando lhe foram dizer:
Maria Severa morreu!
Chorai, fadistas, chorai,
Que a Severa já morreu,
Fadistas como ela
Nunca o fado conheceu!
13Conhecemos mais uma quadra com variantes, publicada pelo Sr. Visconde de Castilho na Lisboa Antiga2:
Ponde no braço da banza
Um laço de negro fumo,
E este sinal diga a todos:
Que o fado perdeu o rumo!
14A Severa – cuja memória fulge através dos anos com o tremor luminoso de um astro – excitou a veia poética popular. Há ainda mais as dez quadras seguintes, alusivas à Severa, sendo as duas primeiras publicadas por sr. Visconde de Castilho na Lisboa Antiga e as oito últimas recolhidas da tradição oral:
Assim como as flores vivem
Minha Severa viveu,
Assim como as flores morrem
Minha Severa morreu.
Levantai-lhe um mausoléu
Co’um negro cipreste ao lado,
E o epitáfio que diga:
«Aqui jaz quem soube o fado».
Quando a Severa faleceu,
O Vimioso adorado
Disse, vertendo lágrimas:
Morreu o mimo do fado!
Severa, linda Severa,
Foste a princesa do fado,
A rainha das fadistas,
O sol do teu bem-amado!
A Severa sepultou-se
Em um mausoléu doirado,
Com o dístico: «Aqui jaz
A mais bela flor do fado».
Quando a Severa morreu
Deu seu corpo à sepultura;
Logo no mar se formou
Um palácio de grande altura.
O fadinho da Severa
Vai direito ao coração;
Cantai o fado da musa
Da Rua do Capelão!
A Severa morreu jovem,
Triste foi o seu condão;
Chorai, fadistas, a deusa
Da Rua do Capelão!
Chorem, chorem os fadistas,
E chore toda a nação!
Morreu a Severa, a flor
Da Rua do Capelão!
Quando a Severa faleceu,
As guitarras soluçaram,
Toda a Mouraria gemeu,
E os fadistas choraram.
15Ultimamente (em 1902) apareceram uns fados (trovas) novíssimos da Severa, de que damos os três motes seguintes:
A Severa, reza a história,
Tinha um belo coração;
Foi por isso que o Vimioso
A amou sempre e com paixão.
Chorai, fadistas, chorai,
Que a Severa já morreu!
Foi o que Vimioso ouviu
’ma manhã quando s’ergueu.
Eu vou cantar a Severa
Nesta bela ocasião;
O seu fada é d’encantar
Vai direito ao coração.
16O fado da Severa tem outro que o completa, o fado do Vimioso3. Este pertence, evidentemente, a época posterior, mas inserimo-lo aqui por ser o complemento daquele. É formado de dezoito quadras:
Quem lhe vê a face morena,
Quem vê seus olhos tiranos,
Nada vê que mais cative,
Ainda que viva mil anos.
Quem lhe vê os negros cabelos
Flutuando sobre a testa,
Outra ninfa a ver não torna
Salerosa como esta.
Quem lhe vê os lábios sorrir
Como a luz da estrela d’alva,
Se tocá-los não alcança
Tem de fé que não se salva.
Quem uma vez lhe ouviu
Sua voz enternecida,
Ainda depois da morte
Aos seus ais recobra a vida.
Quem lhe vê o pé travesso
E os requebros sedutores,
Fica logo mais rendido
Que entre ferros opressores.
Quem lhe vê o colo alteroso,
Que tem tão viva atracção,
Só por obra de milagre
Resiste a uma tentação.
Quem a vê dançar o fado
Com vigor desconhecido,
Ao vê-la batendo forte
Fica um doido perdido.
Oh Severa, dá-me um beijo,
Dá-me um beijo de queimar!
Ah! deixa-me arder em chamas
E em teus braços expirar!
Mas que digo! oh desgraçado!
Que delírio é este meu?!
Como vir ao chamamento
A Severa que já morreu?!
Oh sorte cruel e dura,
Que me deixas no mundo só!
Rasga-me o peito e reduz
Meus ossos a cinza e pó!
Assim. Moisivo4carpia,
No auge da desventura,
E ao outro dia, já cadáver,
Foi levado à sepultura.
Quem viu já tanto amor,
Amar tanto e bem querer,
Em peitos que não são dados
A por amor padecer ?
É que tu, oh cego amor,
Em teus caprichos ferinos,
Ligas risos com tristezas,
Cinges grandes e pequeninos!
E d’est’arte o mundo viu
Senhor sécio e muito alto,
A fria campa baixar
Sem pompa e espalhafato.
Era destro cavaleiro,
Em seu corcel à grande,
Levava ninhas e brida,
Tudo, tudo de vencida.
Chorai, fadistas, chorai,
Ah! chorai a mais não ser,
Que doutro tão fino amante
Não torna o fado a dizer.
Aqui ponho agora ponto
Na lenda que finda está,
Foram casos d’outra era,
São voltas que o mundo dá.
E com esta, oh meus amigos,
Não vale o aborrecer!
Digo-lhe adeus, haja gáudio,
Haja gáudio! E até mais ver!
17O Cancioneiro de músicas populares regista o fado anfiguri, que se cantava em Lisboa há mais de cinquenta anos (1849). Temos o 2.° fado de Pedrouços, composto em 1864, por ocasião da guerra da América, a qual motivou um conflito diplomático entre o nosso país e os Estados Unidos, em consequência da Torre de Belém ter disparado sobre a fragata Niagara, que pretendia sair do Tejo na caça do monitor Stonewall. O mote deste fado de Pedrouços é assim:
Portugal está, obrigado
A pagar perdas e danos,
Que a Torre de Belém causou
Aos barcos americanos.
18O fado dos Cegos e o fado da Persiganga são dos meados do século xix. Aparecem, depois, o fado do José Maria dos Cavalinhos (inédito) em 1860, o fado do Anadia (original do José Maria dos Cavalinhos) em 1862, o fado do Paixão (original do Paixão) em 1862, o fado da Custódia (original da Custódia Maria) em 1864, o fado de Tancos em 1866, o fado das salas ou o fado Elegante (original de João Maria dos Anjos) em 1868, o fado Campestre em 1870, o fado Magyolli (original de Magyolli) em 1870, o fado Lisbonense em 1870, o fado Cadete (original do António dos Fósforos), o fado da Cesária (original de Ambrósio Fernandes Maia) em 1870, o fado Carmona (dedicado ao matador de espada António Carmona, El Gordito) em 1872, o fado sentimento maior e sentimento menor (de Ambrósio Fernandes Maia) que se conserva inédito, o fado do Lessa, o fado Brilhante, o fado de Cascais e o fado de Sintra. Modernamente, têm-se publicado muitos fados, de que, in fine, apresentamos uma lista.
19Seria quase impossível determinar os autores da música e da letra de todos os fados antigos por se encobrirem sob o véu do anonimato. Alguns não tinham letra própria. A um deles, o fado do Lessa, aplicaram-lhe letra moderna do sr. J. Nunes da Ponte, que é a seguinte:
Amor é sonho que mata,
Perfume que se esvaece,
Madeixa que se desata,
Sorriso que desfalece.
Aragem, corre de manso,
Borboleta, mais de leve,
Rouxinol, soa mais breve,
Não turves o meu descanso.
Miragem que não alcanço,
E que minh’alma retrata,
Foge nas asas de prata
Do sonho que me enamora,
Suspira, guitarra, chora,
Amor é sonho que mata.
O sol desampara a vaga,
A vaga foge do mar,
Fogem as brumas do ar,
E a branca espuma da plaga;
Foge a brisa que me afaga,
A luz do sol que me aquece;
Foge dos lábios a prece,
Só tu, imagem, persistes,
O amor é sonho dos tristes,
Perfume que se esvaece.
O lírio ama a campina,
A campina a luz do sol,
Ama a noite o rouxinol,
E a aurora a flor purpurina.
Ama a brisa matutina
O manso lago de prata,
Eu, a miragem ingrata
Da mulher que me adora,
O amor é flor que descora,
Madeixa que se desata.
Minh’alma voga na altura,
Geme, guitarra, com ânsia,
Exala, flor, mais fragrância,
Dá-me, aragem, mais frescura.
É vária e doce a ventura,
O prazer que nos fenece;
Tu, miragem, des’parece,
Meu penar, deixa-me, corre.
O amor é sonho que morre,
Sorriso que desfalece.
Os seguintes fados antigos são inéditos:
O A teve uma baralha
Na Travessa do Rosário
Acudiram ao barulho
As letras do abecedário.
O B por muito pimpão
Não se receava de nada,
Logo à primeira paulada
Caiu de ventas ao chão;
O C que vê seu irmão
Andar c’os outros à salha,
Mete a mão, puxa navalha,
Cresce para cima do D,
E, para defender o G,
O A teve uma baralha.
O H, que viu o U,
Dá um sopapo à mão canha,
Pegam os dois à castanha
E ambos cairam de c...;
O P, que estava em jejum,
Pediu ao N usurário
Que lhe abonasse salário
Para descontar na féria,
Que o J estava à espera
Na Travessa do Rosário.
O R, coxo de um pé,
Estando dali desviado,
M apanha-o descuidado,
Atirou-lhe à falsa fé;
O O que ouviu o banzé,
Quando chegou nada viu,
Ao mesmo tempo sentiu
Grandes suspiros e ais,
Foram as letras vogais
Quem ao barulho acudiu.
O F e mais o Q,
O X, o L e o H,
Todos à pancada ao K,
Por ter batido no Z;
O I, o L e o T,
Qual deles o mais vário,
Foram pedir ao contrário
Para no Y bater,
Que o E queria prender
As letras do abecedário.
Eu não quero amor toureiro,
Só se mudar de sentido,
Pode vir um boi matreiro,
Ficar mulher sem marido.
Alegando ser d’um capinha
Que na praça se apresenta,
Qualquer rapariga tenta,
E ele não adivinha;
O boi para ele caminha,
E maltrata-o no terreno,
Chora o amor verdadeiro
Que p’ra ele está disposto,
P’ra me livrar do desgosto
Eu não quero amor toureiro.
Se para um artista olhar
É só para o estar a ver,
É para eu me entreter,
Para meu tempo passar;
Se amores que quiser tomar,
Que não seja amor fingido,
Farei com ele um partido
De só a ele me ligar,
Com o protesto de casar...
Só se mudar de sentido.
Todos gostam de ver os toiros
Lidados na bela praça,
Claros e de boa raça,
Faz-se a função sem agoiros;
Espectáculo sem desdoiros,
Só de ver um bom toureiro
Bem empregado dinheiro!
Palmas a todos os preparos!
Mas entre tantos bois claros...
Pode vir um boi matreiro.
Tristeza é para a casada,
O ver estar seu marido
Ali na praça estendido,
Co’uma costela quebrada;
Toda em lágrimas banhada,
Seu coração oprimido,
Porque pode o boi ter f’rido
Co’uma pancada tão forte,
E ser ferimento de morte,
Ficar mulher sem marido.
Passarinho que cantais
Nesse raminho de flores,
Cantai vós, chorarei eu,
Que assim faz quem tem amores.
Doce habitador do vento,
Vós sois, no volátil coro,
Não só músico sonoro,
Mas também lindo instrumento;
Suspendei o doce acento
Com que a todos alegrais,
Se atenderdes a meus ais,
Que nascem de ânsias cruéis,
Prometo-vos que chorareis,
Passarinho que cantais.
Vós nesse enfeite de Flora,
Onde louvais cantando
O sol, que parece infante
Nos braços da bela Aurora;
Contrários somos agora,
Tu contente e eu com dores,
Aqui, no centro de horrores,
Estou, sem cessar, penando,
Vós brandamente cantando
Nesse raminho de flores.
Vós sois o mimo do Fado,
Eu da Fortuna o desprezo,
Vós, em liberdade, eu preso,
Vós feliz, eu desgraçado;
Oh ! que diferente estado
O Fado a cada um nos deu!
A mim, passarinho meu,
Com afecto diferente,
Eu em penas, vós contente...
Cantai vós, chorarei eu.
Sem dúvida, d’outra ave
Namorado estás. Que amante!
A festejar cada instante
Com melodia suave;
Pobre de quem neste grave
Tormentos sente, rigores,
Cantai d’amor os fervores,
Que eu chorarei meus azares,
Que assim faz quem tem pesares,
Que assim faz quem tem amores.
Se eu pudesse em noite escura
Ser por ti agasalhado,
Dormia mesmo enroscado
No açafate de costura.
Filha do Guadalquivir,
Oh, hermosa sevillana,
Descerra a tua ventana
Vem minhas trovas ouvir;
E não te deixes dormir,
Que o manolo te procura,
De la madre buena e pura,
Pepita, tanto te quiero,
Que te roubava el salero
Se eu pudesse em noite escura.
O Argus, que te vigia,
Por Dios! caramba! o condeno,
Maldito sea el sereno
Que ronda a calle sombria;
E quando mal principia
A dizer: o sol é nado,
Corro, fujo assustado,
Por essas vielas fora,
Podendo naquela hora
Ser por ti agasalhado.
Bela como tu, por Cid!
Não há nas terras de Espanha,
Das margens que o Tormes banha
Té à corte de Madrid;
Mi alma tu alma pide,
Salerosa, a Dios sagrado,
Se eu me visse encostado
No teu colo todo alvura,
Na tua mantilha escura
Dormia mesmo enroscado.
Desde Sevilha a Granada
Ninguém te vê que não peque,
Fere ainda mais o teu leque,
Que o gume da fina espada;
E se me desses pousada
No leito da alcova escura,
Verias com que candura
Aí dormia mansinho,
Mais meigo que um gatinho
No açafate de costura.
Elmano, sublime Elmano!
Príncipe da literatura,
Não sei que cantiga cante
P’ra não fazer má figura.
Se eu tivesse o teu talento,
Mal que rompesse a aurora,
À meiga deusa Flora
Cantava com aprazimento;
Contigo no pensamento
Desferia o luso piano,
E quando Apolo soberano
Envergasse o manto d’oiro,
C’roava-te de verde loiro
Elmano, sublime Elmano!
Da Grécia ao luso torrão
Viria em doce romagem,
Para prestar homenagem
À tua culta instrução;
Pela minha própria mão
Queimava-te essência pura,
E quando os Zoilos, por censura,
T’acometessem d’assalto,
Proclamava-te bem alto
Príncipe da literatura.
O fadinho nacional
Na minha lira tangia,
E a teus pés me curvaria,
Luso poeta imortal!
O teu estro colossal
É p’ra mim tão fascinante,
Que à vista do povo amante,
Com a minha rude oratória,
Para te cobrir de glória
Não sei que cantiga cante.
Neste brilhante cenáculo
Poucos me dão atenção,
Porque não tenho o condão
Do teu estilo vernáculo;
Tu és o divino oráculo
Da harmonia e doçura,
E como a crítica procura
Deturpar minha rimagem,
Dá-me forças e coragem
P’ra não fazer má figura.
A melodia de Horácio
Queria ter na poesia,
P’ra fazer a apoteose
Dos mestres da cantoria.
Lindas grinaldas de flores
Queria colocar na lira,
Para à luz da lusa pira
Eu saudar os trovadores;
Queria aos virgínios amores
Glosar no campo herbáceo,
Queria o brilhante prefácio
Ser de poemas diversos,
Se tivesse nos meus versos
A melodia de Horácio.
Com os professores do fado
Não temia a discussão,
Se tivesse a inspiração
Desse vate laureado;
Entre as alfombras do prado
Lindas odes comporia,
E, p’ra que a meiga Tália
Se curvasse extasiada,
Locução esmerilhada
Queria ter na poesia.
Do Parnaso a fina meta
Não receava transpor,
Se tivesse ao meu dispor
O estro desse poeta;
Da poesia incorrecta
Fazia a metamorfose,
Tomava a modesta pose
Do sábio cultor da pena,
E... entrava na arena
Para fazer a apoteose.
Se os modernos prosadores
Não me tolhessem o passo,
Invocava Torquato Tasso
E seguia o canto às flores;
Rosas de diversas cores
Sobre o solo espalharia,
E com toda a cortesia
Saudava o auditório
Para ouvir o reportório
Dos mestres da cantoria.
20Há o mote – E não pôde dizer tó, que foi muito glosado no fado antigo. Conhecemos esta glosa:
É pena que o meu José,
Sendo um esperto rapaz,
Não saiba dizer Tomás,
Nem possa dizer Tomé,
Dizer nunca pôde o T,
Quando vem junto com O,
O outro dia disse só
Todo o b-a ba por si,
Mas chegou ao ta-te-ti,
E não pôde dizer tó.
21Os motes do fado seguintes são quase todos antigos:
Em nome de Deus começo,
Padre, Filho, Espírito Santo;
É esta a primeira cantiga,
Que neste auditório canto.
Já o ferro é suspendido,
Largo as velas ao vento,
Levo-te em meu pensamento,
Nunca me sais do sentido.
Perdeu-se o Feliz Destino
Na barra do Desengano,
Foi-se o Pensamento a pique,
Salvou-se o Amor nadando.
Os pombinhos inocentes
Namoram-se e dão beijinhos,
Faremos, amor, faremos
Como fazem os pombinhos.
Eu pus-me a chorar saudades
Ao pé d’uma sepultura,
E uma voz ouvi dizer
O mal d’amores não tem cura.
Nasci nas praias do mar,
Nas areias me criei,
Dormi à bulha das ondas,
Sobre as vagas m’embalei.
Irei viver entre os montes,
Vendo o precioso trigo,
Lá no céu ou cá na terra
Só quero viver contigo.
Já que me pedem qu’eu cante
Vou-lhes fazer a vontade,
Eu não sei que gosto tem
Ouvir cantar quem não sabe.
No forte dos cantadores
Há dois bonitos estandartes,
Para quem os quiser ganhar
Com acções e com combates.
Põe-se a lua e nasce o sol,
Reverdecem as flores,
Eu só vim a este mundo
P’ra dar honra aos cantadores.
Já não tenho pai nem mãe,
Nem nesta terra parentes,
Sou filho das tristes ervas,
Neto das águas correntes.
Fui-me deitar entre as nuvens,
Das estrelas fiz encosto,
Ia beijando uma delas
Cuidando que era o teu rosto.
Ai de mim, que já não posso
Cantar uma cantiguinha,
Fui beber água d’amores,
Ficou-me a fala brandinha.
No ventre da Virgem bela
Encarnou Verbo por graça,
Entrou e saiu por ela
Como o sol pela vidraça.
Alerta, ó cantadores!
Corram a Almada e vão ver,
Que as pegas lirós do fado
Uma tourada vão fazer!
Rapazes, quando eu morrer,
Gravem-me na sepultura:
«Aqui jaz mimo do fado
Que morreu sem ter ventura! »
Sempre, sempre meditando,
Até fatigo a memória,
Quando a musa não m’inspira
P’ra cantar a lusa história.
Maria, minha Maria,
Meu açafate de limões,
Tu olha p’ra mim direita,
Respeita os meus matacões.
Esta noite nasceu o sol
Do ventre duma donzela,
Ela é mãe e filha dele,
Ele é pai e filho dela.
As grades do Limoeiro
São sete, qu’eu as contei:
Três de ferro, três de bronze,
Uma d’oiro, qu’é d’el-rei.
Em o ventre de Maria
Encarnou Cristo-Jesus;
A vinte e cinco, em Dezembro,
Deu-o à meia-noite à luz.
Pus um pé na sepultura,
Uma voz me respondeu:
Ergue o pé que estás pisando
Um amor que já foi teu.
Homem, que vais passando,
Volta atrás e vem-me ver,
Eu já fui o que tu és,
O que eu sou tu hás-de ser.
Cantando, cantei, cantava,
Cantava, cantei, cantando,
Chorando, chorei, chorava,
Chorava, chorei, chorando.
Estando eu dentro da cama,
Intentei ir viajar,
Fui numa sege a Cacilhas,
Fui num bote ao Lumiar.
Alerta, cantar do fado
Qu’este rapaz alerta está!
Atira, deita por terra,
E não perguntes: Quem vem lá?
Acabaste de cantar,
Agora respondo eu,
Começa o meu coração
A dar combates ao teu.
Os dois irmãos Robertos,
Dois toureiros entre nós,
Foram picar bois em pontas
A praça de Badajoz.
A pena com que te escrevo
Não é de nenhum pavão,
A tinta sai-me dos olhos,
A pena do coração.
Sou amante da orgia,
A tristeza tenho horror,
Dos salões do lupanar
Faço meu ninho d’amor.
Pelo canto das sereias
Se perdem os navegantes,
Perdem-se os homens na terra
Pelo canto das amantes.
Tem o fadinho o poder
Dos corações atrair,
Tem magia, tem encantos,
Faz-nos chorar, faz-nos rir.
Os meus beijos são gelados
E o meu coração é frio,
Nos lábios tenho a mentira,
O pudor de mim fugiu.
No infame lupanar
Tudo é nojento lameiro,
Sorrir quando os olhos choram,
Vender amor a dinheiro.
Quando tu choras, vaidosa,
As tuas lágrimas quentes
Caem do céu para a terra
Em mil estrelas cadentes.
Anda cá, mulher perdida,
Eu te quero abraçar,
Na flor da tua vida
A honra te fui roubar.
Infeliz criança bela,
Perdida p’lo sedutor,
Porque assim a desgraçaste
Com tão rude desamor ?
Por ti, a quem tanto amei,
Fui desprezada, esquecida,
Hoje vivo lamentando
A minha honra perdida.
Desde Alcânt’ra até Alfama
E d’Alfama à Mouraria,
Toda a guitarra suspira
O fado do Anadia.
Bela cerca de Jesus,
Onde os mestres vão cantar,
Nas noites deliciosas
De beber, rir e folgar.
Uma camélia vaidosa,
Movida pelo ciúme,
Acercou-se d’uma rosa
P’ra lhe roubar o perfume.
O primeiro beijo puro
Como cadeia de flores,
É laço que prende a vida,
É grilhão que enlaça amores.
Neste mundo, só d’enganos,
Desgostoso vou vivendo;
Por mais que discorra e pense,
Eu tal mundo não entendo.
Adeus Lisboa e cidade,
Adeus oh pátria querida,
Qu’eu d’esta vou degredado,
Vou dar fins à minha vida!
Tudo que é triste no mundo
Quisera que fora meu,
Só p’ra ver se tudo junto
Era mais triste do que eu.
Neste campo solitário,
Onde a desgraça me tem,
Chamo, ninguém me responde,
Olho, não vejo ninguêm.
Nas ondas foi que nasci,
No mar a infância passei,
É o mar que me sustenta,
Minha campa lá terei.
Eu de nada me admiro,
Ai la-ri-ló-lé Guimarães,
Eu já vi um padre prenho
Parir vinte e cinco cães.
Hei-de escrever a Cupido
Mandando-lhe perguntar,
Se um coração ofendido
Tem obrigação de amar.
Cupido, deus dos amantes,
Aprendeu a gravador,
Engastou dois diamantes
Nos peitos do meu amor.
Três cantadoras do fado,
De cuia estupenda e alta,
A cantarem no Casino,
Eu vi à luz da ribalta.
A guitarra sem a prima,
A prima sem o bordão,
Parece filho sem pai,
Corrido do seu irmão.
O que existe além da morte,
Ninguém disse nem dirá,
De todos que têm morrido
Ainda nenhum voltou cá.
Ainda agora aqui cheguei,
Pesa-me não vir mais cedo,
Cada qual vem quando pode,
E eu venho quando cá chego.
O meu coração e o teu
Certo não sei que lá tem,
Que tudo que o vosso sente,
Meu peito sente também.
Dizia o meu padre-cura
Homem de grande juízo,
Quem sabe cantar o fado
Vai direito ao Paraíso.
Da virgem faz-se a perdida,
Tudo sofre transição;
Do amor puro vem glória,
Do impuro a perdição.
Quem tem filhos pequeninos
Há-de por força cantar,
Quantas vezes a mãe canta
Com vontade de chorar.
Vender linhos, vender chitas,
Panos pretos e de cor,
Dá bom ganho, qu’enriquece
Hoje em dia o mercador.
Às ondas do teu cabelo
A tirei-me eu a afogar,
Para que o mundo soubesse
Que não há só ondas no mar.
Quem criou o nosso fado
Foi Adão no Paraíso;
Era um poeta d’escacha,
Um fadista com juízo.
Oh tristes e alegres flores,
Filhas da sábia natura!
Emblemas da humana sorte,
Mesmo além da sepultura.
As águas que vêm do monte
Correm direitas ao mar,
Petiza, se te não casas,
Não sei onde irás parar.
A guitarra é uma lira,
As cordas suas vibrando,
Enlevos temos inspira
A quem a estiver escutando.
Eu fui o que disse ao sol
Que não tornasse a nascer,
A vista d’esses teus olhos,
Que vinha o sol cá fazer.
O fado é a alegria,
O fado é o prazer,
Porque o fado nos dá vida,
No fado quero morrer.
Já lá vai pelo mar fora
Quem me tirava o chapéu,
Deus o leve, Deus o traga,
Como as estrelas no céu.
Lá mesmo na sepultura,
Onde eu sepultado for,
Uma letra a cada canto
A. M. O. R. – Amor.
Meu coração, não te assustes
Por ouvir mais cantadores,
Entra tu, pede licença
A todos estes senhores.
Ai! quem me dera cantar
Como canta a cigarrinha,
Para cantar-te à janela
Entre as ervas à noitinha.
Mais firme que esta guitarra
Eu serei, por ti, bem bem,
Porque ela não tem raízes
E este amor raízes tem!
Quem ama não considera
O que lhe pode acontecer,
Cuida que tudo são rosas
Que ao jardim se vão colher.
Quem ama não considera,
Quem considera não ama,
Eu amei e não consid’rei,
Chora agora na cama.
Mais uma vez, q’rida lira,
Tuas cordas vou vibrar,
Todas cheias de amargura,
Tristes sons tu vais tocar.
Minha mãe não quer que eu use
Calças de boca de sino,
Eu ando só com janotas
De casaca e chapéu fino.
Amar e saber amar
São dois pontos delicados,
Os que amam são sem conto,
Os que sabem são contados.
Nasci nas praias do mar
Ao impulso d’ondas mil,
Tenho por berço uma lancha,
Por coberta um céu d’anil.
Adeus, rapazes amigos,
A quem eu acompanhava,
Adeus, oh Lisboa q’rida,
Ai! terra que tanto amava!
Guitarra, minha guitarra,
Que estás hoje ao pé de mim,
Trina tu que eu cantarei,
Té chegar o nosso fim.
Para as torradas manteiga,
Por cima café e vinho,
Estão ingleses em terra,
Vão portugueses p’ró pinho.
Serão três os mandamentos
Do fadista, disse a sorte:
Navalha, banza e fado
Segui-lo-ão té à morte!
A viola sem a prima
É como a filha sem pai,
Cada corda seu suspiro,
Cada suspiro seu ai!
Eu hei-de amar o meu bem,
Diga o mundo o que quiser,
Quem ama não quer conselhos,
Quer só tudo o que o amor quer.
Traindo os teus juramentos
Foste perjuro, infiel,
Trocaste os gozos d’amor
Pela ingratidão cruel.
Dou a minha despedida,
Sem ofender a ninguém,
O muito cantar enfada,
O pouco parece bem.
Quem pintou o amor cego
Não o soube bem pintar,
O amor nasce da vista,
Quem não vê não pode amar.
O amor nasce da vista,
E mora no coração,
Vive da correspondência,
E morre da ingratidão.
Entre a pena e a espada
Há-de haver grandes questões,
Eu defenderei a pena,
A arma que empunhou Camões.
Agora respondo eu
A flor que aqui cantou,
Estava p’ra me ir embora,
Agora já me não vou.
Adeus, oh pátria tão q’rida,
Que eu d’esta vou degredado,
Vou dar fins à minha vida,
Bem nascido e malfadado.
Minha mãe aflita chora
Pelo seu querido filhinho,
Ele choroso também vai
Neste espinhoso caminho.
õ cantador afamado,
Que sabes mais que ninguém,
Diz p’ra que nasceu Cristo
No presépio de Belém?
Cá na terra de Lisboa
Quem é rico passa bem,
Assim é na minha terra,
E noutra qualquer também.
Para a noite, lua e estrelas,
Para os campos malmequeres,
Āgua fria para a sede,
Para os homens as mulheres.
Ainda agora aqui cheguei,
Oh jovem constante e pura,
Boa noite, meus senhores,
Pus um pé na sepultura!
Pus-me a chorar junto ao rio
Lágrimas de sentimento,
E uma voz ouvi dizer:
Nada cura como o tempo.
Este mundo é um jardim,
Cada flor é um cristão,
Vem a morte, furta as flores,
Que Deus pôs por sua mão.
Eu canto quando te vejo,
Mesmo com a noite a cerrar,
Não há tordo que não cante,
Quando lhe bate o luar.
Insensata humanidade,
Que à soberba dais entrada!
Cedo ou tarde ficareis
Em terra, pó, cinza e... nada!
À face do lindo céu
Jurei e tenho jurado,
Só a ti e a mais ninguém,
Eu amei e tenho amado.
Quem diz qu’amor é enfado
É certo que nunca amou,
Eu amei e fui amado,
Nunca o amor me enfadou.
O beijo que tu me deste
Sem a tua mãe saber,
Toma-o lá, já o não quero,
Porque lh’o foram dizer.
ô lira, quem poderá,
Do Fado fugir às leis?
Se ao Fado sujeito está
O mundo, plebeus e reis!
Esta noite sonhei eu
Um sonho bem divertido,
Que tinha na minha cama
A forma do teu vestido.
A mulher é qual a rosa,
Cândida e pura em botão
Ao desabrochar, formosa,
Depois desfolha-se então.
Cantigas são pataratas,
Palavras leva-as o vento,
Quem se fiar em cantigas
É leve de pensamento.
Todo este monte não tem
Como eu um outro pastor,
Que te tenha tanto amor,
Que te saiba amar tão bem.
Guitarra, lira divina
Onde canta a sorte vária,
Em que chorou a Severa,
E lagrimeja a Cesária!
ó morte vem terminar
Os meus dias de amargura,
Que o meu contínuo penar
Findará na sepultura!
Não sei o que tem meu peito,
Se é aflição ou se é dor,
Se não é amor que sinto,
Não sei o que seja amor.
Alegria não a tenho,
Tristeza comigo mora,
Se consigo o que desejo
Logo a tristeza vai fora.
Escrevi na branca areia
Doce nome do meu bem,
Escrevi e risquei logo
Com medo que visse alguém.
Vai com Deus! já foste minha,
Que eu também com Deus me vou!
Deus te pague se me amaste
Deus perdoe a quem te amou!
Tenho um saco de cantigas
E ainda mais um guardanapo,
Se isto vai ao desafio,
Vou-me a desatar o saco.
Quando meus olhos te viram,
Meus coração te adorou,
Na cadeia dos teus braços
Minh’alma presa ficou.
Se tens empenho em saber
Qual é o canto adorado,
Vai ao coté da Severa
Perguntar pelo seu fado.
De que me serve desfrutar
Os bens que a fortuna dá,
Sem ter nada vive um pobre,
Mas sem ti quem viverá?
Nestes ditosos lugares,
Onde me fica o coração,
A meus ternos ais responde,
Que merecem a compaixão.
Já fui teu, mas não o nego,
O mundo pode saber,
Que hoje em ser teu só tenho
A glória de o não ser.
Oh mulher, que me mataste,
Dá-me agora a sepultura!
Já que a morte me causaste,
O meu mal já não tem cura!
Oh mulher que me deixaste,
Do que eu bem certo estou,
Nem ao menos te lembraste
Do que entre nós se passou!
Muito vence quem se cala,
Mais vence quem não diz tudo,
Porque em certas ocasiões
Vale mais o fazer-se mudo.
Meu amor, quem cala vence,
Mais vence quem não diz nada
Porque em certas ocasiões
Vale mais a boca calada.
Tu te queixas, eu me queixo,
Qual de nós terá razão?
Tu te queixas dos meus zelos,
Eu da tua ingratidão.
Quando Cristo ressuscitou,
Estalaram as pedras duras,
Cobriu-se o mundo de trevas,
E abriram-se as sepulturas.
Oh homem, se és cantador,
Hás-de me explicar,
Como Deus formou o mundo,
Sozinho e sem se cansar.
Coração tem duas penas,
Qual d’elas a mais pungente,
Que uma diz o que escreve,
E outra escreve o que sente.
Quis pesar nossa amizade,
Sem usar de manha ou arte,
Ergue a mão, deixa a balança...
Pende mais p’rá minha parte.
Tuas cantigas modernas
Quase que todas são mochas,
E de nascença vêm coxas,
As minhas têm duas pernas.
Meu coração é relógio,
Minh’alma dá badaladas,
No dia em que te não vejo,
Trago as horas contadas.
Indo um dia passear,
De capote amantilhado,
Entrei, sem saber que entrava,
Numa casa de bom fado.
Tem falta de patriotismo
Quem do fado disser mal,
Porque este canto é
Pura invenção nacional.
Decerto ninguém resiste
A largar uma piada,
Se aparecer o pianinho
Em tarde de patuscada.
Para cantar, a Custódia
Ou a Marócas do Galvão,
P’ra bater o fado não há
Como a Amélia do Paixão.
Praguentos, arreda lá,
Do fado não digais mal,
Honra aos belos cantadores,
Honra ao fado nacional!
Oh seu cantador lampeiro,
Veja lá no que se estriba,
Ainda há-de vir o primeiro,
Que me há-de ficar de riba!
Senhores que m’ouvindo estão
Em este recinto honrado,
Não julguem de mim fadista
Só por eu cantar o fado.
Oh vida da minha vida,
Oh vida do meu viver!
Para que quero eu a vida
Se eu nasci para morrer!
Oh vida da minha vida,
Da minha vida não sei!
Sei o que tenho passado,
O que hei-de passar não sei.
Chora, chora desgraçado,
Que o teu mal já tem raiz!
Não digas que eu fui culpado
Da tua sorte infeliz.
Dá-me a flor emurchecida
Dos teus seios ao calor,
Dá-m’a pálida, sem vida,
Dá-m’a sem brilho, sem cor.
O canto mais popular,
Mais terno mais sentidinho,
É decerto, e sem questão,
O simpático fadinho.
Eu canto ao som da guitarra
O fadinho nacional,
Quando ao som da banza canto
Dou alívios ao meu mal.
Não sei qual pena é maior,
Qual é mais de lastimar,
Se ver um homem morrer,
Se ver um homem chorar.
Amar não é crime,
Não é crime não,
Quem despreza amor
Não tem coração.
Se eu fosse de Portugal
Rei ao menos por um dia,
De nobre, os foros daria,
Ao fado nacional.
N’uma noite d’aventura
Tive um sonho bem feliz!
Sonhei que estava dormindo
Nos braços de quem eu quis!
Um beijo dado no rosto,
Sendo bem repenicado,
Equivale a ouvir no fado
Uma cantiga de gosto.
Há beijos de várias sortes,
Como as bocas que os praticam,
Há beijos que mortificam,
E há beijos que causam mortes.
Torradinhas com manteiga,
Por cima café limão,
Toda a facada tem cura
Não chegando ao coração.
Para as torradas manteiga,
Por cima café limão,
Canta lá o que quiseres,
Que a mim não m’enganas não.
Quando Cristo Senhor Nosso
Descalço pelo mundo andou,
à quinta-feira morreu,
Ao sábado ressuscitou.
Já tive, agora não tenho,
Por muitos fui estimado,
Acabou-se o meu dinheiro,
Já vou sendo desprezado.
Os cegos que nascem cegos
Passam a vida a cantar,
Mas eu que nasci e ceguei,
Passo a vida a chorar.
Aqui, fruí eu mil gozos,
Aqui, gozei a ventura,
Aqui, só tenho saudades,
Aqui, minha sepultura.
Oh tocador de viola,
Repenica-me esses dedos!
Se te faltarem as cordas,
Aqui tens os meus cabelos.
O fado veio ao mundo
N’um dia de primavera,
Teve por berço a guitarra
E por madrinha a Severa.
Não há dor que tanto custe
Como a dor do coração,
Todos os males têm cura,
Só este mal é que não.
Quem tem o amor careca
Tem a morte à cabeceira,
Quando vai para se erguer
Dá co’os olhos na caveira.
Se ouvires dizer que eu morro,
Não tenhas pena, meu bem,
Que a morte d’um desgraçado
Não causa pena a ninguém.
Fadistas são como os cucos,
Sempre andam a dois e dois,
Ainda Deus lhes há-de dar
Aquilo que deu aos bois.
Cupido apanhou um bico
Lá na taberna de Baco,
Fez zangar a mãe maluca,
Partiu a Mercúrio o caco.
O meu coração, menina,
Não é caixa nem baú,
Está fechado para todos,
Aberto só para um.
Quem disser que a vida acaba,
Digo-lhe eu que nunca amou,
Quem deixou ficar saudades
Nunca a vida abandonou.
Quem canta o fado a atirar
Está sujeito a mil questões;
Quem tem amores tem zelos,
Quem tem zelos tem paixões.
Tu cantas bem, não cantas mal,
Garganta de pura neve,
És o copo cristalino,
Onde o sol divino bebe!
Tu cantas bem não cantas mal,
Oh garganta de marfim,
Eu dava dez reis às almas,
Se cantara como a ti!
Eu hei-de te amar aos meses,
Por não andar às semanas,
Havemos de dormir ambos
Por não fazer duas camas.
Rapazes, quando eu morrer
Vão-me enterrar no Quintão,
Deitado sob um tonel,
Sendo a fronha um cangirão.
Amar, morrer, padecer,
Não pode ser tudo junto,
Quem morreu acaba a vida,
Quem ama padece muito.
Quanto se sente na morte
Quanto na ausência se sente,
A morte é ausência eterna,
A ausência é morte aparente.
A guitarra para o fado,
A viola para a canção,
E para carinhos só tu,
Amor do meu coração!
Já lá vai, já se acabou,
O meu rir, o meu zombar!
Coração que livre estavas,
Quem te mandou cativar?
O frade pediu à freira:
Oiça-me de confissão;
E a freira lhe respondeu:
Meta-me o livro na mão.
Guitarra, minha guitarra,
Solta gemidos e ais,
Que os dias passam voando,
E os prazeres não voltam mais!
O xá da Persia é sob’rano,
Ah! tem tudo quanto quer!
Muita soma de brilhantes,
Muita soma de mulher.
Ter amor é muito bom,
Quando há correspondência,
Mas amar sem ser amado,
Faz perder a paciência.
Para as torradas manteiga,
Não de Sintra que tem ranço,
Mesmo comendo torradas,
Eu componho, canto e danço.
Para as torradas manteiga,
Eu canto, mas você toque,
Haja um que nos governe,
E nada de rei nem roque.
Todos são de opinião
Que a coisa não pega cá,
Pois se pega a todo o passo
O caminho Larmanjat.
Podia o céu dar batatas,
Na terra estrelas haver
Mas eu deixar de te amar,
Isso não podia ser.
Eu hei-de morrer cantando,
Já que chorando nasci,
Já que os gostos d’esta vida
Se acabaram para mim.
Eu quisera um só instante
Apertar-te ao peito meu,
Abrir meu peito e dizer-te:
És minha, pois eu sou teu!
Já te esqueceste de mim,
Oh ! morte devastadora!
Eu errei quando julguei
Que eras minha protectora.
Folgar louco é ilusão
Torna o homem desgraçado,
Perde dos pais o carinho,
Ê de amigos desprezado.
Eu hei-de amar uma pedra,
Deixar o teu coração,
Uma pedra não me deixa,
Tu deixas-me sem razão.
Oh morte, tirana morte!
Eu de ti tenho mil queixas,
Quem hás-de levar não levas,
Quem hás-de deixar não deixas.
O toureiro é temível,
Eu não me temo de nada,
Temo-me da tua boca,
Que me dizem que é danada.
Jovem linda abandonada,
Só tu tiveste a dita,
De entrar em meu coração,
Uma sala tão bonita.
Abre-te, pena constante,
Serás minha sepultura!
Se meus ais te não abrandam
Digo-te, pena, qu’és dura!
Espanhol p’rá malaguenha,
Português p’ró lindo fado,
Não há, nem pode haver
Canto a este comparado.
Para o mar salta o banheiro,
Dá-lhe a mão linda donzela;
As tranças boiando n’água,
Fazem-n’a ainda mais bela.
Se te não amo faleço,
E se te amo há quem me mate,
De toda a maneira morro,
Quero morrer e adorar-te.
Não há flor como o suspiro,
Cá na minha opinião,
Todas as flores se vendem,
Só os suspiros se dão.
Deus criou a borboleta
Para nos campos voar,
E a ti, oh rosa branca,
Para em meu peito viçar!
Oh castelo, não te rendas,
Iça a bandeira se queres,
Na batalha dos amores
Vencem sempre as mulheres.
Agora respondo eu
A flor que aqui cantou,
Em que vaso é que nasceu,
Em que jardim se criou?
Meninas que sois donzelas,
Vêde bem por onde andais,
Que a honra é como o vidro,
Quebrando não solda mais!
Quantas vezes, oh ingrato,
Falsas promessas te ouvi,
Os teus falsos juramentos
Só agora conheci.
Tenho dentro do meu peito
Duas penas a bulir,
Uma diz que quer amores,
Outra deles quer fugir.
Tu chamaste-me tua vida,
Mas tua alma eu quero ser,
Que a vida morre com o corpo,
E a alma eterna há-de ser.
A caveira de meu pai
Sem ter língua me falou:
Olha, filho, o triste estado,
Em que a morte me tornou.
Branco fantasma se ergueu
Por força de amor ardente,
Foi celebrado o mistério
N’um sepulcro, tão somente.
Adeus, caveira dos ossos
Adeus, dos ossos caveira!
Estes meus e esses vossos
Todos da mesma maneira.
Primeiro homem foi Adão,
E Eva a primeira mulher;
E ambos foram tentados
Pelo poder de Lucifer.
Altos céus que me roubaste
Minha doce companhia!
Uma mãe que eu gozava!
Que tanto bem me queria!
O frade pediu à freira
Um beijinho pela grade,
A freira lhe respondeu:
Vá p’rá missa senhor frade.
Primeiro homem foi Adão,
E Eva da terra neta,
O Moisés o rio passou,
Discorre lá s’és poeta!
És o rei da estupidez,
Da ignorância imperador,
As tuas horrendas frases
Causam grandíssimo pavor.
Canta tu, cantarei eu,
Que o cantar é alegria,
Também os anjos cantaram
Louvores à Virgem Maria.
Portugal não esmoreças,
Tem fé nas tuas bandeiras!
Ainda te hás-de ver feliz
Entre as nações estrangeiras.
Pias, mocho, a noite inteira,
Lá na cruz do cemitério,
P’ra que deixas tu o dia
Pelas sombras do mistério ?
Oh morte, cruel tirana,
Oh parca dura, insofrida!
De negros crepes te adornas,
Só te alimentas da vida!
Eu sou Mar e tu és Terra,
Qual terá maior valor?
Eu tenho a beleza das águas,
Tu tens o aroma da flor.
Brilha a lua com tristeza
Nas lajes das sepulturas,
Os ciprestes rumorejam,
Eis o fim das criaturas!
Eu sou Terra e tu és Mar,
Qual terá mais riqueza?
Se tu tens belos corais,
Eu encerro mais beleza.
Anjo caído uma vez
É banido entre os mortais,
Porque as leis sociais
O entreolham de revés.
Que mais feliz não seria,
Se eu fosse o mar revoltoso,
Pois o teu olhar maldoso,
De mim jamais zombaria.
Por tua imensa loucura,
Tão devassa te tornaste!
Pai e mãe tudo deixaste
Com pranto e com amargura.
O malmequer é singelo,
Mas ostenta-se garrido,
Em muito jardim florido,
A tornar o campo belo.
Na praia, mulher e filho
Não se cansam d’acenar
Para o navio que balança
Por sobre as águas do mar.
P’ra desenhar a mulher
Que é dócil, meiga e gentil,
Não há no mundo pincel,
Não há na terra buril.
Violeta, formosa flor,
Ninguém como eu te aprecia,
Tua modéstia me encanta,
Teu aroma me inebria.
Houve um homem, um traidor,
Que de meu corpo abusou,
Um puro amor me jurou,
Mas era falso esse amor.
O mar namora as estrelas,
Vêm as estrelas ao mar,
Qual d’elas mais pressurosa
Para o amante beijar.
Nada há p’ra distrair
A travessa hipocondria,
Como da pesca o recreio,
Quando abunda a pescaria.
Deu-te a rosa a sua cor,
Deu-te o céu o azul turquesa
Deu-te a alvura o jasmim,
E a palmeira a gentileza.
Eu fui aquela que disse,
Encostada à solidão:
Maldita seja a mulher
Que por homens tem paixão.
Em tudo sou infeliz,
Até mesmo no cantar,
Partem-se as cordas à lira
Quando a quero acompanhar.
Fui ao Porto, fui a Braga,
Também fui ao Limoeiro,
Não achei melhor amigo
Que a bolsa do meu dinheiro.
Eu já quebrei o grilhão
Com que o amor me prendia,
Se eu soubesse eras ingrata,
Nada de ti pretendia.
Não canto por bem cantar,
Nem por ter falas de amante,
Eu canto para dar gosto
A quem me pede que cante.
Certa saloia que calça
Sapatinho de tacão,
Acendeu neste meu peito
Uma cratera, um vulcão.
Oh tocador da guitarra,
Dê-me a sua linda mão,
Porque me feriu as toeiras
Da viola do coração!
Quero cantar e não posso,
Falta-me a respiração,
Falta-me a luz dos teus olhos,
Amor do meu coração!
Os meus me abandonaram,
Foram-se todos os meus,
Entre os filhos da desgraça
Só tenho a graça de Deus.
O meu peito solitário
E um ninho de cantigas,
Ali dormem, ali vivem,
Esperando as raparigas.
Vai-te, carta venturosa,
Que lindos olhos vais ver,
Põe-te, carta, de joelhos,
Quando te forem a ler.
Alerta, cantador, alerta!
Alerta cantador, está!
Se encontra, deita por terra,
Não perguntes quem vem lá.
Tudo é luto, tudo é pranto,
Ninguém deixa de estar triste,
É morta a nossa rainha,
Estefânia já não existe!
Menina, se sabe ler,
Também sabe soletrar,
Diga-me lá por cantigas
Quantos peixes tem o mar?
Os peixes que tem o mar
Navegam e vão ao fundo,
Diga-me lá por cantigas
Quantas almas há no mundo?
As almas que há no mundo,
Cubro-as eu co’meu chapéu,
Diga-me lá por cantigas
Quantas estrelas há no céu?
As estrelas que tem o céu,
Nem tu as sabes nem eu,
Diga-me lá por cantigas
Quantas ruas tem Viseu?
As ruas que tem Viseu,
Eu t’as vou explicar:
São dezoito ao comprido,
Dezanove a atravessar.
Não há arte n’este mundo
Como a arte de roubar,
Era de todas a melhor,
Se a deixassem durar.
Se te aborrece o querer-te,
É forçoso o desprezar-te,
Ensina-me a aborrecer-te,
Que eu não sei senão amar-te.
Anda cá, meu bem, se queres
Que a minha alma seja tua,
Se é preciso castigo, basta,
Se é de gosto, continua.
Oh coração de três asas,
Dá-me uma, quero voar,
Quero ir ao céu em vida,
Em vindo torno-t’a a dar.
Pus-me a jogar cartas d’oiro
Numa mesa de marfim,
Cuidando eu que ganhava,
Perdi c’o meu Serafim.
Eu hei-de ir ao céu, hei-de ir,
Hei-de de ir ao céu de joelhos,
Buscar uma rosa aberta
Entre dois cravos vermelhos.
Lá no céu vai uma núvem,
Forrada de cor de rosa,
Se a inveja fosse tinha,
Muita gente era tinhosa.
A viola pela prima,
A prima pelo bordão,
O amor pela palavra,
A menina pela mão.
A guitarra quer que eu toque,
As cordas que eu enrouqueça,
As meninas de Lisboa
Querem que eu aqui padeça.
A guitarra pede, pede,
Eu bem a oiço pedir,
Um travesseiro de rosas
Para o tocador dormir.
Foi-se a graça e formosura,
Dos festins do lupanar,
Continua a porta aberta,
Mas ninguém lá quer entrar.
Chorai, rapazes, chorai,
Guitarra toca com dor,
Morreu a Borboleta
Queimada em fogo d’amor!
Nada há de que mais goste,
Nada mais do meu agrado,
Que ir ao domingo às hortas,
No sábado esperar o gado.
Eu casei com uma velha,
Por causa da filharada,
Lá ao fim dos nove meses
Teve dez d’uma ninhada.
Quatro e cinco são nove,
Com mais nove são dezoito,
E mais seis são vinte e quatro,
E quatro são vinte e oito.
Eu hei-de casar co’um coxo,
Que me hei-de fartar de rir,
Fazer-lhe a cama bem alta
Só para o coxo não subir.
Quando t’eu vi, oh freirinha,
Encostadinha ao mirante,
Logo meu coração disse:
Tu, freirinha, tens amante.
Foi Deus servido levar
Da nobreza a fidalguia,
Já morreu o pai dos pobres,
O Conde da Anadia.
Vinde ver, oh sociedade,
O que é uma prisão,
Escola dos desgraçados,
Caminho da perdição!
O tocador da guitarra
Na verdade toca bem,
Mas toca muito apressado,
Julga que lhe foge alguém.
Guitarra, minha guitarra,
Estás aqui, estás no seguro,
Vou-te mandar pôr no prego
Em dez tostões, fora o juro.
Toca-me n’essa guitarra,
Que m’a faças retinir,
Tenho os meus amores bem longe,
Que m’os faças aqui vir.
A guitarra tem um S
Debaixo do cavalete,
O tocador que a toca
É um faia de barrete.
Oh guitarra, oh guitarra,
Quebrada te vira eu,
Toda a semana na «borga»,
Levas melhor vida qu’eu!
Já não canto à guitarra,
Nem meu coração me ajuda,
Morreu-me o meu pai há pouco,
Sou filho d’uma viúva.
A guitarra que se toca
É de pau de marmeleiro,
O tocador que a toca
Quer-se casar qu’é solteiro.
Bravo, senhor cantador,
Honra a Vossa Excelência,
Meteu n’África uma lança,
Cantou com toda a decência!
Fiz ponto de interrogação
Com reticências e tal...
Já fiz também os dois pontos,
Agora... ponto final.
Vou deixar este recinto
De tão bela companhia,
No peito levo a saudade,
Adeus, até outro dia.
Na mesma campa nasceram
Duas roseiras a par,
Conforme o vento as movia,
Iam-se as rosas beijar.
Porei teu corpo onduloso,
Cuja graça me seduz,
Num altar feito de gozo,
Num relicário de luz.
Já fiz o meu testamento,
Deixo o corpo a mais de dez,
Não quero que a terra coma
Nem mesmo as unhas dos pés.
Rapazes, quando eu morrer,
Levem-me devagarinho,
Façam cova d’água-ardente,
Por cima cubram com vinho.
Tenho sono, vou dormir,
A cama me vou deitar,
Leva-te no pensamento,
Contigo hei-de sonhar.
Eu pedi a morte a Deus
Agora já estou doente,
Faça Deus o que quiser,
Eu não hei-de viver sempre.
Amo o amor simpático
E os gases alcoólicos
O amor maquiavélico
E os olhos diabólicos.
Eu já vi um cego a ler,
Um mudo a cantar o fado,
Tocar guitarra um maneta,
Um coxo o sapateado.
É digna de compaixão
A jovem desventurada,
Que perdeu da honra a flor,
Sendo depois desprezada.
Por causa d’uma «gajona»
Para quem me pus a «adicar»
Fui parar ao «estarim»,
Sem me poder «esgueirar».
Porque atirei um «sundéque»
A um «gajo» «todo liró»,
Fui bailar ao «Verde-limo»,
Fui parar ao «chelindró».
Tenho catarro nas unhas,
Dores de tripas no cachaço,
Sou maneta d’este olho,
Não vejo nada d’um braço.
O Colares foi-se casar
Com a genebra d’Holanda,
O Torres, que a namorava,
Ficou de queixos à banda.
Todo o rapaz que se obriga
Deveras a amar o fado,
Deve ter no braço marcado
O nome da sua amiga.
Quem anda no triste fado
Nunca pode ter bom fim,
Quem bem vive, mal acaba,
Ponham os olhos em mim.
Tudo se vende no mundo,
Do oiro tudo depende,
Tudo, excepto o coração,
O coração não se vende.
Olha que é sombra o passado,
E névoa densa o porvir,
É relâmpago o presente,
A vida é fumo a subir.
É sonho o prazer fugaz,
É outro sonho a beleza,
Nada no mundo é durável,
E só na morte há certeza.
Às vezes busco a Fortuna,
Bato-lhe à porta também,
Nunca a vejo nem encontro,
Não me responde ninguém.
Todo o homem com dinheiro
Tem amigos com fartura,
Porém, se chega a ser pobre,
Ninguém jamais o procura.
São como a sombra as mulheres,
Igual condão as anima,
Seguem quem delas s’afasta,
Fogem de quem s’aproxima.
Quando eu contemplo no céu
Duas estrelas unidas,
Creio que são duas almas,
Qu’entrelaçaram as vidas.
Quanto fazes também faço,
Em mim teu espelho existe,
Se te vejo alegre, alegre,
Em tu estando triste, triste.
Oh esperança da minha vida,
Porque me vais a fugir?
Indo contigo as promessas,
Que não chegaste a cumprir.
Tudo quanto é verde seca,
Chegando o pino do verão,
Tudo se torna a renovar,
Só a mocidade não.
Tenciono mandar fazer,
Que não posso fazer tudo,
Um barco de paciência
P’ra poder viver no mundo.
Quatro flores em meu peito
Fizeram sociedade,
Malmequer, amor-perfeito,
Um martírio e uma saudade.
Já te quis, já te não quero,
Já te perdi afeição,
Já te varri à vassoura
P’ra fora do coração.
Quando me dizem mal de ti
A conversa mudo o tom,
Não posso dizer que és mau,
Não posso afirmar que és bom.
Todo o que perde a ventura,
Sonho breve de um momento,
Arrasta sempre consigo
Na memória o seu tormento.
Ausência tem uma filha,
Que se chama a saudade,
Eu sustento mãe e filha
Bem contra minha vontade.
Os que em terra ficam vendo
A barca em que os outros vão,
Dizem, ao vê-la afastar-se:
Quem sabe se voltarão!
Debaixo dos verdes ramos,
Dorme agora o meu amado,
Não cantem mais, passarinhos,
Não o acordem, cuidado!
D’ entre as cem dificuldades
Que o amor resume em si,
Com trabalho e paciência
Noventa e nove venci.
Chamei pela morte e disse:
É tempo, vem-me buscar,
Já estou cansado da vida,
É preciso descansar.
Por te amar perdi a vida,
Mas não deixei de te querer,
Quem me dera ter mil vidas,
Para todas mil eu perder.
Tenciono mandar fazer
Um barco de noz qu’é forte,
Para embarcar saudades,
Que me têm posto à morte.
A toda a mágoa do mundo
Consolo as lágrimas são,
Lágrimas são para a dor
A mais súbita expressão.
Dei-te um beijo, coraste,
Dei-te segundo, sorriste,
Todos os mais que levaste,
Foste tu que m’os pediste.
Oh guitarra, oh guitarra,
Guitarra dos meus anelos,
Se te partirem as cordas,
Aqui tens os meus cabelos.
Por teu respeito, mulher,
Perdi toda a liberdade,
Acho-me preso em teus braços
Por minha livre vontade.
Apalpei o lado esquerdo,
Não achei o coração,
De repente me lembrei,
Que estava na tua mão.
Duas flores além estão,
Qual será a mais formosa?
Se é na fragrância – o lírio,
Se na formosura – a rosa.
Quem se viu como eu me vi,
Quem se vê como eu me vejo,
Já não tem pena de nada,
Só da morte tem desejo.
À beira d’alvo regato
Um lírio se debruçou,
A pura água cristalina
Com amor o retratou.
Já não há gozo na vida,
Que me alegre o coração,
Nem o bom canto das aves
Nas belas manhãs de verão.
Eu não posso passar sem ti,
Nem tu, lindo amor, sem mim,
Anda cá, oh rosa branca,
Criada no meu jardim.
Quem me dera amar um dia,
Ter amor, ter afeição,
Ser escravo e dar a vida
Por um terno coração.
No mundo tudo é engano,
Em que a vida se entretem,
Amizades são mentiras,
Só há o amor de mãe.
Com a morte acaba tudo,
Nas campas a paz habita,
Lá não se encontra a saudade,
Lá não se encontra a desdita.
O rouxinol na balseira
Desfere alegres trinados,
Tu, minha pobre guitarra,
Só tens sons apaixonados!
Entre as campas solitárias
Eu me fui refugiar,
E d’entre elas ouvi dizer:
Deixa os mortos repousar.
O rouxinol canta amores,
Os amores fazem o coro,
E surge o sol radiante
Entre mil centelhas d’ouro.
Se fosse melro bem negro,
D’estes de bico amarelo,
Iria fazer meu ninho
Nas tranças do teu cabelo.
Escondido num arbusto,
Que um alvo rio banhava,
O mavioso rouxinol
A meiga voz desatava
As pulgas que à noite saltam
Nos lençóis em seus folguedos,
Sabem sim, mas não revelam
D’aquela cama os segredos.
Vamos vibrar os arpejos
D’uma serenata louca,
As notas serão meus beijos,
A guitarra a tua boca.
Já não posso ser contente,
Tenho a esperança perdida,
Ando perdido entre a gente,
Não morro, nem tenho vida.
Alveja ao clarão da Lua
Branca aldeia adormecida,
No agudo campanário
Vela a cruz da sua ermida.
Perguntei à Sociedade,
Da qual amo e prezo a vida,
Se é cobarde ou valente
O homem que se suicida.
Porque não foges, não voas,
Coração, porque há-de ser?
De pedra no resistir,
De cera no padecer!
Em desprezada caveira
Que num canto asilo encontrou,
Uma rosa perfumada
Inconsciente ali brotou.
A morte te deu a vida,
Junto da morte nasceste,
A vida te deu a morte,
Junto da morte morreste.
Oh, pálidas madrugadas,
Já tenho saudades tuas!
Do choro das guitarradas,
Gemendo o fado das ruas!
Notes de bas de page
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000