A propósito da presente reedição
p. 15-25
Texte intégral
1. Sobre o autor
1Teófilo Braga, de seu nome completo Joaquim Teófilo Fernandes Braga, nasceu em 1843 na cidade de Ponta Delgada, vindo a falecer em Lisboa, no ano de 1924.
2Foi, sem dúvida, uma das grandes figuras durante a segunda metade do século XIX e os anos da Primeira República. Nele se conjugam facetas de homem político, profundamente empenhado na actividade oposicionista à monarquia constitucional, como de igual forma e intensidade o académico com longo currículo de publicações científicas. É a este último aspecto que será dada maior atenção, sobretudo para enquadrar «O Povo Português» nas preocupações do autor e nas correntes do pensamento antropológico da época.
3De entre as suas principais obras publicadas em livro, há que mencionar, por ordem cronológica, a «História da Poesia Popular Portuguesa» (1867), os «Cantos Populares do Arquipélago Açoreano» (1869), a «História do Teatro Português» (1870-71), em quatro volumes, a «História das Ideias Republicanas em Portugal» (1880), finalmente os dois volumes de «O Povo Português» (1885).
4Este relance pelos títulos de algumas das obras de Teófilo Braga permite avaliar o grau de interpenetração entre as preocupações políticas contemporâneas do autor e a necessidade por ele sentida de fundamentá-las pela actividade intelectual. O seu percurso profissional também o demonstra: em 1872 foi nomeado professor de Literaturas Modernas no Curso Superior de Letras, em Lisboa. No meio de febril ocupação foi escolhido para Presidente do Governo Provisório logo após o 5 de Outubro de 1910; posteriormente, em 1915, é eleito Presidente da República, cargo que exerceu durante alguns meses. No período monárquico tinha também sido deputado.
5Sobre Teófilo Braga pode-se desde já adiantar que a sua extensa produção constitui uma tentativa de sistematização baseada numa erudita compilação. Ele tem sido considerado pelos especialistas como o grande impulsionador da crítica literária em Portugal. A sua personalidade associa-se igualmente o empenho militante para a introdução e difusão dos métodos positivistas no nosso país. Seguramente que esta base filosófica lhe serviu de estímulo e apoio como político e como intelectual. Permitiu-lhe guiar-se, sistematizando na vasta obra a realidade que o envolvia, tanto no quotidiano, como na luta pela concretização dos seus ideais de cidadão.
6Nestas páginas de introdução ao seu mais longo trabalho directamente ligado à Etnologia, proceder-se-á prioritariamente à análise de contextos mais globais em que se insere «O Povo Português», não tanto na óptica de posicionar o livro na obra de Teófilo Braga, mas sim no âmbito e no confronto com as correntes em que ele se inspira, ao elaborar o que já foi considerado, a primeira grande obra de conjunto da etnografia portuguesa (Leal 1981: 131). Pretende-se, no final de contas, mostrar ao leitor quais as grandes ideias e hipóteses do pensamento etnográfico oitocentista europeu, a sua recepção por Teófilo e avaliar o seu contributo eventual para os estudos etnológicos em Portugal.
2. A obra no contexto das correntes antropológicas do século xix
7«O Povo Português» é a fase mais acabada, de componente expressamente etnográfica, na obra de Teófilo Braga. Editada em dois volumes relativamente densos, importa analisar alguns aspectos que a fundamentam, nomeadamente o seu aparelho crítico. Nele se distinguem componentes várias, que remetem para grandes linhas de desenvolvimento do pensamento oitocentista ocidental.
8Em primeiro lugar há que focar a esfera dos estudos românticos. Trata-se de uma área grata ao autor, dado o seu manifesto interesse pela literatura nacional, pela respectiva prespectivação crítico-histórica. Este ramo de conhecimento baseou-se não só nos aspectos literários, como igualmente na tónica histórico-filológica, e daí necessariamente comparativista. Grande parte dos mais fecundos impulsos chegam da Alemanha, onde correntes românticas procuravam o caminho para uma via liberal de unificação política nacional. Teófilo manteve uma relação de trabalho com os investigadores alemães e austríacos que, na época, se interessaram pela temática portuguesa (Bellerman 1840, 1864; Hardung 1875; Wolf 1856). Há uma troca de materiais, mas também um acompanhamento das recolhas que em Itália (Nigra 1858-62; Pitrè 1871) se levavam a cabo. A articulação de fontes diferentes pela dispersão geográfica, contudo convergentes na área linguística não escapa a Teófilo Braga, na medida em que cita insistentemente casos da Andalusia ou da Sicília (Puymaigre 1865, 1871). Desta colaboração nasce mesmo uma colecção de materiais portugueses editados em França (Puymaigre 1881). Neste contexto é importante referir o papel de relevo na comunicação científica desempenhado pela revista dirigida por Paul Meyer (1840-1917), intitulada «Romania. Recueil trimestriel consacré à l’étude des langues et des littératures romanes», publicada a partir de 1872 em Paris. A utilização dos resultados destes autores estrangeiros, a par dos nacionais mais destacados na época, é o prosseguimento coerente de uma linha de pesquisa teofiliana. Outra área de inspiração é a sociologia, talvez a grande conquista na organização das ciências herdadas do século XIX. Aqui o alinhamento de Teófilo Braga é, nitidamente, Auguste Comte (1798-1857), o sistematizador de conhecimento. Deste pensador francês retira todo o século XIX europeu o estímulo para observar e enquadrar os factos sócio-históricos em parâmetros evolucionários, positivos, de progressão. É uma atitude que permite encadear sistematicamente sociedades, instituições e a acção humana em conjuntos interpretativos. Trata-se de uma forma de encarar diferenciadamente o caminho da Humanidade a partir de uma forma de pensar pós-iluminista. Emile Littré (1801-1881), seu continuador (Littré 1845), caminha lentamente e perante a acumulação crescente de informação, para uma linha de elaboração de ciência como teoria, ou seja a epistemologia (Littré 1873).
9A interpretação da diversidade social e cultural respondia no período oitocentista também a outros impulsos, fruto da própria heterogeneidade do material de pesquisa. A noção de evolução, a constatação de que os dados que se iam desvendando se perfilhavam em períodos sucessivos, aparece paralelamente nos investigadores ligados à observação dos fenómenos físicos do globo terrestre. O contacto cada vez mais intenso com paisagens extra-europeias acciona a reflexão sobre o aproveitamento dos recursos naturais através da geologia, da explicação da importância do clima sobre a vegetação, como ainda sobre a pré-história (leia-se antropologia física). Autores como Sir Charles Lyell (1797-1875) defendem a ideia das transformações graduais, do evoluir, da passagem de um estádio a outro, baseando-se em observações naturalistas, sem excluir dessa natureza o Homem, a Cultura e a diversidade social (Lyell 1830, 1863). Quando, em meados do século, surge a disputa em torno das ideias expressas por Darwin, já tais formas de encarar o mundo que a Europa ia dominando, eram aceites pela maior parte dos investigadores (Edwards 1829). Era quando muito a integração definitiva e inequívoca do paralelismo da evolução da sociedade humana e do restante mundo vivo, que havia que expressar claramente (Huxley 1863).
10Uma terceira forma, consolidada sobretudo ao longo da segunda metade do século, para sistematizar a diversidade do Homem na sua organização social e na orientação cultural, foi o propósito de através da compilação ampla dos materiais fornecidos pelos exploradores e cientistas mais recentes, actualizar a síntese de cariz sociológico. Encontramos como chefes de fila o britânico Herbert Spencer (1820-1903), cuja obra, por tão vasta, foi em boa parte publicada postumamente (Spencer 1873-1919). Em França Charles Jean Marie Letourneau (1831-1902) não fica atrás do seu contemporâneo, embora o futuro o tenha votado ao esquecimento (Letourneau 1880). A este sociólogo francês se deve provavelmente o contributo mais decisivo na difusão das ideias do biólogo Ernst Haeckel (1834-1919), não só em França como nos restantes países latinos (Letourneau 1877).
11Bem diferentes dos seus antecedentes, estas figuras de final do século preocuparam-se em reunir elementos, elaborando métodos de trabalho científico mais aperfeiçoados. A imagem que a biologia, a botânica ou a zoologia tinham adquirido graças à observação sistemática, ao avanço na capacidade de reproduzir situações fora do contexto da Natureza, dando grande valor ao controlo global das condições reais, pela repetição controlada e artificial no laboratório, definindo a partir destes resultados leis gerais, leva à tentativa de decalcar esta metodologia para a filosofia e as ciências humanas.
12Tal determinismo não foi aceite por todas as correntes de cariz sociológico. Grandes nomes estão ligados a abordagens mais específicas da Sociedade e da História, defendendo por vezes quase que um determinismo específico aos aspectos sociais e culturais, contraposto ao determinismo organicista da biologia emergente. Nesta linha encontra-se grande diversidade de posições, quase todas profundamente empenhadas em sublinhar o peso do passado histórico, nomeadamente da relevância progressiva das instituições sociais. Johann Jakob Bachofen (1815-1887), um suíço especialista da antiguidade relê a herança cultural ocidental (leia-se documental) num contexto mais universal, na medida em que vê transformações historicamente palpáveis no aproveitamento social do direito: o direito da mãe teria sido anterior ao predomínio estabelecido pela descendência masculina (Bachofen 1861). Muitos outros pensadores seus contemporâneos preocuparam-se em fundamentar instituições, justificar tradições, procurar origens remotas para soluções sociais em conflito no presente que viviam, afundado que estava o Antigo Regime.
13O tratamento de materiais clássicos europeus, misturados frequentemente com dados sobre povos exóticos, teve como função comprovar o papel universal da tradição, da história e do mito, fazendo sobressair desta forma a universalidade da essência humana, escalonada em fases diferentes da evolução para a civilização. A grandeza da França oitocentista, gerindo um vasto império colonial, mas ameaçada militarmente pelo surto de industrialização da vizinha Alemanha, tem de ter um paralelo remoto com características definíveis (Belloguet 1858-73). Esta sociologia (oculta) do direito da moderna nação europeia em justificar-se perante as suas rivais, através do surto de nacionalismos e da construção de culturas populares próprias, da edificação de ascendentes étnicos próprios, no fundo, manipular a história para explicar o presente em termos de agrupamento nacional territorial, atravessa toda a Europa. Como Teófilo Braga se inspira mais na bibliografia francesa, cita além de Jules Michelet (1798-1874), ou Amédée Simon Dominique Thierry (1797-1873), de igual forma Louis Jean Koenigswarter (1814-1878), estudioso francês da organização da família, em termos histórico-nacionais (Koenigswarter 1851). Não deve contudo ser menosprezada esta linha de investigação do século passado, pois é frequentemente através dela que as camadas sociais subalternas no passado da nação, adquirem direito de existência, como objecto de investigação. Na visão proposta, elas surgem quase sempre como o garante de perpetuação de usos e costumes antigos.
14O enquadramento sociológico aparece noutro grupo de autores mais vocacionados para a análise selectiva de povos não-europeus, ou mesmo pertencentes ao património histórico.
15Neste caso os primitivos contemporâneos servem de comprovação para a antiguidade euro-asiática, ou mesmo bíblica. Sobressaem orientalistas franceses como Emile Louis Burnouf (1821-1907), especialista de sânscrito (Burnouf 1863). Devem ainda ser citado James Anson Farrer (1849-1925), um britânico ligado a A. Lang (Farrer 1879), sem esquecer aqueles que viriam a tornar-se os clássicos representativos desta época na história da antropologia. Sir Edward Burnett Tylor (1832-1917), com experiência no México, opera uma abordagem já bastante cultural, introduzindo conceitos, como o de animismo ou os survivals (Tylor 1871). John Ferguson McLennan (1827- 1881), jurista escocês, questiona-se sobre o casamento e o matriarcado, em termos de direito comparado, uma variante do tema grato a Bachofen (McLennan 1865). Finalmente mencione-se Sir John Lubbock, mais tarde Lord Avebury (1834-1913), autor com vasta audiência no seu tempo, popularizando a óptica evolucionista darwiniana aplicada ao progresso da civilização (Lubbock 1870). Notabilizou-se não só pela interpretação de materiais fornecidos por outros, como viu ainda as suas publicações serem rapidamente traduzidas para outras línguas, como o francês e o alemão. Foi seu grande mérito dedicar especial atenção à cultura material, interpretando dados pré-históricos com informações contemporâneas. Ele foi um dos autores desta segunda metade do século lido atentamente por Marx. A componente sociológica deu ao evolucionismo das mais diferentes sensibilidades grande projecção; resta porém a antropologia física, nesta altura bastante ligada à arqueologia e à própria etnografia.
16Durante todo o século dominam as figuras de Paul Broca (1824-1880) e de Armaud Quatrefages (1810-1892). Fundada uma escola em Paris, o estudo físico da diversidade humana existente no globo, rapidamente adquire um grau de tecnicismo específico para a tarefa e, poucos decénios passados, a antropometria grangeia facilmente um lugar como ramo antropológico autónomo. O respectivo campo de trabalho não escapou todavia às grandes correntes de pensamento da época. Por um lado a vertente evolucionista linear, na senda do já citado Edwards (1829), elabora compilações exaustivas com tabelas de medições referentes a descobertas fósseis ou a populações exóticas (Broca 1869; Quatrefages / Hamy 1882). A concretização de programas tão definidos levou a que, graças às teorias de evolução biológica dos seres vivos então em franca ascensão, a antropologia física, agora já antropologia biológica, cedo tentasse passar para uma fase de pesquisa aplicada; trata-se da antropologia criminal, a princípio decididamente empenhada em justificar padrões de comportamento e de desvio através de determinismos biológicos. Não é de admirar que bom número destes antropólogos tenham sido médicos.
17Mas o século XIX distinguiu-se não só pela produtividade de ideias e hipóteses para explicar e enquadrar a realidade social ou cultural, mas de igual modo pela diversidade das abordagens presentes, pela pluralidade dos métodos defendidos. No âmbito das investigações de base declaradamente etnográfica é também um médico que impulsiona a corrente psicologista, precursora da divisão neokantiana das ciências, como esta se veio a verificar no limiar do século XX. Adolf Bastian (1826-1905) foi um homem que incansavelmente percorreu os cinco continentes, fundando mais tarde o Museu de Etnologia de Berlim. Para ele era fundamental que a etnografia contribuísse para um melhor conhecimento do comportamento sócio-psicológico da Humanidade. Na sua convicção, era na esfera da psicologia e da mitologia dos povos, ou seja nas suas representações simbólicas, que se comprovaria a unidade da essência humana (Bastian 1860). Quase toda a sua vasta obra é uma busca de padrões elementares (Elementargedanke).
18A predisposição oitocentista para abordagens psicologistas está bastante ligada aos movimentos de ideias próprios aos países protestantes, nos quais durante o século XVIII, tinham aparecido eminentes teóricos de pedagogia. Continuador do suíço, J.H. Pestalozzi (1746-1827), Johann Friedrich Herbart (1776-1841) é uma das primeiras figuras a encarar a psicologia como uma ciência empírica (Herbart 1824-25). A partir destes esforços iniciais, intimamente ligados à propagação da escolaridade nos meios rurais, à educação religiosa e cívica de vastas camadas trabalhadoras da Europa Central, ao despertar do interesse pela «cultura popular», a fim de melhor se inserirem no seu espírito e alcançarem resultados práticos satisfatórios ao ministrarem a instrução, leia-se, a disciplinação das populações segundo os interesses dos Estados nacionais que se iriam afirmar, todo este aglomerado de factores conjuga-se numa corrente de abordagem do social. A sua finalidade foi compilar tipos de temperamento e de carácter (nacional), servindo as tipologias elaboradas para deduções em termos colectivos e nunca individuais. Gustav Friedrich Klemm (1802-1867), conservador do museu de Dresden, depois de se interessar pelas antiguidades germânicas, publica uma impressionante história cultural da Humanidade (Klemm 1843-52), em dez volumes de pura e incansável compilação de fontes secundárias, hoje praticamente ilegíveis mas enquadrando disciplinadamente todos os factos mencionados numa tipologia de psicologia colectiva. Trata-se da consolidação de uma das linhas de pesquisa mais idealistas da sua época. Seguem-se por quase toda a Europa recolhas mais ou menos sistemáticas, frequentemente enciclopédicas, sobre folclore – uma forma de encontrar categorias de definição do colectivo. Teófilo Braga refere-se várias vezes a Oskar Kolberg (1814-1890), investigador que a partir de 1865 compila e edita folclore da Polónia.
19Embora com resultados um pouco divergentes, Theodor Waitz (1821- 1864), procede à prematura tentativa de esboçar a antropologia dos povos primitivos (Waitz 1859-1872). Trabalho que não conseguiu deixar terminado, esta tentativa de síntese foi publicada em seis volumes – empreendimento algo mais económico, se comparado com a obra de Klemm. Waitz, ao contrário do primeiro foi menos idealista na sua forma de arrumar as etnografias. Continuando a seleccioná-las segundo critérios globais de carácter, deu bastante relevo aos factores naturais e às condições materiais em que se produz sociedade e cultura.
20O apogeu e simultaneamente declínio desta onda de sistematizações é o conjunto dos dez volumes da extensíssima obra de Wilhelm Wundt (1832- 1920) sobre a psicologia dos povos (Wundt 1904-23), na qual o autor apesar dos seus inúmeros escritos anteriores e paralelos, procede à análise universal das leis de evolução da língua, do mito e dos costumes. É interessante ter em conta que Émile Durkheim (1858-1917) inicia a sua explicação do fenómeno religioso pla sua importância no contexto social, polemizando com Wundt.
21A corrente psicologista teve seguidores com outras tónicas. Pense-se em Heymann Steinthal (1823-1899), interessado nas línguas africanas, tentando estabelecer leis entre a fonética e a psicologia (Steinthal 1867), ou ainda o papel da língua e da cultura como fundamentos do preconceito nacional e/ou religioso (Steinthal 1870). Conjuntamente com Moritz Lazarus (1824-1903) funda uma revista de psicologia colectiva e de linguística.
22As aproximações oitocentistas raramente apresentam um corpo conceptual desenvolvido e clarificado. Constituem geralmente mais uma proposta de sensibilidade na pesquisa, a partir de uma hipótese ideal. Toma-se por isso bastante difícil enquadrar muitos autores, atribuindo-lhes uma ou outra escola. Viu-se que J.J. Bachofen utilizou materiais sobre a religião e mitologia da antiguidade, embora enveredasse para a análise de instituições sociais. A. Bastian reuniu diversificado património mitológico, preferindo procurar estabelecer critérios psicológicos, paralelos a toda a Humanidade; foi um militante anti-evolucionista. Convém, porém, distinguir um grupo de investigadores associados à chamada corrente mitológica.
23Entre os seus mais destacados representantes, figuram Andrew Lang (1844-1912) e sobretudo Friedrich Max Müller (1820-1900), ambos utilizando informações etnográficas recentes e materiais históricos (Müller 1873; Lang 1884). Max Müller, de origem alemã, mas radicado em Inglaterra, foi o que mais projecção internacional obteve. Para ele o estudo, necessariamente comparado, da mitologia, remete em primeiro plano para a constituição de uma ciência da(s) religião(ões), mas de igual forma para o estudo do fenómeno humano como produto de cultura, esvaziando desta forma o papel da dinâmica social. É o prelúdio da separação entre ciências do espírito e ciências naturais: Max Müller traduziu paa inglês a Crítica da Razão Pura (1881).
24O enfoque mitológico na abordagem de essência humana teve notável impacte nos países onde a questão da identidade nacional, em termos políticos, foi a questão de fundo no século XIX. Antes de M. Müller, já W. Mannhardt, na Alemanha, submeter recolhas sistemáticas de tradições orais a tratamento mitológico comparado. Ainda neste mesmo país, Georg Karl Cornelius Gerland (1833-1919) trata recolhas etnográficas exóticas, à medida que se encarrega da publicação póstuma da obra deixada por Waitz. O seu nome ficou, no entanto, ligado à transição da abordagem mitológica, desprendida do contexto histórico-cultural, para a abordagem difusionista. Em França encontramos Burnouf (1872) e François Lenormant (1837-1883), interessados em interpretar formas culturais e a história a partir das tradições (Lenormant 1880).
25Há que recordar finalmente o trabalho feito pelos filólogos, na medida em que se trata da área do conhecimento oitocentista, onde mais rapidamente se caminha para resultados empíricos, no sentido actual do termo, mais visíveis e palpáveis. Coincidindo com o incremento das viagens de exploração científica, tanto terrestres como marítimas, e desde os finais do século XVIII, assiste-se a um progressivo interesse pela linguística tradicional, mas também da exótica. Na senda do exemplo dado pelos irmãos Grimm e por Wilhelm von Humboldt (1767-1835), a investigação filológica mune-se rapidamente de um corpo de conceitos, que embora altamente específicos (elaboração de gramáticas), irão permitir abordar e encarar cultura como filosofia de formas simbólicas, especialmente pelo estudo de lendas ou de contos populares. Entre os primeiros investigadores de campo figura Iakob Ianovich Shmidt (1779- 1847) que, em 1824 e 1829 viajou pela Mongólia e pelo Tibete, elaborando as respectivas gramáticas (Shmidt 1831, 1839). Theodor Benfey (1809- 1881), igualmente especialista de filologias orientais, foi sobretudo investigador de gabinete (Benfey 1869).
3. «O Povo Português» a um século de distância
26A partir do aparelho crítico fornecido por Teófilo Braga, tentou-se nas linhas anteriores, dar um apanhado rápido sobre os grandes parâmetros em que se movimentou o discurso antropológico oitocentista europeu.
27Pode-se desde já verificar não ser legítimo pensar que Teófilo estaria mal informado sobre a sua época. Ele próprio reconhece ter-se dedicado durante 17 anos ao estudo da etnogenia do povo português.
28Esta obra reflecte, por consequência, o resultado e simultaneamente a meta dessa longa actividade.
29Certos capítulos não são inéditos, mas um reajustamento de publicações anteriores até aí dispersas. É notável neste livro não tanto a dimensão do material reunido – isto seria, quando muito, uma tendência literária pós-romântica (Pereira 1983) na sua época–, mas sim o cariz teórico-programático que Teófilo quer e consegue imprimir ao conjunto dos dois tomos: a síntese positivista. Vale a pena determo-nos ainda um pouco nas suas referências teóricas de trabalho. Primeiro que tudo, deve chamar a atenção a aparente diversidade de abordagens mencionadas e citadas, ou seja, a compilação erudita demonstrada. Nos nossos dias, esta virtude de então, deixou de ter cabimento na produção científica, pois revela heterogeneidade epistemológica (ecleticismo). Reside aqui precisamente uma das preocupações do século XIX: agrupar todos os dados colegíveis e sintetizá-los num sistema previamente estabelecido; criar à partida uma ordem, por consenso arbitrária, onde os tais factos sociais possam ser inseridos.
30Nesta perspectiva compreende-se o papel histórico desempenhado pela atitude positivista na ciência oitocentista. Ela permite ao intelectual, politicamente oposto ao regime monárquico, produzir um discurso reformador. Competiu a esta camada de pensadores elaborar um sistema de pensamento e de acção que, embora crítico ao regime político-institucional vigente, sobretudo no seu campo ideológico e na prática política, se revelasse por outro lado suficientemente «estabelecido» para se propôr como alternativa credenciada nas instituições do Estado. Compreender-se-á, assim, o sistema que norteia a construção do livro sobre o povo português. Pelo recurso constante ao passado, à tradição, aos usos e costumes, às formas mais arcaicas de organização económica, às expressões simbólicas à apresentação dos ecos populares perante situações críticas na vida política nacional, Teófilo mostra que o regime instituído não é a origem e causa da nação, mas sim o contrário.
31Precisamente esta dedução implícita em toda a obra – mais claramente nas curtas passagens em que critica o catolicismo como pilar do sistema –, o autor com o seu quadro da etnogénese do «povo português» inverte os termos ideológicos dominantes sobre o papel do poder monárquico, mostrando que o «Povo Português» tem todo um passado recuado a desbravar (a tradição), todo um caminho percorrido como nação (a história) e um conjunto de atitudes (o carácter nacional), cujo estudo científico (ciência como fonte de conhecimento) permite elaborar a trajectória própria de evolução em todos os campos da actividade humana (a ideia de progresso). Ao escolher a antropologia oitocentista para centro de interesse e de pesquisa, Teófilo integra-se no espírito da Europa do seu tempo, mas também deixa entrever com clareza as suas fontes mais remotas de inspiração filosófica: Vico e Turgot, além de Auguste Comte.
32Se Comte lhe deu a disciplina de pensamento e a corrente positivista o ajudou a forjar um método, rigoroso pelo sistema, para sintetizar a ordem passada e presente («leis gerais que subordinam os factos sociais»), a sua filiação pragmática inspira-se em Giovanni Battista Vico (1668-1744), o filósofo que defende uma ordem social concordante com a natureza do Homem, pois «a Humanidade é obra de si mesma». Há quem interprete este pensador napolitano, elogiado por Teófilo Braga insistentemente, como o inspirador da necessidade de uma antropologia cultural.
33Em Teófilo reconhece-se, contudo, uma posição de mudança, mas simultaneamente conservadora na atitude. Daí a sua referência ao século da Luzes, através da figura de Anne-Robert-Jacques Turgot (1727-1781), o fisiocrata conservador que paradoxalmente falha na sua carreira de reformador político perante a resistência e a oposição da aristocracia.
34os elementos até aqui expostos permitem levar a efeito um primeiro balanço do interesse etnográfico de Teófilo Braga, tendo em conta o contexto português da sua época. Sem dúvida que com «O Povo Português», publicado em 1885, ele se coloca num lugar de destaque pela dimensão e objectivo do propósito que se propõe alcançar. Nem Francisco Adolfo Coelho (1847- 1919) ou Zófimo Consiglieri Pedroso (1851-1910), investigadores seus contemporâneos bastante empenhados nas pesquisas etnográficas, deixaram obra tão vasta no quantitativo compilado e tratado. Só o então jovem José Leite de Vasconcelos (1858-1941) haveria de ultrapassar toda a geração oitocentista, deixando enorme obra verdadeiramente etnográfica na sua globalidade. Verifica-se, no entanto, que Teófilo não singra como impulsionador da Etnologia em Portugal. Tal deve-se ao seu próprio programa de trabalho científico, assim como ao papel que nele desempenha a abordagem etnográfica.
35A definição da abordagem etnográfica de Teófilo Braga traduz o contexto histórico-científico tipicamente oitocentista. É o ponto mais alto de um discurso e preocupação antropológicos globais, baseados nos elementos então fundamentais de Raça, História e Tradição.
36É este o período em que o fluxo de informação obriga a que no plano internacional o objecto antropológico se defina, pela delimitação de áreas mais compartimentadas na investigação, a fim de permitir uma mais eficaz organização da disciplina, subdividindo-a em campos mais ou menos distintos. Surge a necessidade prática de submeter a tratamento uma quantidade considerável de dados. Tudo se conjuga nesse sentido: a maior densidade da rede comercial internacional, o aprofundamento da divisão internacional do trabalho, a introdução paralela do salário nas culturas não-ocidentais (povos colonizados), o acesso individual e compulsivo aos mecanismos da economia de mercado (campesinato europeu). Desta forma nasce a necessidade de reequacionar a temática etnográfica nos termos mais próprios de um pragmatismo crescente e de cariz sincrónico-funcional. Este salto qualitativo não se verifica em Teófilo.
37Não será, por consequência, exagero ver em «O Povo Português» o apogeu e o declínio de uma época, com o seu estilo de trabalho de síntese científica.
38Face ao aparecimento de novos tipos de conflitos sociais dentro das nações europeias, como ainda perante o novo papel atribuído às áreas colonizadas, a interpretação deixa de poder ser feita na referência exclusiva ao passado, mas mais pelo equacionamento prioritário dos elementos da sincronia.
39A síntese erudita, simples encadeamento de dados e factos inseridos numa grelha preconcebida, passa a estar lentamente ultrapassada. Por isso, Teófilo Braga reflecte o seu tempo e a mutação que se fazia pressentir. Perante tal contradição o autor opta pela via conservadora, elaborando um primeiro tentame de sistematização, por ele entendido como História da Civilização Portuguesa, a apensar à marcha geral da civilização europeia.
40Talvez indeciso em relação a aspectos determinados do futuro que entrevia, talvez mesmo até céptico perante indícios que antevia, Teófilo joga na consolidação do adquirido, não fechando ao futuro as referências do passado: a continuidade do povo português, a sua identidade comprovada retratada na síntese momentânea.
41Volvidos que são cem anos sobre a publicação da sua grande obra etnográfica não perdeu qualquer interesse relembrá-la pela reedição, rever nela as ideias oitocentistas com o distanciamento crítico do tempo percorrido, repensar a seu propósito o quadro de desenvolvimento de ramos de conhecimento científico em Portugal, reflectir sobre os condicionalismos ideológicos do pensamento e trabalho etnográficos e, finalmente, facilitar ao público o acesso a um texto cheio de pormenores dum quotidiano para muitos de nós ainda não completamente votado ao esquecimento.
42Julho de 1985
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