Capítulo 17. Territórios, redes e formas de sociabilidade: novos horizontes nos estudos urbanos portugueses
p. 211-218
Texte intégral
1Sinto-me muito contente por participar numa reunião em que um conjunto de colegas e amigos, que conheço há já muitos anos, fazem um balanço das linhas de investigação que, a partir da sociologia e da antropologia urbana, se estão a desenvolver em Portugal.1 Agrada-me especialmente que nesta reunião participem novos investigadores que são os que garantem o futuro de tais investigações. Agradeço, pois, o amigável convite dos três organizadores, Graça Cordeiro, Luís Baptista e António Firmino da Costa.
2Começarei os meus comentários a partir do trabalho apresentado por Inês Pereira sobre a Xuventude de Galícia. Por detrás deste trabalho há uma etnografia muito lúcida, que focou a sua atenção no aparente paradoxo de que a maioria dos jovens que representam a tradição cultural galega em Lisboa, através de bailes e canções, não são galegos, mas sim portugueses, na sua maior parte, espanhóis de procedência não galega, havendo até um belga! Como é possível que os galegos se sintam representados nas manifestações folclóricas e identitárias da sua associação por meio de jovens que não são galegos na sua maioria? Como é possível, por outro lado, que estes jovens não galegos se identifiquem tanto com uma cultura que lhes é, em princípio alheia, a ponto de serem os representantes públicos das suas manifestações culturais mais íntimas e emblemáticas?
3O instrumento analítico eleito criteriosamente por Inês Pereira foi o de construção identitária em rede. Este conceito permite-lhe transitar de maneira constante entre dois âmbitos complementares de análise: a identidade individual e a de grupo. Ambas as identidades são vistas de forma processual e antiessencialista, como processos que se inserem numa dinâmica multivectorial. Os sujeitos analisados constroem o seu próprio self a partir do conjunto de influências, que se caracterizam como eixos de relações em rede. Mas a presença dos sujeitos nos nós da rede, um dos quais é a própria associação galega, não os deixa inalterados. Torna-se evidente que a forma como os galegos lisboetas reproduzem a sua própria identidade, apesar desta ter como referente as suas referências territoriais, é pragmática e mestiça. Se os jovens lisboetas descendentes de galegos genuínos se afastam da sua associação e das suas raízes identitárias, são bem-vindos aqueles portugueses e outros europeus que, atraídos, por essa espécie de identidade pan-europeia que gira em torno das músicas tradicionais (neste caso, a música celta), estão dispostos a enquadrar-se como “militantes” ou “aliados” da galeguidade.
4Tal linha de reflexão parece-me altamente relevante e inscreve-se numa actividade de investigação destinada a documentar a riqueza dos processos de mestiçagem cultural que se produzem nas cidades. Mas não apenas isto, creio que exemplos como o do Centro Galego de Lisboa nos induzem a pensar que existem numerosos âmbitos e agentes sociais nas nossas cidades que estão plenamente imersos na construção prática de uma cultura europeia, que dista muito das abstracções e do economicismo que emerge das instituições europeias. O que o trabalho mostra, em meu entender, é um processo de diálogo intercultural, em que sujeitos urbanos heterogéneos se reconhecem identitariamente, não apenas nos acervos culturais herdados, como também nos novos espaços de sociabilidade que constroem através da acumulação de um repertório variado de novas identidades adscritas. Julgo que, como cientistas sociais, o nosso trabalho tem de ser pedagógico e cívico mostrando que existem vias para a superação dos conflitos sociais, neste caso de matriz cultural, pela via do reconhecimento e do diálogo intercultural.
5Como etnógrafo, mas sobretudo como catalão, posso compreender (e sentir) perfeitamente essa osmose identitária entre galegos e portugueses. A minha própria experiência pessoal, desde que comecei a frequentar Portugal é a de um reconhecimento e de uma cumplicidade luso-catalã que emana dos paralelismos culturais que nos unem, apesar de uma meseta que nos separa. No fundo, galegos, portugueses e catalães podemos facilmente identificar-nos no contraste e perante Espanha-Castela, entendida como fonte de opressão e incompreensão. Mas é óbvio que, no processo de construção europeia, tanto o que nos une, como o que nos separa, é uma fonte geradora de cumplicidade, por proximidade e por mútuo conhecimento no que respeita as realidades muito mais distantes, exóticas e opressivas do novo contexto continental. Oxalá haja muitos mais ensaios como este de Inês Pereira para mostrar a existência deste diálogo intercultural.
6Como contraponto, quero comentar agora o sugestivo ensaio apresentado por Luís Fernandes. Trata-se de um sedutor artigo cujo tema central consiste em mostrar precisamente a sedução e o fascínio que entre os cientistas sociais produzem as imagens e metáforas que sustentam os imaginários da cidade, mais como construção do que como representação da mesma. Desde as representações mais simplificadoras baseadas em dicotomias, tão próprias do século XIX, até aos mais complexos modelos, gerados pelo interaccionismo simbólico e o construtivismo, a urbanologia tem-se nutrido de abstracções que, como nos adverte Fernandes, podem alienar-nos da realidade.
7A dialéctica deste texto consiste, precisamente, no jogo especular, forjado de imagens e contra imagens, que parecem aproximar perigosamente o autor das zonas objectivas impuras bacherlardianas. No entanto, a mestria do trabalho permite a Fernandes, qual Ulisses enfrentando as sereias, sair incólume da reificação e niilismo que levam a substituir as induções pelas seduções. A perturbadora imagem selvática da cidade, onde espreitam os grandes e os pequenos felinos, dispostos a nos destruir, para sobreviver, não constitui uma metáfora apenas para representar a violência e o desassossego dos urbanitas, mas sim uma subtil hipótese para explorar as experiências e representações sociais sobre a insegurança e o medo perante o imprevisível, o estranho. Medos próprios do indivíduo blasé simmeliano.
8Na sua sequência apresentam-se quatro trabalhos concentrados na análise de diferentes práticas, trajectórias e atitudes relacionadas com a droga e/ou com os ambientes de sociabilidade juvenil. Enquanto Tiago Neves, seguindo um enfoque próximo do interaccionismo simbólico, se concentra na análise das relações entre policias e traficantes no quadro de áreas da cidade caracterizáveis como territórios psicotrópicos, os outros três autores (Carvalho, Chaves e Henriques), chegam ao âmbito do consumo de droga através da análise de determinados ambientes juvenis nos quais o consumo de drogas sintéticas, especialmente ecstasy, constitui um indicador e, ao mesmo tempo, um elemento consubstancial de certas formas de sociabilidade desinibida.
9Na linha analítica marcada pelos trabalhos prévios de Luís Fernandes, Neves interpreta através de uma densa etnografia as interacções que no âmbito de um bairro da cidade do Porto se produzem entre os diferentes agentes da ordem (devidamente classificados em função de diferentes variáveis) e os consumidores e traficantes, pela mão do alter-ego dialógico, J., que é o informante privilegiado de Neves, seu guia dentro da selva simbólica dos espaços de encontro e de vigilância da rua. Se os territórios psicotrópicos supõem o estabelecimento de uma ordem alternativa, relativamente pautada, de comportamentos instrumentais associados a certos estilos de vida marcados pelo consumo de droga, J. e N. (re)constroem a tipologia policial em função de certos comportamentos previsíveis, que se organizam em redor do dilema entre manter a ordem e fazer cumprir a lei. Existe nesta relação complexa e plena de contradições a busca de um equilíbrio, como forma de convivência, num quadro de hostilidade e confrontação. Mais que pretender acabar com as práticas do consumo e tráfico de drogas, o objectivo da polícia é “ir gerindo a situação”.
10O trabalho de Miguel Chaves que nos transporta ao universo das práticas e atitudes juvenis, trata concretamente de estilos de vida marcados pelos factores definidores das rave parties: a música, as cenografias e o uso de substâncias psicotrópicas — cannabis, cocaína, “pastilhas” e ácidos. A filosofia de vida (ou ética, como prefere o autor) que se depreende deste conjunto de práticas festivo-hedonistas de fins-de-semana traduz-se para o autor em três objectivos: (1) a busca da informalidade e do descomprometimento, isto é, a exaltação do hedonismo, a busca de se sentir bem, através do relaxamento e da desconexão da realidade, que conduz por vezes a uma submersão na virtualidade e, até, no mundo ficcional, (2) a busca de empatia relativamente aos companheiros das rave parties, uma espécie de lógica ecuménica, que pretende enterrar as fracturas diferenciadoras que a vida diurna e quotidiana produz — obtendo-se a comunicação interindividual através da acentuação da sensibilidade multisensorial mais do que através da verbalidade, e (3) no desenvolvimento de uma atitude militante que defende os princípios da fraternidade e do comunitarismo e que se expressa na atitude de partilhar, entre outras coisas, as próprias substâncias psicotrópicas.
11Na mesma linha do trabalho anterior, Susana Henriques centra-se na caracterização das práticas associadas às rave parties a partir de uma atitude de risco cultivado. Por detrás desta atitude, a autora salienta a combinação da curiosidade como motivo com a consciência e a expectativa do perigo como desafio. O impacte do consumo de drogas, que forma parte constitutiva dos ambientes de sociabilidade estudados, situa os sujeitos perante a alternativa da ruptura ou a tentativa de acomodação relativamente às relações sociais preexistentes. Carmo Carvalho, por sua parte, adopta uma visão mais macro. A partir das teses do grupo de Birmingham, a autora questiona essencialmente o que há de autenticidade e de construção mediática na suposta resistência das culturas juvenis. Se os rituais, como as festas anteriormente descritas, focalizadas no consumo de droga, constituem o indício máximo e, ao mesmo tempo, a razão de ser de essa cultura de resistência, até que ponto o ritual é mais do que uma invenção em determinados meios, dando continuidade às lógicas dominantes na nossa sociedade de consumo? Nesta óptica, tal tipo de práticas juvenis constituiriam um comportamento não somente integrado no sistema, como também fomentado por esse mesmo sistema, no processo de generalização e diversificação dos consumos de música e de droga.
12Julgo que, avaliando estes trabalhos em curso, eles podem avançar muito se conseguirem integrar uma dupla visão — interpretativa e descritiva, micro e macro —, levando em conta como modelo heurístico a hipótese de Luís Fernandes sobre a cidade como espaço predatório ou a de Oriol Romaní sobre as trajectórias pessoais típicas na relação sociabilidade-consumo de drogas. Creio, por outro lado, que se deve avançar no plano da localização de todo este universo das rave, dance e dj parties num contexto mais amplo, problematizando as alternativas existentes para a juventude urbana contemporânea, em termos da confrontação/evasão da realidade e da redefinição da categoria de jovem, trabalho a desenvolver através de certos domínios de referência como são a inserção nos mercados de trabalho, as formas de acesso à vida adulta e a assunção de papéis, ou a dinâmica e os conflitos intergeracionais. Por outro lado, seguindo o esboço de projecto de Carmo Carvalho, penso que é determinante para a análise das modas na música, no vestuário, nos rituais festivos e no uso de drogas, adoptar uma dupla perspectiva analítica que aprofunde o papel dos media e a perspectiva dos hábitos de consumo, integrando mais plenamente estes meios no quadro analítico dos valiosos trabalhos etnográficos aqui apresentados.
13Outro foco de interesse neste encontro foi a análise dos processos migratórios, como era previsível, já que constituem um dos maiores desafios analíticos para as ciências sociais. O trabalho de Fernando Luís Machado, dentro deste conjunto, destaca-se pela sua finura analítica e por conseguir proporcionar-nos um verdadeiro modelo interpretativo dos processos de inserção dos colectivos imigrados, sem renunciar em nenhum momento ao confronto com a complexidade e a descontinuidade que alguns grupos, como os guineenses, nos oferecem. Para além da solidez teórica, evidente apesar de apenas ser esboçada, há que destacar a mestria com que consegue integrar a aproximação macro (estatística) e micro (etnográfica). Considero muito acertada a aproximação às redes (diferenciadas) de sociabilidade, estabelecidas a partir de laços institucionalizados (família e colegas de trabalho), territoriais (vizinhança) e informais (amizade), já que nos permitem uma aproximação compreensiva dos processos de inserção. Um traço característico de tais redes, é que a manutenção dos laços intraétnicos não constitui, no caso dos guineenses de Lisboa, um obstáculo sério para a sua progressiva inserção em relação aos representantes da sociedade receptora. Esta constatação tende a contradizer boa parte das conclusões que encontramos na literatura socioantropológica sobre o tema. Eu próprio, no meu actual trabalho sobre a imigração latino americana na Catalunha, estou a chegar a conclusões similares às de Fernando Luís Machado, analisando os processos de inserção dos equatorianos na cidade de Barcelona. Seria de um interesse extraordinário iniciar um trabalho comparativo mais sistemático, a partir dos nossos respectivos “terrenos”, para avançar neste ponto.
14Por outro lado, parece-me de uma absoluta pertinência a segunda parte do trabalho de Machado, em que submete a sua análise de redes a uma clivagem, a partir de critérios como classe social, estatuto sociojurídico, género e etnia. Pela minha parte, estou convencido de que variáveis como classe social, estatuto de cidadania ou tempo de residência constituem, entre outras, eixos centrais que complexificam e põem à prova as hipóteses interpretativas sobre os ritmos e as dificuldades de inserção que experimentam os imigrantes.
15O trabalho de Rui Pena Pires parte da distinção entre integração social e integração sistémica. Esta dupla perspectiva remete-nos para alguns dos debates e contribuições mais relevantes sobre o impacte das migrações no seio dos próprios colectivos imigrantes e no seio das sociedades receptoras, como pode ser o trabalho de Kymlicka ou Lockwood. Poderia acrescentar que existe, no entanto, uma terceira perspectiva analítica e problematizadora que poderia ter-se em conta que é a do impacte sistémico que as migrações têm nos países de procedência dos imigrantes: um negativo, a perca de uma parte da população mais capaz e com mais iniciativa, outro, positivo, que são as remessas de dinheiro que os imigrantes enviam aos seus parentes nos países de origem. Em qualquer caso, a proposta de Rui P. Pires resulta coerente com este ênfase nos estudos socioantropológicos, por analisar os processos migratórios no âmbito das nossas sociedades receptoras, já que tal trabalho constitui, não apenas uma contribuição científica genérica, como também se enquadra no papel que o conhecimento científico deve ter na resolução de conflitos e problemas sociais. Esse duplo olhar sobre os imigrados e sobre a sociedade receptora constituem, em qualquer caso, a premissa para uma boa análise do facto migratório.
16O trabalho de Marina Antunes sobre os jovens do grupo “Estrelas cabo-verdianas” no bairro Estrela d’África, na Amadora, que conheço há algum tempo, constitui um bom exemplo de excelente etnografia. Há anos que autora convive, participa e, claro, observa as trajectórias individuais e colectivas destes jovens. Há poucos aspectos do seu quotidiano, da sua forma de pensar e de actuar que lhe escapem, como etnógrafa e como pessoa implicada nas suas vidas. Conheço poucos etnógrafos portugueses, trabalhando sobre imigração que se tenham dedicado tanto a um trabalho de campo de tão dilatada duração. A sua etnografia ilustra de maneira profunda o conjunto de práticas e de estratégias com as que tais jovens pretendem inserir-se na sociedade local, perante os seus pais e respectivo background africano. Neste caso, a ruptura geracional decorre, não tanto na expressão de uma ruptura com a tradição cultural cabo-verdiana, mas sim como a afirmação de uma cultura mestiça que eles cultivam criativamente de uma forma extremamente activa. O trabalho de Marina Antunes, na sua segunda parte, proporciona-nos dados valiosos sobre o modo como o grupo se estrutura, o seu sistema de liderança e de sociabilidade, as suas actividades e ritualizações e, finalmente, como se articulam dentro do bairro e na relação com o “mundo exterior”.
17Em geral, estes três últimos trabalhos pressupõem um excelente cruzamento de olhares, de intencionalidades analíticas e revelação metodológica, que aponta para o interesse e relevância dos estudos sobre processos migratórios no âmbito das ciências sociais portuguesas. Constitui, também, como já referi, um campo privilegiado para a confrontação e a comparação de investigações empíricas, especialmente entre os países europeus do mediterrâneo que tantos paralelismos possuem no que se refere às dinâmicas, tempos e periodização do fenómeno migratório. Faço votos para uma rápida integração dos diferentes grupos de trabalho, pelo menos na área ibérica, em projectos de investigação partilhados.
18O trabalho de Susana Durão e Alexandra Leandro constitui uma contribuição muito interessante, tanto pela novidade do campo de análise — a profissão de polícia — como pelo enfoque e tematização que se constrói do mesmo: o aparecimento da mulher polícia. Longe de enquadrar a investigação apenas num nível micro, o que já seria interessante, o enfoque destas autoras tenta conjugar o pormenor etnográfico com uma grelha interpretativa sobre a evolução das relações de género e sobre as transformações modernizadoras que Portugal tem vivido desde o fim da ditadura salazarista. O trabalho, que é um avanço na investigação em curso, deixa-nos expectantes, aguardando o momento em que a análise se alimente da análise das trajectórias profissionais e da etnografia densa.
19João Pedro Silva Nunes traz-nos o tema da habitação, através do estudo de caso das habitações económicas do bairro dos Olivais Sul. Numa linha analítica que é devedora das investigações sobre o tema realizadas por Luís Baptista, concentra-se numa análise pormenorizada sobre os imaginários e os usos dos espaços domésticos, concebidos não como realidades estabelecidas e imutáveis, mas sim como realidades processuais e objecto de confrontação. João Pedro Nunes traça a história urbana e urbanística do lugar, proporcionando uma contextualização relativamente aos valores e ideias de ordem dominantes na época final do salazarismo. O bairro analisado, juntamente com Chelas e Olivais Norte, é caracterizado como um laboratório urbanístico para a construção de habitação social. Aí se ensaia uma tipologia nova de urbanismo suburbano e, ao mesmo tempo, são definidos critérios de desenho habitacional que não respondem às expectativas dos primeiros habitantes que começaram a habitar o bairro no início dos anos 60. Um dos exemplos de casus belli do desenho interior das casas foi a construção de espaços conectados entre a cozinha e as salas de jantar, que não correspondiam aos gostos e práticas funcionais dos inquilinos. Os habitantes tenderam a individualizar as cozinhas e a aumentar as salas de jantar, fechando as varandas, desenhadas espaçosamente de acordo com o standard médio de superfície das casas.
20Este tipo de análise, extremamente relevante para os estudos de urbanismo, mostram-nos vários aspectos interessantes sobre práticas e valores culturais. Por um lado, como destacou Luís Baptista no âmbito dos debates desenvolvidos nesta reunião, o urbanismo pode ser objecto de leituras, não apenas técnicas, como também ideológicas. Olivais Sul seria a expressão de uma visão desenvolvimentista — modernidade própria de uma salazarismo tardio. O que não contradiz o facto de a habitação urbana em Portugal estar então dependente do modelo “rural” e arcaizante que o salazarismo tinha da casa e da família. Em suma, as ordens arquitectónica e urbanística não estão separadas de um conjunto de ideias de ordem social que técnicos e políticos possuem em geral.
21Last but not least, o breve texto de Joaquim Pais de Brito, cheio de sugestões e de pistas relativamente a outros trabalhos seus sobre as expressões populares da cidade, realizados em texto ou em exposição. A óptica da cidade para J. Pais de Brito enfatiza sempre a diversidade, a heterogeneidade, a riqueza de expressões microcósmicas, autocontidas, a sobreposição de universos simbólicos, tangíveis e, mais que sensíveis, sensuais. A cidade para ele é mais a cidade vivida, experimentada, do que a cidade observada a partir da distância asséptica e analítica. Constitui uma visão funambulesca, quase poderíamos dizer, artística, poética. Para mim, como leitor e como visitante da obra de J. Pais de Brito, a cidade é Lisboa e Lisboa é o fado, através dos seus textos e da sua exposição de 1994. Mas Lisboa é também o conjunto de pequenos lugares, espaços emblematizados por imaginários sociais que nos remetem para um olhar etnográfico e histórico, que procura o reconhecimento dos espaços e ambientes como lugares no sentido que Marc Augé dá ao termo: a Feira da Ladra, os alfarrabistas do bairro da Graça, os pequenos cafés dispersos por mil recantos incríveis da cidade ou as antigas casas de fado que sobrevivem à pós-modernidade. Para J. Pais de Brito a cidade é uma cidade vivida, experimentada, da qual se pode falar e escrever com entusiasmo, mas que requer, sobretudo, uma apresentação sensorial, multimedia. Essa cidade é, finalmente, a cidade exposta, demiurgicamente convertida em poesia.
22Mesmo que o leitor não acredite, tudo o que acabo de comentar foi apresentado e debatido ao longo de um dia e meio, apenas, exactamente nos dias 11 e 12 de Setembro de 2001, dias muito marcados na nossa memória pelo fogo e pela violência. Seria impossível maior densidade, maior riqueza, maiores e melhores augúrios para este grupo de jovens e não tão jovens urbanólogos, convidados por três extraordinários anfitriões: Graça Cordeiro, Luís Baptista e António F. da Costa. Estou convencido que num próximo e desejado encontro, os assistentes serão muitos mais. A saúde e a projecção dos estudos urbanos das áreas da sociologia e antropologia do ISCTE e da Universidade Nova de Lisboa são evidentes. Aos três anfitriões agradeço o privilégio de ter podido assistir ao encontro e aos restantes participantes felicito-os pela qualidade dos seus trabalhos.
Notes de bas de page
1 Tradução do castelhano de Graça Cordeiro e Luís Baptista.
Auteur
Antropólogo; Departamento de Antropología, Filosofía y Trabajo Social, Universidad Rovira i Virgili (Tarragona).
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