Capítulo 14. Novos consumos em ambientes de lazer: “risco cultivado”?
p. 179-189
Texte intégral
Ambientes e consumos
1Ao longo dos tempos, em todas as culturas, tem sido corrente a utilização de várias substâncias com o poder de aliviar o sofrimento e de modificar o humor, mas os consumos têm vindo a generalizar-se e a intensificar-se. Na era da globalização e do consumismo, também os consumos de drogas se têm vindo a massificar, mas estão também mais diversificados.1
2Existe um conjunto de substâncias tóxicas ilícitas cujo consumo essencialmente recreativo tem sido mais visível (e crescente) nos últimos anos: as designer drugs (Godinho, 1995). Trata-se sobretudo de substâncias sintéticas (anfetaminas, alucinogénios e outras) cuja composição resulta da investigação laboratorial.
3Os consumos destas substâncias são particularmente populares nas rave parties, mas também nas discotecas — dj parties, dance parties, por exemplo. Assim, pareceu importante termos como campo de observáveis de uma pesquisa sobre o tema um conjunto de discotecas e festas aqui realizadas — Coimbra, Leiria, Marinha Grande, S. Pedro de Moel, Caldas da Rainha.2 A observação directa de situações sociais espontâneas e a descrição da conduta de grupo feita através de indicadores como linguagem, costumes, valores, contactos sociais, incidentes críticos, movimentos, práticas associadas aos consumos, etc. foi complementada por 20 entrevistas realizadas entre Abril e Julho deste ano, a 15 rapazes e 5 raparigas com idades compreendidas entre os 20 e os 29 anos. Uns são apenas frequentadores das festas, outros encontram-se (ou encontraram-se) também ligados aos ambientes de lazer aqui considerados: promotores de festas, dj‘s, produtores de música.
4Nas sociedades actuais o lazer e o entretenimento assumem particular valor pois são assimilados pelo mercado e definidos por critérios de consumo que deram origem a uma activa indústria do lazer bem estabelecida e em expansão com papel activo na criação dos critérios de estilos de vida (veja-se por exemplo Calafat, 1999).
5Assim, ter tempo livre para dedicar a si próprio, para se libertar é já um critério de definição da qualidade de vida e por isso, uma necessidade (Baudrillard, 1995).
6Um dos grupos sociais que mais tem apropriado os espaços de lazer tem sido o dos jovens. O momento privilegiado para estas práticas de lazer e diversão (e de consumo) é a noite.
7É difícil identificar uma tendência predominante nos consumos actuais. Mas, os novos consumos em ambientes de lazer sugerem uma forte associação entre as drogas sintéticas, certos tipos de música (house, techno, por exemplo), o circuito das raves e um estilo de vida jovem.
8Partiu-se neste estudo da seguinte ideia: as mudanças nos sistemas social, económico e cultural, cada vez mais globais, complexificam a relação tripolar entre consumidor, substância e contexto de consumo de “novas drogas”.
9A orientação teórica deste trabalho resultou, pois, da combinação de várias dimensões e conceitos de modelos propostos no âmbito de diversas regiões teóricas. Da articulação do objecto recortado com as propostas dos vários autores, importa distinguir (a nível analítico) três domínios de análise principais: os consumidores, os contextos de consumo e as práticas associadas aos consumos.
10Neste sentido, foram trabalhados cinco eixos de análise cujos resultados se apresentam a seguir.
Ecstasy?…
11Aqui propõe-se clarificar a seguinte questão: quando se fala de “novas drogas” de que substâncias sintéticas e de que propriedades psicoactivas se fala?
12Uma das mais conhecidas é o ecstasy. No entanto apesar de uma primeira pesquisa, ainda exploratória e documental, ter revelado inúmeras substâncias das quais MDMA, Ketamine, GHB, são apenas alguns exemplos, estas não são diferenciadas pelos consumidores entrevistados.
13Alguns dos consumidores, tendo a consciência de que cada pastilha resulta de uma determinada composição química, referiram mesmo ser preferível não a conhecer. Na realidade esse conhecimento também não é facilitado, pois quem vende não tem ou não dá essa informação. Daqui resulta uma discrepância entre aquilo que deveria conter um comprimido de ecstasy e aquilo que contém na realidade.
14Muito embora haja pastilhas com diferentes formatos, cores e símbolos essas diferenças não encontram correspondência num padrão que permita associar estas características aos efeitos produzidos. De acordo com as informações recolhidas, só experimentando se percebe que tipo de sensações provoca e só a análise laboratorial pode determinar a composição química contida naquele comprimido.
15Esta análise feita após apreensões tem revelado tratar-se nalguns casos de simples aspirinas, mas tem revelado também a existência de soro fisiológico, de estricnina, entre outros. Isto parece evidenciar a existência de produções mais ou menos caseiras já que, segundo os entrevistados, o acesso às fórmulas e a sua execução é de relativa facilidade.
16Esta nebulosa em torno das pastilhas dificulta a sua diferenciação até ao nível da designação, tornando sinónimos ecstasy e pastilhas.
Reflexividade dos consumos
17Tendo em conta que os significados atribuídos pelos consumidores aos seus consumos não são independentes dos seus estilos de vida, universos de referência, grupos de pertença, bem como das oportunidades e constrangimentos decorrentes da sua posição na estrutura social, importa perceber quais os significados atribuídos aos consumos. Este aspecto é particularmente relevante no caso das novas drogas porque os sintomas de privação são menos intensos, o que reforça a ideia do poder da iniciativa e da vontade do indivíduo.
18Os lazeres dos jovens — espaços, actividades e consumos — remetem para uma vivência alternativa à diurna, predominantemente marcada por valores como a liberdade, o hedonismo, a afirmação, a integração, a comunicação. Assim, o que levou os entrevistados a iniciarem os consumos foi a curiosidade, a aventura, a procura do prazer. Ainda o desejo de experimentar as sensações que ouviam descrever e, simultaneamente, a influência do grupo de pertença. Sendo que, em alguns dos casos, este assume mesmo um papel determinante na iniciação porque facilita os primeiros acessos à substância, mas também explicando efeitos, alertando para perigos, esclarecendo dúvidas e acompanhando.
19Mas o início dos consumos acaba por desencadear um conjunto de dinâmicas que geram percursos diferenciados: mantêm-se ocasionais, diminuem ou aumentam conjugando-se com outros (policonsumo). Para isto muito contribui a visão dos entrevistados em relação à sua realidade presente e aos consumos na fase em que os iniciaram, bem como as suas expectativas de vida e os seus percursos pessoais e profissionais.
20Da observação realizada, podemos perceber que, em termos gerais, os padrões de consumo do ecstasy correspondem a um modelo de policonsumos, em que as pastilhas têm praticamente o mesmo papel recreativo do que outras substâncias por exemplo, álcool, haxixe ou cocaína.
A construção de alternativas
21A escolha de estilos de vida associados a possibilidades alternativas e construídos em ambientes de risco conferem um carácter particular aos consumos de substâncias psicoactivas.
22Os espaços de lazer referidos e os consumos associados referenciam estilos de vida que se inscrevem em lógicas alternativas de libertação e identificação. Em conjunto, traduzem a procura de um escape ao quotidiano, uma forma de criar e expressar independência relativamente ao grupo familiar, um interesse em atingir estados mais elevados de bem-estar e de realização, uma forma de ultrapassar inibições e de facilitar a comunicação.
23No entanto, a sensação de generalização dos consumos e de alterações nas propriedades psicotrópicas das pastilhas, parecem levar os jovens entrevistados a reequacionar todas as suas vivências, passadas e futuras. Ou seja, demonstram um certo saudosismo em relação às experiências inicialmente vividas, mas sentem necessidade de redimensionar essas experiências. Também aqui as entrevistas revelam duas atitudes diferentes: um corte radical (de substâncias, ambientes e pessoas); uma adaptação à nova realidade, conjugando aquilo que de bom se retirou da experiência com aquilo que é a realidade presente e implicações no futuro.
24Importa ainda realçar o facto dos entrevistados se terem referido às implicações que os consumos estavam a ter nos seus ritmos de vida e de como sentiram necessidade de redefinir os seus percursos em função daquilo que eram os seus interesses profissionais e pessoais. Isto é, os estilos de vida construídos a partir de bases alternativas, mas em que o risco é calculado e controlado.
Os espaços / ambientes
25A organização e apropriação do espaço é um dos meios para apreender a identidade e relação dos grupos sociais que aí se encontram. Os espaços dos novos consumos e de lazer “… têm a propriedade de se encontrarem em relação com todos os outros, ao mesmo tempo que suspendem, neutralizam e invertem o conjunto de relações que esses outros espaços manifestam.” (Silvano, 2001: 73).
26As discotecas e as festas são espaços de lazer e convívio, onde a interacção entre o indivíduo, o ritmo da música, a dança, o jogo de luzes proporcionam um clima peculiar. A este contexto corresponde um comportamento típico que pode ser modificado por acção dos consumos de substâncias psicotrópicas. Neste sentido, considerando o espaço como expressão de possibilidades colectivas importa aqui destacar o facto observado destes consumos terem uma expressão predominante em festas — de acesso mais ou menos restrito — mas que, tende a extravasar esse domínio, passando para o quotidiano.
Práticas tóxicas
27A investigação laboratorial tem potencial para expandir largamente o leque de substâncias sintéticas que permitam aos indivíduos escolher o tipo de comportamento, o estado de consciência e de humor a adoptar de acordo com as circunstâncias. Ainda que este cenário não se concretize ao limite, estão criadas as condições de complexificação dos contextos associados aos consumos de drogas.
28A existência de práticas sociais voluntárias que visam efeitos precisos, sobretudo no que diz respeito à alteração dos estados de consciência e ao ultrapassar de barreiras sociais (de comunicação, inibição, relacionamento, por exemplo), é bastante notória nos entrevistados. Sobretudo quando se referem à forma como a “banalização” (como foi caracterizada nas entrevistas) destes consumos extrapolou os espaços e ambientes iniciais. Mas também na forma como alguns medicamentos são usados para fins recreativos. E mesmo na perda dos ideais associados ao ecstasy (“droga do amor”), mais presentes no início dos consumos.
29A questão parece prender-se com os objectivos pretendidos: bem-estar individual e social. Ilusão que parece resultar do facto dos consumos serem partilhados em grupo, num espaço e contexto específicos.
Risco cultivado
30As diferentes dinâmicas de transformação dos consumos e as tendências que elas provocam na evolução dos ambientes de lazer configuram um quadro diversificado e por vezes contraditório de condições de existência e modos de vida dos jovens. Essa diversidade cruza-se com os sistemas valorativos que os jovens constroem e que se expressam nos ambientes de lazer, nas actividades recreativas e nos consumos psicotrópicos associados.
31A apreensão destes aspectos revela-se então, de particular importância no entendimento das relações entre as mudanças sociais globais e a complexificação da trilogia consumidor, substância, contexto de consumo. A análise da informação recolhida nas entrevistas evidencia alguns aspectos essenciais que importa aqui destacar articulando com os três eixos de análise definidos.
32Os consumos inscrevem-se em ambientes de risco da modernidade, com reflexos nos estilos de vida dos jovens. Giddens (1994) identifica nos contextos da modernidade tardia novas formas de fragmentação e dispersão donde resulta um clima de indefinição em que todas as possibilidades se encontram em aberto. Isto é, ambientes de risco onde se inserem as escolhas e a construção de estilos de vida.
33Os consumos de substâncias sintéticas inscrevem-se no que Giddens chama sectores de estilos de vida, na medida em que correspondem a um conjunto de práticas que tem lugar numa parte do total de espaço-tempo do jovem, correspondendo a certas ocasiões, por contraste com as restantes. Geralmente são noites de fins-de-semana em que são promovidas as “festas da malta nova” (como dizia um dos entrevistados) — rave parties, dance parties, dj parties, etc.
34Todos os entrevistados legitimaram a experiência e a continuidade deste tipo de práticas. No entanto, revelaram também a consciência da carga negativa que tem associada, em termos sociais e legais. Esta ambiguidade normativa remete para a noção de comportamento desviante, no sentido de que aquele que não corresponde às expectativas gerais torna-se diferente. Mas a relatividade do desvio, especificamente no caso destes consumos, acentua o facto de que o desvio corresponde, em maior ou menor grau, a uma escolha do actor social, é voluntário. E é valorizado enquanto tal, porque se considera psicologicamente compensador. A aceitação do risco é também um dos requisitos da excitação e da aventura associados a estas práticas criativas e distintivas.
35É neste sentido que se pode considerar que associado a estes consumos existe um risco cultivado. A nível emocional o risco cultivado envolve três tipos fundamentais de atitude: (1) exposição voluntária ao perigo — expressa no sentimento de curiosidade; (2) consciência dessa exposição — notória na identificação das consequências cardiológicas e neurológicas das substâncias sintéticas e das incertezas relativamente à sua composição; (3) expectativa mais ou menos consciente de o ultrapassar — presente na atitude de quem se afastou para evitar os consumos, mas também de quem continua ou só reduziu insistindo na busca de sensações mais elevadas.
36A abertura de possibilidades de escolha interage com a pluralização dos contextos de acção e daí parece resultar que o espaço-tempo destas actividades se dilata. Passando em alguns casos a assumir-se como verdadeiros estilos de vida — por exemplo, o estilo de vestir que se encontra em festas de discoteca é o mesmo que se encontra no dia-a-dia de quem as frequenta, ou a coincidência de estilos de música que se ouve no carro e na discoteca ou nas festas. Mas mesmo aqui a atitude remete ainda para a noção de risco cultivado. Sobretudo, porque se mantém a premissa relativa à expectativa de ultrapassar os perigos.
37Esta postura pode ter a ver com factores como os relatos de problemas associados às drogas sintéticas chegarem essencialmente através dos meios de comunicação de massa, logo, o efeito de proximidade psicológica e geográfica não se faz sentir, são apenas notícias (Henriques, 1999). Outro dos factores pode ter a ver com os relatos mais próximos que se ouvem não estarem relacionados, de forma directa e inequívoca com os consumos — veja-se o exemplo do álcool, cuja associação com as pastilhas começou por ser proibida e hoje é prática corrente.
38De facto, as consequências são difíceis de determinar porque não serão lineares ou directas, antes vão ser influenciadas por outros factores individuais (psicológicos, físicos e genéticos) de quem consome. Isto introduz grandes variações e dificuldades acrescidas na determinação dos factores de risco associados a uma substância, sobretudo devido às incertezas quanto à composição química de cada pastilha (ainda que aparentemente iguais — na forma, símbolo e cor).
39Relativamente a estas questões alguns entrevistados consideram o volume de informação suficiente, referindo mesmo a internet. No entanto, reivindicam menor repressão e maior acompanhamento, designadamente instalando “laboratórios” onde rapidamente as pastilhas pudessem ser analisadas e a sua composição determinada. Geralmente esta prática só tem expressão após rusgas e apreensões e tem revelado o mais variado tipo de substâncias, mais ou menos perigosas. Mas se estas questões se agudizam neste tipo de substâncias, não são específicas e colocam-se também para drogas como a cocaína, heroína ou haxixe, onde também há produtos de corte (pó de talco, Aspegic, por exemplo).
40Considerar o sujeito como agente, significa reconhecer, e em termos de análise dar atenção, à significação que os próprios atribuem às suas práticas e, mais especificamente, às dinâmicas implicadas nos projectos individuais e estilos de vida associados aos consumos de drogas — dinâmicas de acção, interacção e motivacionais (Velho, 1987 e 1998).
41Os comportamentos encontram-se abertos às diversas possibilidades e são sujeitos à reflexividade produzida pelos indivíduos. Neste sentido, os modos de conduta alternativos, nos quais se inscreve a subcultura do uso de drogas, encontram-se em tensão com os sistemas de normas dominantes. Por isso, são conotados negativamente em relação à normalidade percebida. Esta carga negativa é identificada, mas não reconhecida pelos entrevistados, como atrás se referiu.
42A percepção diferenciada em função da posição ocupada perante uma ordem e sistema de valores familiar resulta do significado particular que adquirem as práticas para quem as protagoniza. Esse significado resulta, por sua vez, da interacção entre os próprios indivíduos e o acto enquanto símbolo. Veja-se a referência ao longo das entrevistas ao “ideal” e ao “bem-estar” relacionado com o ecstasy.
43Com efeito, o facto desta substância ser encarada como facilitadora da comunicação faz com que assuma um papel determinante na interacção que se desenvolve naqueles espaços. E esta “mais-valia” comunicacional e relacional é vista como um valor a perpetuar para além dos consumos, da duração dos efeitos. Aliás, no espaço dedicado a perguntas e respostas do site ecstasy. org é precisamente essa a indicação dada.3
44Martine Xiberras (1997) identifica duas orientações típicas que resultam dos efeitos das substâncias e que também traduzem uma determinada pertença: a “utopia da criatividade” ou a procura de “paraísos artificiais”; o “pesadelo da morte” ou a confrontação com “infernos artificiais”. Os consumos de pastilhas parecem apontar mais no sentido da primeira das orientações definidas pela autora. O facto desta droga não apresentar síndromas de abstinência comparáveis com outras (das quais a heroína é o exemplo extremo), acentua o carácter voluntário dos consumos assente na referida busca de um estado mais elevado de bem-estar — consigo próprio e com os que o rodeiam. Por isso, o ideal aproxima-se mais dos paraísos artificiais dos que dos infernos.
45A construção reflexiva da identidade pessoal pode identificar-se no discurso dos indivíduos ao questionarem e até redefinirem as suas práticas e consumos. Isto representa alterações nas suas disposições para agir relativamente às pastilhas, definidas em função de uma diversidade de possibilidades e incertezas — confiança e risco.
46Para Giddens, somos a primeira geração a viver numa sociedade cosmopolita global. As megafestas a que se tem vindo a fazer referência podem ser entendidas como expressão da relação de fenómenos globais com contextos mais específicos, onde os indivíduos constroem as suas identidades pessoais. Para ilustrar importa realçar o facto, referido com frequência nas entrevistas, de algumas das primeiras pastilhas experimentadas serem trazidas por “pessoas viajadas”.
47Pretendia-se aqui apreender o projecto dos actores, manifesto naquilo que lhe dá sentido — as suas crenças e os seus objectivos. Importa pois destacar, como exemplo, o facto de alguns entrevistados optarem a certa altura por uma diminuição do consumo devido a um aumento do empenho e do grau de exigência na sua actividade profissional. Ou o medo, também referido; medo de morrer, medo das reacções que as drogas provocam.
48Mas importa referir também, como exemplo da reflexividade exercida sobre a acção, as metas de tipo não material que algumas das entrevistas tão bem revelam. Sobretudo ao referirem que melhoraram as suas capacidades comunicacionais, relacionais e auto-estima. Ou quando referem a constante busca da sensação inicialmente sentida, explicando a dificuldade em repetir tal sensação com as alterações das pastilhas e esquecendo que nos efeitos psicotrópicos as alterações dos consumidores também interferem naquele que é o efeito final.
49Por tudo isto, a constituição da identidade pessoal e da actividade quotidiana, expressas nas escolhas de estilos de vida, deve então ser entendida no quadro das novas formas de dispersão, diversidade e fragmentação de papéis, abertura da vida social e da pluralização dos contextos de acção. Gilberto Velho considera tratar-se de projectos individuais elaborados dentro de um campo de possibilidades (históricas, culturais e biográficas) expressos nos vários mundos ou esferas sociais em que participam “… com maior ou menor grau de adesão, desempenhando papéis e vivendo situações sociais específicas” (Velho, 1999: 22). Ao deslocarem-se permanentemente entre ambientes e experiências variadas e por vezes contraditórias, recebem estímulos diferenciados donde resultam fenómenos de metamorfose social que se traduz numa maior capacidade (a que o autor chama “plasticidade simbólica”) de se apoiarem em domínios diferentes para a construção e consciência da sua identidade de forma complexa e multifacetada (Velho, 1994).
50O contexto dos novos consumos e o significado que os indivíduos lhes atribuem traduz uma faixa específica de comportamentos urbanizados. Trata-se de espaços de lazer determinados, com determinada visibilidade pública, onde têm lugar as actividades associadas às novas drogas: comércio, consumo, diversão — discotecas, festas.
51Neste sentido, o contexto é o cenário de acção a que os indivíduos recorrem para orientar a sua interacção com os outros. O que pressupõe a existência de regras de ocupação e movimento nesse espaço. Este aspecto é particularmente notório no que se refere à aquisição de pastilhas. Estas transacções são efectuadas nos próprios espaços de lazer, através de redes de conhecimentos — contrariamente a outras substâncias, em que se recorre a códigos e locais específicos (bairros, por exemplo).
52O espaço fixa as características do grupo (Halbwachs, 1950), o que pode explicar as diferentes formas de vestir numa festa transe, por exemplo (Silvano, 2001). Outro exemplo que ilustra esta ideia tem a ver com o facto dos bares que são frequentados apenas por determinado grupo que se distingue por um conjunto de características que vão desde a forma de vestir, à música que ouvem ou às práticas de lazer e consumos.
53Elemento essencial destes cenários de lazer é a música, que através das acções psicotrópicas das substâncias ingeridas pode ampliar ou reduzir os efeitos ao nível da expressão, motricidade, sentidos, afectividade.
54Esta dupla relação nota-se já em algumas das sociedades tribais em que os ritos, as tradições e os cantos surgem nos momentos mais significativos de lazer e a experiência tóxica culmina na euforia colectiva, na festa. Também o som estereofónico não é uma invenção ocidental divulgada às massas pelos músicos de rock, pois já nas músicas védicas da Índia (300 a. C.) o som surge de várias direcções; tal como a música transe, psicadélica, onde as notas sonoras se multiplicam em estereofonia (Barreto, 1982).
55“A música puxa mesmo pela moca” (nas palavras de um dos entrevistados), parece-nos ser a frase que melhor ilustra esta relação da música com as propriedades psicotrópicas das substâncias e com a própria noção de lazer associado a estes ambientes.
56Parece-nos, no entanto, que quer ao nível dos consumos, quer ao nível dos contextos se está a verificar uma generalização. Ou seja, a especificidade de determinados contextos dedicados a determinados consumos tende a esbater-se e a atitude dos consumidores faz com que extravasem para outros contextos. Sobretudo porque os indivíduos atravessam constantemente as fronteiras, desempenhando diferentes papéis sociais, de acordo com contextos e situações.
Concluindo
57A vida social encontra-se dividida entre o espaço e o tempo formal, dedicado ao trabalho, ao estudo, à família, e o espaço e tempo dedicado aos amigos, a um grupo e a actividades recreativas. Para muitos jovens, a diversão e o lazer é o tempo de conhecerem o seu próprio grupo de amigos, e para apreciar as actividades associadas como a música e a dança. Estes cenários enquadram ambientes de risco dentro dos quais os indivíduos podem arriscar recursos e as suas vidas, através de actividades perigosas.
58Os riscos voluntariamente corridos diferem daqueles que decorrem dos constrangimentos da vida social ou do estilo de vida adoptado. Porém, esta diferenciação é pouco nítida, já que a adopção activa de certos tipos de risco pode passar pela valorização desses riscos em si mesmos. Ou seja, começar a consumir substâncias psicotrópicas conhecendo os riscos para a saúde, pode demonstrar uma certa coragem que o indivíduo acha psicologicamente recompensadora. A coragem é demonstrada, no risco cultivado, como uma qualidade que é posta à prova, que é deliberadamente confrontada com o perigo. Daqui resulta uma busca de emoções fortes, de sensações de poder e, sobretudo, de contraste com a rotina.
59A progressiva relação dos jovens com as drogas legais e ilegais — álcool, pastilhas, etc. — arrasta consigo, em simultâneo, um processo de “normalização” desse uso, particularmente em certos ambientes. Neste sentido, os jovens consumidores não se vêm a si próprios como tendo um problema de drogas. É, pois, muito importante transformar a imagem que tradicionalmente se associa ao consumidor de drogas como um elemento de ambientes marginais ou (auto) excluído dos ambientes formais.
60Por um lado, correr certos riscos na busca de um dado estilo de vida, é aceite dentro de certos limites. Por outro, os perigos que apresentam são vistos como demasiado remotos do meio envolvente da pessoa para serem contemplados seriamente como uma possibilidade real. Então, a emoção que se pode obter ao cultivar o risco depende da exposição deliberada à incerteza, permitindo assim às práticas associadas aos novos consumos em ambientes de lazer demarcar-se das rotinas da vida comum.
61Situações destas tornam possível aos entrevistados a demonstração de coragem, flexibilidade, habilidade e iniciativa, estando conscientes dos riscos implicados no que fazem, mas usando-os para criarem algo que falta às circunstâncias da sua rotina. Tal como refere Gilberto Velho, trata-se de diversas dimensões, planos, mundos sociais que através da acção dos indivíduos que os atravessam, se tocam, cruzam, relacionam, mas que não se confundem; antes ajudando a construir a sua identidade, complexa mas flexível. Ou, tal como Giddens defende, o risco cultivado converge com algumas das orientações mais básicas da modernidade: a capacidade de perturbar a fixidez das coisas, de abrir novos caminhos.
Bibliographie
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Notes de bas de page
1 Indicador desta massificação é a existência na internet de diversos sites relacionados com informações genéricas acerca de várias drogas ou sobre uma substância em particular — ex.http://ecstasy.org.
2 Esta pesquisa foi desenvolvida no âmbito do CIES (Centro de Investigação e Estudos de Sociologia) com o apoio do IPDT (Instituto Português da Droga e da Toxicodependência).
3 http://ecstasy.org/qanda/q21.html: “… aprende com a experiência: reflecte como te sentias com E e o que está diferente, depois tenta reter a mesma perspectiva sem a droga.” (trad. livre).
Auteur
Socióloga; Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE).
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