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Capítulo 13. Expressões psicadélicas juvenis

p. 167-178


Texte intégral

1Neste texto pretendemos contribuir para a reflexão em torno das relações, passadas e actuais, entre drogas e culturas juvenis. Circunscrevemos o nosso exercício a dois grandes objectivos: sintetizar, num primeiro momento, e partindo duma revisão de literatura, quais têm sido os recursos psicotrópicos das diferentes manifestações da cultura juvenil desde que estas se estruturaram como fenómeno dotado de visibilidade social (i. e., desde a década de 1950, para o situarmos grosseiramente), e que interpretações ou significações têm sido avançadas para essas relações droga-cultura juvenil; num segundo momento, enunciar as principais linhas de um trabalho em curso que visa, através dos instrumentos colocados à disposição pela abordagem naturalista, estudar as actuais expressões da cultura juvenil. Procuraremos esclarecer ainda qual a filiação empírica, teórica e metodológica em que pretendemos levar a cabo este trabalho, e em que medida consideramos possível configurá-lo no domínio disciplinar da antropologia urbana.

2Por limitações de várias ordens não enveredaremos pelas análises que desenvolvem discussão sobre alguns dos conceitos de que nos socorremos (como os conceitos de cultura e subcultura juvenil), ou por outras que desenvolvem o exercício de reconstituição, até à actualidade, das principais manifestações dessas culturas. Tomaremos estas tal como têm sido descritas por autores que se têm dedicado ao domínio (M. Brake, P. Mignon, C. Feixa, entre outros), interpelando-as relativamente ao aspecto em questão — as suas, chamemos-lhes, opções químicas e respectiva relação com a procura de estados alterados de consciência.

Elementos para a reconstituição da relação droga-cultura juvenil: actores, substâncias, experiências e interpretações, antes e agora

3Por onde começar, quando nos propomos esclarecer quais foram e têm sido as relações entre as sucessivas expressões da cultura juvenil e seus usos de drogas? Anteciparemos a existência de um antes e de um agora das culturas juvenis, e será a partir desta divisão que organizaremos a nossa análise. E deixaremos provisoriamente em aberto a questão de saber se existem ou não razões para crer que uma ruptura se tenha operado — nas formas, nas características, nos processos e nos meios para atingir fins de que essas culturas se socorrem — para que possamos (ou não) falar numa transformação profunda de manifestações e seus significados, na actualidade.

4Procuraremos, então, desenvolver um esforço de síntese que dê conta, simultaneamente, de actores e substâncias, mas também de experiências e interpretações que têm sido avançadas em torno dos diferentes movimentos, sobretudo daqueles que integram, ainda hoje, o espólio simbólico de que o momento actual é subsidiário.

5Do ponto de vista das interpretações que são avançadas pelo conjunto de leituras do fenómeno juvenil que aqui resumimos, parece-nos ser possível vislumbrar dois níveis de análise. Esta distinção parte da constatação de uma diferença qualitativa entre interpretações que enfatizam, por um lado, a experiência do sujeito, integrado que está em universos simbólicos, em mundos sociais que se revestem de particularidades do ponto de vista das suas significações; e, por outro lado, as propostas que procuram esclarecer sobre como dialogam as culturas ou movimentos juvenis de uma época, com as determinantes estruturais, macrossociais do seu contexto sociohistórico.

Da beatnick ao punk: leituras sobre o antes das culturas juvenis

6A aproximação à abordagem das ciências humanas ao domínio das culturas juvenis permitiu-nos identificar a opção por um exercício que é, do ponto de vista metodológico, relativamente homogéneo. Em que sentido? Independentemente do facto de serem oriundas de uma ou de outra área disciplinar (antropologia, sociologia, psicologia), as várias propostas optam pela descrição que procede ao desenrolar, enquadrado na sua história recente, dos principais estilos ou manifestações juvenis. E esse alinhamento, nem sempre explícito, não se afigura fácil de concretizar, se atendermos às múltiplas nuances do seu mosaico expressivo. Tais dificuldades não inviabilizam, porém, que se registe assinalável grau de concordância quando se atinge o momento de fazer referência às manifestações que assumiram estatuto de fenómeno juvenil.

7A consulta de um conjunto de fontes que nos pareceram de maior centralidade para este domínio permitiu verificar que, quer nos situemos no ponto de vista da análise francófona (P. Mignon, 1991), britânica (M. Brake, 1985; Hall e Jefferson, 1975; S. Readhead, 1992; H. Shapiro, 1999), espanhola (C. Feixa, 1999; O. Romaní, 1999; J. C. Usó, 1996; P. Colubi, 1997; Racionero, 1983) ou portuguesa (L. Fernandes, 1990, 1993, 1993; Barreto, 1983) os estilos ou subculturas especificamente analisados são, com reduzida variabilidade, aproximadamente os mesmos. Uma vez que esse trabalho de caracterização parece estar já desenvolvido nesses mesmos trabalhos, e com assinalável pormenor no que diz respeito à identificação de acontecimentos, figuras, datas e locais de relevo, optamos por não o repetir. Desenvolveremos, antes, um exercício em que procuramos dar conta das características dessas culturas que têm sido postas em destaque pelos trabalhos que integraram a nossa revisão para, a partir daí, definirmos o nosso próprio posicionamento na interpelação ao objecto das culturas juvenis.

8Para além da questão da descrição dos diferentes estilos ou posturas, do ponto de vista das suas vertentes estética e simbólica, as culturas juvenis mais estudadas no passado foram e têm sido analisadas a partir de todo um conjunto de dimensões que apresentamos, de forma necessariamente resumida, no quadro 13.1. Assim, e depois de desenvolvida uma leitura transversal desses trabalhos, pareceu-nos que uma síntese dos principais elementos expressivos das culturas juvenis mais estudadas poderia ser desenvolvida, tomando por referência o seu enquadramento temporal e geográfico; a origem e características dos actores que as integram; os seus usos de substâncias psicoactivas referindo que apropriações lhes são feitas e de que significados se revestem; que tendências musicais são integradas no seu conjunto expressivo; que posturas, atitudes, valores e posicionamentos ideológicos exibem; e, finalmente, que formas de lazer e diversão melhor se adaptam à sua forma de estar.

9Destacaríamos, ainda, a forma como as abordagens dos diversos autores às culturas juvenis do passado parecem colocar-se ao serviço de diferentes objectivos. Se alguns trabalhos tomam a cultura juvenil como um objecto em si mesmo, aproveitando para a partir da sua análise contribuir para uma reflexão mais alargada sobre o social, para a produção de teoria antropológica ou sociológica ou para reunir elementos sobre o que pode ser uma história da juventude na modernidade (M. Brake, C. Feixa, etc.), noutros casos, as culturas juvenis constituem analisadores de outros aspectos que concentram a atenção dos investigadores. P. Mignon (1991) percorre diversos eixos (a música, as drogas, as expressões juvenis) para concluir sobre a democratização da boémia, desde o seu apogeu no século XIX — em que surgia quase exclusivamente associada a elites literárias e artísticas — até ao momento actual, caracterizado, precisamente, por uma democratização desses mesmos elementos (música, drogas e demais expressões incorporadas pela juventude). H. Shapiro (1999) também manifesta interesse na evolução dos usos de drogas na juventude, percorrendo um fio temporal onde contempla uma análise das transformações na cultura dos clubes nocturnos britânicos e formas e espaços de lazer que se instalam como suas alternativas. No trabalho de L. Fernandes (1990, 1993, 2002) o estudo das subculturas juvenis reveste-se de um duplo interesse: uma vez mais, a análise das relações entre drogas e sector juvenil e, por outro lado, o recurso às estratégias de investigação naturalista como forma de dar conta das características de um espaço urbano que age como concentrador dos modos de estar típicos de determinadas subculturas, tomadas como exemplos de relacionamentos possíveis entre a juventude e o urbano.

Quadro 13.1. Da beatnick ao punk: síntese de algumas características

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New Agers, Ravers, Trancers: expressões actuais das culturas juvenis

10O trabalho que nos permitiria atingir, para estas manifestações, o mesmo exercício de síntese descritiva que apresentamos para as culturas juvenis que se popularizaram no passado permanece ainda, é nossa opinião, por desenvolver. Entendemos que se encontra dificultado por um obstáculo que, em menor grau, atinge também o estudo das culturas juvenis do período anterior — a ausência de distância histórica (e crítica) sobre o fenómeno, a que acresce um polimorfismo que dificulta ao investigador atingir uma definição clara do grupo, actores, movimento ou expressão em particular que pretende estudar.

11Nos materiais com que tomamos contacto, as referências às manifestações actuais são, quando tomadas na sua globalidade, bastante variadas e heterogéneas. Não obstante a clareza da intenção dos autores — estudar as características das manifestações e comportamentos da juventude na actualidade — definem-nas com base em critérios que revelam alguma falta de clareza, induzida porventura pelos próprios contornos que o fenómeno hoje assume. Assim, os critérios a que recorrem para designar o(s) seu (seus) objecto(s) reúnem, ao contrário do que vimos anteriormente, muito pouco consenso. Optam, em alguns casos, pela via de definição a partir das substâncias, com destaque para o ecstasy e novas drogas — em trabalhos como os de J. Gamella (1999), N. Saunders (1996), S. Readhead (1992), M. Chaves (1998), B. Eisner (1994), O. Romaní (1999); ou por uma delimitação a partir dum estilo musical — a referência ao acid house em P. Mignon (1991), ou à dance music em N. Saunders (1996); ou, ainda, por um tipo de cultura emergente que designam umas vezes por New Age (Watson e Beck, 1991), noutras por cultura rave (S. Readhead, 1992; H. Shapiro, 1999), cultura de dança (S. Readhead, 1992) ou por cultura do ecstasy (M. Collin, 1997). Estes são exemplos de leituras e análises, que têm caracterizado as expressões actuais da cultura juvenil na sua filiação a outros estilos, que têm reflectido sobre possíveis interpretações para a novidade que encerram e como se articulam com o estado actual da cultura nas sociedades contemporâneas.

12Não obstante a juventude das próprias expressões, estes e outros materiais reúnem já um conjunto de elementos descritivos que permitem dar conta das suas inúmeras variantes, dos seus actores, usos de drogas e contextos preferenciais de diversão. São relativamente consensuais no que diz respeito a encontrar-lhes uma ligação ao movimento hippie do passado, que deriva da presença de vários traços comuns: estéticos (o modo de vestir, os cabelos, os acessórios), ideológicos e valorativos (o naturalismo, a revolta contra os valores da sociedade dominante, etc.), psicoativos (o retomar da experiência psicadélica das drogas, algum retorno ao uso enquanto procura de expansão da consciência), e também no tipo de manifestações de lazer procuradas (de novo os grandes outdoors, agora designados por festas de rave ou trance, com o retorno à procura de uma sintonia do contexto — cénica e musicalmente — com a experiência psicoativa).

13Um trabalho em curso, de que sinteticamente daremos conta no ponto seguinte, visará uma caracterização destas expressões que povoam, no momento actual, a cena juvenil. Não estando ainda munidos do material empírico que nos permitiria extrair leituras sobre a sua dinâmica, optamos por identificar um conjunto de questionamentos e reflexões que os autores citados produzem a propósito do momento actual das culturas juvenis, apresentando alguns aspectos dessa discussão. Resumimo-los da seguinte forma:

  1. Que tipo de relações se tem desenvolvido entre as expressões actuais das culturas juvenis e a cultura dominante? Esta é uma linha de reflexão que resulta duma profusa referência a noções como pós-modernidade, mercado, capitalismo, industrialização, massificação, comercialização, americanização, difusão da inovação, modernização, mediatização, etc. São leituras e interpretações para o estado actual das culturas juvenis que se situam, não no plano do sujeito e suas experiências, mas no plano macroestrutural, parecendo exibir, como característica comum, as diferentes formas através das quais as culturas juvenis são interferidas pela cultura dominante. Essa interferência parece dar-se, para citar apenas um exemplo (Gamella e Roldán, 1999), por via da transformação que se operou sobre as drogas ilegais, concebidas agora como mercadorias — referem a “mercantilização das drogas ilegais como objectos para o consumo de massas”, difundidas como inovação ou novidade. S. Readhead (1992) afirma, e revelando pontos em comum com a análise anterior, como toda a “nova subcultura da juventude” pode ser considerada uma fabricação dos media. Estes seriam responsáveis pela inventariação e publicitação de todos os ícones que se tornaram típicos para os adeptos do rave ou do acid house e tal teria resultado numa apropriação da cultura enquanto actividade económica, que encontrou mercado florescente na indústria associada ao lazer nocturno — é o “espírito comercial colocado ao serviço do hedonismo” refere.

  2. Será que a teorização até hoje produzida em torno das culturas juvenis se mantém adequada à sua compreensão na actualidade? A interrogação remete-nos, em primeiro lugar para um esclarecimento — como foram, no passado, teorizadas as culturas juvenis? Foram teorizadas, sobretudo, a partir das propostas do Center for Contemporary Cultural Studies de Birmingham, de onde é oriunda a tese da resistência através dos rituais (Hall e Jefferson, 1975). Para Hall e Jefferson, o âmago de uma “verdadeira subcultura” só se revelaria após a aplicação de um filtro que permitisse separar o fenómeno das deformações e estereótipos veiculados pelos media — só então seria possível aceder ao sistema coerente e à identidade social de uma determinada subcultura. S. Readhead aponta a este “método das subculturas” o que considera serem duas sérias limitações: por um lado, o facto da tese da resistência através dos rituais se ter envolvido por vezes no encorajamento implícito aos símbolos de resistência e rebeldia evidenciados pelo objecto que pretendiam estudar; por outro lado, e no que diz respeito às culturas actuais, a questão de como aceder à natureza genuína da subcultura pela desocultação dos seus elementos menos genuínos (porque mediaticamente fabricados), se tudo nelas tem, na opinião do autor, precisamente uma origem mediaticamente construída.

  3. Qual tem sido o debate sobre a genuinidade versus artificialismo das culturas juvenis? Será que as de agora são menos genuínas do que as de antes? Readhead defende que desde os anos 1970 que a literatura mais não tem feito do que assinalar novas subculturas “fabricadas” pelos media, caracterizadas por uma aceleração da discrepância entre autenticidade e artificialismo, de que o acid house constituiria exemplo. M. Brake, por outro lado, considera necessária a introdução de leituras que de alguma forma relativizem esta posição, na medida em que a cultura juvenil se teria revestido sempre de uma “mistura contraditória entre o autêntico e o fabricado” o que permite simultaneamente a existência de uma zona de auto-expressão para a juventude e terreno de expansão para agentes comerciais; por outro lado, e dado que as opções individuais, nomeadamente no que diz respeito ao lazer, se revestem sempre de um grau considerável de imprevisibilidade, tal imporia limites aos esforços de comercialização da indústria ligada ao sector juvenil. Em última análise, o debate sobre esta questão coloca-nos perante a seguinte interrogação: será que pelo facto de as culturas juvenis terem hoje ao seu dispor mecanismos de difusão antes impensáveis, e de se revestirem de um conjunto de outras características que as tornam genericamente distintas do passado, poderemos afirmar que estão transformadas em produto mediaticamente fabricado e desprovidas, por essa razão, de elementos de expressividade genuína? O que provavelmente nos é dado a assistir na actualidade é a ausência de leituras e abordagens capazes de integrar as características actuais das culturas juvenis e, por outro lado, o sentido da renovação de que, aliás, sempre se revestiram. O esforço para superar essas lacunas, com o desenvolvimento de investigação empírica que interrogue as manifestações actuais do fenómeno, parece-nos bem mais relevante do que a negação da genuinidade do seu potencial expressivo, que foi sempre, embora com recurso a meios mais ou menos sofisticados, interferido mediaticamente.

  4. Poderá dizer-se que o momento actual das culturas juvenis tem vindo a produzir uma democratização ou normalização dos usos de drogas? M. Collin (1997) é defensor desta tese, que justifica a partir da difusão do próprio movimento (que designa por cultura do ecstasy) — este ter-se-ia difundido porque foi a melhor forma de diversão disponível no mercado, em que diferentes tecnologias (musical, química e informática) se combinaram para produzir estados alterados de consciência. Essa difusão teria acabado por desencadear um processo de mainstreamização e, simultaneamente, de ampliação e diversificação da nova cultura.

Expressões actuais da cultura juvenil: um estudo etnográfico

14Concluído o exercício de sistematização sobre a forma como têm sido caracterizadas algumas das principais manifestações da cultura juvenil, é chegado o momento de apresentarmos as linhas orientadoras de um trabalho em curso que tem visado o estudo das suas tendências na actualidade concretizando, assim, o segundo grande objectivo a que nos propúnhamos.

15Retomamos, com este trabalho, uma linha de investigação empírica iniciada há cerca década e meia por L. Fernandes (1990) no Centro de Ciências do Comportamento Desviante da Universidade do Porto e que visava, na altura, o estudo das relações entre sector juvenil e usos de drogas num espaço urbano que agia enquanto concentrador de actores e sensibilidades juvenis com expressão na época, e onde os conceitos de cultura e subcultura serviram a análise desse fenómeno juvenil urbano.

16Por que retomamos essa linha de trabalho? Pelo interesse que reside, em nosso entender, na utilização de uma mesma forma de interrogar as culturas juvenis na cultura urbana para proceder, em seguida, ao exercício comparativo que procurará, volvidos cerca de 15 anos, identificar e reflectir sobre as transformações que se instalaram no fenómeno. Julgamos ser possível resumir a filiação do nosso projecto a esse trabalho inicial em quatro aspectos: a questão do espaço físico, a questão do espaço simbólico, a questão semântica e, finalmente, a questão metodológica.

17Em primeiro lugar, a questão do espaço físico. Se antes estávamos perante um espaço urbano que agia como concentrador juvenil (um quarteirão típico da zona histórica do Porto, a Ribeira-Barredo), hoje o fenómeno parece pautar-se, como já observámos a um nível exploratório, pela multifocalidade: os actores apresentam uma disseminação pelo urbano que torna inviável a sinalização de uma unidade física ou espacial em concreto, a partir da qual iniciar o trabalho de terreno. A própria opção pela festa (house, rave ou trance) enquanto contexto de observação participante, não esquece este carácter pontual e disseminado do encontro entre os actores, considerando-o relevante e central para a recolha de elementos sobre dinâmicas expressivas e interactivas. Tem sido a partir de observação participante levada a cabo em ambientes de festa e lazer que temos vindo a recolher elementos que têm convergido para a caracterização de contextos, actores e seus usos de drogas. As limitações que um espaço com estes contornos tem colocado às possibilidades de estabelecimento de interacções privilegiadas com os actores, têm-nos conduzido à necessidade de diversificar as opções de desenvolvimento de observação participante.

18Em segundo lugar, o espaço simbólico. Este, tal como o espaço físico, parece ter sofrido transformações: se antes a pop-rock parecia ser o universo simbólico aglutinador das expressões juvenis, hoje o fenómeno parece materializar de outras formas — com outros referenciais estéticos, musicais e experenciais — esse espaço simbólico. Que universos simbólicos são esses, volvida uma década? O movimento rave e, mais recentemente, o movimento Goa Trance são exemplos do conjunto de novas tendências que têm surgido neste âmbito, sobre as quais temos direccionado a nossa atenção.

19Em terceiro lugar, o plano semântico, hermenêutico, dos significados. Se estamos perante outros universos simbólicos, deparamos com o recurso a outros sinais e símbolos emitidos a partir do corpo, e com a necessidade de uma hermenêutica do fenómeno juvenil distinta daquela que foi desenvolvida no passado. Mais do que a descrição actualizada das novas estéticas juvenis, procura-se a identificação de novos tipos juvenis, estando em causa não só a partilha duma estética visual, mas todo um posicionamento no mundo e na experiência.

20Finalmente, a filiação numa mesma abordagem metodológica, a abordagem naturalista. Trabalho de terreno, entrevista em profundidade e recolha de depoimentos são algumas das ferramentas metodológicas através das quais se procura um posicionamento proximal e generativo relativamente ao objecto, optando assim pelos contextos naturais de observação, por uma tónica qualitativa e por uma postura de relativismo cultural.

21Resta-nos esclarecer em que medida pensamos ser possível configurar este projecto no domínio disciplinar da antropologia urbana. E pensamos poder assim enquadrá-lo, por duas grandes ordens de razões: desde logo, pela opção por uma postura metodológica proximal e pelo objectivo genérico de produção de conhecimento sobre a cultura de um grupo específico; depois, na medida em que se procura o conhecimento das relações entre o sector juvenil e o urbano (e suas representações dominantes). Os dados que até ao momento tivemos oportunidade de recolher em contacto com o terreno, permitem-nos desde já antever diferenças substanciais relativamente ao passado, na forma como as manifestações actuais da cultura juvenil convivem com o espaço urbano. A isto acresce, e a ser verdade que elas hiperbolizam mudanças, que tais mudanças estão presentes na relação que os jovens desenvolvem com a cidade. Então, o conhecimento sobre as expressões actuais da cultura juvenil pode ser tomado como analisador das transformações recentes no urbano.

Nota Final

22Enquanto objecto de estudo, as culturas juvenis encontram-se na dependência da emergência de um outro, que as precedeu — a própria juventude. Verdadeira aquisição da modernidade, a construção da juventude, primeiro enquanto discurso, depois enquanto objecto de intervenção, de estudo, de interesse social, de problematização, muito tem a dever à acção dos dispositivos que desde cedo visaram a sua normalização, a sua correcção, a sua rentabilização, ao serviço do biopoder das sociedades ocidentais a partir da modernidade (Foucault, 1976; Agra, 1980). A juventude, enquanto categoria social, passa a existir a par com o aparecimento dos dispositivos que visaram o seu controle — “Um conjunto de circunstâncias sociopolitico-historico-económicas (desencadearam a delimitação da juventude no campo estrutural sociológico, do adolescente enquanto matéria de especificidade individual, das instituições da juventude enquanto matéria de especificidade infraestrutural” (Agra, 1980).

23É, então, antiga a associação entre as duas categorias — juventude e desviância — tendo pautado de forma determinante uma problematização da primeira baseada na desordem que encerraria. Mas apesar da relação entre juventude e desvio se manter hoje mais central do que nunca — a avaliar pela inquietação provocada pelos bandos juvenis do urbano degradado — verifica-se haver também lugar para um estudo da juventude que não se esgota na sua dimensão problemática, errante, violenta, carecida de controle e normalização. É precisamente aí que acreditamos poder situar o estudo das culturas juvenis.

24Tendo deixado de ser, exclusivamente, ponto de partida para o estudo do desvio, a juventude tem, na actualidade, condições para se tornar espelho e analisador de transformações profundas na cultura e no social numa fase de “revolução do estar-junto pós-moderno” (Maffesoli, 1998). Sujeita a essas transformações, não só se adapta como inova, reagindo activamente, criando novos valores. Se, por um lado, repete em larga escala aquilo que foram as dinâmicas já presentes em manifestações do seu passado, necessariamente recente, por outro lado o momento actual da cultura parece oferecer desafios que não se colocavam às classes juvenis urbanas dos anos 1960. Um deles será certamente, e como aponta Maffesoli, a capacidade que exibe para integrar contradições, viabilizando assim uma existência unificada, num meio pleno de paradoxos e de referenciais cruzados.

25Permitirmo-nos o estudo da juventude, liberta já dos seus dispositivos de normalização, da sua relação quase exclusiva com o domínio da desviância e dos problemas sociais, e voltarmo-nos para o seu poder expressivo, simbólico, ideológico, voltarmo-nos para o seu poder de inovação e para a análise da forma como integra, adapta e renova as necessárias adaptações ao momento actual da cultura seria então, e uma vez mais, um bom exemplo de uma aquisição pós-moderna.

Bibliographie

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