Capítulo 12. Construção identitária em rede
p. 157-166
Texte intégral
1Domingo à tarde, um lar de terceira idade, num dos subúrbios de Lisboa. Tratava-se de comemorar a vida de um influente galego, imigrante em Portugal, e benemérito desta instituição. A Direcção do Lar convidou o grupo folclórico Anaquiños da Terra, da Xuventude de Galícia — Centro Galego de Lisboa, para uma pequena actuação. As cantadeiras tocam pandeireta, e cantam em galego canções populares. Os bailarinos envergam fatos típicos domingueiros e executam muiñeiras, xotas e pandeiradas. Emocionado, o organizador saúda o grupo e endereça algumas palavras particulares aos bailarinos, louvando “esta juventude, talvez já mais portuguesa que galega, mas que continua a celebrar as suas origens”. Os bailarinos tentam disfarçar o riso: é que o elenco era composto por uma única neta de galegos, duas portuguesas sem qualquer ligação com a Galiza e um jovem belga, que mais tarde comentou à socapa, “pelo menos eu, sou tão galego como português”.
2Este episódio foi testemunhado no decurso do trabalho de campo etnográfico efectuado na Xuventude de Galícia, surgindo como particularmente emblemático dos processos observados nesta associação. A pesquisa na Xuventude de Galícia foi desenvolvida segundo uma metodologia de observação participante, que compreendeu a participação em diversas actividades da associação e a inserção no seu grupo folclórico.1 A investigação decorreu sob a égide do conceito de identidade, segundo três vertentes analiticamente separáveis: a própria conceptualização do conceito de identidade, procurando-se salientar a sua natureza dinâmica e múltipla, a procura de algumas dimensões particularmente relevantes para a construção identitária, e um questionamento do movimento associativo enquanto veículo de inculcação e/ou expressão de sentimentos identitários.2
3A Xuventude de Galícia — Centro Galego de Lisboa é uma associação já com algumas décadas; localizada, desde há alguns anos, num palacete situado em Lisboa, no Campo Mártires da Pátria. Tem como principal objectivo expressar e difundir a cultura galega, proporcionando simultaneamente o contacto entre os diversos galegos imigrados em Portugal. Para atingir os seus propósitos, apresenta um espaço onde os sócios se podem encontrar, inclusivamente num bar, palco privilegiado para o desenrolar de sociabilidades. A própria sede pretende ser uma reconstrução da Galiza, por exemplo, a nível arquitectónico, com um cruzeiro na entrada, construído à imagem dos que se encontram vulgarmente na Galiza, imagens de Santiago, ou o busto de um conhecido galego, benfeitor da associação. Por outro lado, se a língua é um dos principais bastiões da identidade nacional, a galega surge recorrentemente, nas inscrições várias que se podem ler no espaço, e é também falada por parte dos sócios, e, vulgarmente, no bar. Finalmente, encontram-se presentes outros símbolos da identidade nacional ou regional: bandeiras, estandartes e as cores da Galiza, em vários locais estratégicos da associação.
4Para além de proporcionar um espaço de convívio, esta associação promove a aprendizagem de algumas actividades e inclui grupos performativos. Estas actividades dividem-se entre algumas que não têm uma relação muito directa com a Galiza, como é o caso das aulas de Yoga ou de danças de influência latina, e outras actividades, como a gaita-de-foles, a dança, o canto e instrumentos típicos galegos. Os praticantes são encorajados a participar no grupo folclórico da associação, que acaba por se constituir como o principal meio de expressão da tradição galega. O próprio nome do grupo reivindica este papel: Anaquiños da Terra, ou seja os bocadinhos da terra. Trata-se portanto de um grupo que pretende constituir-se como meio de apresentar uns pedacitos, culturais e expressivos, da cultura original da terra, ou seja, da Galiza.
5Para muitos dos seus membros, a Xuventude surge como modo de se afirmarem como galegos, de celebrarem uma cultura de origem, de tipo étnico, e de se integrarem num meio com o qual partilham uma determinada afinidade. Esta pertença é reivindicada através de sentimentos obviamente fundamentados no tempo e numa noção de continuidade temporal, reenviando para a importância dos processos de celebração da memória colectiva, através de cerimónias comemorativas, performances ritualizadas que permitem recordar e comemorar um determinado passado, com o qual se reivindica uma certa continuidade, e que deste modo é mantido vivo na memória.3
6Como particularmente emblemáticos, são escolhidos pela organização do grupo, os cantares e instrumentos, entre os quais a pandeireta ocupa um lugar de destaque, mas sendo complementada por instrumentos como as conchas (vieiras), iguais às utilizadas pelos peregrinos no caminho de Santiago, as pinhas, o tambor, o bombo, o pandeiro e a sanfona. Geralmente, as actuações são também acompanhadas por um gaiteiro. As canções escolhidas, cantadas em galego, são de raiz popular, muitas de expressão brejeira, outras reenviando para a questão da imigração e da distância em relação à terra de origem. Os espectáculos são complementados com o grupo de baile, que executa algumas das danças tradicionais da Galiza, principalmente a xota, a muiñeira e a pandeirada, características dos bailes tradicionais, mas também algumas danças associadas a eventos específicos, e ainda danças mais recentes, produto de interacções com outras tradições, geralmente trazidas pelos imigrantes galegos, como a polca, a mazurca, ou a valsa galega; surgindo assim a dança, como tantas outras expressões culturais, como um bom exemplo da miscigenação de culturas. A música e a dança são complementadas com o facto de o grupo, como já foi referido, se vestir com trajes típicos da Galiza e se fazer acompanhar por estandartes e outra simbologia própria. A apresentação ao público, nas actuações, é feita em galego.
7Para além do destaque dado às formas culturais directamente herdeiras da tradição galega, e da panóplia de artefactos que representam a associação e o seu próprio espaço como marcadamente galegos, inicialmente aquela era, de facto, destinada exclusivamente a galegos ou descendentes de galegos. Na inscrição era necessário apresentar a prova de sangue galego, e eram raros os membros que não tinham esta origem, e que entravam por via de conhecimento com algum sócio. Neste caso, são, ainda agora, considerados como sócios simpatizantes, sem direito de voto na assembleia associativa.
8O decurso do tempo, quis, todavia, que esta situação não se prolongasse. A quantidade de membros activos de origem galega começou a diminuir, de um modo que foi descrito, pelos “sobreviventes”, como devido a um desinteresse dos jovens, a partir do momento em que entraram para a faculdade, casaram, ou começaram a namorar, ou, nalguns casos, regressaram a Espanha. Como resultado deste afastamento, a associação começou a perder membros, e decidiu abrir-se para o exterior, e alargar a entrada a não galegos, como sócios simpatizantes, fazendo inclusive publicidade nas universidades.
9O grupo dos Anaquiños da Terra, não obstante o seu papel de destaque como guardião da identidade galega, foi um dos grupos que mais protagonizou esta abertura, nomeadamente através de um novo curso de dança, para principiantes, leccionado por uma professora de origem galega, e que abriu no princípio do ano lectivo 2000/2001. Como resultado desta abertura, a Xuventude de Galicia, e apesar da sua referida vertente de reivindicação identitária étnica, agrupa sob o seu estandarte uma grande quantidade de jovens portugueses, alguns dos quais nunca foram à Galiza na sua vida, e ainda, por uma razão ou por outra, pessoas de outras nacionalidades, um belga, uma francesa, um espanhol das Baleares, diversos membros oriundos dos PALOP… O grupo de baile, o mais recentemente renovado, tem, como membros activos, para além dos dois ensaiadores, e de três raparigas de origem galega, cerca de seis portuguesas, e dois rapazes, um português e um belga. O grupo das cantadeiras, pelo contrário, tem uma proporção muito maior de membros de origem galega, mas que também não é total.
10O facto de grande parte dos associados não terem origem galega não implica que a sua pertença à associação seja menos importante. De resto, os não galegos reivindicam sentimentos de pertença para com a associação, tal como os galegos, embora estes sentimentos possam assumir formas diferentes. Uns e outros encontram-se envolvidos com a associação, prolongando a sua participação para além da execução de actividades, organizando saídas em grupo, sugerindo novas actividades, frequentando em conjunto workshops e cursos como extensão das actividades praticadas. Para além disto, existe o hábito de jantar na associação todas as quartas-feiras, ao que geralmente se segue uma saída nocturna, para os membros mais jovens do grupo. Todos estes processos permitem caracterizar este grupo como de sociabilidade e encontrar processos identitários e de pertença associados.
11Por outro lado, não é eliminada a possibilidade de se abordar a questão identitária. Antes pelo contrário, a inexpectabilidade que se encontra entre os associados pode tornar-se particularmente digna de análise, reenviando para uma determinada visão da identidade, considerada como aquilo que os indivíduos efectivamente fazem, sentem ou reivindicam como seu através dos seus sentimentos de pertença. Neste sentido, põem-se de parte os discursos sobre a autenticidade, deixando-se de lado a procura de identidades “autênticas”, tradicionais ou afins, considerando-se que autêntico só pode ser aquilo que efectivamente se passa, ou aquilo que é sentido (acabando por ser também algo que acontece, ainda que só na imaginação ou nas opiniões pessoais). Eventualmente, o que é sentido pode não ser o mais expectável ou habitual, mas nem por isso perde, antes pelo contrário, o seu valor analítico e o seu estatuto de fenómeno observável. Neste caso, uma reconstrução da cultura, música e dança galega tradicional surge como parte essencial da identidade de jovens portugueses, eventualmente nunca tendo posto o pé na Galiza.
12Deste modo, no presente trabalho procura-se conceptualizar a identidade, individual ou colectiva, sem a encarar de forma essencialista, como uma espécie de verdade profunda, básica e única, inculcada bem no fundo dos indivíduos, pré-determinada à nascença e imutável, não obstante todas as vicissitudes que possam ocorrer na vida de uma pessoa.4 Por um lado, porque a maior parte dos meios que recebem o estatuto de essências identitárias, geralmente a raça, a religião ou a nacionalidade, são categorias elas próprias construídas reflexiva ou auto-reflexivamente, e como tal, produtos contextuais. Por outro lado, por muita importância que determinada pertença apresente, o indivíduo encontrar-se-á inevitavelmente inserido numa miríade de contextos que o influenciarão simultaneamente, e dos quais ele constitui um ponto de intersecção único. Finalmente, a identidade não é necessariamente produto de tradições ancestrais. Se estas têm a sua importância, tal como todo o tipo de constrangimentos sociais prévios, também existe uma margem para processos posteriores e uma possibilidade de manobra para o projecto individual. Entre outras coisas, a pertença à associação dos não galegos relaciona-se particularmente com a noção de projecto pessoal do self. Para além de indivíduos que frequentam a associação, incentivados pelo meio de origem, pela ideia de pertenças culturais básicas, ou pelo hábito enraizado no seu grupo familiar ou de sociabilidade, encontram-se jovens cuja participação numa associação deste tipo não poderia ser previamente imaginada, e que, como tal, se enquadra dentro de uma opção, tomada recentemente, como parte do seu, reflexivamente construído, estilo de vida, e da sua própria identidade reflexiva.5
13Uma hipótese inicial para a presença dos portugueses reenvia, única e simplesmente, para o factor acaso. Todavia, esta ideia, ao invés de permitir um descomprometimento explicativo, torna-se particularmente exemplificativa do conceito proposto de identidade. Analise-se por exemplo, o caso de um dos bailarinos, que, estudante universitário deslocado em Lisboa, partilha o apartamento com outra rapariga nas mesmas condições, que decidiu entrar para as aulas de dança. Ao convite desta última, o jovem decidiu vir experimentar, e a partir daí tornou-se membro assíduo. Não existia qualquer relação pré-estabelecida entre o jovem e a cultura galega, nem com a dança tradicional ou folclórica, mas, não obstante, gerou-se um sentimento de pertença entre este e a Xuventude, apesar de o próprio admitir que foi absolutamente por acaso que aí entrou. Ora, este facto dá azo a uma conclusão particularmente significativa sobre a identidade. Um dos factores mais significativos para o sucesso do movimento associativo é que as pessoas sentem necessidade de participar, de se integrarem no seio de movimentos, de praticarem actividades várias. Isto assume posteriormente aspectos muito importantes para a sua identidade, mas não é absolutamente necessário existir qualquer relação prévia com a actividade em causa, muitas vezes, é por acaso que é estabelecida a relação inicial entre uma pessoa e uma actividade ou um grupo de sociabilidade, mesmo que depois, em muitos casos, essa relação se intensifique, e passe a constituir parte integrante da identidade do indivíduo sendo por este transmitida aos demais elementos da sua rede de sociabilidade.
14Todavia, por vezes a participação em determinada associação ou actividade enquadra-se mais directamente num padrão pré-existente na vida dos grupos ou dos indivíduos. Isto pode acontecer dentro de parâmetros mais óbvios, como é o caso dos galegos. Todavia, também pode ocorrer dentro de outros contextos, como é o caso de diversos dos elementos portugueses da Xuventude.
15No decorrer do trabalho de campo, a surpresa em relação à composição dos membros da Xuventude foi seguida da descoberta de um determinado meio cultural, no qual se enquadram uma parte significativa dos associados, e que justifica, até certo ponto, a pertença a este tipo de associação. Este é um meio associado ao gosto e à prática de músicas e danças tradicionais, marcado pelos seus ícones e formas culturais próprias, e que encontra âncoras num conjunto localizável de espaços e eventos. Em primeiro lugar, em duas associações culturais, que promovem as actividades favoritas, a Fala-só, que assume um papel particularmente importante pela abertura do seu bar, local privilegiado para a criação de sociabilidades, de um modo marcado pelo sentimento de comunidade e de interreconhecimento, e a Pé de Xumbo, cuja principal distinção é a organização de festivais de música e dança tradicional, que constituíram portal de entrada para este meio para a maior parte dos elementos dos Anaquiños e que são um dos elementos mais caracterizadores do movimento cultural que se pretende descrever, por promoverem de forma particular as preferências culturais, em termos de dança e música.6).
16No que diz respeito a esta última, é de cariz tradicionalista, utilizando instrumentos habitualmente considerados como típicos. Não se trata, todavia, de música herdeira da tradição portuguesa, ou pelo menos, não só, nem particularmente. Trata-se antes de apreciar as músicas tradicionais de variadas culturas, principalmente as de origem europeia, espanholas, galegas, irlandesas e escocesas, mas também africanas, ou de outros pontos do mundo. Quanto à dança, que apresenta uma ainda maior relevância neste festivais, é também de cariz tradicionalista, juntando-se diversos tipos de danças, unidas sobre o epíteto de “danças europeias”. Tal como o termo “danças de salão”, o nome “danças europeias” é uma metonímia, em que sob o termo genérico que diz respeito ao todo (a totalidade das danças europeias) se agrupa um conjunto mais ou menos pré-definido e restrito de danças, reconstruídas e estilizadas, que são as que efectivamente são praticadas sob este epíteto. Estas danças europeias, praticadas nos vários espaços determinantes (Fala-só, festivais, workshops, etc.) constituem uma pedra-de-toque do meio que se pretende caracterizar, e são particularmente distintivas de processos identitários marcados pela procura de filões tradicionais de origens diversas, de uma forma ecuménica com alguma tendência para o sincretismo. Novamente, é a noção de reivindicação de um outro tempo, de um certo passado, que marca, mas desta feita sob moldes diversos, existindo uma prática simultânea de tradições de diversos países, com os quais não existe uma relação baseada na origem histórica.
17As danças galegas propriamente ditas não estariam inseridas neste conjunto, e não são ensinadas na maioria dos workshops de dança. Todavia, e tendo em conta a exiguidade do meio, existem diversos pontos de contacto. Como já foi referido, grande parte dos membros de origem portuguesa da Xuventude já se encontravam enquadrados neste meio cultural, e, foi assim que, através de um qualquer processo inicial, tomaram conhecimento da existência das danças galegas, que acabaram por ser enquadradas no movimento, como uma das danças europeias. Neste sentido, gera-se um processo invertido, em vez de uma pertença inicial conduzir à prática, é a prática de danças similares que conduz à descoberta da Galiza e à inserção no meio galego.
18Da união entre portugueses, residentes no seu país, mas membros de uma associação da Galiza, e de galegos, inseridos nessa mesma associação, mas imigrados em Portugal, nascem também complexos processos identitários em termos de identidade nacional. Por um lado, entre os galegos, encontram-se alguns dos clássicos dilemas do imigrante, nomeadamente no que diz respeito ao modo como se maneja as duas principais influências identitárias, provenientes das duas nações de referência, dualidade de referências que tanto pode criar um pouco a sensação de que não se pertence a parte alguma, como também pode servir para a constituição de uma identidade mais individual, por resultar da ligação pessoal de influências culturais e nacionais consideradas distintas.
19Por outro lado, para a maior parte dos portugueses, a ideia de uma identidade galega surge como imediatamente associada a um movimento regionalista, ou mesmo nacionalista, em que existiria uma divisão marcada em relação a Espanha, quer esta seja acompanhada de uma aproximação com o Norte de Portugal, quer não. Não se pretende negar a importância da pertença galega para grande parte dos seus habitantes, mas a verdade é que, para muitos dos membros da associação, a obsessão por não serem confundidos com espanhóis não parecia dominá-los. As cores, e a simbologia de Espanha encontram-se igualmente presentes na associação. A referência ao Instituto Espanhol é constante, e diversos elementos estudam nessa escola desde a infância, e se isto pode demonstrar uma especificidade marcada em relação a Portugal, por outro lado, abstém-se de marcar uma diferença em relação a Espanha, inclusivamente a nível linguístico.
20Esta identificação com Espanha, ou pelo menos esta falta de militância no afastamento em relação a Castela, é, pelo contrário, muito mal recebido pela parte de diversos membros do grupo, de origem portuguesa, principalmente entre os gaiteiros. Estes, pelo contrário, fazem questão de marcar um afastamento em relação a Castela, identificando sempre o nome das regiões como Galiza, Catalunha, etc., defendendo a independência das regiões, a sua especificidade linguística, e inclusive, segundo o testemunho de uma jovem galega, entrando em divergência, quando esta se afirma como espanhola, e se refere ao facto de estudar no Instituto Espanhol, coisas que para alguns elementos portugueses se revestem de um significado extremamente incorrecto.
21Se ao longo desta apresentação já ressaltaram de forma patente duas importantes dimensões para a construção identitária: a continuidade temporal, mais ou menos reformulada e (re) criada pelo próprio sujeito, e o projecto reflexivo do self, mais ou menos constrangido socialmente pelo campo de possibilidades dos indivíduos, há uma terceira dimensão que já tem estado latente e que é a da interacção, enquanto veículo privilegiado para a troca de experiências, valores e, por conseguinte, para a transmissão identitária.7
22Concretizando, é possível verificar-se a transmissão de informação entre a linha proveniente dos galegos, herdeira de conceitos, hábitos e preferências culturais próprias, e os elementos mais directamente enquadrados no movimento cultural de que se tem vindo a falar. No caso destes últimos, a cultura e a dança galega foram, como já foi referido, enquadrados dentro das suas práticas culturais, e neste sentido, adoptadas como parte do movimento. A sua execução no seio de uma associação de galegos, todavia, comporta uma relação ainda maior com a Galiza, através da absorção de alguns elementos particularmente distintivos, não existindo uma igual absorção da cultura de outros países de que também conhecem as danças, praticadas nos festivais e ateliers. Entre outras coisas, existe uma absorção da língua, utilizada nos ensaios, bem como de outros elementos da cultura galega, como as próprias roupas ou diversos termos específicos ao universo da dança galega. Por outro lado, começam também a ser frequentados extensões das actividades praticadas na associação, como é o caso dos workshops de danças galegas, e, muito particularmente dos cursos de dança efectuados na própria região. A relação com a terra galega começa, assim, a ser uma constante. Longe de surpreender, este facto acaba por se constituir como expectável, já que, ao penetrar num determinado meio, que é apreciado, inicia-se um processo de socialização no seu seio, comportando a absorção de diversos elementos, mercê da interacção entre os diferentes membros.
23Por outro lado, a mais recente enchente de jovens portugueses, introduziu igualmente um acréscimo de variabilidade no interior da Xuventude, patente em diversos acontecimentos, como por exemplo a frequência de concertos, espaços e bailes mais abrangentes do que especificamente os de origem galega.
24Por outro lado, se a inserção em contextos específicos influencia os indivíduos, estes não são completamente definidos por ela, não só em virtude de estarem simultaneamente inseridos em mais contextos, mas também devido à própria essência do conceito de interacção, que pressupõe reciprocidade. Deste modo se a pertença à Xuventude influencia os indivíduos, também esta associação é resultado dos contributos dos indivíduos que a compõem, das referências que estes trazem consigo e da interacção entre os dois principais vectores já referidos, como duas linhas identitárias, que no interior da associação se vão combinar numa rede identitária, que torna a Xuventude naquilo que ela é. Esta ideia de rede identitária pretende, assim, ser uma forma esquemática de dar conta da panóplia de influências que rodeiam uma determinada unidade em análise, contribuindo em conjunto para a construção dinâmica e multifacetada da sua identidade.
25A oscilação que é feita neste trabalho entre identidade individual e colectiva permite conceber cada indivíduo como um ponto de intersecção único de uma miríade de linhas que se cruzam. Uma herança significativa poderá vir-lhe da família — uma linha que desemboca nele. Mas esse indivíduo também tem uma profissão, poderá pertencer a uma associação, apreciar particularmente determinadas formas culturais, estar integrado em diversos grupos diferenciados de amigos; tudo linhas que o atravessam, que se cruzam a cada momento na sua vida, e que juntas constituem uma rede relativamente extensa, em torno do indivíduo, como influências díspares que transformam o indivíduo naquilo que ele é.
26Particularidade dessas redes identitárias, é o facto de a informação que contêm passar sempre nos dois sentidos. O indivíduo não é um sujeito passivo, que apenas recebe a informação. É levado, por um lado, a processá-la, a dar-lhe forma e sentido, superando as hipóteses de fragmentação, ao dar unidade pessoal ao conjunto. Noutras palavras, elabora o seu próprio percurso sobre as redes em que se encontra, escolhe-as, integra-as, abandona-as. Por outro lado, o próprio indivíduo é um emissor de informação, que reenvia para as próprias redes que o constituem, efectuando trocas. O que se passa no interior da Xuventude de Galícia acaba por ser um bom exemplo destes processos, resultando a identidade única desta associação da interacção entre os seus membros e entre os dois grandes vectores identitários que interagem no seu interior.
Bibliographie
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Notes de bas de page
1 O trabalho de campo foi realizado entre Fevereiro e Junho de 2001, pelo que os episódios apresentados se referem a aspectos da associação durante este ano, que como se verá, marcou um ponto de viragem.
2 Esta ideia parte do reconhecimento do movimento associativo como forma de sociabilidade, particularmente emblemática da forma como as pessoas se relacionam em condições de modernidade e no seio das grandes cidades. A compressão espacio-temporal, associada aos mecanismos de descontextualização (tal como concebidos por Anthony Giddens) pôs fim à hegemonia do local, e abriu caminho para a construção e manutenção de redes sociais para além da família, dos co-trabalhadores, e vizinhos, permitindo a criação de relações interpessoais compensadoras de uma forma dispersa no espaço, marcada pelo voluntarismo. Diversos autores influenciaram esta noção. Para além de Giddens (1996, 1997), há que destacar o trabalho de Claude Fischer (1982), ao destacar as diferentes formas que as relações sociais podem assumir. É neste quadro que surgem as associações, agrupamentos voluntários constituídos em torno de interesses comuns e que, devido a este seu papel, podem assumir-se como importante veículo identitário, sendo esta uma das questões que se pretendeu colocar logo de início.
3 A transmissão da memória e a noção de continuidade temporal surgem assim como uma importante dimensão para a construção da identidade. Numerosos trabalhos inserem-se neste âmbito, tendo constituído referências particularmente importantes para este estudo as obras de Halbswachs (1968), de Chris Wickham e James Fentress (1994), de Eric Hobsbawn e Terence Ranger (1984) e de Paul Connerton (1999). Anoção de continuidade associada à biografia do indivíduo, por seu turno, é baseada em trabalhos de Anthony Giddens (1997) e Gilberto Velho (1994 [1981]), sobre a noção de projecto de vida.
4 Para a conceptualização de identidade, diversos autores concorreram, destacando-se os trabalhos de António Firmino da Costa (1999), Gilberto Velho (1981, 1994), Anthony Giddens (1997) ou Amin Maalouf (1999).
5 O conceito de identidade reflexiva e de projecto pessoal do self baseiam-se nos trabalhos de Anthony Giddens (1997) e Gilberto Velho (1981, 1994) sobre o tema.
6 A Fala-só fica sedeada próxima do Bairro Alto, um dos bairros lisboetas mais famosos pela sua animação nocturna, e para além do bar, onde decorrem semanalmente concertos e bailes, promove diversos workshops, a Pé de Xumbo, para além dos festivais, apoia e organiza diversas actividades ligadas à dança, principalmente cursos e workshops, inclusivamente na sua Escola de Artes, em Évora, e tem ainda um site e uma mailing list de divulgação (http://www.pedexumbo.com)
7 A ideia dos quadros de interacção como dimensão analiticamente separável é sugerida por António Firmino da Costa (1999). O tipo de sociabilidades aqui consideradas são conceptualizadas em rede, tal como sugerido por Barry Wellman (1999).
Auteur
Socióloga; Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE).
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