II O calão e a língua dos ciganos
p. 71-146
Texte intégral
1Tem-se confundido muitas vezes a linguagem dos ciganos em geral com o calão. Sabemos já o que é a primeira; vejamos o que é o segundo e se entre uma e outro existem quaisquer relações.
2Calão, gira, gíria ou geringonça são os termos com que em português se designa o vocabulário especial dos criminosos de profissão, fadistas, contrabandistas, garotos e outra gente de hábitos duvidosos, que por aquele meio buscam não ser entendidos da sociedade geral. Por extensão dão-se ainda aqueles mesmos nomes à terminologia especial de uma classe, de uma profissão lícita, e sobretudo ao conjunto de termos particulares, muitas vezes de carácter cómico, que usam certos grupos sociais, como os estudantes, os actores, os pintores, os pedreiros, os tipógrafos, os soldados.
3O calão ou gíria não é um dialecto: tem palavras alteradas foneticamente, sem dúvida, mas por processos geralmente distintos dos que caracterizam a alteração fonética dialectal; não tem em regra nem morfologia nem sintaxe que o separem da língua geral em que por assim dizer se encrava. Uma outra diferença fundamental separa demais o calão dos dialetos; naquele as transformações próprias são geralmente queridas, intencionais; nestes as transformações são geralmente espontâneas, inintencionais.
4Há duas espécies de gíria: numa as alterações são puramente fonéticas – só a matéria da palavra se modifica; noutras acrescem às transformações dessa espécie, que então se tornam menos numerosas, modificações morfológicas e semânticas (de significação).
5Da primeira espécie é uma gíria usada entre nós pelas crianças nos colégios, que consiste em acrescentar a cada sílaba de uma palavra uma outra constituída por um g (g) ou p seguido da vogal daquela sílaba; assim tu queres ir a casa torna-se tu-pu qué-pé-rés-pés ir-pir a-pa cá-pá-za-pa.
6Os caixeiros da Baixa, em Lisboa, usavam e usam ainda provavelmente uma gíria do mesmo género, mas mais perfeita, que consistia numa inversão de consoantes: não quero ir passear hoje tornava-se ãon ’ reco ri sapear johe. Essa gíria era falada e entendida com muita facilidade pelos iniciados.
7Os principais processos das gírias do segundo género serão estudados abaixo. Essas gírias podem ser denominadas – de vocabulário particular.
8Tendo definido o que deve entender-se por calão ou gíria, examinemos agora a origem destas palavras.
9Os espanhóis denominam as mesmas linguagens artificiais com o termo germanía, e tinham o sinónimo antiquado gerigonza, giringonza, xeringonça ; os franceses com os termos jargon e argot; os italianos com os termos gergo e língua furbesca; os ingleses com o termo cant; os alemães com o termo Rothwelsh (à letra – italiano vermelho), os holandeses com a expressão bargoensch ou dieventael (à letra – língua de ladrões), os russos com o vocábulo afinskoe, os checos com a palavra hantyrka.
10O termo calão como sinónimo de gíria parece não ter correspondente fonético fora de Portugal; a sua etimologia é todavia muito transparente: calão, propriamente, quer dizer cigano, língua de cigano; é um termo com que os ciganos do nosso país ainda hoje se designam (Vid. Vocabulario, s. v.).
11A palavra gira, gíria liga-se, ao que parece, a gerigonça, giringonça, que como vimos se encontrava também em espanhol, ao francês jargon, provençal gergonz, e ao italiano gergo, gergone. A etimologia desses termos oferece bastantes dificuldades. A hipótese mais favorecida é a que considera o francês jargon como derivado de uma forma jergue, de *gergo, de *gargo, tema de que derivam fr. gargatte, port. garganta, gargalo. Efectivamente em antigo fr. dizia-se gargonner por jargonner, gargonn em antigo inglês1. A forma girigonça parece ter resultado de uma *girgonça, *gergonça, derivado de gergo (intercalação swarabactica de i) ; giringonça é uma forma em que a nasal do sufixo produziu a nasalisação do i precedente, fenómeno não raro (ex.: fanjões por feijões). A forma gira teria nascido de *girionça pela supressão do sufixo -onça.
12Os termos estrangeiros acima transcritos revelam já por si a existência de gírias nos principais países da Europa. Mas em verdade a existência de gíria, de uma ou de outra natureza, é um fenómeno por assim dizer universal e por toda a parte os processos aplicados são muito similares. Assim os tsiganos espalhados nos Pirinéus bascos, que adoptaram a língua do país, empregam a alteração com as sílabas principiando por p, como na gíria das nossas crenças e fazem, por exemplo, de jauna, senhor, jau-pau-na-pa2.
13Os theg (thugs) ou phânsîgâr da índia têm uma gíria em que se notam mudanças de significação, ao lado de modificações fonéticas e morfológicas; assim os numerais hindustânicos pânč cinco, čeh seis, sât sete, des dez, o persa jek um (= hind. ek); tornam-se nessa gíria respectivamente : paricúrú, serlú ou čerú, satúrú, desrú, jelú. Os theg adoptaram ainda palavras de línguas estranhas3.
14Ascoli repete de uma notícia de Klaproth, citada por Pott, o facto da existência de uma gíria dos salteadores circassios, chamada faršipé e cujo artifício consiste em introduzir ri ou fé depois de cada sílaba4. O mesmo eminente glottologo italiano extracta de uma memória de Richardson sobre os Bâzigar, gente nómada da índia, uma passagem relativa a duas gírias por eles empregadas, uma pelos chefes, a outra comum a homens, mulheres e crianças. «O hindustani é a base de ambas; a primeira resulta, em geral, da mera transposição ou inversão de sílabas, e a segunda é patentemente uma conversão sistemática de algumas poucas letras». Eis um especimen:
Hindustani | Bâzîgar I | Bâzigar II | |
ag | ga | kag | fogo |
15G. W. Leitner estudou a gíria dos ladrões dos países do noroeste da língua numa publicação para mim6. Francisque Michel fez referência a uma língua artificial asiática, o balaïbalan, que fôra objecto de investigações da parte de Silvestre de Sacy7.
As fontes do calão
16O calão ou gíria portuguesa, propriamente dita, pertence à segunda das espécies acima referidas, isto é, à das gírias de vocabulário próprio, que também podem chamar-se complexas, por apresentarem um conjunto de processos vários. Essa gíria tem sido muito pouco estudada, e a sua história anterior ao século XVII é, por assim dizer, inteiramente desconhecida.
17No século XVI Jorge Ferreira de Vasconcelos fez uma referência à germanía: «Quando eles querem falam Germanía ». Eufrosina, acto v, cena II. O mesmo autor empregou também a palavra geringonça, mas não no sentido de gíria: «os honrados são pobres, os ricos vilãos são roíns, concertai-me esta geringonça». Ibid., acto iii, cena II.
18No século xviii D. Jeronymo de Argote nas Regras de língua portuguesa (p. 300, 2.a ed. 1725) disse: «Também em Lisboa entre os homens, a que chamam de ganhar, há um género de Dialecto a que chamam Gíria, de que os tais usam algumas vezes entre si. E assim também os Siganos têm outra espécie de Gíria, por que se entendem uns com os outros».
19Uma investigação bastante extensa no teatro português dos séculos XVI e xvii não me deu elementos seguros para o estudo da história do calão. Outros talvez sejam mais felizes do que eu. Gil Vicente e J. Ferreira de Vasconcelos oferecem grande número de termos populares, mas não me atrevi a considerar nenhum como de calão.
20É numa obra do notável escritor do século XVII D. Francisco Manuel de Mello (falecido em 1666) que encontramos talvez os mais antigos termos indisputavelmente de gíria8, alguns dos quais são dados como tais por autores do século seguinte.
21Nessa obra acha-se a palavra gíria, como adjectivo, num sentido que parece ser – próprio da gíria: «Bem encaixava sobre as ordens aqui agora o bispar: que é palavra gíria a respeito do ver (p. 70)». Noutro lugar gírio significa astucioso: «Como vocês são gírios ! (p. 155) ». Nesse mesmo sentido ocorre a palavra noutros autores e na boca do povo, assim como substantivamente com a significação de astúcia. Gíria, como substantivo, significando forma particular de linguagem, vem numa passagem abaixo citada, s. v. calcorrear.
22Os termos de gíria contidos na Feira dos Anexins são os seguintes:
23arames, armas. «Pois parece bem um homem com os arames atravessados, mui direito (pag. 117). » Vid. infra Gíria do século xvIii.
24bispar, ver. Vid. acima.
25cachucho, anel de oiro. «Não me aponte com o dedo, já lho disse; bem sabemos que tem anel, e eu ca-chucho no dedo (p. 179)».
26calcorrear, correr. «Enquanto não recorrerem a pulhas, que é quem melhor os socorre, porque concorre com o resto de todos os equívocos jocosos, e em se lhes acabando, botam a correr a outra matéria, ou metáfora, e vão calcorreando com a gíria que trazem estudada (p. 95)».
27gabeo, chapéu. «Ele é anexirista de arromba; traz chapéu d’abalroar. Gírio equívoco de gabeo esteve aquele (p. 119)».
28lanterna, garrafa de vinho. «Da adega gosta você, que o vi este outro dia todo arrodelado com a lanterna feito Marcos, juiz da taverna (p. 117)». «... já o Joanico (que ainda não perdeu a confraria da camaldola) estará com as lanternas. Também você lhe resa pela conta benta? Nunca esse bêbedo me encheu as medidas (p. 176)».
29marabuto, marinheiro, homem do mar. «Antes é rapazio, e bom para marabutos (p. 117) ». Olhem os poias (tornaram os marabutos) com que nos apoiam ? (p. 205) ». « Basta serem do mar para não serem gente; e senão olhe: os homens do mar como se chamam ? Marabutos, que vale o mesmo que mar e brutos (p. 217)».
30monteira, como adjectivo, mas evidentemente em jogo de palavra com alusão a monteira, carapuça (vid. Gíria do século xviii) : « Também para Turquia se vai de barrete vermelho: mas ela em campo com chapéu de sol, vai mais a propósito para a sua beleza. Indo de monte a monte, a formosura monteira não lhe havia de estar mal (p. 118)».
31moscar-se, safar-se, ir-se embora. «Se lhe deu a mosca, vá-se moscando (p. 175)».
32moscovia? «Ao cheiro da moscovia ? (p. 176) ».
33rostir, mascar, comer. «Vossê tem trazido nela os equívocos de rastos. Isso, é i-los assim rostindo às marchadelas (p. 9)». «Tenha mão: você supunha, que sou bocado mal mastigado, que o atravesso? Que arenga é essa, que você vai rostindo ? (p. 88 : Em metáfora de comer).
34sorna, sono. «Metáfora de dormir, é boa para os sete dormentes. Quem duvida que havia de ser uma sorna ? (p. 100) ».
35A mais antiga lista de termos de calão conhecida é a que deu o padre D. Raphael Bluteau no seu Vocabulário português e latino (Coimbra, 1712- -1721, 8 vols. fol.) e no Suplemento à mesma obra (Lisboa Ocidental, 1727, 2 vols. fol.), respectivamente s. vv. gira e gíria ou gira. «Gira, diz o erudito theatino, que tomou em consideração a linguagem viva, e o mesmo, que a linguagem dos marotos».
36Fr. Luiz do Monte Carmelo, no seu Compêndio de Ortografia (Lisboa, 1767), pp. 613-614, reproduziu parte dos termos reunidos por Bluteau (os dados no corpo do Vocabulário) e juntou apenas uns quatro novos.
37A literatura do século XVIII parece dar também poucos elementos para a história do calão. São bem conhecidos dois romances de Alexandre António de Lima, publicados nos seus Rasgos metricos (Lisboa, 1742), em que se encontram muitas alterações populares de vocábulos, e algumas talvez apenas pretendidas populares e fabricadas simplesmente pelo autor, junto com uns 17 termos de calão, dos quais somente 4 não se encontram em Bluteau. A leitura de várias comédias do século XVIII ministrou-me apenas alguns termos de gíria, quase todos já conhecidos desses dois autores citados. Por exemplo, na Pequena peça intitulada o alfaiate e Adella ou o Careça e Carcunda na Praça (1792) e noutras da mesma época ocorrem os termos gimbo, dinheiro, e gebo, velho. A expressão china que é empregada na mesma peça no sentido de dinheiro (A mim china não me falta) era talvez do calão, e ginja velho (na mesma peça) saiu também talvez do calão.
38Nas Infirmidades da língua e arte que a ensina a emudecer para melhorar. Autor Sylvestre Silvério da Silveira e Silva. Invoca-se a protecção do glorioso Santo António de Lisboa, por Manuel Joseph de Paiva, Lisboa 1759, 4.°, há de pp. 104 a 153 uma colecção de palavras e frases da linguagem popular, que o autor condena, e entre as quais surgem alguns termos do calão, em parte reproduzidos, ao que parece, de A. António de Lima, como se conclui, por exemplo, da expressão cloris de cachimbo (meretriz), comum aos dois e que é provavelmente da fábrica de Lima9. Infelizmente Paiva não deu a significação dos termos e frases que coligiu, o que toma em grande parte inútil a sua lista. O termo china, já mencionado, ocorre também nessa lista na frase tem muita china.
39João Baptista da Silva Lopes, História do cativeiro dos presos d’estado na Torre de S. Julião da Barra de Lisboa (4 vols. Lisboa, 1833-34) deu uma lista de termos do calão ou algaravia dos malandros, colhidos por ele na prisão.
40Depois da publicação dos Mistérios de Paris, de Eug. Sue, e da sua tradução portuguesa publicada no Porto (1843-1846, 8 vols.), começaram a introduzir-se em romances, em que figuravam indivíduos das classes anti-sociais, termos de calão, verdadeiros ou fabricados pelos autores e tradutores. Já o tradutor dos Mistérios de Paris (o falecido dr. José Pereira Reis, facultativo distinto) dizia: «A linguagem dos nossos ladrões não é tão rica como a dos franceses; e por isso em alguns lugares teremos de aportuguesar certos vocábulos». As aportuguesações do dr. Pereira Reis e de outros tradutores foram repetidas posteriormente como produtos insuspeitos do calão, e o que é mais curioso é que pode admitir-se que alguns desses termos mal adaptados tenham entrado por fim no calão, por influência das traduções, sendo todavia difícil determinar ao certo quais eles são.
41No romance Fr. Paulo ou os doze mistérios (Lisboa 1844, 8.°, tomo I e único), colheu Francisque Michel os 38 termos ou frases do calão que inseriu a p. 441 dos seus Études de philologie comparée sur l’argot, e os quais devem ser considerados como genuínos.
42Alguns jornais têm publicado listas, geralmente muito curtas, de termos de calão. Extractei duas dessas listas publicadas uma no Jornal da Manhã, do Porto, aí por 1886, outra num periódico de Lisboa, mas infelizmente extraviou-se-me o extracto.
43Na revista do Minho, 1.°ano (1875, Barcelos), encontram-se os dois seguintes artigos que interessam ao nosso assunto:
44Candido A. Landolt. Vocabulário popular de alguns termos especiais usados pelos fadistas do Porto (pp. 54-55). Contém 53 termos dos quais lazeira, piúgas e versas são populares e não do calão.
45J. Leite de Vasconcelos. Gíria portuguesa (pp. 62-64). Reproduz a lista de Monte Carmelo, que supôs ser o colector de todos os termos, e dá 18 novos ouvidos aos garotos do Porto. De um filólogo, como é o autor, havia que esperar mais.
46A lista mais extensa, muito mais extensa que todas as anteriores, dos termos de calão acha-se no artigo seguinte:
47J. M. de Queiroz Velloso. A gíria (vocabulário, etimologia e história) in Revista de Portugal, Novembro de 1890 (pp. 153-183), Porto.
48Além de várias considerações gerais e de indicações sobre as fontes do calão, contém uma lista com 1337 artigos (contei-os rapidamente, mas não pode ter havido senão muito pequeno erro); todavia o número de termos distintos é menor, porque o autor, seguindo o exemplo, a meu ver, criticável de vários colectores de gírias, separa em artigos diversos as diferentes acepções de uma mesma palavra: é assim que o termo macaco tem quatro artigos, o termo pae três, ralé três. O autor serviu-se de Bluteau, A. António de Lima, Silva Lopes; examinou vários romances, traduzidos e originais, e outras fontes que não indica; mas a maior parte dos termos que publica foram coligidos da tradução viva ou directamente por ele ou por outras pessoas, o que dá à lista valor particular, sem contudo ser possível para nós a absoluta certeza de que não se tenham introduzido nela alguns produtos espúrios, apesar da crítica que o sr. Queiroz Velloso se esforçou por exercer sobre os materiais à sua disposição. Há outra ordem de termos que não por serem espúrios, de falsa gíria, mas sim por serem genuinamente populares, da linguagem geral do povo não deviam figurar, como figuram na lista. Tais são:
49Alapar-se, esconder-se, muito usado nas províncias, derivado aparentemente de lapa, mas muito mais provavelmente modificado por dimissilação de *alaparar-se (cf. pela forma coltar vb. por coaltarar, do s. coaltar, do inglês, e pelo sentido agachado, propriamente escondido, de cacha, fr. cacher, e acaçapado, acachapado, abaixado, encolhido como o caçapo na toca). Temos também a forma alapardado, com um d epentético, também de laparo.
50Alhada, comprometimento, etc. Vem já em Bluteau no sentido de embrulhada. É perfeitamente popular.
51Almiscarado, janota, como o antigo alfeninado, adj. e s., é termo familiar (um almiscarado).
52Asofisma é um arranjo popular de sofisma.
53Badejo, bacalhau, propriamente bacalhau vivo ou fresco, é termo perfeitamente geral, do esp. abadejo, de abbad, abbade, como bacallao, segundo D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos10.
54Baralha, tumulto, desordem, etc., é um velho termo, sempre vivo na boca do povo. Nos antigos documentos era principalmente usado na forma tautológica à volta e baralha : « Quem com alguém baralha e depois a baralha a sa cassa entrar e hy auudo conselho fuste pera firir peyte XXX.a soldos.» Foral de Santarém in Portugal, mon. hist. Leges, i, 408. Cp. Foral de Lisboa, pag. 413, Foral de Almada, p. 476, Foral de Aguiar, p. 714, Foral de Extremoz, p. 681. «Alcaldes ó iurados que a bolta ó baralla sobreueneren e uiren ferir ó mesar e lo uire alkalde ó iurado firme fasta en v morabitinos.» Costumes e foros de Castel-Rodrigo, ibid. p. 888. «Ningud ome que fugir de bolta ó de rebata tresquilenlo e pierda el quinon. » Costumes e foros de Castel-Melhor, ibid. p. 932. «Em aquelles dias crecia muyto o conto dos dicipulos, e levantouse muy gram volta e muy gram baralha antre os diciplos Judeus.» Actos dos Apóstolos (in Inéditos de Alcobaça) vi, 1.
55Encontramo-lo ainda nos provérbios coligidos por Bluteau:
Boca fechada,
Tira-me da baralha.
Não bulas baralhas velhas;
Não metas mãos entre pedras.
56Estilha, bocado, propriamente lasca, é popular.
57Falar d’otivo, falar sem saber de quê, propriamente falar do que não se conhece directamente, mas só por ouvir falar os outros, daí fallar à toa, é alteração de fallar d’outivo ou antes fallar d’outiva (outiva = auditiva); é popular e foi clássico na última forma, como pode ver-se dos exemplos reunidos por Moraes, Dicc.
58Maochas era simplesmente um velho plebeismo, conservado até ao século xviii, como se vê de A. António de Lima, e que anteriormente se encontra, por exemplo, no século XVI em Jorge Ferreira de Vasconcelos, Comédia Ulysippo, acto iii, cena vi : « Ai maochas, todo vós estais cortado».
59De modo nenhum podem ser considerados como termos de gíria os seguintes popularíssimos: pança, barriga; copasio, copo (grande), cimeiro, que está no cimo, e outros que figuram na lista referida.
60Sem dúvida há, nas gírias dos diversos países, velhos termos que pertenceram à língua geral, mas que esta abandonou (matelote, p. ex., na lista do sr. Queiroz Velloso parece estar nesse caso; a palavra significa marinheiro como o fr. matelot, de que provém, e foi empregada pelos escritores do século XVI no sentido de companheiro nas lides do mar: (quem não sabe que Diogo do Couto chamava a Luís de Camões seu matalote!); em muitas partes, como tem sido observado, os limites entre a linguagem popular e as gírias são indefinidos ; todavia isso não impede que a história e o uso actual das palavras nos permitam separar nitidamente em muitos casos o que é da linguagem popular geral e o que é das gírias.
61O sr. Queiroz Velloso introduziu com razão na sua lista os termos antiquados ou que tendem a sê-lo das listas de Bluteau e Silva Lopes e dos romances de A. A. de Lima, únicas fontes que cita anteriores a 1830; deveria ter notado todavia todos os termos que se acham nessas fontes, para assim apresentar no seu trabalho os poucos dados que possuímos para a história do calão. Igualmente teria feito bem o autor do trabalho a que me refiro dando indicações rápidas (por meio de abreviaturas) das fontes literárias que examinou, além das já indicadas. Apesar de todos esses reparos, deve-se reconhecer que ele prestou um apreciável serviço, que naturalmente será completado com a segunda parte prometida do seu trabalho.
62Da minha parte tinha eu já há anos formado uma lista de termos de gíria contemporânea, acrescentada depois e que continha 695 artigos. Tendo comparado essa lista com a do sr. Queiroz Velloso, eliminei dela tudo o que era comum e ficou assim um resíduo que abaixo publico. A maior parte desses termos que falam na colecção do referido escritor têm ainda emprego e não foram puros caprichos do momento, o que prova que o sr. Queiroz Velloso foi demasiado longe na seguinte asseveração: «É possível, é mesmo mais do que provável – sobretudo para o sul do país – que ainda existem outros termos de gíria, além dos aqui incluídos: nem nós temos a estulta pretensão de esgotar completamente o assunto. Poucos serão, no entanto, em absoluto: e destes, raríssimos os que passarem duma extravagância efémera da moda – que as tem também e consideráveis – o calão criminal ».
63Observarei que muitos dos termos da lista do sr. Queiroz Velloso como da minha, têm adquirido certa generalização na linguagem do povo, alguns até na literatura, fenómeno que se dá noutros países relativamente às gírias. As duas listas contêm também termos de gírias de classes não criminosas.
64Há pois que distinguir, o que muitas vezes é difícil: 1.° Termos antigos populares que se reduziram a termos de gíria (ex. matelote ); 2.° Termos primitivamente de gíria que se tomaram termos populares, familiares (ex. gajo); 3.° Termos populares gerais que, por serem empregados pelos que falam o calão, podem ser erroneamente considerados como próprios do calão (ex. baralha); 4.° Termos das diversas gírias.
65As fontes da minha lista são:
Uma lista manuscrita que me ministrou há anos o falecido escritor Leite Bastos; os termos aproveitados desta lista não levam nota particular.
Os termos da lista de Landolt (abreviatura Land.).
Os termos da lista de Leite de Vasconcelos (abreviatura Vasc.).
O romance Eduardo ou os mistérios do Limoeiro pelo padre João Candido de Carvalho (Lisboa, 1865-1866. 4 vols.) ; indicado pela abreviatura M. L.
A minha audição casual nas ruas de Lisboa e Porto; os termos colhidos por mim próprio levam a nota C.
66Da lista de Leite Bastos tive que excluir muitos termos de genuidade suspeita; mas é possível que algum me escapasse que devesse ser também riscado.
67O padre Carvalho (conhecido popularmente pela alcunha de padre Rabecão) colheu sem dúvida da tradição viva alguns termos, mas outros revelaram-me que não merecia sempre confiança. Assim encontrei nele, além de alguns termos repetidos da tradução dos Mistérios de Paris, a palavra ancia no sentido de égua, o que parece devido a um apontamento mal tomado, pois ancia significa, não égua, mas sim água (M. L., i, 139).
abancado, adj. Preso. C.
abuçar, v. a. Cercar,
abridor, s. m. Alçapão,
acanhotado, adj. Triste. C.
? acha-chumbada, s. f. Fósforo, aguaruça, s. f. Fim, extremidade; rol do esquecimento.
1. alar, v. n. Ir. C.
2. alar, v. n. Viver,
alcide, s. m. Pão.
alcilante, s. m. Relógio de senhora. Land.
algodão-em-rama, s. m. Pão alvo. C. Porto.
alho, adj. e s. Espertalhão. C.
alisar, v. a. Furtar.
altar, s. m. Mesa de jantar,
alumiada, s. f. Fogueira,
ambria, s. f. Fome.
amoinar, v. n. Pedir esmola. C. moinar. queiroz.
amostradora, s. f. Lanterna. – com
68antrolhos. Lanterna de furta fogo, aparar, v. a. Aceitar, receber. C. Tem também o sentido de – ser sodomita passivo.
aparelho, s. m. Mordaça. M. L., i., 134.
aparelhado, adj. Preso. M. L., I., 143. apertante, s. f. Corda.
ar, s. m. Falta d’ar. Falta de dinheiro. C.
aranhota, s. f. Sardinha. C.
archeiro, s. m. Homem ébrio. C. ? arifes, s. f. pl. Tesouras. C. drifes. queiroz.
armar, v. n. – à raposa. Evacuar. C. arrezinar-se, v. refl. Horrorizar-se. arrombada, s. f. Meretriz vilíssima. Porto.
asas, s. f. pl. Braços. C.
asca, s. f. Quizília, zanga,
69assentar, v. a. – à mesa. Denunciar,
70assoprar, v. a. Denunciar. C.
assorda, s. f. Bebedeira. C.
? atiçar, v. a. Picar (o cavalo).
? atrimar, v. a. Vender,
atroços, adv. Atrás,
az-de-copas Nádegas, podex.
badejo, s. m. Pudendum mulieris. C. (Bacalhau. Queiroz, Vasc. Vide p. 65).
badona, s. Cavalo.
bagata, s. f. Bruxaria. C.
baguines, s. m. Dinheiro. Estar a troços de – Estar sem real. C. bailharote, s. m. Feijão. C.
bailique, s. m. Quarto de prisão. M. L., i, 400. Presentemente significa tarimba. C.
balharote, s. m. Vid. bailharote. M. L., I., 129.
baldo, adj. – ao naipe. Que não tem vintém. C.
balsamo, s. m. Vinho,
balsar, v. n. Ladrar. fr. Paulo.
banano, s. m. Bofetada. C.
71bater, v. n. – certo. Estar de acordo,
72benzer, v. a. Pedir.
besugo, s. m. Pudendum mulieris. C. bicudo, s. m. Alfinete de peito,
bilontra, s. m. Maroto, biltre. C. bogalhão, s. m. Valentão. C.
bola, s. f. Melancia. Vasc.
bomba, s. f. Podex. C.
73borga, s. f. Pândega, orgia. Vasc. Passeio nocturno. Land.
borla, s. f. De –. Grátis. C.
bote, s. m. Podex. C.
botica, s. f. Cara. C.
brechar, v. n. Pagar a patente,
broi, broia, adj. Bom, boa. C.
bufo, s. m. Polícia secreta,
74buldra, s. f. Podex mulieris. Land. Cf. bundra, barriga. queiroz.
75busilhão, s. m. Tesouro, dinheirama. C.
76butes, s. m. pl. Botas. C. (Pés. queiroz.)
77cabeça, s. f. – de preto. Queijo. Vasc.
cabo, s. m. Quatro soldados e um –. A mão, os cinco dedos. Fazer quatro soldados e um –. Roubar. C. cachorros, s. m. pl. – de proa. Seios de mulher. C.
cachucho, s. m. Anel de oiro,
78caganefa, s. f. Espingarda. M. L., i, 142. Cf. cagarrufa. queiroz (de Silva Lopes.)
cagarrão, s. m. Prisão. C.
caído, adj. Que não tem real. C. cair, v. n. – no pau. Revelar um segredo. C.
caixilhos, s. m. pl. Olhos,
caldaça, s. f. Vinho,
caleço, s. m. Quartilho,
calmeirão, adj. Preguiçoso. C.
79calona, s. f. Mulher desprezível,
80cambão, s. m. Ir no –. Ir preso, camelote, s. m. Espólio,
cantar, v. n. Padecer, sofrer,
cápito, s. m. Capitão de ladrões, cara, s. f. Moeda de oiro do valor de 2$000 réis. C. Land.
81cardar, v. a. Furtar. M. L., i, 129. (Cf. cardenho, roubo. Queiroz).
82careta, s. f. Moeda de 500 réis. (Cf. carinha. Queiroz). C.
carocha, s. f. Ponta de cigarro.
carunfeiro, s. m. Fadista traidor, em que não há que fiar. C.
casca, s. f. Japona.
83catraio, s. m. Criança. Rapaz. (Cf. catraia, égua. Queiroz). C. Land.
84cavalinho, s. m. Libra esterlina (especialmente as que têm cunhado um cavalo). C. Land.
cavalo, s. m. Vid. cavalinho. C. chaleira, s. f. Podex. C.
85chalrear, v. a. Cantar. Cf. chalrador, falador. Queiroz. Vid. chelra,
86chalupas, s. f. pl. Botas. C.
chamborgas, s. m. O que quer passar por valentão ; fanfarrão.
Chão-grande, s. m. O Terreiro do Paço (praça de Lisboa).
chapar, v. a. Futuere. C.
87chato, adj. Que não tem vintém. C.
88chavelho, s. m. Copo.
chegadinha, s. f. Bofetada,
89cheira, adj. e s. 2 gen. Metediço, a.
90chelra, s. f. Palavra.
chibo, s. m. Alavanca.
91chimpar, s. a. – o olho. Bater de chapa.
92chinfrim, adj. Que tem pouco valor, que é de qualidade ordinária. C. Como s. m. em Queiroz.
chinoca, adj. f. Muito boa.
chifra, s. f. Podex.
93clisar, v. a. Ver. – à palma. Ver a jeito, à vontade. C.
cocar, v. a. Vid. cucar.
cochicho, s. m. Moeda de 50 réis, de prata. Chapéu de amolgar. Casa pequena. C.
coco, s. m. Copo. C.
cola, s. f. Fechadura,
colégio, s. m. Prisão, cadeia,
contado, s. m. Ano.
94cópádas, s. m. Ir às –. Ir ao café. Land.
coragem, s. f. Dinheiro. Sem –. Sem vintém. C.
cordante, s. f. Forca,
corrida, s. f. Mês.
corte, s. m. Roubo. Cf. cortar-se, furtar. queiroz. C.
cortesão, s. m. Chapéu fino,
corveta, s. f. Cachimbo.
coveiro, s. m. – altanado. Procurador régio.
95cozinha, s. f. Esquadra de polícia.
96cucar, v. a. Ver. C.
culatra, s. f. Podex.
97culatrona, s. f. Meretriz vilíssima. C.
98cunha, s. m. Empregado que verifica passaportes.
99darona, s. f. Mãe. – lá de cima. Mãe de Deus.
derrubador, s. m. Faca.
descarregar, v. a. – o madeiramento. Andar ligeiro.
desconfiar, v. n. Ir-se embora.
? deza, s. f. Moeda.
dia, s. m. Fazer –. Andar toda a noite em folgança. C.
doente, adj. Comprometido.
dor, s. m. Ciúme. Familiarmente a expressão dor de cotovelo tem o mesmo sentido. C.
dorminhoco, s. m. Ópio,
doutora, s. f. Cabeça,
embeiçar, v. a. Atracar. C.
empandeirado, adj. Preso. C. Cp. empandeirar, matar, assassinar. queiroz.
100encabrestar, v. n. Apresentar a ceia,
101encaixotar, v. a. Enterrar,
encalhar, v. n. Parar; entrar,
encanar, v. n. Mandriar, preguiçar. entrames, s. m. Entrada. C.
envergadura, s. f. Vestuário,
envergar-se, v. refl. Vestir-se.
escarnhida, s. f. Excremento. C. escovadinho, s. m. Chapéu,
esfolado, adj. Zangado,
esganador, s. m. Gravata,
esganar, v. a. Esconder.
102espantar-se, v. refl. Zangar-se. C.
103espinheira, s. f. Mata, bosque,
esquilha, s. f. Sardinha,
esteira, s. f. Estrada.
Fabiano, s. m. Nome valendo como fulano que se dão os fadistas para não empregarem o nome verdadeiro. Land.
faia, s. m. Fadista. C.
faiante, s. m. Fadista. C.
falso, s. m. Buraco da fechadura. farar, v. a. Apanhar.
faxar, v. a. Abrir.
ferramental, s. m. Ferros para arrombamento.
ferro, s. m. Dinheiro.
fila, s. m. Oficial de justiça. C. Op. filante, agente de polícia, guarda civil. queiroz. Uma quadra do tempo da guerra liberal alusiva a um certo meirinho de Coimbra dizia:
Morreu Custodio, Meirinho fino,
Filante mór,
Desde menino.
filé, s. m. Palpite; esperança num ganho. C.
fina, s. f. Astucia.
finfar, v. a. Aplicar, dar. Bater. Futuere. C.
fofa, s. f. Mentira.
forty-two, num. Quarenta e dois. C. francisquinho, s. m. Copo de vinho. M. L., i, 6.
fundo, s. m. Prisão. Cp. fundo, soldado, sentinela. queiroz.
funeral, s. m. Elogio,
fungágá, s. m. Filarmónica. C.
furacão, s. m. Morte d’homem.
104gabinardo, s. m. Gabão. Capote. C.
105gadachim, s. m. Unha. M. L., i, 129.
106gaio, s. m. Cavalo,
107galdrana, s. f. Meretriz vilíssima,
108galdrapinha, s. f. Meretriz.
gadropar, v. n. – da corda. Comer da ceia d’outrem.
gandaiar, v. n. Vadiar. Diz-se também no mesmo sentido andar à gandaia. C. Vid. infra, na Gíria do século xviii, p. 81.
gandaieiro, s. m. O que anda à gandaia.
gando, s. m. Piolho. Cp. gao. Bluteau. ganau. Vasc. queiroz.
ganfar, v. a. Vender.
gangarina, s. f. Igreja. Cp. cangarina. Silva Lopes.
109garganta, s. f. Garrafa. M. L. i, 136. Cp. gargantosa, garrafa. queiroz.
110garnela, s. f. À –. À vontade,
garula, s. f. Perua.
111gateira, s. f. Bebedeira. Vid. gata. Queiroz.
112gauderio, s. m. Vadio. Patusco. Malandro.
113gaudinar, v. n. Andar na pândega, à boa vida, folgar. C.
114gelfa, s. f. Velha. Cp. gelfo (=belfo), cão. queiroz.
115gesso, s. m. Vinho. Vasc. Já nas cortes de Almeirim de 1544 foi proibido deitar gesso no vinho. Dessa falsificação vem a significação da palavra.
gimbolinha, s. f. Aguardente,
gingão, s. m. Coxo. C.
giraldinha, s. f. Patuscada,
giribato, s. m. Vinho. Land.
giripití, s. m. Aguardente. C. geripipi, cacharolete : bebida composta de diferentes licores. Queiroz. girote, s. m. Vadio. C.
grané, s. m. Cavalo, grane, grani. queiroz.
grão, s. m. Arroz. Vasc.
gregorio, s. m. Pénis. C.
grelha, s. f. Peru.
116griso, s. m. Frio, gris, Bluteau.
117grossa-casca, s. f. Caixa de prata,
118grosso, s. m. Bêbado. C.
grossura, s. f. Bebedeira,
119grudar, v. n. Convir. Adaptar-se, acomodar-se. Estar de acordo. C.
grulha, s. m. Porco. Nos M. L., i, 135, peru. Em Queiroz, com outras significações.
güelar, v. n. Gritar, palrar,
120guesso, adj. Caricato, desajeitado. C.
121guibo, s. m. Artelho,
horar, v. n. Fazer horas. C.
ilhoz, s. m. Podex. C.
inglez, s. m. Percevejo. C.
irmo, s. m. Irmão. C.
kioske, s. m. Podex. C.
labita, s. f. Casaca.
lamira, s. f. Libra. Vasc. Cf. lamiro. queiroz.
lanterna, s. f. Sapato. Garrafa de vinho.
largar, v. n. Mentir,
larias, s. f. Laranja. Vasc.
lascar, v. n. Evacuar. C.
latingar, v. a. Comer,
122lavado, s. m. Quartilho de vinho,
123linguado, s. m. Letra comercial. C.
124liré, s. m. Vinho.
lirias, s. f. Vid. larias. Vasc.
125livraria, s. f. Repertório grande de cantigas.
lixar-se, v. Futuere.
lofo, adj. Pateta,
126lostra, s. f. Escarro. Bofetada. C.
127lupa, s. f. Cantar a –. Vomitar.
luzente, s. m. Pedra preciosa.
luzida, s. f. Festa.
lyra, s. f. Guitarra. Land.
128macote, s. m. Sacola. M. L., i, 143. Cf. maco. queiroz.
129maçote, s. m. Podex hominis. Land.
130madrinha, s. f. Testemunha,
maduro, adj. Tolo, demente. C.
magal, s. m. Soldado.
major, s. m. Pae. Ir para o –. Não prestar, não servir.
malafaia, s. m. Significação análoga
131à de melcatrefe.
132malva, s. f. Chapéu (de amolgar).
133Mandamentos, s. m. pl. Dez –. Os dedos da mão. C.
134mandigula, s. f. Bebida narcótica.
135mandil, adj. Preguiçoso.
mangalhado, adj. Preguiçoso,
mangalho, s. m. Pénis.
maquineta, s. f. Cabeça. Ter macacos na –. Ter mania, loucura.
136marinheiro, s. m. O que traz dinheiro consigo e diz que não o tem. Land.
137marosca, s. f. Ardil, logro.
138marrão, adj. Apanhado, descoberto (num crime).
marreta, s. f. Sapato.
139martelinho, s. m. Copo de meio quartilho. Pénis. C.
140? martyrios, s. m. pl. Ferramentas,
141mascovia, s. f. Casaca. Vid. macovia. queiroz.
masquir, v. a. Mastigar. Land.
142mata, s. f. Lugar onde se vende fato velho.
matar, v. a. Prender.
meio-bordo, s. m. Facada,
143melcatrefe, s. m. Sujeito de profissão duvidosa. Termo vago de desprezo com que se designa um rapaz, um homem.
menesa, s. f. Concubina. Land Cf. manesa, mulher. queiroz Menesa, abadessa. Id.
miar, v. n. Gritar,
midea, s. f. Cabeça.
144milhafre, s. m. Mil réis. «Consultei a pera e achei só um milhafre» abri a bolsa e achei só mil reis,
145mimoso, s. m. Chapéu fino.
minhocas, s. f. pl. Sopa de macarrão. Land.
mistico, adj. Acordado. M. L., i, 134. Homem alto.
mitra, s. Na gíria dos pedreiros, coelho. Vasc. A evolução da linguagem, p. 53.
moca, s. f. Tolice. Traição.
mocar, v. a. Enganar. Trair.
146moco, s. m. Tolo, pedaço de asno.
147mofo, s. m. De –. Grátis. C.
148moina, s. f. Andar à –. Andar a pedir esmola. Vid. amoinar. C.
moleque, s. m. Bofetão. C.
149moncoso, s. m. Lenço de assoar, money (pron. móní), s. m. Dinheiro, monte, s. m. – de pedras. Edifício da prisão.
monteira, s. f. Prisão,
morder, v. a. Fazer mal a.
moscardo, s. m. Bofetão. C.
150moscar-se, v. refl. Fugir com roubo. C.
mosco, s. m. Roubo. C.
mosqueiro, s. m. Casa.
151moxingueiro, s. m. Juiz da prisão. M. L., i, 40, etc.
nadar, v. n. Justificar-se.
narro, s. m. Gato.
nasio, s. m. Nariz. C.
nicar, v. n. Futuere. C.
nicola, s. f. Acção de nicar. C.
noscar, v. a. Quebrar.
noz, s. f. Cabeça.
152oficial, s. m. – de boca aberta. Cantor,
153olho, s. m. Na gíria dos pedreiros, tostão. Vasc. A evolução da linguagem, p. 53. – de boi. Cruzado novo.
padrinho, s. m. Testemunha,
paiol, s. m. Estômago. C.
154palito, s. m. Punhal. Land. (Cigarro. Queiroz), pl. Pontas de boi.
pândego, s. m. – nocturno. Guarda nocturno, sereno.
155panela, s. f. Carruagem. Podex. C.
156pantufo, adj. Gordo. C.
parelhar, v. a. Divertir.
pardal, s. m. Espião policial,
157parrameiro, s. m. Pudendum mulieris.
parrançar, v. n. Mandriar. C.
158patrona, s. f. Pundendum mulieris.
159patao, s. m. Tolo. Asno. Nos dicionários como popular.
patrajona, s. f. Meretriz de soldados, que segue num regimento de terra em terra. C.
patrazana, s. m. Soldado da guarda municipal. Vasc.
160Patuno, s. m. Pudendum mulieris.
161péga, s. f. Verdade.
162peixe-na-costa, s. m. Gente suspeita.
163peneira, s. f. Fome (Lisboa). C. Sede (Porto).
164pente, s. m. Amasia. Meretriz. C.
165pevide, s. m. Podex.
166philarmónica, s. f. A polícia apitando. C.
piegas, s. m. Pénis. C.
167pílula, s. f. Cama. Cp. piltra. queiroz.
pinto, s. m. Criança. C.
pirata, s. m. Cabo de polícia. C. pire, s. m. Prato. Vasc.
pitada, s. f. Prostituta. Land.
placa, s. f. Moeda de prata de 500 réis. (Moeda de prata de 240 réis. Queiroz).
ponis, s. f. Mulher,
presunto, s. m. Pessoa morta. Land. quebrado, s. m. Copinho,
queijo, s. m. Negócio.
querer, v. a. – meça. Pôr dúvida, quilhar, v. n. Futuere. C.
quinhames, s. m. Sapato grosso. Pé. C. Cp. canhantes, botas. Silva Lopes.
quinta, s. f. Enfermaria de meretrizes.
rabão, s. m. Diabo.
168ralé, s. f. Génio, índole. Pouco diferente do uso comum da palavra.
169rapiaça, s. f. Patuscada.
ratoeira, s. f. Casa onde se reúnem ladrões.
refeita, s. f. Ceia.
regulado, s. m. Relógio,
remédio, s. m. Explicação,
reminicar, v. n. Queixar-se.
replicar, v. n. Voltar.
respo, s. m. Excremento humano. C.
risca, s. f. Desordem. C.
riscar, v. n. Manobrar com a navalha antes de dar a facada. C.
roca, s. f. Bengala.
roçar-se, s. f. Anel,
rodilha, s. f. Gravata. C.
roedura, s. f. Pesar, tristeza. C.
rola, s. f. Caldo. Criada de servir chegada da província.
rolha, s. f. Juízo, bom senso,
ruiva, s. f. Polícia.
rustideira, s. f. Acção de comer. Coisa que se come.
saltante-picado, s. m. Dado chumbado.
samatra, s. f. Pénis. (Bebedeira. Queiroz).
sarambia, s. f. Masturbação,
sebastião, s. m. Tolo. C.
sem-luzios, adj. Cego,
servido, adj. Preso. C.
servir, v. a. Espancar. C.
sinhama, s. f. Senhora. Cf. sinhá. queiroz.
170sobremoscovia, s. f. Sobrecasaca. Cf. sobre-macovia. Silva Lopes.
171soldados, s. m. pl. Vid. cabo.
sona, adj. Preguiçoso.
sondar, v. n. Morrer,
sondeque, s. m. Bofetada. C.
sonhar, v. n. – com o pai. Embriagar-se.
sorna, s. f. Cama,
172sovelão, s. m. Avaro, poupado. C.
173subideira, s. f. Escada.
sulipa, s. f. Jogo de alçapé.
tacho, s. m. Cara. C.
tapor, s. f. Na gíria dos pedreiros, porta. Vasc. A evolução da linguagem, p. 53.
tardós, s. m. Podex.
tefe, s. m. Podex. Pudendum mulieris. C.
temposa, s. f. Caixa. M. L., i, 135. Vid. tamposa, Queiroz.
tento, s. m. Bofetada.
teuéne, pron. pess. Na gíria dos pedreiros, teu. Vasc. A evolução da linguagem, p. 53.
tocador, s. m. Bebedor.
tocar, v. a. – trombeta ou simplesm. tocar, beber.
todas, s. f. pl. Umas –. Uma bofetada. C.
torcida, s. f. – grossa. Pechincha. M. L., i, 120.
tosse, s. f. Fome, C. Falta de dinheiro. Land.
traidor, s. m. Sapato.
triques, adj. Todo – á beirinha. Todo liró. C. (Todo triques à marinha. Queiroz).
tronco, s. m. Homem.
uga, s. f. Fazer –. Continuar. M. L., I, 135.
ugar, v. n. Gritar, dar alarme,
174um-sete, s. m. Navalhada. Land. vegete, s. m. Amante velho. C. Este termo é muito usado no teatro.
175verde, s. m. Frio.
verónica, s. f. Cara. C.
176xarifa, s. f. Pudendum mulieris. C.
177zachael, s. m. Burro.
178zarear, v. n. – a mona. Zangar-se.
179zona, s. f. Noite.
180zouca, s. f. Na gíria dos pedreiros, coisa. Vasc. A evolução da linguagem, p. 53.
zuncho, adj. Que está d’acordo. C.
181Tem sido notado noutros países que, apesar das modificações que as gírias experimentam, às vezes num curto espaço de tempo no seu material de termos e ainda nalguns processos secundários, há nelas uma unidade fundamental que não se perde, um certo fundo de termos e de processos que escapa a todas as inovações. Aqui, como em toda a linguagem, observa-se o que nota Horácio:
Multa renascentur quae iam cecidere, cadentque Quae nunc sunt in honore vocabula, si volet usus.
182A comparação das duas listas seguintes, uma de termos do século xviii, a outra de termos em uso no calão na época da guerra constitucional (Silva Lopes) com a minha lista e a do sr. Queiroz Velloso mostra a persistência de boa parte desses termos. É possível até que alguns termos indicados como antiquados persistam ainda nas gírias provinciais.
Gíria do século XVIII
183Os termos colhidos por Bluteau não levam indicação de fonte; os de Monte Carmelo vão indicados pela abreviatura M. C.; os de A. A. de Lima com o apelido Lima, os das Infermidades da língua com o apelido do autor, Paiva. A significação atribuída aos últimos é conjectural.
alfarreca, Cabeleira.
altenado, Amo.
alvada, Carapuça.
arame, Espada, adaga. Usa-se ainda no sentido de – navalha.
artife, Pão.
asca, Quizília. Zanga. Paiva. É antes um termo popular.
avesar, avesar-se, Estar presente. Antiquado.
bagulho, Dinheiro. paiva. Estão em uso as formas bago e bagalhoça, no mesmo sentido.
banza, Guitarra. paiva.
bastos, Dedos.
184bayuca, Taverna. Termo popular.
185bayuqueiro, Taverneiro. Termo popular.
186basaruco, Moeda de cobre ou bronze? Paiva. Usado no sentido de – pataco.
187beque (dar ao –), Falar ? paiva. Beque significaria aqui boca, como hoje significa nariz; cf. argot fr. bec, boca.
188bico, s. m. Bebedeira. Fazer o bico ao faxo, embebedar-se. Vid. a passagem citada s. v. faxo.
bola, Cabeça.
189bolonio, Simples, pobrete. É antes um termo popular, ainda vivo, cachimbos, Pés. Antiquado,
cachucho, Anel de oiro. paiva.
calcorrear, Correr.
calcos, Sapatos.
calmar, Dar (bater, espancar). Antiquado.
cascunhar, Ver. Antiquado,
casebre, Casa. É propriamente termo popular, empregado ainda hoje no sentido de casa pequena e velha.
catropéo, Cavalo. É mais usada hoje a forma catrapós.
chelpa, s. f. Dinheiro11,
cheta, Vintém.
china, Dinheiro. paiva. Antiquado12. cosque morrosque ? paiva. Cosque no calão moderno é casa.
cria, Carne de vaca. Antiquado, criar, Ter alguma coisa. Antiquado. – minas de caroço, ter ou possuir muito. Minas de caroço usa-se ainda no sentido de fortuna, riqueza.
crivantes, Dentes,
190dez-bofas, Dez réis. Antiquado,
191encanhas, Meias. Antiquado?
entrujir, Entender. Antiquado,
espigas, Bigodes.
estardato, Estoque. Antiquado,
falso, Lenço. Antiquado,
fanfar, Falar? paiva.
faxo, Pau. Antiquado. No sentido de cara, num escrito jocoso, (hoje faxa no mesmo sentido). Vid. bico13.
fumélio, Tabaco para fumar. Lima. Antiquado.
gabio, Chapéu. Antiquado,
gabrinaldo, Gabinardo, gabão. paiva Usa-se a forma gabinardo.
192gadanhos, Dedos, mãos. paiva.
193galfarro, Vadio. Beleguim? paiva. O termo galfarro é dado por Bluteau como chulo no sentido de gigantão, soberbo, valente.
galga, Fome. M. C. Antiquado,
galradeira, Língua,
galrar, Falar.
gâmbias, Pernas.
ganchorra, Mão. Antiquado?
gandaia (andar á – ), Vadiar, viver ao Deus dará. Em Lisboa andar á gandaia é propriamente revolver os lodos do Tejo na baixa-mar para apanhar algum objecto aproveitável que por lá haja. paiva Vid. gandaeiro.
gandaeiro, s. m. O que anda à gandaia14.
ganiços, Dados. Antiquado.
gao, Piolho. Usam-se as formas ganau, gando.
garrocha, Unha, mão. Antiquado, gateira, Bebedeira. Paiva.
gaudiperio, s. m. Injúria que se faz tendo relações amorosas com a mulher ou amante de outrem15. geba, Mãe velha.
gebo, Velho. Em várias comédias16. gimbo, Dinheiro. Lima. Antiquado17, gisar, Furtar. M. C. Antiquado,
golpe, Algibeira.
grão, Cruzado novo.
gris, Frio. Parece estar ainda em uso a forma griso.
janisaro, Tunante, maganão. M. C. (Bluteau escreve ganisaro.) Antiquado.
jorna, Vagar. Antiquado.
jornando, Estou –, Não quero sair. Bluteau. M. C. Antiquado.
justa, Casaca. Usa-se no sentido de jaqueta.
lancho, Penedo. Antiquado.
lima, Camisa. Usa-se a forma limosa no mesmo sentido.
lostra, Bofetada. paiva.
luzios, Olhos. Lima.
marca, Puta. Antiquado,
marco, Homem. Antiquado,
marimbar, v. n. Os dicionários trazem este termo no sentido chulo de enganar, lograr. Coligi algumas passagens em que equivale a – rir-se de, não fazer caso de18.
194meco, s. m. Homem, espertalhão, finório, libertino, etc.19 Vid. p. 100-101.
195monteira, Carapuça. Antiquado?
196moquideira, Boca.
nantesnem, Parece ser idêntica no sentido a niente. Antiquado.
197niente, Não sabes (sic). Usa-se a forma nente, não, nada.
198pilra, Cama. Usam-se as formas peltra e piltra, no mesmo sentido.
199pio, Vinho.
purrio, Bêbado. Usa-se no sentido de reles, vil.
rafa, Fome. Antiquado?
200rafar, Sumir. Furtar. M. C. Antiquado,
201rata, Fome. Usa-se a expressão ter um rato no estômago, na barriga, no sentido de ter fome.
raso, Frade.
rede, Capa. Usa-se no sentido de roupa.
rifar, Furtar. M. C.
roda, Tostão.
rustir, Comer.
sonar, Dormir.
soquir, suquir, Comer,
sorna, Cama ? Preguiça ? paiva.
sornar, Dormir? paiva.
tardar, Vestido de mulher. Antiquado.
terne, Costas. Antiquado.
Terragosa, Lisboa. Antiquado,
tirantes, Calções.
ugar, Andar, continuar? paiva Vid. p. 86 uga, continuar.
unhante, s. 2 gen. O, a que deita a unha às coisas, rouba20,
verónica, Rosto. paiva.
vinorica (= verónica), Rosto. Lima. vulto, Corpo. Lima. Ant.
Calão do primeiro terço do século XIX
202José Daniel Rodrigues Costa, na Câmara óptica, folheto III (Lisboa, 1807) traz uma lista de termos que pretende terem sido então introduzidos na linguagem dos tafues : pizorga, embriaguez, bebedeira; pechincha, lucro, ganho; cuquenha, acerto, felicidade; chalaça, zombaria, escárnio; moafa, perturbação de sentidos, impertinência; embofea, logro, altivez; caurim, logro, calote; grifaria, exótico (sic), ridicularia; pimpão, valente, destemido; maluco, tonto, doido; pitéu, quinhão, interesse; petisco, ninharia, bocadinho; matuto, teimoso, parvo; vispere, desaparecer, fugir, (diz-se propriamente : fazer vispere) ; pinto, cruzado novo; caçoquim, meio tostão ; grazinador, loquaz; espelunca, ganho de jogo; embaçar, engano, trama (sic).
203Alguns desses termos não eram por certo novos; outros saíram talvez da gíria, como pizorga, cuquenha, caurim, pinto (cp. ganso, cruzado novo).
204Cuquenha é provavelmente o mesmo que cucanha, do fr. cocagne : pays de cocagne, pays imaginaire où tout abonde, où l’on trouve tout à souhait. Littré.
205Caurim vem de cauri, nome das conchas que na costa de África servem de moeda. A palavra parece ter tomado o sentido de moeda falsa; daí impingir um caurim, passar uma moeda falsa, e, por extensão, pregar um logro.
Calão ou algarvia dos malandros21.
ádica, ao pé.
afiançar, pegar.
amarra, cadeia de relógio.
206amarra de lodo, cordão de oiro,
207altanado, juiz.
ardose, aguardente.
archote, quartilho de vinho,
208archote, meio quartilho de vinho,
209artão, pão.
avela, tem.
avesa, tem.
avoador, pombo.
balda, algibeira de mulher.
baquesim, bolsa.
barra, garrafa de vinho,
barraca, chapéu de sol.
batas, mãos,
berrar, denunciar.
belfo, cão.
bocanhim, clavina,
bocanhim, trabuco,
boia, toucinho.
botelha, garrafa.
bramar, queixar.
cabra, denunciante,
210cagarrufa, espingarda,
211calcantes, sapatos,
calcos, sapatos,
canhantes, botins,
cantante, galo,
cangarina, igreja,
cheta, vintém.
chona, noite.
clizes, olhos.
cornante, boi.
cuelle, casa.
dilúvio, caldo.
212entrujão, comprador de roubos.
213entrujar, perceber.
espaldar, lençol.
espinha, punhal.
escamar, sentir.
escamou-se, sentiu.
estarim, cadeia.
faca, cinta.
falhas, cartas de jogar.
farpela, manta.
fêmea, fechadura.
214filho do golpe, ladrão de lenços.
215foi feito, foi roubado.
216fundanários, soldados da polícia.
217fundos, soldados.
fusca, justiça.
gadé, dinheiro.
gage, mulher.
gajo, homem.
gamar, furtar com subtileza.
gansos, cruzados novos,
ganau, piolho.
geba, velha.
gebo, velho.
gomarra, galinha.
golpe, bolso.
grane, cavalo.
grani, égua.
grego, peru.
grilo, relógio.
guines, cinco réis.
ir na pireza, safar-se.
justo, colete.
laia, prata.
laivo, lenço.
legante, pistola.
lepes, dez réis.
lodo, oiro.
lúmia, meretriz.
macanjo, falso.
maco, saco.
macovia, casaca.
magano, relógio.
malandro, ladrão de casas,
mão, chave.
maquino, ladrão de estrada.
maração, morte.
Matta, Lisboa.
maxa, fechadura.
medunha, dedos,
menina, chave.
mimosa, camisa.
misto, bom.
nentes, não.
nuvem, capote.
pai, capitão de ladrões.
paivo, cigarro.
parné, dinheiro.
pasma, sentinela,
penante, chapéu.
penduras de uvas ferrais, lâmpadas de prata.
piar, beber.
pirar, fugir.
ratanhí, gazua.
respalde, lençol.
roda, tostão.
ruço, burro.
safo, lenço.
sarda, faca.
senhor, dono de alguma coisa,
serralhas, peças de 7$500.
sobre-macovia, sobre-casaca.
sornar, dormir.
tamposa, caixa.
tinente, esperto.
tralha, capote.
troses, calças.
uga, continuar (sic).
ventana, janela.
xelro, galé (prisão).
218Junto o seguinte exercício do piolho, colhido da tradição, mas conhecido nessa forma no tempo a que remonta a lista supra: «Meter a beta (mão); – tirar o gao (piolho); – levar às entaladeiras (os polegares apertados pelo lado das unhas); – às competentes cuspideiras (cuspir-lhe); – limpar aos tirantes (calças); – dar passagem aos que ficam».
219À identidade dos elementos fundamentais do calão no tempo, junta-se a sua identidade no espaço: assim a maioria dos termos do calão do norte de Portugal encontram-se ao sul. O mesmo facto repete-se com as diversas gírias nos outros países. «Tandis que chaque région de l’Italie, diz Lombroso, e un dialecte propre, et qu’il serait impossible à un calabrais de comprendre un lombard, les voleurs de Calabre ont le même lexique que ceux de Lombardie. Dans les deux pays, on appelle chiaro le vin, arton le pain, lensa l’eau, crea la viande. L’argot de Marseille n’est pas autre que celui de Paris22».
Calão dos contrabandistas de Albergaria-a-Velha
220Para confirmar essa observação darei Uma lista, infelizmente muito curta, de termos usados numa gíria de gente de Albergaria-a-Velha, distrito de Aveiro, a qual negoceia em cavalgaduras, faz contrabando, e tem contrato com ciganos, sendo até conhecida pela denominação imprópria de ciganos. Devo o conhecimento desses termos aos srs. coronel Brito Rebello e médico Lemos (de Alquerubim). A maior parte de tais termos é-nos conhecida de outros pontos do país (especialmente de Lisboa e Porto); alguns que parecem especiais ao calão de Albergaria devem ter tido maior extensão no uso: só assim se explica como piovês (do argot francês pivois), stockfish (do inglês, em que a palavra significa bacalhau seco) chegaram até essa gente de Albergaria. A lista faz crer que o estudo das gírias semelhantes das nossas províncias teria muito interesse.
arames, s. m. pl. Esporas,
artife, s. m. Pão.
befe, s. m. Podex.
broi, broia, adj. Bom, boa.
cachilras, s. m. pl. Seios,
calique, s. m. Dinheiro,
catroio, s. m. Cavalgadura,
221catruchas, s. f. pl. Botas de água,
222chavelho, s. m. Copo de vinho.
choina, s. f. Cama.
choinar, v. n. Dormir.
coco, s. m. Copo.
cosque, s. m. Casa.
croia, s. f. Dona de casa,
desconfiar, v. n. Retirar-se.
duque, s. m. Cão.
escarnhida, s. f. Excremento humano.
esquilha, s. f. Sardinha,
estoio, s. m. Cavalgadura,
fanfar, v. a. Apanhar, roubar,
fardelhas, s. f. pl. – de trigo. Pão de trigo.
froina, s. f. Broa.
gadanhos, s. m. pl. Dedos,
gelfo, s. m. Cão.
gomarra, s. f. Galinha.
irmo, s. m. Irmão,
lupante, s. m. Olho,
lupar, v. a. Ver.
malurdia, s. f. Mãe.
manez, s. m. Homem,
maneza, s. f. Mulher,
moinar, v. n. Dormir,
moletos, s. m. pl. Pés ou dedos,
monteira, s. f. Cabeça,
moquideira, s. f. Boca,
mosquir, v. n. Comer.
mosco, s. m. Roubo.
o-da-eira, Padre,
palurdio, s. m. Pai.
piar, v. a. Beber.
piar-do-ventre, Flatus ventris.
piovês, s. m. Vinho.
porcó, s. m. Porco,
quilhar, v. a. Futuere.
raso, s. m. Padre.
reco, s. m. Porco.
reichelo, s. m. Porco.
223respo, s. m. Excremento humano.
224stockfish, s. m. Presunto,
suquidora, s. f. Boca.
suquir, v. a. Comer.
telo, s. m. Juramento,
tó, s. m. Porco.
trigo, s. m. Pão.
vezer, v. a. Ver.
zagrão, zagré, s. m. Vinho.
Fado do calão
225Nos Romances de germanía de Juan Hidalgo (vid. infra) há um em que uma série de termos da gíria espanhola é dada com a tradução:
habla nueva Germanía
porque no sea descornado,
que la otra era muy vieja
y la entrévan los villanos.
A la Cama llama Blanda,
donde sornan en poblado.
A la Fresada Vellosa,
que mucho vello ha criado.
Dice á la Sabana Alba
porque es alba en sumo grado. A la Camisa Carona,
Al Jubon llaman Apretado :
dice el Sayo Tapador,
porque le lleva tapado.
... etc., ... etc.
O seguinte fado é no género do referido romance:
Ao fadista chamam faia
Ao agiota intrujão,
Ao corcovado golfinho,
Ao valente bogalhão.
Entre o povo portuguez
Há calões tão revesados
Que deixam muitos pintados
Por mais de cento e uma vez.
Lá vão alguns – trinta e tres
(Não sei se neles dou raia)
À prata chamam-lhe laia,
Às nossas cabeças pinhas;
Aos porcos chamam sardinhas,
Ao fadista chamam faia.
Às nossas mãos chamam batas;
Ao génio chamam ralé’,
À esperança chamam filé,
Às bruxarias bagatas;
Às velhas chamam cascatas
Ao poupado sovelão,
Um gabinardo ao gabão;
Ao caldo chamam-lhe rola’,
A um relógio cebola,
Ao agiota intrujão.
Ao fugir chamam raspar;
Chamam à casa mosqueiro;
Ao ébrio chamam-lhe archeiro,
Ao compreender toscar;
Ao roubo chamam cortar’,
À guitarra pianinho,
Ao chapéu escovadinho;
Ao jogo chamam batota,
A uma sardinha aranhota,
Ao corcovado golfinho.
À fome chamam peneira;
Também lhe chamam larica’,
Chamam à cara botica,
À aguardente piteira;
Chamam bico à bebedeira;
A uma mentira palão;
E também é de calão
Chamar-se ao vinho briol,
Ao nosso bucho paiol,
Ao valente bogalhão.
História do calão
226No nosso país o interesse, quer de simples curiosidade, quer de carácter científico, por um grande número de objectos, não se despertou se não mais tarde e em geral de modo menos completo que noutros países. Não admira portanto que só possamos seguir directamente a história do calão até ao século XVII, a não ser que alguns processos judiciais venham revelar a existência de mina, até hoje desconhecida, de termos de antigo calão. Noutros países o investigador acha-se em melhores condições. Na França, graça às célebres Ballades de Jargon ou Jobelin de François Villon, esse escroc genial do século XV, do processo da confraria anti-social dos Coquillars em 1455 e outras fontes, pode seguir-se até aquele século, com suficiente segurança de dados, a história do argot ou jargon.
227O jargon do século XV foi objecto, entre outros, dos seguintes trabalhos, dos quais só tenho presentes os dois primeiros:
228Auguste Vitu. Le Jargon au XVe siècle. Étude philologique. Paris, 1884.
229Marcel Schwob. Le Jargon des Coquillars en 1455, in Mémoires de la Société de Linguistique de Paris, tome vii, fase. 2.e, 3.e (à suivre).
230Lucien Schöne. Le Jargon et Jobelin de François Villon, suivi du jargon au théâtre. Paris, 1888.
231Pierre d’Alheim. Le Jargon jobelin de maistre François Villon. Paris, 1892. (Ignoro inteiramente que valor tenha este último).
232Ao fim do século xvi (1596) remonta a mais antiga edição conhecida de um livro atribuído a um Pechon de Ruby (nome argótico) em que se acha um «dictionnaire en langage blesquin (argot), avec l’explication en vulgaire»23.
233Na Itália, no século XV, já Luigi Pulei, o autor do poema Il Morgante maggiore, introduziu nas suas obras poéticas alguns termos furbescos, assim como numa carta dirigida a Lorenzo il Magnífico pelo ano de 1472, e fez uma pequena lista de termos furbescos, que se acha publicada com aquela carta em Nuove letter di Luigi Pulci a Lorenzo il Magnifico, messe fuori da Salv. Bonge e Leone Prete (Lucca, 1882), e reproduzida in Archivio per lo studio delle tradizione popolari, i, (1882), pp. 295-296.
234Há três vocabulários do gergo ou furbesco do século XVI, nenhum dos quais consegui ver24.
235A Inglaterra apresenta já no século XVI o vocabulário de Rogue’s Words de Harman (1556), reimpresso modernamente em The Slang Dictionary, Etymological, Historical and Anecdotal. A New Edition, revised and corrected with many additions. London, 1873.
236Em Espanha publicaram-se no começo do século xvii (1609) os Romances de germanía de vários autores com um vocabulário, por Juan Hidalgo, de que temos presente a edição mais vulgar, com o seguinte título: – Romances de Germanía de vários autores, con el vocabulario por la orden del a. b. c. para declaracion de sus términos y expulsion de los Gitanos, que escribió el Doctor Don Sancho de Moncada, Catedratico de Sagrada Escritura en la Universidad de Toledo, y los romances de la Germanía que escribió Don Francisco de Quevedo. Con licença. En Madrid, 1779.
237A comparação do calão com as outras gírias europeias, especialmente das dos países de línguas românicas, prova que nelas há um fundo comum antigo, a par de empréstimos mais recentes: deste modo colhem-se para a história do calão preciosos dados indirectos. Não procederei aqui a uma comparação completa dessas gírias, pelos motivos já apontados, contentando-me com indicar o caminho que deve ser seguido. Começarei pela germanía, mais próxima geograficamente do calão e com a qual este tem realmente numerosos elementos comuns.
O calão e a germanía
238Os termos de germanía apontados são os do vocabulário de Juan Hidalgo. Os termos de calão que não levam indicação de facto acham-se na minha lista acima estampada.
239germ. alar, ir. – cal. alar, ir. germ. alon, es irse. Propriamente vamos, sem dúvida do fr. allons. Na linguagem popular portuguesa reproduz-se ainda allon, sobretudo na locução allon, allon, que é terra de gaiteiros, que significa – vamo-nos que aqui não temos que fazer, que aproveitar. Uma alteração dessa frase por etimologia popular deu – a Londres, que é terra de gaiteiros.
240germ. ansia, água. – cal. ancia, água. queiroz. Termo muito espalhado nas gírias, como veremos abaixo.
241germ. anublar, cobrir; nube, capa. – cal. anubo, capa, capote. queiroz.
242germ. artife, artifara, harton, pan. – cal. artão, artife. Termo muito espalhado.
243germ. banco, carcel. – cal. abancado, preso.
244germ. ballestas, alforjas. – port. balhestros, termo popular, não coligido nos dicionários, que significa os haveres (roupas, etc.) que cada um pode levar consigo, pequena soma de dinheiro; diz-se assim: ele foi-se com os seus tristes balhestros, isto é, com o pouco que tinha. Em hisp. alforja significa alforge, provisão de viagem. Balhestros acha-se em Paiva, Infirmidades da lingua, p. 109, e foi talvez um termo de gíria.
245germ. bola, feria. – cal. bola, feira. queiroz.
246germ. buho, es descobridor, ó soplon. – cal. bufo, polícia.
247germ. blanco, bobo, ó necio. – cal. branco, estúpido, imbecil, lorpa. queiroz.
248germ. brechar, meter um dado falso. – cal. brechar, pagar a patente. Os sentidos são muito diversos para que os dois termos se liguem.
249germ. cachucho, oro. – cal. cachuchu, anel de oiro. Já em Paiva, Infirmidades da lingua: tem um bom caxucho no dedo, p. 149; ainda no uso popular.
250germ. calcorrear, correr. – cal. calcorrear, correr, ir. queiroz. Já em Bluteau.
251germ. calcorros, sapatos. – cal. calcos, sapatos. Queiroz. Já em Bluteau.
252germ. carduzador, el que desea la ropa qui hurtan los ladrones. – Comp. cal. cardanho, furto, roubo. queiroz. O termo do calão liga-se evidentemente a cardar, que significa pentear com carda e tirar, ganhar a alguém uma coisa por fraude, astúcia. Em esp. ant. carduzador, carduçador. Emprega-se em português a expressão cardar a lã no sentido de obter astuciosamente dinheiro de alguém:
Mas com labia
Tudo se vence, tudo se consegue;
Porque a gente ordinaria agasalhada
Com uma tal lhaneza, facilmente
Deixa cardar a lã.
Correia Garção, Assembleia, cena III.
253germ. chilrar, hablar. – cal. chelra, palavra.
254germ. cerda, cuchillo. – cal. sarda, faca; sardinha, punhal, faca. queiroz. Em esp. cerda = port. cerda, seda do javali; cp. cal. espinha, faca, navalha, punhal. queiroz. os termos do cal. sarda, sardinha têm talvez o mesmo ponto de partida que germ. cerda, mas foram influenciados pelos nomes de peixe português sarda, sardinha. Lembremos a anedota do homem que na obscuridade noctuma se defendeu de um assaltante, empunhando uma sardinha, que o meliante julgou ser um punhal.
255germ. cica, bolsa. – cal. sica, bolsa. queiroz.
256germ. crioja, carne. – cal. cria, carne. Bluteau.
257germ. despalmar, quitar por fuerza; palmar, dar por fuerza. – cal. palmar, furtar, roubar. queiroz.
258germ. enrexado, preso. – cal. enreixado, preso. queiroz.
259germ. entruchar, entender. – cal. entrujir, entender. Bluteau. intrujar, entender, perceber. queiroz.
260germ. esclisiado, herido en el rostro. – cp. cal. clises, olhos. Queiroz.
261germ. espia, el que atalaia. Ligeira modificação do sentido de espia no espanhol geral. – cal. espia, agente de polícia. queiroz.
262germ. fazo, pañuelo de narices. – cal. falso, lenço. Bluteau.
263germ. gamba, pierna. – cal. gambia, perna. Bluteau. queiroz.
264germ. gao, piojo. – cal. gao, piolho. Bluteau. ganau. Silva Lopes. gando. C.
265germ. garlar, hablar. – cal. garlar, falar. Bluteau. queiroz.
266germ. gelfe, escravo negro. – cp. (?) cal. gelfo, belfo, cão.
267germ. gomarra, galinha. – cal. gomarra, galinha. Silva Lopes.
268germ. grano, es ducado de once reales. – cal. grão, cruzado novo. Bluteau.
269germ. gruñente, puerco. – cal. grunhidor, porco. queiroz.
270germ. guido, bueno. – cal. gidio, belo, bom. queiroz.
271germ. justo, jubon. – cal. justa, casaca. Bluteau. jaqueta. Queiroz. justo, colete. queiroz.
272germ. lima, camisa. – cal. lima, camisa. Bluteau. limosa, camisa. queiroz.
273germ. maco, vellaco. – cal. macanjo, falso, fingido, pataco falso. queiroz. macareno, falso. Queiroz. ordinário, vil. C.
274germ. maleante, burlador. – port. meliante, sujeito sem crédito, de más obras, maroto; palavra que começou talvez por ser um termo de gíria.
275germ. mandamentos, dedos de la mano. – cal. os dez mandamentos, os dedos da mão. C.
276germ. mandil, criado de Rufion, ó de muger publica. – cp. cal. mandil, preguiçoso.
277germ. marquida, marca, marquisa, muger pública – cal. marca, meretriz. Bluteau. marco, homem. Idem.
278germ. mechosa, cabeza. – cal. michosa, cabeça. queiroz.
279germ. moa, moneda. – cal. moia, moeda. Queiroz.
280germ. mocante, lienzo de narices. – cal. moncoso, lenço. C.
281germ. muquir, comer. – cal. moquir, comer. Queiroz.
282germ. piar, beber. – cal. piar, beber. queiroz.
283germ. picar, es irse à priesa. – cp. cal.picar, furtar, roubar. Queiroz.
284germ. piltra, cama. – cal. pilra (Bluteau), pildra, peltra, pérola, cama. queiroz.
285germ. pio, viño. – cal. pio, vinho. Bluteau.
286germ. quatropéo, quartago. – cal. catropéo, cavalo. Bluteau.
287germ. raso, abad. – cal. raso, padre, abade, frade. queiroz.
288germ. rede, capa. – cal. rede, capa. Bluteau. roupa. queiroz.
289germ. redonda, basquiña de muger. – cal. redonda, saia. queiroz.
290germ. rufon, eslabon com que sacan fuego. – cal. rufo, fogo. Queiroz.
291germ. safarse, escaparse, librarse. – port. safar-se. O termo da germania não veio do francês se sauver, como se pretendeu, mas sim do port. safar-se, de safo, do lat. salvus.
292germ. sombra, justiça. – cp. cal. sombra, prisão. Queiroz.
293germ. sornar, dormir. – cal. sornar, dormir. queiroz.
294germ. taragoza, pueblo. – cal. Terragoza, Lisboa. Bluteau.
295germ. tirantes, calzos. – cal. tirantes, calções. Bluteau.
296germ. turco, vino. – cal. turca, bebedeira.
297germ. trabajar, hurtar. – cal. trabalhar, furtar, roubar. Queiroz.
O argot e o calão
298Para o conhecimento do argot moderno tenho à minha disposição, além da obra já citada de Francisque Michel, Études de philologie comparée sur l’argot, as seguintes:
299Lorédan Larchey. Dictionnaire historique d’argot. Septième édition des Excentricités du langage. Paris, 1878.
300Lucien Rigaud. Dictionnaire d’argot moderne. Paris, 1881.
301Marcel Schwob et Georges Guieysse. Étude sur l’argot français in Mémoires de la Société de linguistique de Paris, vol. vii (1889), 33-56.
302Não vi de Lorédan Larchey. Supplément au Dictionnaire d’argot. Paris, 188225.
303Na lista seguinte, por simplificação, indico ordinariamente só um dos autores, que traz os termos referidos, geralmente Larchey.
304arg. aile, aileron, bras. Larchey. – cp. cal. asa, braço port. asa, com a mesma significação que lat. ala, fr. aile.
305arg. ance, lance, eau. Michel. – cal. ancia, água.
306arg. artie, artif artiffe, arton, lartie, lartif larton, pain. Larchey. – cal. artão, artife, pão. Bluteau. queiroz.
307arg. attrimer, prendre; expression du jargon. Michel. – cp. (?) cal. atrimar, vender, na minha lista, termo cuja genuidade não posso afirmar.
308arg. blé (du), de l’argent. Larchey. – cp. cal. milho, dinheiro. queiroz.
309arg. boche (tête de), tête dure, individu dont l’intelligence est obtuse, c’est-à-dire, tête de bois, dans le jargon du peuple. Dans le patois de Marseille une boule à jouer est une boche. Rigault. – cp. cal. mócha, cabeça. queiroz. A cabeça humana poderia ser chamada mocha (o fechado), isto é sem pontas; mas mócha tem, segundo a grafia transcrita, o aberto.
310arg. bougre: mot à noter comme ayant perdu sa portée antiphysique. Ce n’est plus qu’un synonyme de garçon. Larchey. bougre à poils, homme déterminé, solide, courageux. Rigault. Bougre. Nom de certains hérétiques que l’on assimilait aux Albigeois. Terme de mépris et d’injure, usité dans le langage populaire le plus trivial et le plus grossier, etc. Etym. Bulgarus, habitant de la Bulgarie. Dans le moyen-âge, des doctrines religieuses semblables régnaient parmi les Bulgares et les Albigeois. Littré, Dic. de la langue française, s. v. – cal. bogre, inglês (Queiroz) parece ligar-se a bougre.
311arg. boule, foire. Larchey. – cal. bola, feira. queiroz.
312arg. boule, tête. Larchey. – cal. bola, cabeça.
313arg. camelotte, marchandise volée. Larchey. – cp. cal. camelote, espólio.
314arg. chantage, extorsion d’argent sous menace de révélations scandaleuses; chanter, être victime d’un chantage; faire chanter, rendre quelqu’un victime d’un chantage. Larchey. – cal. fazer cantar, obrigar a dar dinheiro, sob ameaça de fazer revelações. Queiroz. É frase introduzida talvez no calão por influência de traduções. No calão jornalístico usa-se já chantagem = arg. chantage.
315arg. chenoc, mauvais, avarié et par extension «vieil infirme». C’est l’antithèse de chenu, excellent. Larchey. – cal. chinoca, muito boa.
316arg. chouriner, donner des coups de couteau : chourin couteau. Formé des mots surin et suriner, usités dans le même sens. Larchey. – cal. churinar, esfaquear, dar facadas. queiroz.
317arg. cigale, cigue, pièce d’or. Larchey. fr. Michel. – cal. sica, bolsa; germ. cica, cigarra, bolsa.
318arg. clou, Mont-de-Piété. Mot-à-mot: prison d’objects engagés (clou, prison). Larchey. – cal. prego, casa de penhores; termo muito popularizado, que é sem dúvida uma simples tradução do francês.
319arg. cornant, cornante, boeuf, vache. Larchey. – cal. cornante. boi. Queiroz.
320arg. crie, crignolle, viande. Fr. Michel. – cal. cria, carne de vaca. Bluteau.
321arg. dabe, Dieu, père, maître. Larchey. au xvie et au xviie siècle, dabo était employé dans le language populaire avec la signification de maître du logis... Dans le cant anglais, dabe a le sens d’expert, de consommé dans l’art de mal faire. fr. Michel. – cal. dabo, pae.
322arg. daron, daronne, patron, patronne, père, mère. Larchey. – cal. darona, mãe, na lista manuscrita de que me servi, termo que reproduzi na impressa acima, apesar de suspeitar dele, conquanto não haja que admirar se realmente é empregado no calão, como dabo, etc.
323arg. enquiller, entrer. Mot-à-mot: jouer des quilles dans. Cacher entre ses jambes un objet volé. Larchey. Do arg. quille, jambe – cp. cal. quilhar, futuere (Albergaria-a-Velha).
324arg. fassolette, mouchoir de poche. Larchey. – Ital.fazzolo, fazzoletto; germ.fazo. – cal. falso, lenço. Bluteau.
325arg. filer la carte. Les joueurs honnêtes du baccarat se servent de l’expression filer la carte, filer pour désigner l’action de découvrir par degrés, très lentemente, une des deux cartes qu’ils ont en main; c’est un moyen comme un autre de se procurer une émotion, et l’on sait que le joueur vit d’émotions. Rigault. – cal. filé, palpite, esperança. Os jogadores do monte (os banqueiros) descobrem também às vezes lentamente a carta para terem e fazerem ter aos pontos palpites; a palavra filé liga-se pois à referida expressão francesa.
326arg. foutriquet, homme nul. «Tous les foutriquets à culottes serrées et aux habits carrés (1793, Hébert)». Larchey. «Petit foutriquet», sobriquet donné par le maréchal Soult en pleine Chambre à un de nos plus petits hommes d’État, sous le rapport de la taille. Rigault. – Cp. port. pop. futre, homem desprezível, futrica, s. m., paisano, o que não é estudante (na gíria dos estudantes de Coimbra), e s. f., loja pequena, baiúca.
327arg. gabelou, employé des contributions indirectes. Larchey. Lembra pelo som cal. gabiru, fanfarrão sem dinheiro, parasita, jogador, rapaz vadio. Land. e Queiroz. (Porto).
328arg. gambille, diminutif du vieux gambe. Larchey. – cal. gambia, perna.
329arg. gau, got, pou. fr. Michel. – cal. gao, ganao, gando.
330arg. gaudineur, décorateur. Du vieux mot gaudiner, s’amuser. Larchey. – cal. gaudinar, divertir-se, vadiar ; gauderio, patusco (sujeito que se diverte), vadio, malandro.
331arg. goualer, chanter. fr. Michel. – cal. güelar, gritar, palrar, goualer não deriva provavelmente de lat. gula, fr. gueule; enquanto guelar deriva por certo de guela; o parentesco é pois só aparente.
332arg. grain, écu (Grandval). C’est un vieux mot qu’on rencontre souvent. Larchey. – cal. grão, cruzado novo. Bluteau.
333arg. guibe, guibolle, guibon, jambe. Vieux mot, car on disait jadis guiber pour se debattre des pieds. Larchey. – cal. guibo, artelho (se é genuíno).
334arg. latin, argot, dans le jargon des voleurs. Rigault. – cal. latim, gíria, calão. Na literatura encontrei bigorne no mesmo sentido; mas creio que é uma simples translação do argot bigorne, sem raízes no calão.
335arg. limace, limasse, lime, chemise (Vidocq, Grandval). Larchey. – cal. lima. Bluteau. limosa. queiroz.
336arg. malade, arrêté, inculpé. Rigault. – cal. doente, comprometido.
337arg. marque, prostituée (Halbert). Larchey. – cal. marca, meretriz; marco, homem. Bluteau.
338arg. mec, maître, chef, patron, souteneur; mecque, homme. Larchey. – cal. meco, homem, espertalhão. queiroz. os dicionários portugueses dão todavia o termo como da língua geral: «Adúltero, dissoluto, devasso». Diz-se: perdoaste ao meco? frase plebea por injúria aos galegos. Na Ulissipo, f. 108 v., falando dos boticários vem: «esses mecos conjurados contra o mundo?», e a f. 236 v. : « esse meco não é de bons porretos, que grosão: retraída está a infante. » Moraes. Os sentidos em uso na boca do povo são: «homem de maus costumes; atrevido, maganão», e o mais vago de: «pessoa, indivíduo, com intenção mais ou menos pejorativa». Considera-se com reprodução do lat. moechus. A semelhança com o arg. mec é talvez casual; fr. Michel dá-lhe a significação de maître, roi.
339arg. menesse, prostituée, maîtresse. Larchey. – cal. meneza, mulher, meretriz; abadessa.
340arg. michaud, la tête... Quelle peut-être l’origine de cette expression ? Je n’en trouve pas d’autre qu’une allusion aux bailes ou boulets, que l’on appellait autrefois, par plaisanterie, miches du couvent militaire: or, le peuple de nos jours ne dit-il pas, en parlant d’une tête: Quelle balle! voici une bonne balle? fr. Michel. – cal. michosa, cabeça. queiroz. Se Fr. Michel, que foi muitas vezes infeliz nas suas etimologias, acertou nessa de michaud, palavra que ocorre já no século XVII, o termo do calão e o correspondente da germ. mechosa devem ser separados, porque é mais natural ligá-los a mecha (de cabelos): mechosa designaria a cabeça como a que tem mechas. Em verdade michaud poderia do seu lado derivar de mèche.
341arg. nase, naze, nez. Vieux mot. Larchey. – cal. nasio, nariz; lat. nasus.
342arg. niente, rien. Italianisme. Larchey. – cal. niente, não sabes (?) Bluteau ; nentes, nada. queiroz.
343arg. paumer, perdre. Larchey. –cal. palmar, morrer.
344arg. piau, pieu, lit. fr. Michel, que liga o termo ao fr. peautre, segundo Littré «vieux mot significant lit, mauvais lit, grabat; inusité, sauf dans cette locution populaire, qui tombe elle même en désuétude: envoyer quelqu’un au peautre ou aux peautres, le brusquer, pour le congédier, pour le chasser». – cal. peltra, pildra, perola, cama. Bluteau, Queiroz. Colhi a forma pílula.
345arg. pie, vin. fr. Michel. – cal. pio, vinho. Bluteau.
346arg. pier, boire. fr. Michel. – cal. piar, beber. queiroz.
347arg. pivois, vin. fr. Michel. – cal. puovez (Albergaria-a-Velha)26.
348arg. plumer, dépouiller un homme dans l’intimité. Gagner au jeu l’argent d’un imbécile. Larchey. – cal. depennado, que não tem vintém. A frase argótica plumer la poule tinha o sentido de roubar (Fr. Michel, Études, p. 131). No calão dos nossos jogadores galinha é o jogador pechote, a quem se ganha facilmente.
349arg. rasé, prêtre, curé. fr. Michel. – cal. raso, padre, abade. Queiroz. O encontro é talvez casual; vid. infra p. 160.
350arg. rousse, roussin, agent de police. Larchey. – cal. ruiva, a polícia (se o termo é genuíno).
351arg. rif, rifle, feu. fr. Michel. «De rif... est venu riffauder ou riffoder, que Bombet traduit par se chauffer... On trouve dans le Jargon un article consacré aux ruffez ou riffodez, classe de gueux « feignans d’avoir eu de la peine à sauver leurs mions (enfants, mioches) du riffe qui riffoit leur creux (logis)». – cal. rufo, fogo. queiroz.
352arg. roustir, escroquer. Larchey. tromper, filouter. Rigault. – cal. rustir, comer. Na linguagem popular portuguesa emprega-se comer no sentido de enganar e de roubar ardilosamente.
353arg. rup, rupart, rupin, rupiné, élégant, homme riche. Larchey. – cal. rupim, rupino, rico.
354arg. sorne, noir. Larchey. nuit. Rigault. – cal. somar, sornir, sonar, dormir; sorna, cama.
355arg. tirant, bas. On le tire pour le mettre. Larchey. tirantes, chausses. fr. Michel. – cal. tirantes, calções. Bluteau.
356arg. trêfle, anus. Larchey, que o deriva de trou. – cp. tefe, mesma significação.
357arg. travailler, tuer, voler. Larchey. – cal. trabalhar, furtar, roubar. Queiroz.
358arg. tuer le ver, boire de l’eau-de-vie ou du vin blanc ; libation matinale désignée par ces mots. Larchey ; port. pop. matar o bicho, mesmo sentido da frase fr. « On s’imagine que, pris à cette heure (le matin à jeun), diz Littré a respeito da frase, le vin ou l’eau-de-vie tuent les vers intestinaux».
359arg. zona, fille publique, dans de jargon des marchands juifs. Rigault. – cal. zoina, meretriz. Queiroz. É uma palavra puramente hebraica: “Jlh que se encontra na Bíblia, p. ex.: Genesis. 38, 15. Deuter. 23, 19. Levit. 21, 7.
O furbesco e o calão
360Os subsídios que tenho à mão para o conhecimento do furbesco reduzem-se às palavras avulsas dadas por diversos autores e à lista inserida por Fr. Michel nos seus Études, p. 425-434. A Biblioteca Nacional de Lisboa não possui nenhum dos vocabulários furbescos do século XVI.
361furb. ala (asa), braço. – cal. asa, braço.
362furb. ancroia, rainha. Segundo Fr. Michel « nom d’une reine amazone, dont on a fait un poëme généralement intitulé: Libro della regina Ancroja ». – cp. cal. croia, patroa, dona da casa (Albergaria-a-Velha). – Cp. arg. dabe, p. 99, roi, père, maître.
363furb. artone, artibrio, pão. – cp. cal. artão, artife.
364furb. bolla, cidade – cp. cal. bola, feira.
365furb. bolfo, cão. – cp. cal. belfo, cão. Ascoli observa com razão (Studj critici, p. 408, n. 1): «Il belfo del gergo portoghese, che si trova presso Francisque-Michel (p. 441: o belfo balsa (?), il cane abbaja), sará tutt’altro che il nostro bolfo. Belfo, aggettivo, mi dice il Vieyra (Dict. port. and angl.), é uno che ha il labbro inferiore pendente, alla guisa per cui si distingue Casa d’Austria ».
366furb. calcioso, pé. – cal. calcante, pé.
367furb. calcosa, sapato. – cal. calcos, sapatos. queiroz.
368furb. cornante, boi, vaca. – cal. cornante. boi.
369furb. cosco, casa. – cal. cosque, casa. (Alberg.)
370furb. crea, creata, creatura, criulfa, carne. – cal. cria, carne de vaca. Bluteau.
371furb. gielfo, gato. – cp. cal. gelfo, cão. queiroz. Cf. bolfo, acima.
372furb. grugnante, porco. – cal. grunhidor, grunho, porco. queiroz.
373furb. guallino, piolho. – cal. gao, ganao, gando.
374furb. lampante, luzente, olho, na expressão lampante di civetta, escudo (moeda), à letra, olho de coruja. – cp. cal. lupante, olho; lupar, ver (Alberg.), que fazem pensar também no fr. loupe, lente convergente.
375furb. lenza, água. – cal. ancia, agua.
376furb. lima, camisa. – cal. lima, limosa, camisa.
377furb. marcona, mulher. – cal. marca, meretriz; marco, homem.
378furb. nicolo, não (alargamento da negação por assimilação ao nome próprio Nicolas). – cal. nicles, nada.
379furb. poltro, cama. – cal. peltra, pilra, pérola, pílula.
380furb. ruffo, fogo. – cal. rufo, fogo. queiroz.
381furb. tasca, estalajem. – cp. port. tasca, taberna, que se supôs conexo com tascar, tasquinhar, morder, roer (hisp. tascar), propriamente separar o tasco ou tomentos do linho com a espadela ou tasquinha. Em ital. tasca significa propriamente bolsa, alforge. Em português a palavra começaria por ser um termo da gíria. (Vid. infra Relações do cigano com o calão, p. 161).
382furb. tascosa, estalajadeira; tascheroso, estalajadeiro. – cp. cal. tascante, taberneiro. Myst. Paris. queiroz.
383furb. tirante, calções. – cal. tirantes, calções. Bluteau.
Observações sobre as três listas precedentes
384Não ficam notadas, por certo, todas as relações existentes entre os termos das quatro gírias – calão, germanía, argot e furbesco; mas os exemplos dados bastam para ver qual a natureza dessas relações. Na maior parte dos casos estamos em presença de verdadeiras identidades de vocábulos; noutros casos os vocábulos podem ter-se produzido independentemente sobre uma base comum, por um mesmo processo semântico, por ex.: calco, cornante. Nos casos em que um termo do calão parece tradução de um termo de outra gíria pode ter havido realmente tradução ou simplesmente coincidência de modificação semântica nas palavras correspondentes. Assim há por certo simples coincidência entre cal. milho e arg. blé, dinheiro, cal. bola, e arg. boule, cabeça; port. pop. matar o bicho e arg. tuer le ver, que provêm de uma mesma crença; cal. asa e arg. aile, furb. ala, braço. Mas parece já haver tradução em cal. prego relativamente a arg. ciou, casa de penhores. Os termos grão (grano), uma moeda, e tirantes, calções, podiam ter passado de gíria ou ter-se produzido nas quatro gírias ou em algumas delas independentemente.
385Rigault traz o seguinte artigo: Six et trois font neuf. Boiteux. Allusion à l’allure inégale des boiteux dont les pas semblent marquer des nombres différents. Em Coimbra os gaiatos designavam também os coxos pela expressão cento e dez (110 réis), quatro e meio (90 réis ou quatro vinténs e meio). Os espanhóis dizem : Uno, dos, tres, cogito de un pié.
386Coincidências de desenvolvimento semântico notam-se entre todas as gírias e entre todas as línguas gerais do mundo. Assim no calão queijo significa lua, como na hantyrka (gíria da Boémia) o mesmo planeta é designado pela palavra tcheque bêlák, queijo (Pott, Zig., II, 8) : lembre-se a fábula da raposa que tomou por um queijo a imagem da lua num poço. No Rothwelsch weisshulm, gente tola, é formado de weiss branco e hulm, que parece ser o all. holm, outeiro, cabeço (Pott, II, 8); do mesmo modo no cal., etc., branco significa estúpido, imbecil, ingénuo. Na mesma gíria alemã krunickel, kronickel (o grunhidor) significa porco, exactamente como grunhidor, grunho no calão, gruñente na germania, etc. (Pott, II, 11).
387O quadro seguinte compreende uma série de termos que se encontram em mais de duas gírias românicas comparadas:
calão | germania | argot | furbesco | |
asa | aile | ala | braço | |
ancia | ansia | ance | leuza | água |
artão | harton | arton | artone | pão |
artife | artife | artif | artibrio | pão |
bola | bola | boule | (bolla, cidade | feira |
branco | blanco | branc | tolo | |
sica | cica | (cigue, moeda d’oiro) | bolsa | |
calcos | calcorros | calcosa | sapato | |
cornante | cornant | cornante | boi | |
cosque | cuesca | cosco | casa | |
cria | crioja | crie | crea | carne |
calão | germania | argot | furbesco | |
gambia | gamba | gambe | perna | |
gao | gao | gau | guallino | piolho |
grão | grano | grain | nome de moeda | |
grunhidor | gruñente | grugnante | porco | |
lima | lima | lime | lima | camisa |
marca | marca | marque | marcona | rapariga, etc. |
michosa | mechosa | michaud? | cabeça | |
palmar | palmar | paumer | roubar, etc. | |
piar | piar | pier | beber | |
pio | pio | pie | vinho | |
peltra | piltra | peautre | poltra | cama |
rufo | rufon | rif | ruffo | fogo, etc. |
tirantes | tirantes | tirantes | tirante | calças, calções |
trabalhar | trabajar | travailler | roubar |
388Todos aqueles termos comparados da germania remontam pelo menos ao começo do século xvii, pois eles figuram no vocabulário de Hidalgo (1609); os termos do argot encontram-se também pela maior parte dos séculos xvi e xvii, alguns como vamos ver já no século XV; os termos do furbesco eram já usados todos no século XVI ou xvii, pois se encontram no Nuevo modo da intendere la lingua zerga, publicação de 1619, e reprodução, pelo menos em parte, de um vocabulário estampado em 1594, e nas Recherches italiannes et françoises de Oudin27; alguns remontam, com certeza, até ao século XV, como se mostrará.
389Os seguintes termos do jargon francês do século XV correlacionam-se real ou aparentemente com termos do calão; de quase todos eles dei já os correspondentes no argot mais recente.
390arton, pain.
Tant qu’il n’y eust de l’arton sur les cars.
391Ballade XI, A. Vitu, p. 163-4. « arton, c’est pain ». Processo dos Coquillars. M. Schwob, Mém. de la Soc. de ling., vii, 180. 301. – cal. artão.
392bec, nez, figure.
Luez au bec que ne sois greffis.
393Ballade I, A. Vitu, p. 180. Schwob, p. 305.
cp. cal. beque, bique, nariz.
394belistre, mediant, gueux qui vit d’aumône et de rapine. A. Vitu, p. 183. – germ. belitre, picaro; port. biltre; cal. bilontra.
395blanc, sot, niais. «Ung homme simple qui de se congnoit en leurs Sciences c’est ung sire ou une duppe ou ung blanc.» Processo dos Coquillars. Schwob, p. 179. 310. Blanc coulon [colomb, pombo] paraît au contraire être pris en sens inverse: dans le jargon de la Coquille, c’est celui qui joue le niais. Ibid. «Ung blanc coulon c’est celluy qui se couche avec le marchant ou aultre, etc., [et luy desrobe son argent, ses robes et tout ce qu’il a et les gette par une fenestre a son compaignon qui l’attent hors de la chambre]. » Proc. dos Coquillars. Schwob, p. 179. – cal. branco, estúpido, ingénuo.
396gaudins, brigands ou petit-maîtres.
C’est tout son fait d’engandrer les gaudins
A hornangier
Ballade IX. A. Vitu, p. 326-8.
Vid. acima p. 100 arg. gaudineur e cal. gaudinar, gauderio.
397grain, écu, monnaie.
Et n’abater de ces grains neufs et vieulx
Ballade vii. A. Vitu, p. 344.
cal. grão, cruzado novo. Bluteau.
398gris, froid.
Et vous gardez bien de la roe
Qui aux sires plante du gris,
En leur faisant faire la moe.
Ballade vi. A. Vitu, 347-8.
cal. gris, frio. Bluteau ; mod. griso.
399marque, fille, ribaude.
Marques de plant, dames et audinas
Ballade XI, etc. A. Vitu, p. 405-408.
cal. marca, meretriz. Bluteau.
400paulmer, voler.
Puis, dist ung gueulx, j’ay paulmé deux florins
Ballade IX. A. Vitu, p. 434-5.
cal. palmar, roubar.
401pye, boisson, vin.
Pour avancer au polliceur de pye.
Ballade IX. A. Vitu, p. 467-470.
cal. pio, vinho. Bluteau.
402pyer, boire.
Babille en gier en pyant à la fye
Ballade IX. A. Vitu, p. 470-471.
cal. piar, beber.
403quille, jambe. «Les jambes ce sont les quilles.» Proc. dos Coquillars. Schwob, p. 180.
Poussez de la quille et brouez.
Ballade V. A. Vitu, p. 472-3.
cp. cal. quilhar.
404rouhe, justice. « Ils appellent la justice de quelque lieu que ce soit la marine ou la rouhe.» Proc. dos Coquillars. Schwob, p. 179. – Cp. acima arg. rousse, cal. ruiva.
405ruffle, feu. «rufle c’est le feu Saint-Antoine.» Proc. dos Coquillars. Schwob, p. 180. – Cp. acima arg. rif. cal. rufo.
406sorne, la nuit, la brune.
Sur la sorne que sires sont rassis.
Ballade vii. A. Vitu, p. 503-505.
cal. sornar, sonar, sornir, dormir.
407Na carta de Luigi Pulci28 lê-se : dove si petinó quello lustro la brigata sopra la lenza», em que lenza parece ser o termo furbesco la lista acima. Na curta lista do mesmo Pulci noto: cosco, casa (cal. cosque, casa); gualdi, i pidocchi (furb. guallino ; cal. gao).
408Assim pela comparação com as gírias estrangeiras, estudadas nos seus mais antigos documentos, pode alargar-se a história do calão além dos limites que os documentos próprios nos impõem; todavia não é possível dizer quando é que em Portugal se começou a usar esse calão de que acabamos de passar em revista alguns dos elementos mais antigos.
409Quanto às origens mesmas desses mais antigos elementos das gírias farei ainda as observações seguintes.
410Alguns desses termos são já produções próprias das gírias, feitas à custa dos materiais das línguas gerais; tais são asa (ala), branco (blanco), calcos (calcose), cornante, gunhidor (gruñente), palmar, rufo (ital. ruffo, ruivo, fulvo), tirantes (de tirar, ital. tirare, fr. tirer), trabalhar e talvez mechosa.
411Outros dos referidos termos são palavras tomadas arcaicas nas línguas gerais, ou vindas de outras línguas vivas, ou de origem incerta.
412ancia, água, é considerada por Pott, Zig., II, 4, como idêntico a hisp. ansia: «Da ansia in Span. nicht bloss Schmerz, sondern auch ein heftiges Verlangen bezeichnet, führt letztere leicht auf den Durst und das, womit er am gewohnlichsten gelöscht wird, oder Wasser; – eine Qual, die man in heissen Klimaten noch mehr zu würdigen weiss, als anderswo.» Mas a existência da palavra no argot e no furbesco fazem duvidar dessa explicação.
413artona, pão, ocorre num texto latino medieval cit. por Ducange, s. v., mas como diz Schwob, p. 301, trata-se de um « texte qui n’a rien de populaire, un texte ecclesiastiqui où artona semble une mauvaise transcription greeque». Fr. Diez, Etymologisches Wörterbuch, 113, 208, diz: «Artoun neupr. brot, ein it. artone kennt Veneroni; dazu kommt noch sp. artalejo oder artalete pastetchen, und artesa, pg. arteça backtrog. Man vermuttet darin das gr. ἅρτoς, aber nähere ansprüche hat wohl das bask. artoa maisbrot s. Larramendi, Diccion., I, p. xvi, nach Humboldt, Urbew. Hisp. p. 155, urspr. eichelbrot, von artea art eichen. P. Monti rechnet auch das comask adro-basto (brot) hieher. » Se a palavra é realmente de origem basca, fica, todavia, incerto. O gitano tem harton, pão, em que Miklosich (Abhandl., II, 42) não hesita em ver reflexo do gr. ἂρτoς; a palavra podia ter passado do esp. para o gitano; mas este tem também artifero, padeiro, em que não podemos deixar de ver com Miklosich, 1. c., reflexo do gr.άρτoφóρioν (Ducange), e do qual é difícil separar a forma artife das gírias, acima mencionadas29.
414belitre (fr., port. biltre) não é nestas duas línguas termo de gíria; figura como tal na lista de Hidalgo e a ele se liga a mod. cal. bilontra, que foi talvez importado do Brasil, onde há um calão que, ao lado de elementos que se encontram em Portugal, possui muitos próprios. Talvez que a forma italiana biltrone não seja estranha à produção de bilontra (no Brasil há muitos italianos). A origem de belitre é incerta. Vid. Diez, Scheler e Littré, s. v.
415bola, feira, parece ligar-se a um ant. ff. boule, baule, no sentido de – companhia que se diverte, pândega, em diversos textos reunidos por Fr. Michel, s. v.
416cosco (furb., cal. cosque) é considerado por Pott, Zig. II, 25, como tendo sido talvez modificado do italiano casco, caduco, velho, para não lembrar facilmente casa ; a forma da germ. cuexca (cuesca) mostra, porém, ao que parece, que a palavra é velha na Espanha; cp. port. cosco, coscorrão, e esp. cuesco, que o sentido não permite ligar a cal. cosque.
417cria foi ligada ao gr. χρέας por Fr. Michel. A palavra encontra-se em Valcanius30 na forma creu (caro), na gíria dinamarquesa kraeges, e lembra, segundo Pott, Zig., II, 16, o tsigano karialo. A origem grega da palavra está muito longe de se achar liquidada.
418gambia, perna, é uma velha palavra, que na forma gamba se acha como termo da linguagem geral em esp., catalão, provençal, no fr. jambe, no ant. fr., picardo e wallon gambe. Ao lado dessas formas há o ant. esp. camba (poema de Alexandre), sard. churwelsh comba ; no ant. esp. também cama. A origem parece estar num radical camb ou cam, ser curvo; cp. port. camba, cambaio ; lat. camurus, camerus, etc. Vid. Diez, Scheler e Littré, s. v. gamba e jambe.
419lima, camisa, parece ser também uma velha palavra, como mostra, os textos:
Alii fontemque ignemque ferebant
Velati limo et verbena tempora vincti,
Vergílio, Aeneid., xii, 120.
420« Limus autem est vestis, qua ab umbilico usque ad pedes teguntur pudenda poparum. Haec autem vestis in extremo sui purpuram limam, i. e. flexuosam habet. Unde et nomen accepit. Nam limum obliquum dicimus. Servio ad AEn., 1. c. «Sed Tiro Tullius M. Ciceronis libertus, lictorem vel a limo vel a licio dictum scripsit: Licio enim transverso, quod limum appellaatur, qui magistratibus, inquit, praeministrabant, cincti crant». Aulu Gellio, xii, 3, 3. Vid. ainda Isidoro, Etymol., lib. xv, 14, xix, 22, e as passagens de Joannis de Janua e do Gloss. Lat. Gall. Sangerm citadas em Ducange-Henschel, s. v. limas.
421Sem dúvida lima não designa a mesma peça de vestuário que limus; mas a mudança de significação não tem aqui nada de extraordinário. Basta lembrar as variadas significações dos representantes do lat. mantellum, mantelum e seus derivados nas línguas românicas. Só o port. manteo tem significado: 1) capa; 2) peça de vestuário, espécie de saia curta, para cobrir o corpo da cintura para baixo; 3) peça para ornar o pescoço, espécie de largo colarinho com roscas, etc.31.
422marca, tem resistido a todas as tentativas etimológicas; foi-se até a derivá-la do celtico marka, égua. Em verdade há no cal. ponis, mulher, que parece vir do inglês pony, e justificar essa etimologia.
423gao é de origem incerta, conquanto o furb. grisaldo ao lado de gualdo, guallino, o arg. bande grise, com a mesma significação possa fazer supor uma conexão com griso, pardo, donde port. grisalho.
424peltra não pode separar-se realmente de fr. peautre, que Scheler liga ao ant. alto alemão polstar, bolstar, alemão mod. polster, enxergão, almofada.
425sorne, noite, a que ligo cal. e germ. sornar, é derivada por Fr. Michel, do provençal sorn, sombre, obscur32. O cal. sorna, cama não vem directamente de arg. sorne, mas de sornar ; cp. choina de choinar, (p. 88), de esp. noche.
Termos do calão provenientes das línguas modernas estrangeiras
426Alguns desses termos experimentaram modificações segundo os processos de formação do calão abaixo expostos.
427Do espanhol: baguinos, baixo, de bajo; chastre, alfaiate, de sastre; chona, noite, choinar, dormir, de noche ; costilhas, costas, de costillas ; chuncharra, colher e gazua, de cucharra, colher; galheta, bofetada, de galleta, bolacha (biscoito chato)33; legos, afastado, de lejos; miquei, agente de polícia, de miquelete, fusileiro de montanha na Catalunha, soldado da antiga guarda dos capitães generais ? ; ventana, janela, de ventana.
428Do galego: naya, mãe, de nay.
429Do francês: cal. alar, ir, de aller, ir; chena cadeia, de chaîne, cadeia; labita, casaca, de l’habit, veste, casaca; moa e moine, eu, de moi, me, mim, eu; toiene, tu, de toi, te, ti, tu; pistão, guarda-sol, de piston, embolo; porte-borne, de porte-monnaie ; trompar de tromper; lofo de fol (com inversão).
430Do italiano: nantes, nentes, niente, não, nada, de niente, nada.
431Do inglês: bute, bota, pé, de boot; chumeco, sapateiro, de shoemaker, sapateiro; chuzes, sapatos, de shoes, sapatos; cuté, casa, de cottage, cabana, choupana; dogue cão, de dog, cão; fiche, bacalhau, de stockfish, bacalhau, fish, peixe; stockfish no calão de Albergaria-a-Velha no sentido de presunto; fortytwo, quarenta e dois; guinés, guine, dinheiro de guinea, nome de uma moeda; naifa, faca, de knife, faca ; semoque, tabaco de fumar, simoco, rapé, de smoke, fumo; trauses, trozes, calças, de trowsers, calças; tuelles, doze vinténs, de twelve, doze.
432Do alemão: gute, bom, de gut.
Os processos de formação do calão
433Se separarmos do calão tudo o que lhe tenha vindo formado, pronto para ser empregado sem modificação essencial, já das gírias estrangeiras, já das línguas dos outros povos (separação que só parcialmente possível), ficar-nos-á ainda uma maioria de termos em que distinguimos duas camadas: 1) uma que imediatamente, ou depois de mais ou menos detido exame, se nos apresenta como constituída por termos de língua geral portuguesa, junto com alguns termos pouco numerosos d’outras línguas, os quais experimentaram modificações mais ou menos consideráveis, quer nos sons, quer na forma, quer na significação, ou em mais de um desses aspectos ao mesmo tempo; 2) outra camada constituída por termos que se nos afiguram irredutíveis, mas de que provavelmente uma parte entrará na outra categoria depois de novos estudos.
434Passaremos agora a estudar os processsos pelos quais dos termos da língua geral se formam termos do calão e se neste há verdadeiras criações novas.
435I. Deformações fonéticas. É preferível empregar esta expressão para distinguir o processo consciente da modificação fonética no calão das alterações fonéticas da língua geral e dos dialectos, apesar dos pontos de contacto que se notam entre essas duas ordens de fenómenos. Um exemplo fará compreender bem a distinção estabelecida. Quando o povo diz inselencia por excelência, a forma culta da palavra não está no seu espírito, ele não a conhece; diz inselencia porque apercebeu sempre a palavra com esse aspecto fonético. Quando um criador do calão modificou almocreve em almuque, fê-lo conscientemente, tendo bem presente no espírito a forma perfeita da língua geral, e fê-lo no intuito apenas de disfarçar, de enigmatisar, segundo a feliz expressão de Pott, o termo da língua corrente. É evidente que os termos enigmatisados (quer no som, quer na forma, quer na significação) podem ser repetidos depois por outros indivíduos, sem que seja conhecida a sua relação para com os termos correntes de que saíram; mas esses termos correntes serão empregados pelos mesmos indivíduos quando não falam o calão, caso que não se dá (salvo circunstâncias especiais, a que terei ainda de me referir em parte34) com os termos da língua culta na boca do povo que emprega em vez deles as suas formas próprias.
436Vejamos as principais espécies de deformação fonética do calão.
437a) Mudanças de acento. Na linguagem familiar modifica-se às vezes por gracejo a acentuação das palavras, por ex.: diz-se tisoras por tesouras. No processo evolutivo inconsciente da língua deram-se também dessas mudanças, como mostram, por ex.: acébo do lat. aquifolium, trevo de trifolium; suta, de fr. sautoir. Essa mudança de acentuação coincide nos exemplos dados, como noutros mais, com uma redução de sílabas.
438No calão são raras as mudanças de acentação que não coincidem com supressão de sílabas, e aquelas mesmas são acompanhadas geralmente de modificações nos sons. Ex.: cérulas de port. ceroulas, pápulo (todo escrito, excepto carta) de port. papel ; irmo de port. irmão ; cápito de port. capitão.
439b) Supressão de sílabas (abreviação das palavras). Na linguagem familiar dá-se essa abreviação nos termos de carinho, especialmente nas formas hipocorísticas dos nomes próprios, como pode ver-se nas observações que noutra parte consagrei a esse ponto35. Essa supressão é geralmente acompanhada de outras modificações fonéticas. O mesmo se dá no calão, a que pertencem os seguintes exemplos: alcofa36, de port. alcaiota ou alcoviteiro37; aljaba (algibeira de mulher), de port. algibeira; almuque de port. almocreve; brasil, de port. brasileiro; fabrico, de port. fabricante; rijo, de port. regedor; tisas de port. tesouras; trio, de port. theatro ; sinhá, de port. senhora (sinhá é também forma crioula do Brasil); restolho (barulho, algazarra), de port. restolhada (que é propriamente o ruído produzido pelo vento no restolho); estola, de port. estalagem.
440Como se vê, na maior parte desses exemplos a palavra modificada veio a tomar forma de outra que nalguns casos não tem com ela a menor relação de significação, e noutras só pela interpretação secundária pode tê-la. Se brasil e restolho se reduzem aparentemente à substituição de derivados por primitivos, alcofa, trio, rijo, aljaba existem na língua como palavras distintas e sem relação de radical com alcoviteiro, teatro, regedor, algibeira; todavia um regedor pode ser denominado o rijo pelos maliantes e entre uma algibeira e uma aljaba concebe-se uma longínqua correlação38.
441Nos exemplos citados, as sílabas suprimidas são finais ; mais rara é a supressão das sílabas iniciais, ex.: taco, de port. pataco; marada de port. camarada; croia de furbesco ancroja(?). Talvez reco jumento esteja por burreco, forma popular depreciativa, por burrico.
442O argot apresenta numerosos exemplos de supressão de sílabas; tais são: a) autor (autorité), achar (acharnement), can (canon), from (fromage), occas (occasion), comme (commerce), diam (diamant), magne (manière), pardesse (pardessus), poche (pochard), sap (sapin); condice (condition); b) chand (marchand), cipal (municipal), troquet (matroquet), croc (escroc); c) lubre (lugubre); d) zouzou (zouave), nounou (nourrice), e Bibi (Bicêtre), que apresentam supressão e reduplicação. O argot apresenta sobretudo exemplos da primeira espécie (supressão de finais); os das outras são raros39.
443c) Inversões de sons e sílabas. Vimos já que este processo basta para a formação de certa ordem de gírias. Nas línguas gerais portuguesa e espanhola ou nas suas formas populares há assaz numerosos exemplos desse processo; no seu belo trabalho sobre a língua portuguesa, reuniu Julio Cornu40 boa colecção deles, entre os quais escolhemos alguns: agamo por âmago, atolar por *alotar de lat. lutum, carrascão por cascarrão de cascarra, champa por prancha, manica por máquina, pouchana por choupana. Alexandre Antonio de Lima, Rasgos métricos, p. 211, traz quesposso por pescoço, que não sei se devo considerar como termo de calão, se como termo popular.
444No calão as inversões podem ser simples ou acompanhadas de outras modificações; as da primeira espécie são raras. Exemplos de inversão simples: safo (lenço) por *fasso (de onde falço, Bluteau), como vimos, de origem italiana; zouca por cousa; tapor por porta.
445Nos seguintes exemplos houve mais ou menos consideráveis modificações dos sons invertidos ou outras modificações concomitantes: soquinha por *zoquinha, de port. cozinha ; lofo, por *folo de fr. fol ; macallo por *vacallo, de port. cavalo (b por m, na língua geral em busaranha de musaranha, etc. ; e m por b, talvez em alamo, de lat. albus (etimologia de Cornu) ; chona, choina, de esp. noche ; drepa por *drespa, *trespa, de port. presta; dropa por *drepa, de port. pedra; drofa por *trofa, *tropa, de port. porta; Drofo por *Trofo, *Tropo de Porto (cidade). O calão drope, adj., abjecto, pobre; s. f., adversidade, desventura; pode estar portanto por *trope, de port. torpe ou port. podre, e talvez nele se fundisse ainda *brope, de port. pobre.
446Em português desenvolveu-se espontaneamente dr de tr latino medial; por exemplo, em pedra de lat. petra, vidro de lat. vitrum, adro de lat. scopa, stivare, populus, port. escova, estivar, povo; de p em lat. vapore = port. bafo (segundo Cornu41).
447A germania antiga apresenta-nos já vários exemplos de inversão de consoantes: chepo por pecho, greno por negro, grito por trigo, lepar por pelar, taplo por plato, tisvar (mirar) por *vistar de visto, toba de bota. (Hidalgo, Pott, Zg., ii, 18).
448No argot são raras essas inversões, excepto em ligação com outros processos. Já em Pechon de Ruby se encontra zerver, server (pleurer, crier), de verser, e um ao lado do outro: limogère, chambrière, e miloger, valet (Schwob et Guieysse, p. 38-39) e remontando até mais alto, à Ballade V, de Villon, encontramos Ostac por Costa, nome de um chefe de polícia (Ibidem). Frequente no argot moderno é o processo chamado loucherbème, que consiste numa inversão da consoante inicial, que se substitui por um l, e, posta no fim da palavra, se faz seguir de um sufixo (particularmente de ique, oque, uche, atte, ou ème), assim loucherbème é formado de boucher: oucherb-, l-oucherb-ème ; lemmefoque de femme : emmef-, l’emmef-oque. Esse processo é característico do argot dos bouchers (carniceiros), e já antigo no argot das classes criminosas, de onde passou em menor grau para o argot geral.
449Alguns termos apresentam outras deformações fonéticas, tendendo em regra a aproximá-los ou confundi-los no som com termos da língua geral. Exemplos: mostro, vinho, de mosto; perola e pilula, cama, de cal. peltra, chimpar de chapar ; porte-borne de porte-monnaie ; mamão de melão; elimo de animo (cf. port. alma de lat. anima) ; chiloras de ceroulas; falso, lenço, por *fasso, germ.fazo, do italiano fazzolo, fazzoletto (vid. acima safo, lenço, por *fasso).
450II. Deformações morfológicas. A derivação propriamente dita consiste na formação de uma palavra nova, tendo por base uma raiz ou tema já existente, a que se juntam um ou mais sufixos, palavra que exprime uma representação ou conceito mais ou menos distinto do expresso por aquele tema: assim ama-r exprime uma acção verbal, ama-dor o agente, ama-vel a qualidade do que merece que aquela acção o tenha por objecto, ama-torio, que respeita ao amor, etc. Cada uma dessas palavras tem pois emprego especial, não são sinónimos. Há, porém, muitos derivados que são mais ou menos sinónimos com relação a outros da mesma raiz; p. ex. : ama-nte e amador. Muitas vezes um derivado fez desaparecer o seu sinónimo da mesma raiz: assim em português altivez, calçado, calva, cambista, conhecimento, embrulhada (emborilhada), falsidade, lastimoso, perdão, fizeram cair em desuso altividade, calçamento, calveira, cambador, conhecença, emborilho, falsura, lastimeiro, perdoança42.
451Nalguns casos houve, pelo menos aparentemente, troca de sufixos43:
– eidade Í altiv
452-ença ( {z
453-do calça conhec
454-imento
455-mento Í-idade
456-ura Í
457–-eoisro (
458-edo oliv lastim fals o
459-al
460«Não deve esquecer-se, diz Diez, que muitas vezes a derivação nas línguas românicas tem apenas em vista reforçar a forma ordinária da palavra sem fazer caso do sentido, quer, como é mais frequente, para dar mais peso a uma palavra curta, quer para distinguir formas idênticas ou semelhantes. Visto que se expulsara, da língua, como muito breves, numerosas palavras simples para as substituir por outras de mais corpo, porque não se salvariam também essas mesmas palavras alongando-as? Mas só podiam ser empregados com esse fim sufixos de significação incerta, obscurecida; outros teriam influído muito claramente no sentido. O fr. menton ou rognon, p. ex., não diz mais que o simples latino mentum ou ren. Empregaram-se, sobretudo para esse fim, antigas formas diminutivas cujo sentido já não era sensível. Assim como se preferiram aos simples apis, auris, ovis, por causa de sua pequeníssima dimensão, os diminutivos apicula, aurícula, ovicula, parece ter o francês alongado também sol, taurus em soleil (=soliculus), tau-reau (=taurellus), sem pensar em ver neles diminutivos, como petit soleil, petit taureau, porque culus e ellus lhe eram conhecidos por numerosos exemplos como simples fórmulas de derivação44».
461Proponho chamar indiferentes esses sufixos que não dão origem a uma palavra de significação nova.
462Há certos sufixos que podem chamar-se falsos, porque se formaram à custa de um sufixo com a parte temática de uma palavra e depois ganharam independência como verdadeiros sufixos. Em latim, por exemplo, o suf. -lo (-la), juntando-se a temas em -r, -n ou -ro (-ra), -no (-na), deu lugar à formação de derivados em -ellum, -illum, -ullum, pela assimilação (depois da síncope de o, a, terminal), em que -ellum, -illum, -ullum foram tomados como sufixos independentes, que depois serviram para derivações novas: assim de puero- derivou-sepuerulo-, de onde puel-lo-; de vino-, vinulo-, de onde villo-; de hom-en (homin-) *homon-lo-, homul-lo-45. Visto que havia outros derivados semelhantes, sentiamse em formas como pu-ella, v-illum, hom-ullus, pu, v, hom como radicais.
463No calão encontramos factos das mesmas ou semelhantes categorias dos que acabamos de examinar com referência à linguagem geral, ainda que se apresentem por vezes com aspecto próprio.
464No calão há alguns verdadeiros derivados, isto é, termos formados de outros por meio de um sufixo (real ou aparente), simples ou composto, com significação distinta da dos temas de que são formados. Tais são:
465alampar, ver, de cal. *lampo ou *lampio, olho, port. lâmpada, lampião ; cp. cal. luzio, olho, de port. luz.
466arcoso, anel; à letra: o que tem forma de arco, de port. arco, com o sufixo -oso, muito frequente em português.
467ardina, aguardente; à letra: a que arde, de port. arder, com o sufixo -ina, frequente em português, mas que não se aplica na nossa língua directamente a temas verbais, caso que aliás se dava em latim, como mostram, por exemplo, ruina de rue-re, sentina de senti-re.
468ardosa, aguardente, de port. arder, com o sufixo -oso, que é muito frequente em derivados da língua geral, mas não se aplica nela directamente a temas verbais, mas sim a temas nominais.
469bagaceira, aguardente; à letra: a que se extrai do bagaço, de port. bagaço, com o sufixo -eira.
470calmeirão, mandrião, de port. calma, com o sufixo composto -eirão, como port. espadeirão de espada, largueirão de largo, lingueirão de língua, regueirão de rego, toleirão, de tolo ; cp. trigueirão de trigueiro, de trigo. Quanto ao sentido, cp. esp. calmoso na significação de – preguiçoso, indolente.
471canhantes, botas, de port. cano ou canna (da perna)? o sufixo -ante serve na língua geral para formações de carácter participal enfraquecido, mas tendo sempre por base temas verbais. Cp. encanhas, meias. Bluteau.
472chapeca, moeda de dez réis, que também se encontra coma forma sapeca, naquele mesmo sentido e no de pancada de chapa com a mão, bofetada; de chapa, com o sufixo -eca, que se encontra, por exemplo, em port. cueca de cu, folheca de folha, soneca, de sono.
473embromar-se, irritar-se; à letra: fazer-se grosseiro; composto e derivado de port. broma, homem grosseiro.
474escamanta, pescada (peixe), de escamar, com o sufixo frequente -nte, que se encontra na forma feminina -nta em port. governanta ; mas, enquanto nas palavras da língua geral esse sufixo indica um agente, aqui significa: que tem (escamas).
475faveco (feijão), de fava, com o sufixo -eco; ep. chapeca.
476gargantosa, garrafa; à letra: a que tem garganta, gargalo, de garganta, com o sufixo frequente -osa.
477gatasios (mãos, dedos) de gato ; ep. balasio de bala, copasio de copo, durasio de duro; gatasio é antes termo popular.
478gereiro, açougue, de cal. gera, carne.
479grunhideira, língua, de grunhir, com o sufixo frequente -deira.
480piadoiro, cálice de igreja, de piar, beber, com o sufixo -doiro ; cp. bebedoiro de beber, comedoiro de comer.
481pileca, cavalo magro, por *peleca, de port. pele.
482Nalguns derivados aparecem-nos sufixos estranhos à língua geral e que são devidos apenas a más analogias; isto dá-se por exemplo em:
483loduso, ourives, de cal. lodo, oiro; pela analogia das terminações de port. abuso, infuso, parafuso, etc.
484dentrémes, bolso interior do casaco ou colete, pela analogia das terminações de creme, estreme, leme, etc. A forma, aparentemente do plural, encontra-se em expressões populares como um bigorrilhas, um bolas. O calão junta noutros casos ainda um s a certos derivados seus, como se verá mais abaixo.
485moiene do fr. moi, toiene do fr. toi, teuene do port. teu, apresentam um sufixo -ene não usado em português. Cp. mitene (do fr. mitaine).46
486Em cal. administrante, por pot. administrador, temos a substituição de um derivado da língua geral por outro também da língua geral e do mesmo tema, mas de sentido um pouco diverso.
487Em muitos casos, no calão, a adjunção de um sufixo ou elemento com aspecto de sufixo, a um tema da língua geral, tem apenas por fim o disfarce da palavra, não havendo diferença de significação entre o primitivo e o derivado47, tais são:
488cal. pipuncha, de port. pipa ; chegaduncho, de chegado; faduncho, de fado; tarduncho, de tarde; seduncha, de seda; mesuncha, de mesa; todos com o sufixo -uncho, tão frequente no cigano (vid. p. 47-48) e que se encontra na língua geral em caruncho, zarguncho.
489cal. notante, de port. nota (de banco); alforjante, de alforje ; caixeirante, de caixeiro ; paivante, de cal. paivo ; lonjantes, de longe; horante, de hora’, todos com o sufixo -ante, aplicado porém a nomes, enquanto na língua geral só serve para derivados de temas verbais.
490cal. maciosa, de maçã ; branquioso, de branco; paivote, de cal. paivo; sedaite de seda; baguines, de cal. bago (dinheiro); parrelo, de cal. parné (dinheiro), com assimilação de rn em rr; tolineiro, de tolo; perunca de cal. perua (bebedeira) ; baguinos, de esp. bajo ; vintanços, de vinte; sinhama, de sinhá (cal. e creoulo por senhora) ; chibeco, de cal. chibo (espião, denunciante; cp. cal. cabra, espião, denunciante); briol, de cal. breu ; patego, patola, patáo, todos de cal. pato no sentido de tolo, ingénuo (cp. cair como um pato, na língua geral); são outros exemplos do emprego de processos de derivação da língua geral sem haver formação de palavras de sentido novo.
491Nos seguintes exemplos os processos de derivação adverbial aparente são mais irregulares.
492cal. acache, de port. aqui ; allache de alli; aquera, de aqui; allimes, de alli; antrel (adiante) de ante; arribatis, de arriba; cimantes (acima), de cima; dentrávias (dentro de casa), de dentro; for antes, de fora; lonjantes, de longe. Cp., por causa do s final de algumas dessas formas, os advérbios port. antes, algures, nenhures, etc.
493cal. agadancanhir por pot. agadanhar, cal. agadanchar, é uma formação sem analogia na língua geral, e que lembra certas acumulações de sufixos noutras gírias, como no argot chiquoquandard de chic, rupiquandard de rupin, no slang slandingcular (pela analogia de perpendicular)48.
494Um sufixo, real ou aparente, é substituído por um outro sufixo, real ou aparente. Exemplos:
495cal. catr-aia, égua, por cal. *catr-opia, catropéa ; cp. arraia, atalaia, cabaia, lacaia, malafaia, zumbaia, etc., de um lado, e de outro copia, Procopia.
496cal. carol por *carrol, de port. carrasco ; cp. de um lado os nomes em -ol, como anzol, cal. briol, crisol, paiol, reinol, rouxinol, e de outro os nomes em -asco, como penhasco, varrasco, Velasco.
497cal. rabeco, nome dado aos barqueiros de cima do Douro, que vêem ao Porto, pelo pop. rabello; cp. de um lado os nomes em -eco, como chaveco, faneco, jaleco, marreco, tareco, do outro os nomes em -elo, -ello, como cabedello, cabello, cadello, capello, modelo, novello, rodeio, sarampelo.
498cal. almazio, alimazio, por port. armazém, com influência, ao que parece, de pop. *alimal, alimaria.
499cal. armanço, por cal. armadella, dinheiro para jogar, de port. armar, cp. de um lado os nomes em -anço, como avanço, balanço, picanço, e do outro os nomes em -adella como apalpadella, fartadella.
500cal. entrames, por port. entrada ; cp. de um lado os nomes em -ame, como arame, velame e do outro os nomes em -ada, como estrada, camada, pancada.
501cal. marigoto, por port. marinheiro, pelo tipo de perdigoto, sendo -igoto, sentido como sufixo substituído a -inheiro49, influindo também maragota, nome de peixe.
502Muitas vezes uma palavra toma inteiramente a forma de outra ou antes funde-se com outra com que tem apenas de comum alguns sons iniciais ou até um só som inicial, conservando-se em regra a significação daquelas primeiras palavras ou experimentando apenas alguma ligeira modificação. Exemplos:
503cal. palurdio, por port. pae, por fusão com palurdio, estúpido, parvo. Por analogia formou-se cal. malurdia, mãe50.
504cal. mandil, preguiçoso, por port. mandrião, por fusão com mandil, pano grosso de esfregar.
505cal. maribundo, por moribundo (maribundio em A. António de Lima, Rasgos métricos, p. 209).
506marabuto (p. 61) parece ser uma formação do mesmo género, um resultado da fusão de marinheiro com marabuto, nome de religiosos muçulmanos da África setentrional, o qual aparece nos nossos escritores quinhentistas e de que por certo os nossos marinheiros tiveram conhecimento. Em francês marabout tomou o sentido pejorativo de homem feio, mal feito.
507cal. milhafre, por mil (réis), pela fusão com milhafre, nome de ave.
508cal. pontifice, por ponta (de cigarro), pela fusão com pontifice, papa, etc.
509cal. lojibeira, por port. loja, apresenta uma fusão incompleta com algibeira, tendo-se essas palavras associado pelas consoantes iniciais l-j.
510cal. atroços, por port. atrás, como se fosse uma expressão adverbial a troços.
511Nos exemplos seguintes houve fusão de palavras que só têm de comum uma consoante ou grupo de consoantes inicial:
512cal: baia, por cal. bata, mão, fusão, com baia, trave que separa as cavalgaduras na cavalariça.
513cal.faia, por fadista, fusão com faia, nome de uma árvore.
514cal. beta, por cal. bata, mão, fusão com beta, lista num vestido, etc.
515cal. buco, por port. burro, fusão com buco, bojo do navio?
516cal. bufo, por port. buraco, fusão com bufo, nome de ave.
517cal. chita, por cal. cheta, vintém, fusão com chita, nome de estofo.
518cal. grelha, por cal. grulha, peru, fusão com grelha, instrumento, em forma de grade, para assar ou torrar comestíveis.
519cal. grego, peru, de cal. grulha ou grelha, mesma significação, pela fusão com grego, nome étnico.
520cal. beu por *veu, por port. vinho, fusão com véu, peça de tecido para cobrir um objecto, etc. Poder-se-ia também pensar em que beu fosse uma modificação de breu; mas o termo é do Porto e tem e aberto.
521cal. leria, por port. laranja, fusão com leria, palavriado astucioso; modificado depois em larias e lirias.
522cal. duque, por cal. dogue (do ingl. dog), fusão com duque, título nobiliárquico.
523cal. golfo, por port. gordo, pela fusão com golfo, braço de mar, sargaço? No sentido de afidalgado, por germ. godo, rico ó principal (Hidalgo), pela fusão com a mesma palavra golfo?51.
524cal. laivo, por port. lenço, fusão com laivo, mancha.
525cal. laia, dinheiro, por cal. *lata, por port. prata, fusão com laia, casta?
526cal. osga por port. ódio, fusão com osga, nome de um sáurio.
527Vimos já que numa palavra como villum, illum podia ser tomada como sufixo, ficando assim o conceito do radical ligado unicamente ao som v. Pode dar-se facto semelhante em muitas palavras: assim em tosa, rosa, ao lado de mimosa, religiosa, etc. t e r podem ser respectivamente sentidos como constituindo a parte radical. O conceito do radical não existe só no espírito dos gramáticos: actua também, conquanto obscuramente, como categoria psicológica, no espírito de todos os que falam uma língua em que há distinção entre raiz e elementos de derivação. No espírito as palavras associam-se pelos sons, pela significação, pelas formas de derivação, pelos radicais, pelas categorias gramaticais, etc.
528Muitos indivíduos associam com facilidade as palavras pelas rimas, outros pelas sílabas iniciais. Eu associo os nomes próprios pela sua inicial: não me lembrando muitas vezes de um desses nomes por inteiro, lembro-me todavia do seu tom inicial e por ensaios sucessivos chego a restituí-lo na memória.
529A redução do radical de uma palavra a uma consoante ou um grupo de consoantes inicial, a que se ligam diversos sufixos, é um processo conhecido do argot; ex.: tranche, tronche, trogne (daí tognasse e gnasse), todos com a significação de cabeça; fr. froc, *froque, (défroquer), arg.frusquin, habit, fringue, fripe (fripier); chaper, prendre, ao lado de choper, chiper52.
530O cal. beto por port. botão explica-se, não por uma fusão de palavras, mas por uma troca de sufixos, pois não há uma palavra beto, em português: -otão, sentido como sufixo (cp. borbotão, marotão, pelotão, paparrotão); foi substituído pelo sufixo -eto, que se encontra por exemplo, em carreto, coreto, folheto.
531Poderíamos ver analogamente nas palavras acima, que se empregam no sentido de outras que com elas só têm de comum uma sílaba ou um som inicial, o resultado de um processo semelhante de substituição de sufixos ou sons tomados por sufixos ; p. ex. : em baia, por bata, troca de -ata por -aia (cp. de um lado camarata, cantata, novata, etc., de outro cabaia, lacaia, malafaia, zumbaia etc.); em buco por burro troca de -urro por -uco (cp. de um lado esturro, susurro, zaburro e de outro abelharuco, caduco, maluco, etc.); mas a explicação dada acima parece-me preferível. Essa explicação pode enunciar-se também nos seguintes termos: uma palavra sugere outra (geralmente do mesmo número de sílabas) que tem com ela de comum um ou mais sons inciais e a última passa a ser empregada no sentido da primeira. Nas línguas gerais há factos análogos. Em português, p. ex., punar (= lat. pugnare), tomar a defesa de alguém, chama por associação fonética punir (=lat. punire), e esta toma o sentido de aquela, que desaparece (punir por alguém). Em francês souffreteux, do ant. fr. souffraite (disette, manque), toma o sentido um pouco modificado de souffrant, pela influência da associação dos sons comuns souffr53.
532O termo de calão archeiro, bêbado, o que tem o hábito de beber vinho, apresenta-nos o resultado de um processo complicado: archote, copo de vinho, lembra pelos sons iniciais archeiro; mas este pelo seu sufixo -eiro dá ideia de um derivado; daí o seu emprego como se fosse um verdadeiro derivado de archote, o qual seria archoteiro.
533É rara a fusão de palavras determinada por uma terminação comum; um exemplo é cal. presunto por pessoa morta, defunto. Uma historieta popular serve de comentário a esse termo. Conta-se que uma velha surda teve o seguinte diálogo com uns forasteiros:
– Donde vindes vós, meus filhos?
– De Salvaterra, minha avó.
– Ai! de debaixo da terra, louvado seja Deus!
– Que trazeis vós nesses sacos, meus filhos?
– Presuntos, minha avó.
– Ai! defuntos, louvado seja Deus!
534cal. malaco, por pataco, parece ser devido a um processo similar; todavia malaco não se encontra como termo da língua geral54.
535Concluirei a exposição desses curiosos processos de formação, cujos produtos apresentam à primeira vista enigmas indecifráveis ou podem ser tomados como metáforas atrevidas, invenções extraordinariamente burlescas. etc., com as seguintes observações de Ascoli:
536«Più volte, nello svisare la terminazione d’un vocabulo, i gerghi riescono a transformarlo in uno di senso affato diverso; cosi l’argot dice arsenal per arsenic, batelier per battoir, prophète per profonde, ossia, secondo la metafora di quel grego, cantina o tasca. Questo prophète protebbe dirse voce gergale innalzata alla seconda potenza; e l’importanza furbesca degli oggetti ch’essa accenna, ben ci dà il perchè della squisita elaborazione. Da orfrève si fece orphelin, da Guibray : Giberne, da poisson : poivre ; filou s’è amplificato a Phillibert, nez a Nazareth, e navet a Navarin. Nella germania, per catenaccio si dirà cerron in luogo di cerrojo, mentre il vero valor di cerron é tela grossolana. L’alterazione fonética involve spesso del significativo, sia col ricordare un sinonimo, sia col ritrarre qualche attinenza della persona o della cosa che è nominata, sia coll’ offerire allusioni o travestimenti burleschi, sarcastici55».
537Quando os efeitos burlescos existem, o que como se vê dos nossos exemplos é raro, são em geral um resultado secundário, na minha opinião.
538III. Modificações de significação56. O processo pelo qual uma palavra como palurdio vem a significar pae no calão não pode de forma nenhuma ser considerado como o resultado do que ordinariamente se chama modificação semântica, pois que o ponto de partida é uma associação puramente fonética, e uma palavra se substitui por outra, segundo esse processo, sem a mínima consideração pela significação daquela; por isso foram examinados na secção anterior os exemplos desse género. Passemos agora ao estudo das modificações semânticas no calão, que explicam a maior parte talvez do seu vocabulário.
539a) «Todo o substantivo, diz Darmesteter, designa na origem um objecto por uma qualidade particular que o determina. Assim, a coisa que o latim chama fluvius, rio, apresenta diversos característicos : aspecto das margens, movimento da água, etc., cada um dos quais poderia servir para a denominar; o movimento da água foi escolhido, e essa qualidade de água corrente, quod fluit, deu o seu nome à coisa. Assim também o que francês chama vaisseau, por assimilação de forma a um grande vaso, ou bâtiment por alusão ao trabalho de construção, chama-o o latim navio (navigium), isto é, o que nada, flutua ao cimo da água (natat)». Esses exemplos podem multiplicar-se indefinidamente; assim em latim serpente é o que se arrasta (serpere), cp. réptil ; aurora é a brilhante (raiz us, brilhar); nubes, nuvem, é a que vela, cobre (cp. nubere, velar, cobrir).
540No calão é muito frequente o processo que consiste em substituir um nome usual por um adjectivo (ou particípio), designando um característico, que muitas vezes está longe de ser o essencial; exemplos: altanado (o que está, se senta alto, no tribunal), por juiz; amarela (da cor do oiro), por libra; andante, por carteiro, comboio, cavalo; apalpador por guarda-barreira (apalpadeira é a denominação oficial de mulheres que nas barreiras apalpam as forasteiras, para ver se trazem contrabando sob os vestidos); apertante, por corda (da forca); chiante, por carro de bois; cantante, por galo; crivantes, por dentes; dentosa, por serra; espumante, por sabão; ferrugenta, por espada (velha); filante, por agente de polícia; luzente, por pedra preciosa; massudo, por pão de trigo; passante (a que passa de um lado a outro do rio, serve para se passar sobre ela), por ponte; preta, por garrafa (de vidro preto); rasteiros, por chinelos; rastantes, por sapatos; piolhosa, por cabeça; palmilhante, por viandante, passageiro; redonda, por saia; roncante, por porco; tamposa, por caixa; sonante, por dinheiro (cf. a expressão metal sonante); moncoso, por lenço (cp. fr. mouchoir).
541Em todos esses exemplos a denominação é perfeitamente simples e natural; noutros casos intervém um certo espírito cómico ou depreciativo, ou estabelece-se uma correlação metafórica por vezes pouco natural; assim o advogado é chamado não o discursante ou o defensor ou mesmo o falante, mas o palrante, com um termo depreciativo; o vinagre é o raivoso, o que tem raiva, por uma espécie de personificação determinada pelo seu efeito adstringente, quando é forte; o moinho, por isso que agita os seus braços como em furor, quando o vento o move, é chamado o doido; a espingarda é chamada a fungante, assimilada a sua explosão ao ruído de um nariz que funga; o chapéu da cabeça, sujeito a muitos acidentes, é denominado o penante, o que pena, padece; a camisa que, lavada e engomada, exige cuidados para não se sujar de pronto, é a mimosa.
542Porque razão a sardinha é chamada tinhosa não é fácil de dizer; talvez porque a tinha foi comparada a escamas.
543O calão legante, pistola, é, segundo se me afigura, um derivado de cal. lejos, longe (do esp.), a que se deu o sentido de – a que atira de longe.
544Os adjectivos podem ser modificações na significação que rigorosamente resulta da sua forma, ao serem convertidos em substantivos; assim vagaroso significa – que procede com vagar, vai devagar; vagarosa, significando – em que há vagar – designa a prisão.
545b) A metáfora, é muito frequente nos desvios e significação do calão; já vários dos exemplos dados acima entram, nesta categoria. A metáfora do calão diverge em muitos casos da metáfora da linguagem geral em não ser espontânea e transparente, o que resulta do carácter geral das gírias, que já indiquei. Eis uma série de exemplos: alfarreca (alforreca, medusa), cabeleira, pela comparação dos cabelos com os tentáculos do animal; ameixa, bala, pela semelhança de forma; apagar-se a lamparina, morrer (a vida é frequentemente comparada pelo povo a uma luz; há um conto popular em que velas acesas representam vidas de pessoas); archote, copo, quartilho de vinho, (à mesa diz-se comicamente: estou às escuras, acende-me a luz, quando não se tem ainda vinho no copo); barraca, guarda-sol (por causa da forma e destino); cesto da gavia, forca (por causa da forma e altura); cortiço, carne de porco, propriamente a carne coberta imediatamente pelo coiro, que se compara à cortiça (o povo chama encortiçada à carne dura); cortiços, botas; galinheiro, varanda, catafalso ; gata ; meretriz (por causa da lubricidade do animal); breu, vinho (por causa do aspecto); lastro, comida (sobre a qual se bebe, como no navio sobre lastro se põe a carga); cabeleira, touca, penacho, bebedeira (diz-se que o vinho sobe à cabeça, que os fumos do álcool sobem à cabeça: compara-se o que se supõe haver dentro ao que cobre a cabeça); língua, bolsa de prata (por causa da forma); linguado, letra, (na gíria dos tipógrafos: tira de manuscrito); massa, milho, dinheiro; pianinho, guitarra; rama, cadeia de relógio; algodão em rama, pão alvo (por causa do aspecto); rede, capa, roupa; ripa, espada; rouxinol, apito; saca, prisão, cadeia; esponja, bêbado ; rufar, bater (como se bate rufando tambor); chaleira, panela, podex; cachimbo, pé; panela, capoeira, carruagem; cebola, relógio de algibeira, pessoa com muitas vestes sobrepostas.
546No calão dos criminosos ocorrem expressões que têm por fim adoçar, atenuar, por assim dizer, o que significam os correspondentes usuais: assim por furtar, roubar, diz-se picar, abafar, abotoar-se com uma coisa; por sova, pancada, diz-se calor, por prisão, diz-se colégio, gaveta’, por afogar, diz-se fazer aboiar; por matar, diz-se estafar, virar, vindimar, por morrer, diz-se sondar; por espancar, diz-se escovar, ensinar; negar-se, diz-se por fugir.
547c) Algumas mudanças de significação que nos apresenta o calão resulta de simplificações de frases; assim falho, que não tem dinheiro, provém de falho ao naipe, que de termo de jogo passou a ter aquela significação; esticar e espichar, no sentido de morrer, provêm das frases esticar ou espichar a canela (a perna; isto é, entrar na rigidez cadavérica); espirrar, insultar, provém da frase espirrar canivetes que se diz de quem se encoleriza facilmente; lagosta, bofetada, provém da expressão pôr a cara vermelha como uma lagosta57; mão por chave foi sugerido pela expressão chave da mão, palma da mão, espaço entre o polegar e o index.
548d) Alguns nomes étnicos ou próprios de pessoas, experimentaram modificações de sentido ou aplicações às vezes curiosas; assim inglês significa percevejo, por causa da cor do insecto ser semelhante à das fardas dos soldados da marinha inglesa; chamborgas (p. 71) parece provir do nome do marechal conde de Schomberg58 ; malafaia, sujeito de profissão duvidosa, é uma adaptação do nome de família Malafaia, determinada sem dúvida pelas sílabas mala, que lhe fizeram atribuir o valor pejorativo. No termo galo, significando francês, há um vestígio que não é o único da antiga denominação dos habitantes da França. Eu coligi da tradição popular o seguinte enigma do galo (ave).
À meia noite
Se levanta o francês;
Só sabe de horas,
Não sabe de mês.
Tem esporas,
Não é cavaleiro;
Tem serra,
Não é carpinteiro;
Tem picão,
Não é pedreiro;
Cava no chão,
Não acha dinheiro.
549Como janisaro (sem dúvida o nome dos soldados da guarda do sultão) veio a significar tunante na gíria do século xviii não deve causar estranheza, quando se note de que maneira o povo se apropria de palavras novas, imprimindo-lhes sentidos que nem de longe se correlacionam com os que elas têm, isto independentemente dos processos do calão que acima ficaram estudados59.
550No calão o nome vicente designa o gato, enquanto na linguagem popular designa o corvo, por alusão à lenda dos corvos de S. Vicente.
551É incerto se cal. narro, cão, provém de navarro; este nome significa na germania antiga ansaron (ganso).
552Lembremos que o povo chama também ao macaco Simão (sugerido sem dúvida por símio); à burra Joana; à coccinella septempunctata Joaninha60.
553e) Um outro processo que podemos chamar da substituição sinonímica (falsa ou verdadeira) dá lugar também à mudança de significação.
554No calão, p. ex., havia cria, carne de vaca, cuja origem, como vimos, é incerta; supôs-se derivado de criar e como gerar é sinónimo de criar, produziu-se o derivado sem sufixo gera, carne de vaca.
555Desde o momento em que uma pancada na mão, cara ou cabeça foi assimilada ironicamente a um bolo (bola ou bolo, palmatoada), desenvolveu-se a série sinonímica de bolacha (bofetada) ou galheta (do esp.)61, biscoito (pancada com as costas dos dedos na cabeça), tabefe (pancada ligeira debaixo do queixo, propriamente leite cozido com ovos e açúcar). Este processo é tanto das gírias como da linguagem popular. Há pouco deram-me a conhecer uma locução usada no Algarve que talvez se explique por ele: é estar em cação por estar nu. Diz-se no mesmo sentido: estar em coiro; ora coiro e cação empregam-se no sentido de rameira sórdida, que já não é nova, e como se compreende mais facilmente que a pele dura do cação motivasse a última designação do que a que se nos oferece naquela locução, pode pensar-se que no espírito do povo coiro e cação se associassem como se fossem perfeitos sinónimos62.
556No argot encontram-se exemplos desse processo. Assim produziu-se um termo marmite no sentido de femme, talvez, como crêem Schwob e Guieysse, não por metáfora, mas por derivação de mar, como suposto radical de mar-que (vid. p. 100), mar-quise, mar-lon, mar-paut. Marmitte dá lugar a duas séries sinonímicas: dum lado temos: poêlon e casserole, femme ; doutro marmite, mudando em marmote, chama taupe63. Concebe-se até onde pode levar esse processo e quão difícil deve ser descobrir muitos dos seus produtos, principalmente nas gírias, que como a portuguesa, têm poucos documentos históricos.
557Atendendo às dificuldades que levantam à etimologia esse e outros processos das gírias, vê-se com que inteira razão Ascoli escreveu : « Chi pensi agli innumerevoli enimmi che in sè racchiude il favellío d’una intera nazione, ogni città, ogni borgata, ogni contrada starei per dire, avendo in ogni epoca le sue peculiarità idiomatiche, ingenerate da mille specie d’accidenti assai spesso imperscrutabili; non maraviglierà per certo alio scorgere nè varj gerghi un buon contingente di dizioni che sembrano voler perennemente restare quesiti etymologici insoluti. La quintessenza della parte parte più recondita dei vernacoli, messa in serbo, chi sa da quanta generazioni, dalla società furfantina, e sottoposta per soprasselo ad artificj gergali, quanto mai di stravagante e d’impenetrabile non potrà offerire?64»
558Relativamente ao calão ou gíria portuguesa, o meu estudo creio que me permite afirmar todavia que dos termos de mim conhecidos apenas cerca de um sexto não é susceptível de explicação ou de etimologia imediata65, geralmente certa, no menor número de casos apenas verosímil; e naturalmente a lista dos problemas, agora insolutos, diminuirá com novas investigações.
559IV. Criação original. Em todos os processos anteriormente examinados, vemos o calão, como as outras gírias, partir dos termos existentes e ligar a eles os seus produtos por um nexo fonético, morfológico ou semântico. Dir-se-ia que os criadores das gírias ou não têm faculdade ou não se sentem impelidos de necessidade para fazer uma linguagem de sua inteira invenção. Examinemos sucintamente esse problema.
560Nada nos impede de crer na possibilidade da criação de novas línguas, já por processos espontâneos, como os que produziram as criações primitivas, em grupos de indivíduos que não tenham adquirido ou só tenham adquirido muito imperfeitamente uma língua tradicional, já reflectidamente por indivíduos senhores de uma ou mais línguas tradicionais.
561Do último caso temos um exemplo no projecto de língua filosófica do bispo inglês Wilkins, no século XV1166. Os projectos diversos de língua universal, que nestes últimos tempos têm aparecido, como o Volapük, socorrem-se do material das línguas existentes, modificando-o seguindo princípios convencionais, porque se tem em vista partir de elementos já conhecidos por um número mais ou menos considerável de indivíduos, afim de facilitar a aquisição do novo idioma67.
562Concebe-se a formação de uma língua artificial: 1) pelo processo de Wilkins, inventando combinações fonéticas novas (raízes e sufixos) para exprimir as representações mentais, quer segundo uma classificação científica destas, quer sem essa classificação ; 2) pelo sistema do Volapuk, em que a relação entre o som e a significação se baseia sobre a já existente; 3) por um processo em que o mais arbitrariamente possível se empreguem palavras já existentes, mas com significações que não tenham relação nenhuma com a usual; como se faria, por exemplo, dizendo mar por pão, gritar, por fugir, etc.
563Como vemos não é assim que se formam as gírias.
564Os dois primeiros processos exigem um grau adiantado de reflexão, de que não são capazes os indivíduos que constituem os grupos criadores das gírias. Apesar das produções destas serem, como já vimos, intencionais, não se afastam essencialmente na sua marcha dos processos de evolução espontânea da linguagem: a nossa investigação asssentou com evidência esse facto importante. Isto significa que aquelas produções são intencionais, mas não reflectidas. O indivíduo que primeiro disse almuque por almocreve fez uma modificação intencional; mas era por certo incapaz de explicar a si próprio por que processo o fizera, que praticara uma deslocação de acento, que suprimira um r na sílaba cre e eliminara por completo a sílaba final ve da forma usual, ainda menos que outros termos de gíria eram assim formados; ele fazia tão pouca ideia disso como nós fazemos, por exemplo, sem estudos, das transformações que os alimentos, que intencionalmente ingerimos, experimentam no nosso organismo, dos movimentos complicados que são necessários para pronunciar uma palavra qualquer, apesar de ser a nossa actividade voluntária que está em jogo. Vimos já em que consiste a diferença entre a produção própria da gíria e a da linguagem espontânea (vid. p. 115- -116): o povo que diz fotogro por fotógrafo não tem consciência de que fez uma alteração, porque não sabe da existência da forma fotógrafo; o fabricante de gíria que primeiro disse almuque sabia porém perfeitamente que a forma corrente era almocreve e a sua uma alteração voluntária68.
565A substituição de palavras da língua geral por outras da mesma que não tiveram com aquelas nenhuma relação de som, forma ou significação exigiria uma quebra muito violenta com o uso tradicional, que de um lado suporia um espírito assás reflectido, no autor; de outro, nos imitadores, uma facilidade de aceitar um emprego tão arbitrário, a qual realmente não existe: era preciso que num e noutros se perturbassem muito fundamente os nexos associativos existentes. Por mais arbitrário que pareça o emprego de grelha, por exemplo, por peru, o termo grulha estabelece entre eles um nexo semântico, de um lado, fonético, do outro, que basta para a facilidade da produção e da propagação. Mais tarde o nexo pode esquecer-se, como se esqueceu na linguagem geral porque tal animal se chama burro, tal outro serpente, etc.
566A formação das gírias não podia escapar à acção da lei do menor esforço, que acha luminosa aplicação no domínio do espírito69, e da qual é uma consequência a lei das transições lentas: é com o menor esforço, dentro das tendências gerais da linguagem e não contra elas, que as gírias se formam.
567Não se sente necessidade de criar um instrumento para um fim a que pode adaptar-se com ou sem modificação um instrumento já existente. A conservação das aquisições humanas, modificando-se, acumulando-se e substituindo-se parcialmente, por trabalho lento, é a condição fundamental da história. Para que o que surge de novo seja recebido facilmente é preciso que se ligue por nexo claro ao já existente; esse nexo pode ser externo (de forma) ou interno (de matéria). E assim que no domínio das instituições políticas o partido liberal buscava mostrar no passado precedentes, como as antigas cortes, para o sistema parlamentar, e conservava a realeza, ainda que reduzida a uma sombra; é assim que na substituição das antigas medidas e pesos pelas medidas e pesos do sistema décimal, o povo começou por designar o metro como vara nova, o meio kilograma como arratel novo. No domínio da moda não se procede por saltos, mas por transições insensíveis que levam, por exemplo, dos vestidos de mulher cingidos à pele, do começo do século, às monstruosas crinolines, que pouco e pouco se foram reduzindo até surgirem de novo os vestidos cingidos à pele; é assim que os espíritos que se emancipam do seu meio, tanto quanto é possível essa emancipação, levantando-se acima dos preconceitos desse meio e descobrindo novos horizontes ao pensamento, são geralmente mal recebidos no começo, sendo necessária uma infiltração lenta das suas ideias para que enfim eles cheguem a ser compreendidos. Todavia se o hábito tem uma importância capital nas coisas humanas, não é de modo algum uma barreira invencível oposta à inovação70. Opera-se uma adaptação do não habitual, do novo, ao habitual, segundo as leis da apercepção (no sentido da escola de Herbart) e nessa adaptação é que Avenarius vê a manifestação da lei do menor esforço no domínio físico.
568É evidente que os formadores das gírias não procedem consciente, reflectidamente, de modo que tenham em vista a facilidade da propagação dos seus produtos entre os outros membros dos grupos a que pertencem; eles obedecem àquela lei inconscientemente, de sorte que ela domina não só a propagação, mas ainda a produção.
569Considerando as coisas superficialmente poder-se-ia ver na abundância de sinónimos das gírias um facto contra a teoria apresentada; para que produzir termos com o valor dos já existentes? Mas observa-se que está na natureza mesmo das gírias serem constantemente neológicas, pois desde o momento em que um termo se propagou além dos grupos para que foi produzido, deixou de ter valor. De acordo com o que fica exposto deve, pois, dizer-se que nas gírias a manifestação do princípio do menor esforço não está pois na não produção, na ligação do novo para com o existente.
570H. Lotze dirigiu algumas objecções ao princípio da menor acção. «Nas investigações, diz ele, que têm por objecto os grandes hábitos que caracterizam a acção da Natureza, trata-se muitas vezes de princípios de economia que ela observaria; é uma ideia muito vaga que, até no princípio da menor acção, não obteve formulação isenta de equívoco. Ela não começa a tornar – -se clara senão quando se trata de fins para a realização dos quais, em circunstâncias dadas, diversos meios são igualmente praticáveis, de modo todavia que conduzam ao mesmo fim com maior ou menor despesa. Mas então a medida a que se compara essa despesa depende ainda de circunstâncias que tomam mais importante para nós a economia, quer de tempo, quer de massa, ou nos fazem proferir um modo de operar, de que temos o hábito, ao emprego de um novo processo que nos fatigaria. Pois, para resolver seguramente a questão do princípio da menor despesa, é preciso primeiramente fazer, na definição do fim, a indicação da direção em que a economia tem maior valor. É o que faz ver já a ambiguidade da aplicação dessas ideias às acções naturais. Suposto que a Natureza mire a fins, a verdade é que não os conhecemos e não podemos indicar essa direcção da sua economia necessária; tudo o que afirmariamos talvez é que ela não é avara nem de massas, nem de forças, nem de tempo, nem de caminho e de velocidade, coisas todas que nada lhe custam, mas que ela é sóbria de princípios. Tal é, com efeito, a economia de que julgamos achar o testemunho principalmente no mundo orgânico; pelas variações de um pequeno número de tipos de conformação, por inesgotáveis modificações do mesmo orgão, a natureza produz a diversidade das criaturas, e prevê às suas diversas necessidades; aqui ela parece-nos, se é permitido à nossa sabedoria limitada empregar essa linguagem, ser pródiga de massas e de tempo e recorrer a longos rodeios para realizar operações que pareceriam poder ser executadas com maior prontidão, desviando-se da via típica costumada. Essas ideias não comportam aplicação à mecânica, cujas leis tem que cuidar não de um tipo determinado de efeito, mas da realização de todo fenómeno qualquer71.»
571É claro, em virtude mesmo dessa exposição, que no domínio do espírito, onde há finalidade real, que se toma o tipo de todas as outras finalidades pensadas, onde se tem indicação da direcção em que a economia tem mais valor, o conceito da menor acção acha aplicação irrecusável na sua generalidade; e não menos se manifesta naquele domínio essa economia de princípios de que fala Lotze e da qual é um exemplo mesmo a formação das gírias por processos que não divergem essencialmente dos que se encontram na evolução das línguas gerais.
572O facto das gírias serem construídas, no todo, com materiais das línguas tradicionais não exclui por certo a possibilidade de haver nelas alguns produtos de criação original. A opinião de que só no período primitivo da humanidade fosse possível a criação de elementos da linguagem tem sido enunciada por alguns autores, mas carece de fundamento. E sem dúvida muito difícil de determinar que palavras haja nas línguas modernas que não provenham por simples modificação fonética ou por derivação de palavras de línguas antigas, porque embora achemos nas primeiras um considerável número de termos irredutíveis a termos das últimas, apesar de todos os esforços da ciência etimológica, pode-se ser inclinado a crer que nesses termos irredutíveis haja restos de antigas línguas perdidas, ou ainda representantes de termos não documentados das línguas antigas conhecidas ou por ventura vocábulos modificados de tal modo que escondam a sua origem à perícia dos investigadores. Todos os anos, demais, se vai resolvendo um número maior desses enigmas. Todavia há sempre um certo número de palavras que parecem de inteira criação moderna, quer espontânea, quer reflectida72. E bem conhecido o caso da palavra gaz, inventada por Van Helmont, mas a que ainda assim os etimologistas se esforçam por achar uma etimologia73. Há termos populares ou de gíria como especlonderifico, estapafurdio, que parecem perfeitas invenções sem apoio, senão muito vago, no existente na língua usual.
573Na linguagem das crianças podemos achar também criações originais, ainda que mais raras do que se poderia supor, muitas de carácter onomatopaico74.
574Há também observados casos de criação de línguas por crianças, ainda que não exclusivamente com elementos originais75. Deve ter-se em vista que as crianças transformam às vezes singularmente as palavras da língua materna, no seu som ou na sua significação. Uma que eu conheço transformava café em pavá, lenço em juso; outra aplicava a expressão pípes que lhe ensinavam por piolhos junto com a expressão meninão, que tinha primeiro conhecido para designar um certo rapaz antipático, isto é, o composto pípes-meninão para designar uma imundície.
575Entre outras criações originais indubitáveis de crianças, escolho a seguinte de observação minha. Duas crianças, que falavam já correctamente a língua materna, e produziam frequentes vezes derivados para substituírem as palavras correntes (p. ex. moscata por mosca) designavam uns bonecos figurando soldados da armada inglesa pelo termo falofa, que depois foi aplicado por eles para designar os recrutas, soldados novos (galuchos, na designação popular) de carne e osso.
576No calão, ou antes nos limites do calão e da linguagem popular, são raros todavia os termos que se possam considerar inegavelmente como criações originais. Tal é fungágá por filarmónica.
577Na lista de Queiroz Veloso encontramos: cal. fazer tefetefe, fugir correndo. Tefe-tefe é uma expressão imitativa que parece ter designado primeiramente, na boca popular, as palpitações do coração, agitado por um sentimento ou por uma corrida.
578Nas formações imitativas referidas nota-se a reduplicação silábica, como em muitas outras populares do mesmo género; tais são zum-zum ; tris-tris ; tlim-tlim ; cu-cu, o canto do cuco, o próprio cuco; pim-pam-pum (com variação vocálica), jogo nas feiras que consiste em atirar bolas a uns bonecos fixados pelo meio do corpo num arame, de modo que ganha o que os faz volver sobre esse eixo; tim-tim por tim-tim (contar), contar miudamente, ponto por ponto. Na linguagem das amas e crianças: tutu, corneta; bubu, água; pipi, galinha; chichi; urina; beu-beu ou bau-bau, o ladrar do cão, o próprio cão; mé-mé, o balar da ovelha, a própria ovelha.
579Algumas expressões das gírias ligam-se a antigas onomatopeias, como fanfarra, língua, na língua geral, reunião de músicos que tocam instrumentos de cobre, verbo fanfar basofiar, gabar-se, ostentar valentia, fanfarrão, ant. esp. fanfa, bazófia (vanterie). Uma variante de fanfar é finfar, dirigir a alguém um remoque, etc. Com Littré creio que farfante (do ital. furfante) deve considerar-se como não tendo relação etimológica com fanfarrão.
Relações do cigano com o calão
580Como vemos de p. 63-66, a linguagem dos ciganos de Portugal contém um certo número de termos formados pelos processos que encontrámos também no calão, e dos quais o mais frequente no cigano é o emprego de sufixos desfigurantes. Entre os termos dos ciganos da Extremadura colhidos pelo sr. Leite de Vasconcelos há uma parte considerável que apresentam o sufixo -uncho. É de crer que, ao passo que se vá perdendo a memória dos termos tsiganos, a linguagem dos ciganos tome de cada vez mais o aspecto de uma gíria.
581«A separação da língua dos tsiganos das gírias não é sempre fácil. Assim o que neste artigo se designa como gíria Dinamarquesa (mais exactamente jutica) pode também, ser considerada como tsigana. Distingue-se notavelmente da gíria alemã76».
582Pott notou já no gitano alguns termos da germania e várias formações análogas às das gírias, além de certos produtos muito artificiais, como ondinamo por esp. alamo, de ondila por esp. ala, com troca do sufixo -ila por – amo (de alamo), sendo ondila a seu turno derivado de esp. onda, pela comparação do voo da ave com o movimento de nadar77.
583Das relações dos ciganos com outros vagabundos, pedintes, ladrões, resultou a introdução no calão de um certo número de termos de origem tsigana e especialmente cigana ou gitana. A lista seguinte compreende termos em que essa origem é em geral certa, nalguns casos simplesmente provável. O uso de alguns desses termos acha-se bastante generalizado.
584Seguindo o exemplo de Miklosich, considero como tsiganos não só os elementos dos dialectos tsiganos, e em especial do cigano e do gitano, que são de origem índica, mas em geral todas as palavras que temos razão para julgar trazidas pelos ciganos até Portugal.
585A primeira palavra de cada artigo é o termo do calão. A abreviatura Voc. indica o nosso Vocabulário cigano78.
586adicar, ver. Cig. dicar, diquelar. Voc. Rothwelsch dicken, ver. Miklosich, Beitr. III, 541.– Origem indiana: sanskrito drš, prakrito dēkkhami. Pott, Die Zig., ii, 305. Miklosich, Abhandl., vii, 201.
587aguaruça, fim extermidade, rol do esquecimento. Lembra tsigano grego agór ponta, agoré, na orla; tsig. romeno agor, fim ; tsig. húngaro jagór, fim; tsig. boémio agor, afim. Mas o git. oferece formas mais afastadas: gresiton, o último; gresité, fim. – Essas formas tsiganas ligam-se talvez ao sanscrito agra. Pott., ii, 45. Miklosich, Abhandall., vii, 163.
588artão, artife, vid. pp. 110-111.
589avelar, avezar, ter. Git. abelar, tener, poseer. [Cp. cig. abelar. Voc. Tsig. grego aváva, vir, tsig. romeno av, vir; tsig. boémio avav, vir; – Origem indiana: sanscrito ap, alcançar. Pott, ii, 52. Miklosich, Abhandl., vii, 170-171].
590bagata, bruxaria. [Cp. git. bají, fortuna ; penar bají, to tell fortune; decir la buena aventura. Borrow. Tsig. grego bacht (ch=j esp.), acaso, sorte, felicidade; Tsig. romeno bacht, felicidade. Pott, ii, 398-9, que liga aquela palavra git. ao persa bakht, fortuna, luck, prosperty, felicity, enquanto o persa fôra do seu lado ligado por Vullers ao sanscrito bhanǵ, frangere, dividere. Miklosich, Abhandl., vii, 172.]
591balsar, ladrar. Pode estar por bassar e ligar-se ao seguinte banza, pois no tsig. russo a te basés, ladrar.
592banza, guitarra. Git. bachañi, guitarra; basnó, galo (=cig. basnó.Nocj). Tsig. grego basáva, gritar; tsig. rumeno bas, soar, gralhar; tsig. boémio bašavav, tocar, basno, galo; tsig. russo te basés, ladrar; etc. – Origem indiana: sanscrito bhās, pali bhās, falar. Pott, ii, 426. Miklosich, Abhandl., vii, 176.
593banzé, gritaria, tumulto, algazarra. Parece ligar-se a banza; vid. este.
594basta, bata, mão. Cig. baste. Voc. Git. baste, bate, mano Tsig. grego, rum., hung., bohem., escandinavo vast; tsig. italiano vast; tsig. basco basta. – Origem indiana: sanscrito hasta, pali, prakrito hattha, hindustani hāth. Pott, ii, 86, Miklosich, Abhandl., VIII, 92.
595bocachim, bocanhim, clavina, trabuco. Vid. pocachim.
596brejina, cereja. [Ligar-se-á a git. berjí, bella ? Git.
597berjívia, bellota (bolota), é uma má tradução do termo esp., que vem do árabe bellōtā, mas que foi interpretado como se derivasse de bello].
598buldra, pudendum mulieris. [Ligar-se-á a git. bul, ano? Pott, ii, 422. queiroz traz bunda, barriga; no Brasil bunda significa nádegas, podex; é talvez um termo de origem africana].
599calão, gíria. Vid. p. 57 Em esp. caló, língua dos gitanos. De um dos nomes nacionais dos tsiganos kaló, que significa propriamente negro. – Origem indiana: sanscrito e pali kāla, hindustani kālā, sindhi kārō. Pott, ii, 106. Miklosich, Abhandl., viii, 229.
600calcorrear, correr. Vid. p. 111 n.
601caleço, quartilho. Cp. git. calé, quarto, denario, moeda. Pode ter influído no som port. caleça.
602calona, mulher desprezível; propriamente cigana. De calão, cigano. Vid. calão.
603cangarina, cangra, gangarina, igreja. Cig. cangré, canguerí, cangrí, igreja. Voc. A palavra encontra-se noutros dialectos tsiganos. Miklosich, Abhandl., vil, 231, compara tsig. asiático kangrí, git. kangalla, carro, e lembra que os godos no século IV transportavam em carros imagens a que prestavam culto. Cf. Pott, ii, 150-151.
604canguello, acanhamento, timidez. Git. canguelo, miedo, receio, temor; canguelar, temer, turbar, recelar. Mayo. – Origem incerta. Pott, ii, 125.
605cardina, bebedeira. Git. curdá, embriaguez; curdó, curdí, ébrio. Mayo. – Origem incerta, talvez persa. Pott, ii, 128.
606chala, absolvição ; pôr na chala afugentar; chalar-se, fugir; chalado, amalucado, idiota (literalmente: a que se foi o juízo). Queiroz. Cig. chalar. Voc. Git. chalar, ir, andar, camiñar, marchar; meter; pasar. [Cp. git. chalabear, mover, menear, agitar. Tsig, grego calaváva, bater. – Origem indiana: sanscrito čal (causativo), mover, bater contra, hindustani calna, bater. Miklosich, Abhandl., vn, 185],
607chibalé, adversário. [Cp. tsig. boémiočibaló, juiz; tsig. gregocibaló, adj. falador, palrador : čibanó, s. albanês ; essas palavras provêm de tsig. čip,čib, língua. – Origem indiana: sanscrito ǵihvā, pali ǵivhā, hindustani džïbh. Miklosich, Abhandl., vii, 189-190. Com relação à forma em é, cp. cig. diclé ao lado de dicló, lenço; git. baré ao lado de baró, grande; banjolé, bandido, ao lado de banjuló, fanfarrão, etc. ; busné ao lado de busnó, estranho, etc.].
608churré, jovem. Git. surré, adj., anterior, antigo? A oposição no sentido está longe de ser um fenómeno raro. Meu velho ! diz-se por carinho a um rapaz.
609churinar, esfaquear. Git. churinar, acuchilar; churí, cuchillo, puñal. Cig. chorí. Voc. Argot chouriner. Tsig. grego, hung., bohem., escand., basco čurí, faca. – Origem indiana: sanscrito: čhuri, čhurika, pali čhurikā, prakrito čhuri, hind.čhuri, čhura. Pott, ii, 210. Miklosich, Abhandl, vii, 197.
610clises, olhos. Git. clisé, ojo, agujero. O clisé ya pandurerí, el ojo de la cerradura; eclisar, ojetear, ajujerear, herir los ojos. Mayo. Tsig. grego klidí, kilidí, chave; tsig. hungaro klidin, fechadura. – Do grego mod. χγειδí. Miklosich, Abhandl., vii, 242.
611(corripio ou corrupio propriamente, movimento rápido giratório; grande actividade, lida. Esta palavra que não é termo de gíria, mas sim um termo popular muito generalizado é talvez derivado do lat. corripere ; mas lembra o git. curripen, ejercicio, trabajo. Mayo. Borrow. Pott, ii, 115).
612cosque, casa. Git. cosqué, granja, cortijo. É possível que o termo tenha vindo de Itália por intermédio dos ciganos. Vid. p. 111.
613dabo, pae. Supus primeiramente que fosse modificação do tsig. grego dad, pae, git. dadá, tsig. romeno dad, avô ; todavias as formas do argot (p. 99) fazem-me hesitar. – Dad é de origem indiana: hindustani dādā, avô, cp. sanscrito tātā. Pott, ii, 308-309. Miklosich, Abhandl. vii, 198.
614dica (á), perto, isto é, em lugar de que se vê bem. De adicar vid. este.
615empandeirado, preso, apanhado, agarrado. «Fomos todos impandeirados pela polícia». Jornal O Século, n.° 3 : 731 (19 de Junho 1892). Queiroz dá a empandeirar o sentido de matar. Git,. oprimir, apremar, sujetar. Mayo. To inclose, to tie, to shut. borrow. Tsig. grego pandáva, fazer ligar, encarcerar, atar, Tsig. húngaro pandel, ligar, fechar. – Origem indiana: sanscrito, pali bhand, arménio band, cárcere. Houve metatese da aspiração : phand, pandh, Pott, ii, 124. Miklosich, Abhandl. viii, 37-38. A raiz bhand está representada nas línguas germânicas por band, de que vem port. banda.
616endinhar, abonar. Cig. diñar. Voc. Git. diñar, dar, deriva do part. pass. dinó da raiz da. Tsig. grego dava, part. dinó. – Origem indiana: sanscrito dā, pali, dēmi, dadāmi, part. dinno. Pott, ii, 300. Miklosich, Abhandl., vii, 199.
617endromina. Vid. p. 111.
618estache, chapéu. Cig. estache. Voc. Tsig. grego stadik, fez, barrete dos turcos. – Do grego mod. αχιάδι. Pott, ii, 243. Miklosich, Abhandl., viii, 66.
619estarim, prisão, cadeia. Cig. estariben, estaribin. Voc. Além das formas ali citadas, cp. git. estardar, estardelar, encerrar, encarcerelar ; estardó, í, adj. preso, a. Mayo. Germania mod. estaro, prison. Borrow, ii, 148. Pott, ii, 246, que apresenta formas correspondentes de outros tsiganos.
620estribelho, tribunal. Git. estaribel, estaripel. Vid. cig. estariben (Voc.) e o precedente estarim.
621fela, cara. Nas frases: mostrar a fela, aparecer, e mudar de fela, mudar de cara. queiroz. Git. fila, face, cara. Borrow, que no-lo dá também, como da germ. mod. ii, 148. Mayo nota-o como termo de germ. « Etwa als Gegentheil von : Profil ? » Pott, ii, 394.
622gandaiar, vadiar, etc. Vid. p. 73-81. Cp. git. garandar, vagabundear. mayo.
623gajo, homem, sujeito, o que anda à boa vida; libertino; espertalhão. Cig. gaché. Voc. Tsig. grego gadzo, estranho, não cigano, pessoa, homem; tsig. rumeno gažó, homem, hóspede, etc. – Origem indiana: sanscrito gaya, casa, a gente de casa, etc. gadžo é propriamente um homem da casa. Pott, ii, 129. Miklosich, Abhandl., vii, 211-212.
624gamar, furtar com subtileza. Cig. jamar. Voc. Git.jamar, jalar, comer. Tsig. grego chavá, comer. Ficou já estabelecida p. 102 a relação semântica entre comer e furtar. A gamar liga-se talvez port. pop. gramar, comer, engolir, que deveria separar-se portanto de gramar, trilhar o linho; mas cp. os sentidos de tascar. – A palavra tsigana é de origem indiana: sanscrito pali khãd, prakrito kha, etc.
625Pott, ii, 157-9. Miklosich, Abhandl., vii, 217-218.
626ganiços, dados. Bluteau. Cp. git. gañiá, jogo de dados. Mayo. ganisardar, to gain. Ganar. Borrow. As palavras git. provêm por certo do esp. ganar. Pott, ii, 145, reproduz ganisardar sem indicação etimológica.
627grane, grané, graste, cavalo, grani, égua; grenhi, burro. Cig. gañí, grai, grani. Noc. Git. grasté, cavalo; gra, besta, cavalgadura, cavalo; grastí, faca; grasní, égua. Tsig. grego grast, gras, gra, gray, cavalo; grastní, grasní, égua; etc. – Origem arménia: grast, besta de carga. Miklosich, Abhandl., viii, Pott, ii, 231-232.
628gris, griso, frio. Cp. cig. hil, hir, frio. Git. jil, frio, fresco. Mas gris, froid, já no jargon do séc. xv (vid. p. 108). Tsig. grego šil, frio. – O termo tsig. é de origem indiana: sanscritośïta, śïtala; pali sïta, sïtala. Miklosich, Abhandl., viii, 70. Pott, ii, 231-232.
629liró, janota. Cp. git. liló, loco, extravagante. Miklosich, Abhandl., viii, 1, liga-o a git. lillar tomar (literalmente, liló, inderdicto), tsig. grego láva, part. linó, tomar. Cf. Pott, ii, 327-340.
630lodo, dinheiro, oiro. Tsig. grego lovó, moeda; lové dinheiro; tsig. alemão lõvo, tsig. inglês lóvo, etc. A palavra penetrou noutras gírias, p. ex. Rothwelsh lowi, geld. – Origem incerta. Pott, ii, 335, Miklosich, Abhandl., viii, 7; Beitr., iii, 546 ; Abhandl., ix, 187, em que compara sanscrito « lōpa, Abtrennung, etwa Abschnitt ». No calão a palavra assimilou-se a port. lodo = lat. lutum, no qual todavia alguém poderia ter visto a verdadeira origem do termo do calão, por uma metáfora exprimindo o desprezo pelo tão desejado objecto. Em verdade o git. lama, plata, em Mayo, parece confirmar essa interpretação; mas afigura-se-me que ao gitano não seria estranha a forma lodo, conquanto não figure nos vocabulários que tenho presentes, e que lama teria sido produzido como pendant a lodo, embora este se originasse de tsig. lovó.
631luca, carta. Ligar-se-á pelos processos examinados a p. 123 segs. a cig. liás (Voc.), git. liá ? A forma fundamental tsigana parece ser liel. Pott, ii, 339-340.
632lumia, meretriz. Cig. lumí. Voc. Git. lumí, lumica, muchacha, querida, manceba. mayo. Tsig. grego lubní. Hure ; tsig. alemão lubni, etc. A palavra penetrou no Rothwelsch lupni. Miklosich, Beitr, iii, 546. – Origem indiana: sanscrito lubh, desejar, lōbha, cobiça, lōbhin, desejoso, ávido; pali lobha, ávido, hindustani lubhnā, ser cobiçoso, amoroso. Pott, ii, 334. Miklosich, Abhandl., viii, 7.
633manês, homem; manesa, mulher; menesa, abadessa; prostituta (arg. menesse, p. 101). Cig. manu. Voc. Git. manu, hombre, varon. Tsig. grego, manúš, homem, etc. A forma do calão parece provir de uma cigana manús, que sugeriu a troca de us em es. – Origem indiana: sanscrito manusa, hindustani manus. Pott, ii, 467-447. Miklosich, Abhandl., viii, 10.
634mangue, eu. Cig. amanga, amangues, mangue, mangues. Git. mangue, me, mi. Tsig. grego amen; etc. – Origem indiana: sanscrito asmān, pali amhē, hindustani ham, nós. Miklosich, Abhandl., vii, 164-165.
635marar, matar. Cig. marar, marelar. Voc. Git. marar, matar. Reflexos nos diversos dialectos. – Origem indiana: sanscrito mãrayati, ele mata, hindustani mārnā, ferir. Pott, ii, 450. Miklosich, Abhandl., viii, 11.
636marrella, pão. Der. de cig. manró. Voc. Git. manró, pan. Tsig. grego manró, etc. Cp., por causa da forma, cal. parrella de parné (vid. infra). – Origem indiana: sanscrito manda, a camada superior saborosa de comidas líquidas e de bebidas, mandha, uma espécie de biscoito, pali manda. Pott, ii, 440-442. Miklosich, Abhandl., viii, 10.
637misto, bom. Cig. mistó. Voc. Git. mistó, bien, bueno. Tsig. grego mistó, bom, etc. – Origem indiana: sanscrito mista, saboroso, doce; hindustani mithā sindhi mithō, doce. Pott, ii, 459-461. Miklosich, Abhandl., viii, 15. Pott não considerou suficiente essa etimologia que foi primeiro apontada por Diefenbach e que Mikl. aceita.
638místico, bom, belo, janota; mistangueiro, janota; mistago, acreditado. Ligam-se todos a misto; vid. o art. anterior. Cp. literário místico.
639nanai, nada. Cig. nanais. Voc. Git. nanai, no, de nenhum modo. Tsig. grego na, não; duplicado nána; nanay = nana isi, não é. No git. há também a forma nasti, adv. – Origem indiana: sanscrito na + ásti. Pott, i, 318-322. Miklosich, Abhandl., viii, 19.
640pachacha, pudendum mulieris. Git. pachí, virgindade, virgo ; pachibar, honrar; espachilar, desflorar. Mayo. Tsig. grego pakyáva, crer, confiar, tsig. romeno patá, crer, patú, casamento; tsig. boémio patav, crer, git. panchabar, pachabelar, crer. – Miklosich, Abhandl., VIII, 33-34, atribui-lhe origem indiana: «Aind. vergl. pratyayá, Glaube, Vertrauen. sindh. pati, avg pat, Ehre»; mas Abhandl. vi, 66, dá aquelas formas tsiganas entre as de origem arménia: « arm. pativ, Ebre ; patvel, ehren ». As formas arménias são aparentadas com as indianas citadas. Pott, ii, 346-347.
641paivo, cigarro. Cig. pajo por plajo. Voc. Git. placo, plajorró, tabaco; pracos (Pott, i, 106), pracó (Mayo), pó. – Origem slava : mod. slov., serbo, búlgaro, etc. prah, pó. Pott, ii, 361. Miklosich, Abhandl., i, 32, viii, 51.
642parnau, parné, parne, parni, parneque, dinheiro. Cig. parnau, parné. Voc. Git. parné, prata, dinheiro. Tsig. grego parnó, branco; reflexos noutros dialectos tsiganos. – Origem indiana: sanscrito pāndu, pálido, branco amarelado. Pott, ii, 359. Miklosich, Abhandl., viii, 31.
643piar, beber; piela, bebedeira; pielar-se, embriagar-se; pio, s. vinho; adj. embriagado. Cp. argot. pie, etc. p. 201, etc. Cig. pilar por piar. Voc. Git. piar, beber;pilé, pillí, adj. ébrio. Tsig. grego piáva, beber; reflexos nos outros dialectos. – Origem indiana: sanscrito pi, pali pi (pibati, pivati), hindustani pina, beber, sindhi pianu. Pott, ii, 342. Miklosich, Abhandl., viii, 44-45. Da mesma raiz pi vem o lat. bibere, de onde port. beber. A forma pielar, de onde piela, é derivação tsigana : húngaro piyel.
644peltra, pildra, cama. Git. piltra, cama. Mayo. Borrow; o primeiro indica o termo expressamente como de germania; encontrámo-lo já noutras gírias (vid. p. 108-9) ; é possível que os ciganos o trouxessem para Portugal. Pott, II, 371, menciona-o.
645pirar-se, pôr-se na pireza, pôr-se no piro, fugir. Cig. pirar. Voc. Git. pirar, pirelar, andar. Tsig. grego piráva, ir, tsig. romen. pher, ir; etc. – Origem indiana: hindustani: phirnã, ir, viajar; phiranu, girar. Pott, ii, 382. Ascoli, Zig., 33. Miklosich, Abhandl., viii, 40-41.
646plaustra, capa, capote. Cig. plasta, plata. Git. plasta, plastami, plata, capa corta, talma. Tsig. inglês plašta, plochta; tsig. além, blašda, tsig. polaco płaščos, etc. – Origem eslava: antigo esloveno plaštƅ, polaco płaszczy, etc. Pott, ii, 368. Miklosich, Abhandl., viii, 46.
647pocachim, clavina, trabuco. Cig. puca, pusca. Voc. Git. puska, pruská, pruskatiñé, pistola, cachorilo. Mayo. Tsig. grego puškí ; tsig. rom. púška ; etc. – Origem eslava: serbo puška, que a seu turno provém do alemão Büchse, ant. alto alem, buhsā, puhsã. Pott, ii, 365. Miklosich, Abhandl., VIII, 51-52.
648punida, palha. É por certo um alargamento do cig. pu. Voc. Git. pus, paja, a que se liga pusanó, cortigo (= cig. pusoñon). Tsig. grego pus, bus, Stroch; etc. – Origem indiana: sanscrito busa, buša, palha; pali bhusa, hindustani bhūsī. Pott, ii, 388. Miklosich, Abhandl., viii, 43.
649raso, padre. Não é inteiramente certo se a palavra se liga realmente o tsigano (vid. argot rasé, p. 106). Cp. cig. eragar. Git. arajay, erajay. Mayo. Borrow. Tsig. grego rašáy, sacerdote cristão, mestre-escola, tsig. romeno ra‘J sáy ; tsig. hung., boémio, alem, e russo rašay ; tsig. escand. rašo, etc. A forma do calão ligar-se-ia assim a formas mais distantes geograficamente que as do gitano, caso que todavia não é único. – O termo tsigano é de origem indiana duvidosa: cp. sanscrito rši, pali isi. Pott, ii, 278-279. Miklosich, Abhandl., viii, 54.
650ratanhí, retanhí, chave falsa, gazua. Git. rotuhí, boca, abertura, agujero. mayo. Tsig. grego rutuní, nariz. Gr. mod. ṕoυθoύνι, gr. ant. ṕώθων, nariz. Miklosich, iii, 43. Pott, ii, 281.
651rupim, rico. Encontra-se também no argot (vid. p. 106). Tsig. grego rup, prata; tsig. rum. rup, rupunó, adj. de prata; tsig. boémio rup, rupino, adj. ; tsig. alem. rupp, prata, Thaler. Falta no cigano e no gitano de mim conhecidos. – Origem indiana: sanscrito rūpa, forma; rūpin, que tem uma forma, belo; rūpya, adj. que tem uma forma, s. oiro ou prata amoedada, rupia; pali rūpa, hindustani rūpa. Pott, ii, 274-275. Miklosich, Abhandl., viii, 58.
652rustir, comer. Argot roustir (pág. 106). Será conexo com as formas tsig. rum. ruš, ser mau ; tsig. hung. rusel, encolerizar-se, rušt ’i, encolerizado; tsig. boémio rušav; rušt’as, ele fez-se mau; tsig. escand. rošto, colérico? – Origem indiana; sanscrito ruš, rušta. Potte, ii, 279. Miklosich, Abhandl., viii, 58.
653sarda, faca; sardinha, punhal, faca. Cp. git. serdañi, e vid. p. 94.
654tasca, taberna. Furb. tasca (vid. p. 107). Talvez por intermédio dos ciganos: git. tasca, tasquera, taberna. mayo.
655telo, jumento (Albergaria-a-Velha). Cig. guer. Voc. Git. gel, grel, asno, burro. Mayo. guel, ass. Borrow. Tsig. grego Kher, Kfer, fer, burro; tsig. asiático kar. – Origem erânica: curdo ker. Miklosich, Abhandl., vii, 237. Sobre a troca de k e t, vid. Ascoli, Zig., index, p. 169. Miklosich, Abhandl., iv, 186-189.
656tronga, prostituta. Git. tronga, barragana, manceba. mayo. A origem do termo é-me desconhecida, mas é possível que viesse pelos ciganos.
657Como se vê da lista anterior alguns dos termos notados do calão parecem provir, não directamente de formas ciganas ou gitanas, mas de formas tsiganas extrapeninsulares ; o que pode ser devido a transmissão por tsiganos de outros países, que têm cruzado ou até se têm estabelecido no nosso.
658Alguns dos termos dados aqui como de origem tsigana foram já considerados como derivados de outras fontes; assim banza foi considerado como de origem africana, conquanto não se provasse essa etimologia.
659Schwob e Guyesse apresentam a conjectura de que a inversão fonética na germana (a que se deve juntar a observada no calão) seja devida a influência gitana. Como vimos (p. 75), encontra-se na índia esse processo; mas como ele é muito frequente no espanhol e no português, não precisamos para o explicar de recorrer à intervenção gitana ou cigana.
Notes de bas de page
1 Diez, Etymologisches Wörterbuch, i, s. v. gergo. Littré e Scheler. s. v. jargon.
2 Francisque Michel, Etudes dephilologie comparée sur l’argot. (Paris, 1856), p. xxviii.
3 G. I. Ascoli, Studj critici (Milano, 1861), p. 384, n. 1.
4 Idem, ibidem, p. 385.
5 Idem, ibidem, p. 385-6.
6 Apud Pott in Internationale Zeitschrift für allgemeine Sprachwissenschaft, ii, 110.
7 Fr. Michel, Études de phil. comp. sur l’argot p. 487. Pott in Internat. Zeitschriftf. allgemein. Sprachwissenschaft, i, 60, n. 2, reproduz os títulos de dois estudos, um sobre termos de gíria no Minahassa, outro sobre um calão malaio e alude a uma nota de Crowther, Yoruba Vocab., sobre uma gíria africana, consistindo em inversão de letras, sílabas, palavras ou proposições.
8 Feira dos Anexins. Obra póstuma de D. Francisco Manuel de Mello. Agora dada à luz pela primeira vez. Edição revista e dirigida por Innocencio Francisco da Silva. Lisboa, 1875. Há várias cópias manuscritas dos séculos xvii e xviii.
9 Clori no sentido de amante vem já na Feira dos Anexins.
10 « Certas Agulhas ferrugentas, tinham entre o Badejo e Bacalhau metido tal enredo que dizia o Bacalhau: Há quem faça melhor cozimento ao estômago que eu? Arre com o Badejo, que a puro azeite é que vai escorregando. » Feira dos Anexins, p. 215.
11 Tem grande chelpa escondida,
e de tudo quanto tem,
é herdeira sua filha.
O dano dos miseráveis (entremez). Lisboa, 1784. ... o noivo era fama que media
aos alqueires a chelpa...
Segunda parte da viagem sonhada, que fez um homem dormindo. Lisboa, 1785.
12 Oh! tomara-lhe eu a china!
O dano dos miseráveis (entremez). Lisboa, 1784.
13 .. tendo de dia feito ao faxo
O bico muito bem, ficando um caxo.
Raio poético de Matusio Mattoso Matos das Matas. Lisboa, 1786.
14 Deste cano real hoje te saco,
Qual saca o gandaeiro um prego torto
Dentre os chichelos velhos da enxurrada.
Correia Garção, Teatro novo, scen. 5. ... e estes peraltas,
tristíssimos gandaeiros,
e outros ejusdem furfuris,
pobretões já ex professo,
não veem junto um só tostão.
Incisão anatómica ao corpo da Peraltice. Lisboa, 1771.
15 Assim como no leito foi pilhado (Marte)
Fazendo gaudiperios ao coitado
Do ferreiro Vulcano, a que a mulher
Armas contra seu gosto faz trazer.
Raio poético de M. M. Matos das Matas. Toda essa gritaria, e apupada,
Que te fere os ouvidos, é causada
Do feio gaudiperio, que pregou
A um Ginja, que há pouco se casou
Sua mulher...
Segunda parte da viagem sonhada, que fez um homem dormindo. Lisboa, 1785.
16 .. mal pilhou
O seu Gebo a dormir...
Segunda parte da viagem sonhada, que fez um homem dormindo. Lisboa, 1785.
17 Eu lhe buscarei ideia
para lhe sacar o gimbo.
O dano dos miseráveis (entremez). Lisboa, 1784.
18 Então no tal casamento
Desde já estou maribando.
O dano dos miseráveis (entremez). Lisboa, 1784. Ora eu estou maribando em vossa alteza.
Novo entremez das regateiras bravas. Lisboa, 1786.
19 Nesta certeza os mecos conloiados
A seu salvo as saúdes repetiam.
Raio poético de M. M. Matos das Matas. Lisboa. 1786.
20 E por isso não pára em parte alguma
Nem com ela também coisa nenhuma,
Por ser dotada de tal ar d’ unhante,
Que excede a qualquer rapinante.
Raio poético de M. M. Matos das Matas. Lisboa, 1786.
21 Modifiquei a ortografia de Silva Lopes.
22 Cesare Lombroso, L’homme criminel, trad. fr. Paris, 1887, p. 465.
23 Francisque Michel, Études sur l’argot, p. xlvi.
24 Ascoli, Studi critici, p. 380.
25 Na história do argot marcam-se os seguintes períodos : 1.° le jargon, do século XV ao xvi ; 2.° le langage blesquien, de que o livro de Pechon de Ruby contém o repertório, e le langage narquois, do século XVI ao xvii ; 3.° l’argot, propriamente dito, de 1617 até hoje. Vid. A. Vitu, Le Jargon du xve siècle, p. 52. Essas divisões não têm nada de essencial; referem-se principalmente aos nomes, em vigor, da gíria francesa, coincidindo em parte com modificações mais ou menos numerosas no vocabulário do argot, que continuou a experimentar mudanças, sem mudar de nome, desde o fim do primeiro quartel do século XVII.
26 O termo piovês está por *pivoês. A palavra devia ter chegado a Portugal quando em francês a grafia oi representava ainda o ditongo oè, isto é, antes do século xviii. O mesmo se deu com framboesa de fr.framboise, oboé de fr. haut-bois, toesa de fr. toise.
27 Vid. Fr. Michel, Études de philologie comparée sur l’argot, p. 425.
28 Vid. acima pag. 91.
29 São 48 as palavras do grego (moderno), incluindo quatro numerais, que Miklosich, Abhandl. ii, 42-3, acha no gitano. Com, relação a quarenta e cinco dessas palavras parece-me que não pode duvidar-se de que sejam um testemunho da residência dos antepassados europeus dos gitanos na Grécia; sobre harton e as duas seguintes é que podem levantar-se dúvidas. O gitano calcó, calcorro (com o sufixo ibérico -orro) dificilmente pode separar-se dos termos de cal. calcos e germ. calcorros, para o ligar ao gr.χάλτζα, apesar da observação de Miklosich: «Die Oxytonirung weiset auf nicht-span. Ursprung». Nessa acentuação pode ter havido uma influência analógica. O git. furnia, cueva, não veio talvez da Grécia (gr. φoυρνo) com os tsiganos que se acham na nossa península, pois já cá havia em esp. furnia, usado ainda hoje em Cuba, e em port.furna, ainda vivo no continente, e transplantado logo depois da colonização da ilha de S. Miguel (Açores) para essa ilha, onde é célebre o Vale das Furnas. O termo git. drun, caminho, viagem e também prudência, cordura, juízo (Mayo), do gr. δρóμo, caminho, faz lembrar o termo pop. port., talvez primeiramente termo de gíria, endromina, ardil, mentira para defraudar.
30 Professor holandês, falecido em 1614, que coligiu termos tsiganos e do Rothwelsch. Vid. Miklosich, Beitr., i, pp. 765-771.
31 Pott, Zig., II, 340, translada de Dorph, autor de um trabalho sobre a gíria dinamarquesa, limes, teia, e limsk, camisa; a relação com as gírias românicas pode ser apenas aparente, como sugere Ascoli, Studj, p. 419.
32 No ant. francês havia sorne crepúsculo: a germania tinha sorna, noite; esta provém daquela que Storm (Romania, v, 184, 184) deriva «de Saturnus, comme représentant le planète d’influence funeste, et opposé à Jupiter, d’où jovial, comme me fait observer M. Bugge. Angl. saturnine, sombre, morne, fr. du xvie siècle saturnien (Littré)». Segundo o mesmo filólogo o ant. fr. sorne está por *soorne, *sadorne, e, por causa da raridade da queda do tem provençal, a forma deste, sorn, deve provir da língua d’oïl, em que por certo existiu um adj. *sorne, de que deriva sournois, e a que se liga port. sorna. D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos (Studien zur hispanischen Wortdeutung. Firense, 1885, p. 157) deriva port. soturno de Saturnus, sem referência ao artigo citado de Storm.
33 A palavra port. bolacha (biscoito chato) toma familiarmente o sentido de bofetada.
34 Vid. p. 141 e n.
35 Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, 2.a série, n.° 3, p. 142-149.
36 A forma alcofa acha-se no Elucidário das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usárão, de Santa Rosa de Viterbo, mas sem texto que prove a sua antiguidade. E um dos vários termos populares que o autor inseriu entre os arcaísmos; figura na lista de Queiroz Veloso, a que pertencem todos os de calão citados neste estudo que não se encontram nas nossas listas acima. Fernão Lopes empregou a forma alcouvetas : « Queria gram mal a alcouvetas e feiticeiras ». Chron. D. Pedro I, e. 10.
37 Pela abreviação port. indicamos o português geral; só indicamos a significação dos termos que nela experimentaram modificação.
38 Sobre factos análogos e que os distingue da etimologia popular, vid. o meu artigo. A etimologia popular, in Revista lusitana, i, (1887), pp. 133-142.
39 Vid. Larchey, p. ix, Schwob et Guieysse, p. 46.
40 Die portugiesische Sprache in Gröber’s e Grundriss des romanischeu Philogie, i, 776-77.
41 Ibid, p. 769.
42 Vid. Questões da língua portuguesa, pp. 44-50.
43 Digo pelo menos aparentemente, porque as formas podiam ter-se produzido independentemente, isto é, lastimoso podia não ter sido derivado de lastimeiro, ou vice-versa, mas sim qualquer deles de lástima.
44 Grammatik der romanischen Sprachen, 112, 262-3; trad. fr. da 3.aed., II, 260-261
45 W. Corssen, Ueber Aussprache, Vokalismus und Betonung der lateinisch en Sprache, 112, 149.527-530. Cf. II. Paul, Principien der Sprachgeschichte, 2.a ed., p. 203-204..
46 No argot é frequente a adjunção de sufixos deformativos nos pronomes: nouzaille por nous, vouzaille, vouzigaud, vizière, vozigue por vous. Rigault, mèzique, mézigo, loimique pour moi; tezière, tezingaud, loitrique, loitrème por toi ; sézigue, seizière, sezingaud por lui (soi) ; nozière pour nous. Schwob et Guieysse, Mem. Soc. ling., vii, 46.
47 Nas línguas românicas, como vimos acima, a adjunção de um sufixo sem valor derivativo ou indiferente tem um fim adverso – a conservação de uma palavra de pouco corpo.
48 Schwob et Guieysse, Mém. Soc. Ling., vii, 43; J. Storn, Englische Philologie, i, 156-157.
49 E menos certo se cal. cachilras, seios de mulher, se liga a cal. cachorros, com a mesma significação, influindo chilra (cp. ainda bilro, pela terminação); e se cal. carraspana, bebedeira, está por *carrascana, de carrascão, vinho ordinário, forte e áspero ao paladar, influindo raspar.
50 Cal. polaco, por pae, é sem dúvida devido ao mesmo processo; mas aqui em vez de *malaca, por mãe, temos simplesmente polaca.
51 Cal. meter golfas significa lisonjear, e é sem dúvida originado da locução popular metê-las gordas, mentir, dizer grandes mentiras.
52 Schwob et Guieysse, Mém. Soc.ling., vii, 40-42.
53 Arsène Darmesteter, La vie des mots, 2.a ed., p. 131. Littré, s. v. souffreteux.
54 Ter-se-á produzido malaco primeiro por maluco e depois substituído a pataco. A ideia de mau, falso, pode ter influído (cp. macanjo pág. 95) ; há também cal. maluco por pataco. Doutro lado parece que tabaco foi igualmente assimilado a malaco, em seguida mudado em maloque e maleque para evitar a confusão com malaco = pataco. Temos assim uma série de formações mal-aco, mal-eque, mal-oque, mal-uco para substituírem os usuais pataco e tabaco.
Cal. medula, seda, estará por um sedula não documentado ? Cp. cal. seduncha, seda. Cal. medunha, dedos (sic.), Silva Lopes, estará por dedunho?
55 Studj critici, p. 388.
56 Sobre as mudanças de significação em geral, vid. Ludwig Tobler, Versuch eines Systems d. Etymologie in Zeitschrift f. Völkerpsychologie und Sprachwissenschaft, i (1860), 349-387; Herman Paul, Principien der Sprachgeschichte, 2.a ed., Halle, 1886; W. Wundt, Logik i, 34-36. Stuttgart, 1881 ; A. Rosenstein, Die psychologischen Bedingungen des Bedeutung-swechsels der Worter. Danzig, 1884; Arsène Darmesteter, La vie des mots étudiée dans leurs significations, 2.a ed. Paris, 1887; Kurt Bruchmann, Psychologische Studiem zur Sprachgeschichte, (Leipzig, 1886), p. 306 e segs. Para o meu fim restrito não careço de um esquema completo de mudanças de significação.
57 Se lostra, no mesmo sentido, é alteração da lagosta fica no domínio da pura hipótese. Na significação de escarro, lostra é sem dúvida la ostra.
58 Cf. a seguinte passagem de Monte Carmelo, p. 505: «à chomberga, pela calada, ocultamente, etc. Chomberga foi certa moda de bigodes, que trazia o marechal Conde de Schomberg; mas a Plebe e os Cómicos trocarão a significação deste vocábulo».
59 A palavra óbvio foi ouvida já no sentido de estranho, censurável ; plantaforma, por plataforma, é empregada pelo povo correntemente no sentido de aparato para iludir; por exemplo: se antes de umas eleições se emprega o conhecido processo de mandar proceder ao estudo de uma estrada para uma localidade descontente, aplica-se ao caso o termo, que (quem sabe?) talvez fosse sugerido por esses levantamentos ilusórios de plantas. A palavra paródia designa na boca do povo inúmeras coisas variadas, a começar pelas danças e mascaradas carnavalescas e a acabar numa figura qualquer caricata: um destes dias ouvi um cocheiro dizer para um sujeito que estava parado a uma esquina observando o que quer que fosse: «não estejas aí de paródia». Ouvi já empregar laudemio no sentido de presunção, vaidade. Num anúncio de um açougue li : « O responsável deste talho tem que ser lícito nas transacções que faça com o público»; aqui licito, o que é permitido, adquiriu o sentido do probo, honrado, por um processo fácil de compreender. Falar ou ser pespautério é falar senhor de si, com importância, bacharelar, e vem sem dúvida de *falar pelo Despautério; isto é, conforme a gramática de Despautério, enquanto doutro lado despautério veio a significar disparate, tolice. O termo badameco, rapazote atrevido, originou-se de badameco = vade-mecum.
60 Encontram-se factos semelhantes noutros países; vid., por ex., os nomes da pêga em Rolland, Faune pop. de la France, ii, 132, seg.
61 Como galheta significa, no sentido português próprio, garrafinha para azeite, vinho ou vinagre e que na igreja se usa um par de galhetas, para o vinho e água do sacrifício, e nas mesas o vinagre e o azeite se apresentam num par de galhetas, diz-se um par de galhetas por duas bofetadas, uma do lado direito, outra do lado esquerdo,. A que sentido da palavra se liga a expressão burlesca volaverunt galhetas, expressiva do estado colérico de alguém, é difícil de determinar.
62 Cp. lat. scortum, coiro e meretriz. O hebreu “Jlh de que provém cal. zoina (vid. p. 103) tem também a significação fundamental de scortum. Na frase estar em cação, aludir-se-á antes ao cação a que se tirou a pele?
63 Schwob et Guieysse, Mém. Soc. ling., vii, 50.
64 Studj critici, p. 396.
65 Chamo aqui etimologia a que liga um termo de gíria a um termo da língua geral, ou do país a que pertence essa gíria ou do outro.
66 An Essay towards a Real Character and a Philosophical Language (London, 1668); Max Müller, Lectures on the Science of Language. Second Series. II Lect. Sobre outras tentativas semelhantes, vid. além dessa lição de M. Müller, Techmer in Internationale Zeitschrift für allgemeine Sprachwissenschaft, iv, 339-340.
67 Sobre a legitimidade das tentativas volapükistas, vid. H. Schuchardt, Aus Anlass des Volapüks (Berlin, 1888).
68 Pode objectar-se que até as pessoas cultas que conhecem bem a forma das palavras as alteram por vezes, já falando, já escrevendo. Suponhamos que eu vou para dizer ataraxia e digo ataxia. Que se deu neste caso? Em vez de me surgir no espírito a forma verdadeira que eu tinha intenção de produzir surgiu outra, o que equivale a uma ignorância, que só se distingue da que o povo tem das formas cultas, que modifica, em ser momentânea: não há no processo diferença essencial. S. A. Guastella no livrinho Vestru, scene del popolo Siciliano (Ragusa, 1882) dá notícia de uma tríplice forma de linguagem no povo de Chiaramonte: uma a coloquial, cheia de supressões de consoantes e contrações de vogais; outra menos contracta, a linguagem do canto e por fim uma ainda mais perfeita que é a linguagem da poesia, e apresenta os seguintes exemplos:
Linguagem coloquial : Uzzumaò.
Cappicciavi lammassciarà.
Linguagem do canto: ‘u zzu mònucu ‘a vo’. C’ ‘a za Vita l’ ha massciu Arà.
Linguagem da poesia: Lu zu mònucu la voli.
Ccu la za Vita mastr’ Aràziu l’havi.
Destrói esse facto interessante o meu modo de ver? Creio que não. Essas três formas de linguagem correlacionam-se como dialectos diferentes numa mesma boca e o seu emprego é determinado por necessidades diversas, de modo que em cada caso há uma orientação particular das representações, que as mantém até certo ponto isoladas. Em cada caso surgem no espírito do que fala as representações das formas respectivas e ficam latentes na consciência as outras. Noutra parte voltarei a este assunto. As formas eruditas ao lado das populares na boca do povo, como plano e chão, não podem também constituir objecção ao que exponho no texto: essas formas duplas ou divergentes apresentam-se estranhas umas às outras no espírito popular.
69 Como é sabido, foi Maupertuis que primeiro enunciou com aplicação à mecânica, o princípo da menor acção, ligado no espírito dele a concepções teleo-teológicas, que modernamente foram postas de lado. Vid. Wundt, Logik, i, 579, ii, 262-264 e o escrito por ele citado de A. Mayer, Geschichte des Princips der kleinsten Action (Leipzig, 1877). Foi sobretudo Richard Avenarius quem aplicou o princípio ao domínio do espírito no seu opúsculo Philosophie als Denken der Welt gemass dem Princip des klinsten kraftmasses. Prolegomena zu einer kritik der reinen Erfahrung (Leipzig, 1876). «Todo o organismo que trabalha adequadamente para um fim deve realizar a sua tarefa com os meios relativamente menores. No pensamento deve-se portanto trabalhar com a possível economia de força». Com relação ao trabalho humano em geral um economista formula o princípio da seguinte forma: «The fundamental principie of human action – the law that is to political economy what the law of gravitation to physics – is that men seek to gratify their desires with the least exertion». Henry George, Progress and Poverty (London, 1882), p. 184.
O princípio foi aplicado à linguagem em diferentes direcções. Max Müller nas suas Lectures on the Science of Language. Second Series (1864), explica a alteração fonética (phonetic decay) por «want of muscular energy» (p. 176), «muscular relaxation» (p. 177), «muscular effeminacy» (p. 185), «relaxation of muscular energy » (p. 197), « tendence of language to facilitate pronunciation» (p. 186). Whitney fala de uma tendência para a economia dos meios, para a comodidade, no domínio fonético, nas suas obras de linguística geral, p. ex.: La vie du langage (trad, fr.), cap. iv, e consagrou à questão um estudo especial: The principle of Economy as a Phonetic Force. Boston, 1877. Supplement. 1882. (From Transactions of the American Philological Association).
O modo ordinário de considerar essa manifestação da tendência para a economia na substituição de sons que exigem maior esforço por sons que exigem menor esforço é refutado por Sievers, Grundüge der Lautphysiologie. (Leipzig, 1876), pp. 125-127, com quem concordam os neo-fisiólogos da linguagem, não admitindo esse princípio como exclusivo. Já Steinthal em 1860 (Zeitschrift für Volkerpsychologie, i, 119-120) fizera as seguintes observações: «Como notamos nas melodias populares que um povo ora carece destes ora daqueles acordes perfeitamente harmónicos, assim se nega ele a admitir na sua língua determinados grupos de sons em virtude de certa idiosincracia. Aceitando isso completamente, sou todavia da opinião que os processos fonéticos, até a alteração fonética sob a influência recíproca dos sons, dependem em pequeno grau de condições puramente semânticas, orgânico-mecânicas, e são produzidas menos do que geralmente se julga pela forma de actividade e respectiva posição dos órgãos da linguagem. Essas relações somáticas parecem-me ter acção secundária, enquanto reconheço a causa primária da alteração fonética num processo físico... Se a alteração fonética resultasse somente da tendência para a comodidade e eufonia, compreender-se-ia bem a influência progressiva dos sons (na assimilação), mas não a oposta, a regressiva; e todavia é esta a mais frequente, a mais regular.» Paul diz (Principien der Sprachgeschichte, 1886, p. 54) : « E de grande importância ter sempre presente que a comodidade representa o papel de causa muito secundária, enquanto o sentimento do movimento (bewegungsgefuhl) é sempre o princípio propriamente determinante ». Kruszewski mantém maior generalidade do princípio da economia nos seus Principien der Sprachentwickelung in Internat. Zeitschrift f. allgem. Sprachwissenschaft (vol. i-v, vid. p. ex. i, 301-302). Cf. ainda Misteli, Lautgesetze und Analogie in Zeitschrift f. Volkerpsychologie, xi, 370-1.437. A tendência económica na linguagem é representada por alguns como vis inertiae, aplicando ao domínio físico a expressão alemã Trãgheit e a sua correspondente latina inertia, que na história da mecânica nos aparecem pela primeira vez com Kepler, a alemã na sua Antwort an Helisäus Röslin e a latina no quarto livro do Epitome Astronomiae Copernicae, para exprimirem a incapacidade de se mover por si que o grande astrónomo atribui à matéria. Ele que nos diz: «Soll nun dieses proprietas überwunden werden, so gehort ein Beweger dazu, in des Menschen Leib ein Seel, in der grossen weiten Welt ein species immateriata, versans in actu motus», ele não admitiria essa translação do conceito da inércia ao domínio físico. Vid. Emil Wholwill, Die Entstehung des Beharrungsgesetzes in Zeit.
f.Völkerpsych. vol. xiv e xv (xv, 370-371). Nessa translação, o conceito experimenta todavia grande modificação ou antes recorre-se àquela expressão em psicologia para designar alguma coisa que se sabe ser muito diversa do que ela designou em mecânica, por falta de melhor termo, como faz Steinthal, Abriss der Sprachwissenschaft, i, §§ 43, 59, 102, 117, (cujas observações se modificam no § seguinte). Com razão diz Misteli (art. cit. p. 437) : «Uma inércia de espírito, tal como há uma inércia da matéria, é coisa que não existe e contém uma contradictio in adjecto ». Em vez de falar de uma tal lei de inércia no domínio físico é muito preferível falar de uma lei de economia ou do menor esforço. Karl Bruchmann ocupa-se da lei da menor acção no domínio da linguagem, com referência a parte dos autores citados nesta nota, no seu livro Psychologische Studien zur Sprachgeschichte (Leipzig, 1888), pp. 177-185.248-293 ; as suas observações estendem-se ainda à retórica e à estética.
70 Sobre o hábito vid. P. Radestock, Die Gewöhnung und ihre Wichtigkeit für der Erziehung (Berlin, 1884), onde se acham reunidas interessantes observações de diversos autores. C. Lombroso leva ao exagero o conceito do hábito na vida social no seu artigo: Le crime politique et le misonéisme ou la loi de l ’inertire dans le monde moral in Nouvelle revue (février et mars 1890) e depois no seu livro sobre o crime político, que não tenho à mão. Como se vê do título repete-se aqui o conceito da inércia com aplicação ao domínio físico, como nos psicólogos citados em a nota precedente. S. Merlino combateu as ideias de lombroso num artigo La Néophobie in Revue scientifique (avril 36, 1890). Note-se todavia que Lombroso escrevera: « Le misionéisme n’est pas loi de nature que quand l’innovation est trop radicale». Merlino da sua parte pensa que: «La somme des sentiments philonéiques est toujours supérieure à la somme des sentiments misonéiques ». A verdade é que o amor do novo é um móvel importante e que as contradições aparentes se explicam perfeitamente pela lei do menor esforço. Esse amor, independentemente da necessidade, tem papel assaz considerável na formação das gírias.
Em toda a questão do filoneismo e do misoneismo não se tem tido em conta um lado importante: a fadiga que causa a monotonia e que suscita a tendência para a evitar pela variedade, pela inovação.
71 Hermann Lotze, Métaphysique, trad. fr. de Duval, revue par l’auteur (Paris, 1884), § 216.
72 Sobre a criação original moderna nas línguas usuais, vid. Paul, Principien der Sprachgeschichte, 2.a ed., cap. ix.
73 Vid. Scheler e Littré, s. v.
74 Vid. W. Preyer, Die Seele des Kindes (Leipzig, 1882), pp. 277-278; Steinthal, Abriss, § 510, 532.
75 Há sobre línguas desse género um trabalho de Horatio Hale in Proccedings of the American Association for the Advancement of Learning, vol. xxxv, 1886, que só conheço pelos extractos dados por G. J. Romanes, Mental Evolution in Man (London 1888) pp. 138- -143, junto com uma observação semelhante de um amigo do autor desse livro. Steinthal, Der Ursprung der Sprache, 4.a ed., dá notícia de casos do mesmo género, segundo leio numa notícia dessa edição, que ainda não vi.
76 Miklosich, Beiträge zur Kenntniss der Zigeunermundarten, iii. Zigeunerische Elemente in den Gaunersprache Europa’s in Sitzber. lxxxiii, pág. 538.
77 Pott, Die Zigeuner, ii, 38-43; cf. i, 64. Maio traz no seu vocabulário gitano alguns termos expressamente indicados como de germania.
78 Não apresento as formas de todos os dialectos tsiganos, ligadas às do calão, as quais se encontrarão nas obras citadas.
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