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Capítulo 11. “O grupo é a minha alma”: amizade e pertença entre jovens

p. 143-155


Texte intégral

Nha grupo ê nha alma1
Nha familia ê nha grupu
Nha cretcheu ê nha amigo di grupu
Ta xinti ki kel grupu tem un significadu spicial pami pamódi ê cima ke nha segundu lar
Ami ê un jovem ki tinha varius probulemas na bida n’tinha ki sabi lida ku ês, ami in pidi consedjo na guentis mas bedjos sempri ki era possivel n’ta pensa ki sin ca staba la gosi n’ca era o mesmu alguem
Si mi sta tristi e ku probulemas s’di mi sta la, n’ta fica contenti e muiti satizfeitu ku mi própri
… Kuando in da nha primeru espectaculo na lodu des tudo, in fica contenti e muiti satizfeitu ku mi própri, tudu sô pa prazer di dança

1É difícil “competir” com estas expressões para tentar explicar o significado do grupo Estrelas para os jovens que o integram. Em todo o caso, penso que é possível, sem um olhar adultocêntrico, desenhar o esboço de um estilo de sociabilidade de um grupo de jovens — os “Estrelas Cabo-verdianas” — que fazem do bairro Estrela d’África, na cidade da Amadora, o epicentro da sua interacção e o palco preferencial das suas actividades.

Apresentação do grupo Estrelas Cabo-verdianas

2O grupo “Estrelas Cabo-verdianas” foi criado em 1984, na sequência de um projecto de desenvolvimento local “Nô Djunta Mon”,2 que se desenvolveu nos anos 1980, na Estrada Militar do Alto da Damaia, na cidade da Amadora, por iniciativa da Associação Cabo-verdiana, sedeada em Lisboa. O nome do grupo resultou de um sorteio feito entre os jovens cuja composição era maioritariamente de afroportugueses de origem cabo-verdiana.

3Ao longo dos anos, o grupo foi integrando rapazes e raparigas de diferentes idades, sobretudo descendentes de imigrantes cabo-verdianos, santomenses e angolanos, que vieram para Portugal nos anos 1970 e 1980 e se fixaram junto às grandes empresas de construção civil da Venda Nova, Amadora.

4Com um número de participantes irregular, o grupo Estrelas Cabo-verdianas integra 30 elementos, 16 raparigas e 14 rapazes, com idades compreendidas entre os 16 e os 31 anos, tendo mais de 2/3 idade inferior a 24 anos, que formam uma rede cuja “cabeça” é o líder do grupo. A proximidade de idades produz, no interior do grupo, uma identidade que parece redefinir as fronteiras sociais e culturais com os progenitores. Este dado confere ao grupo uma marca importante, já que é nesta fase da vida que os jovens começam a arquitectar os seus projectos de vida, de acordo com um campo de possibilidades (Velho, 1994: 46) configurado pelo quadro de interacção social e cultural (Costa, 1999: 296) em que se movem, bem como pela sociedade envolvente.

5Dentro deste número, há um subgrupo de oito pares de bailarinos e bailarinas centrais, que funciona como “núcleo duro”, uma espécie de “elite” que se sujeita a duros ensaios semanais. O grupo integra, ainda, um conjunto de amigos e amigas,3 que, apesar de não dançarem, acompanham todas as actividades do grupo. A maioria dos jovens possui nacionalidade portuguesa, não obstante os pais serem naturais de Cabo Verde ou S. Tomé e Príncipe, existindo um número muito reduzido de jovens com nacionalidade cabo-verdiana e angolana; os mais novos já têm naturalidade portuguesa, uma vez que nasceram em Lisboa ou na Amadora.

6No grupo são conhecidos pelo respectivo nominho,4 o qual traduz, entre os jovens, um misto de carinho e de troça: Zé Gato, Levado, Grosso, Bucha, Kissas, Feia, Baixinho, Nhunha, Piteco, são alguns dos exemplos.

7Grande parte dos jovens vive em habitações precárias, numa zona que se pode considerar intersticial (Park, 1990 [1916]) cuja malha é composta por bairros inter-étnicos com uma forte segregação social urbana, pois trata-se de um continuum de bairros de habitat precário, habitualmente designado como “degradado”,5 sobretudo nos bairros Estrela d’África, 6 de Maio, Fontaínhas e Bairro Novo das Fontaínhas, que separa os concelhos da Amadora e Lisboa. Um pequeno número reside em bairros de habitação social, nomeadamente no Zambujal ou em zonas de parque habitacional privado, nomeadamente Mem Martins, Rio de Mouro, Tapada das Mercês e Reboleira.

8Os jovens do grupo têm como principal ocupação o trabalho ou a escola, embora alguns jovens trabalhem e estudem simultaneamente. As profissões dominantes estão relacionadas com áreas da construção civil e da restauração.6

9Como referimos, o grupo “Estrelas Cabo-verdianas” tem uma composição mista, de 14 rapazes e 16 raparigas, o que se torna um factor de construção e ajustamento permanente das formas de amizade e dos estilos de sociabilidade adoptados por ambos os sexos em interacção. Assim, no grupo coexistem formas culturais que combinam traços de condutas, supostamente próprias das culturas juvenis femininas e masculinas (Wulff, 1988).7

10No caso das raparigas, verificamos a existência de uma cultura própria que se materializa em traços como: as horas passadas no quarto a falarem sobre os problemas de relação com os namorados ou com os pais, as atitudes narcisistas de se vestirem de forma sensual utilizando o preto e o branco como cores dominantes, bem como as roupas interiores sedutoras; de aplicarem as cosméticas sofisticadas no rosto e nos olhos, trabalharem os penteados, marcarem o corpo com piercings ou tatuagens (Valerie, 1999: 133),8 deixando antever que fazem parte de uma cultural juvenil (Feixa, 1999: 85) mais lata.9

11No caso dos rapazes, também identificamos comportamentos e a adopção de marcas identitárias próprias dos jovens destacando-se, por exemplo, os desenhos feitos na cabeça e na cara através de cortes especiais do cabelo e da barba, os dreadlocks, as tatuagens, o modo de vestir em que predomina as roupas e calçado de desporto de marca, com grife, a apetência para o desporto, especialmente o futebol, a apropriação do espaço exterior, como o beco, a rua, o café, lugares de convivialidade, por excelência.

12Estas marcas servem para a autodefinição dos jovens, enquanto pessoas e grupo, mas também para comunicarem com outros jovens comprometidos com diferentes estilos juvenis (Feixa, 1999: 97).10 Neste contexto, parece óbvio que pretendem demarcar-se das práticas culturais dos progenitores com um background (Mitchell, 1980: 53) africano,11 embora não rejeitem completamente alguns traços de inspiração afro, que a moda se encarregou de valorizar. O que importa aqui destacar é o facto de não estarmos perante uma segunda ou terceira geração de imigrantes precariamente “suspensa entre duas culturas” (Baumann, 1996: 1), mas de jovens portugueses, nascidos e criados num contexto urbano, cuja maioria nunca visitou o país de origem dos pais, nem vivenciou a experiência da imigração senão através de relatos dos pais e vizinhos. Poucos são os elementos do grupo que já visitaram Cabo Verde ou São Tomé, embora desejem fazê-lo para melhor compreenderam as tradições culturais dos pais. De facto, a identidade cultural dos pais dos jovens marca-os em vários aspectos da sua vida e tem reflexo nos estilos juvenis (Feixa, 1997: 97) que adoptam,12 apesar de conhecerem a cultura de origem dos pais de forma filtrada por inúmeras estratégias de sobrevivência, numa reinvenção permanente condicionada pelo contexto urbano.

Dinâmica do grupo no bairro e espaços de sociabilidade

13A composição e o modelo organizativo do grupo Estrelas Cabo-verdianas foram moldados, ao longo dos anos, por fases de maior ou menor dependência relativamente às associações locais e pelas etapas e experiências de vida dos próprios jovens.

14As diferentes fases do grupo explicam-se pelo grau de informalidade que sempre o caracterizou,13 não obstante existirem códigos éticos e de conduta, regras e sanções, responsabilidades partilhadas, espaços de crítica, de autocrítica e elementos estruturantes que têm cimentado a amizade e o sentimento de pertença, evitando a erosão do grupo. O carácter liminar, de margem, é reforçado mais pelo exterior do que pelos seus membros,14 os quais sentem o grupo como um espaço de sociabilidade e de integração por excelência. Para este efeito, contribuem quatro factores estruturantes, que funcionam como pontos nodais de ancoragem dos jovens ao grupo: o líder carismático que é um mediador com o qual os membros do grupo partilham vidas, competências, afectos, tristezas e euforias; as actividades de rotina (ensaios de dança nos fins de semana) e as cíclicas (festas, deslocações para fora de Lisboa, etc.); as relações de amizade e o sentimento de pertença ao grupo e ao bairro, que dão substância à rede de amigos que o grupo configura; o bairro Estrela d’África, como referente simbólico e lugar da interacção por excelência.

15Estes elementos constituem forças centrípetas que “puxam” os jovens para o interior do grupo, transformando-o num “porto de abrigo”, num “ancoradouro”, onde amarram as suas vidas. Estas quatro dimensões do grupo estão intimamente ligadas, configurando um certo estilo de vida e uma certa visão do mundo, que servem de suporte emocional e cultural a uma identidade individual e colectiva que extravasa o próprio grupo.

a) O líder

16O líder do grupo, de 31 anos, que se autoclassifica como “um falso badio”,15 viveu durante anos com a avó materna num núcleo de habitat precário no Alto da Damaia,16 Amadora. Neste bairro, entre 1981 e 1984, alguns miúdos, que brincavam e jogavam à bola na rua, começaram a juntar-se num espaço para ouvirem música e para dançarem os ritmos frenéticos do funáná e das coladeras.

17Assim, oito rapazes e raparigas, com idades entre os 10 e os 18 anos, passaram a encontrar-se regularmente num espaço improvisado para dançarem, partilharem experiências e entreajudarem-se.

18Nessa altura, o jovem Victor começou a revelar características de liderança e um poder aglutinador de vontades, de gestão de afectos e de mobilização de crianças e jovens. Como ele próprio afirma, aceitava a sua mestiçagem sem complexos, valorizava a cultura dos pais dessas crianças, tentava tornar positivo tudo aquilo que os envergonhava: a história de pobreza dos pais, as profissões que os inferiorizam, a comida e a música, o vestir colorido, a cor escura da pele, todo um conjunto de coisas que, para a maioria, não valia a pena seguir! Por isso, ele contribuía para que os jovens ganhassem força para resolverem esta confusão interior, para construírem a sua própria cultura, e não a raiva que rapidamente se transformava em agressividade. As ruas destes bairros estavam cheias de heróis sem causa, que vagueavam pelas ruas à procura de sentido para as suas vidas, deixando os pais com o coração nas mãos, pois não viam os filhos num rumo certo. Daí, o surgimento da ideia do alargamento deste pequeno grupo aos mais novos, crianças e adolescentes, que não encontravam em casa nem na escola, a segurança, o afecto e o prazer de viver, pelo que se juntavam em pequenos grupos de aventuras, que andavam à deriva um pouco por todo o bairro, entregues a si próprios. O líder surgiu, assim, como o elo que faltava para construírem o seu grupo de amigos.

19O líder joga, ainda, um papel importante na gestão dos conflitos gerados endemicamente ou provocados pelo exterior, demonstrando uma capacidade para accionar diferentes gramáticas culturais, operando como um mediador transcultural (Vianna, 1997) que põe em contacto diferentes realidades socioculturais, articulando “mundos” complexos e diferentes.

b) A dança e as actividades do grupo

20Avida do grupo está marcada por um conjunto de actividades, que têm como centro a dança. As actividades do grupo são, pois, de dois tipos: por um lado, as actividades de rotina, isto é, os ensaios semanais no coração do bairro Estrela d’África, que constituem um espaço fundamental na vida do grupo, pelo que os jovens anseiam que chegue o fim de semana para estarem juntos e para porem à prova as suas capacidades performativas. Com efeito, é nos interstícios da actividade semanal de dança, no bairro Estrela d’África, que toda a atenção está concentrada na disciplina do grupo, na superação das dificuldades da interacção intra-grupo, submetendo-se os jovens a uma avaliação não só da capacidade performativa como de comunicação e de compreensão do outro, do(a) companheiro(a) de grupo, com que partilham esta travessia colectiva; por outro, as actividades cíclicas, que ocorrem em determinados períodos do ano como, por exemplo, as jornadas de reflexão e de convívio fora de Lisboa. Estas actividades têm também como pano de fundo outros espaços urbanos fora da realidade dos bairros onde residem como, por exemplo, o centro comercial ou a discoteca.

21O Centro Comercial Colombo é um lugar de convivialidade e de consumo onde os jovens se encontram e divertem, contribuindo para contrariar a ideia destes espaços como não lugares (Augé, 1994: 99) ou lugares do homo anonymus (Freitas, 1996: 123). Neste caso, o centro comercial constitui um ponto central de encontro,17 de lazer e diversão que faz parte do “roteiro” das sociabilidades flutuantes dos jovens “Estrelas”.

22A discoteca N’Genga,18 situada nas Docas Secas, Amadora, constitui outro espaço de eleição dos jovens do grupo.

23Com efeito, a emergência das discotecas (Feixa, 1999: 118) como espaços de ócio,19 provocou um grande impacte social nas formas de comunicar e de consumir dos jovens passando a ser centros difusores de modas juvenis associadas à música, transformaram-se em megapalcos de encontros, de estilos e cosméticas, de relações efémeras. Mas tornaram-se, também, no lugar onde a tribo celebra os ritos de passagem que se querem eternizados,20 onde se actualiza a, por vezes precária, identidade individual e social.

24As deslocações para fora da Amadora, sobretudo as estadias nas pousadas da juventude numa qualquer zona do país,21 constituem espaços de aventura, de divertimento, de prazer, mas também servem para o aprofundamento do afecto e conhecimento dos jovens, bem como de discussão de formas de organização para encararem novos desafios.

25A dança constitui uma dimensão central na vida do grupo. É através da dança que os jovens exercem o domínio sobre os corpos e estabelecem uma interacção mais profunda desenvolvendo, simultaneamente, códigos de comunicação e de informação que pretendem passar mensagens tanto no interior do grupo como para o exterior. Deste modo, a dança, como sistema de movimentos humanos e de comunicação, permite aos jovens do grupo Estrelas Cabo-verdianas identificarem algumas opções culturais e sociais, através das formas culturais que resultam do uso criativo dos corpos num espaço e num tempo determinados (Bridget, 2001: 490).

26A selecção musical, cuidadosamente elaborada pelo líder do grupo, constitui um repertório que já entrou nos ouvidos dos bailarinos, os quais utilizavam esta sequência repetitiva para memorizar gestos e passos de dança. Tudo parece ter uma história colectiva ou individual, que passa por evocar as terras de origem dos pais,22 as diferenças regionais, sobretudo entre “badios” e “sampadjudos”. O trabalho, a relação amorosa entre o homem e a mulher, as questões sexuais e os problemas criados pelo HIV e consequências para o indivíduo, são temas sempre presentes. Danças teatralizadas como “Sumara tempo”, “Valentim”, “Codê di dona”, “A doença Sida”, “Grupo de amigos” são minuciosamente explicadas aos jovens, para produzirem o efeito desejado.

27O conteúdo das músicas e respectivas danças pode ser um veículo importante para o conhecimento da sociedade onde está inserido o grupo de jovens que as produzem, coreografam e representam. Faz parte, pois, de uma cultura expressiva, que espelha a realidade social e cultural dos actores que a protagonizam, revelando as estratégias de distinção que afirmam a sua existência, na medida em que são maneiras de apreender a vida (Green, 1997: 293).

c) A amizade e o sentimento de pertença

28Um conhecimento mais aprofundado do grupo “Estrelas Cabo-verdianas” revela que o sentimento de pertença e o afecto (Cucó i Giner, 1995: 28) constituem elementos centrais da relação inter-pares, o que pressupõe uma adesão voluntária e desinteressada, que se sustenta na base de lealdade, da confiança e da reciprocidade. A amizade é, para os jovens do grupo, como “a água de que precisamos todos os dias”, uma forma de estar com o outro, de partilhar tudo o que há a partilhar, é algo muito forte que os une e faz sentir bem.

29Tal como outros laços informais, a amizade exerce uma influência sobre a conduta dos jovens, permitindo a utilização desses vínculos para contornar os constrangimentos sociais das instituições e organizações formais. Por isso, se perguntarmos aos jovens o que significa o grupo e a amizade para eles, as respostas são bem reveladoras deste sentimento de pertença.

A amizade é algo que circula ali, entrego-me à outra pessoa, a amizade é uma forma de estar com o outro, é como se fosse água de que necessitamos todos os dias, é uma coisa muito forte. O grupo só funciona com a amizade ou então só com dinheiro. [Victor, líder do grupo, 30 anos]

Num grupo é preciso ter união, amizade e confiança acima de tudo. Para mim o grupo Estrelas Cabo-verdianas significa muito, quando estou com o grupo sinto bem, feliz e realizada por fazer aquilo que gosto, também faz-me fugir um pouco dos problemas, alivia-me o stress e faz-me rir muito que é uma coisa que eu gosto muito. Este grupo é a minha segunda família, defendo-o de qualquer coisa. [Mana, 17 anos]

30Para além do objectivo de estarem juntos, os jovens elegem o grupo como a sua família e como o espaço privilegiado para exprimirem uma personalidade colectiva através de diferentes idiomas, mais ou menos visíveis, dos quais a dança, o crioulo, uma ética e amizade produzidos no seu interior, são os companheiros indispensáveis. Estes traços marcam um estilo de vida que configura um ethos resultante de percursos individuais e colectivos. Um estilo de vida que se revê na forma como falam dos seus problemas, mesmo os mais íntimos, como contornam situações difíceis que atingem as suas famílias e os próprios jovens; na forma como tratam os corpos e como se vestem, os adereços, a capacidade de brincar como crianças e de fazerem “partidas” e “roubos” rituais, ou os “potlach” (Mauss, 1974: 104) durante os quais destroem tudo o que está à mão, os jogos pedagógicos com os quais treinam skills e, sobretudo, a forma como reagem a todo o tipo de pressões a que todo o jovem está exposto na sociedade. Por exemplo, sempre que algum membro do grupo festeja o aniversário na “escolinha”,23 todos trazem comida e bebidas para partilharem com os restantes; a partir do momento que cantam os “parabéns” começam numa destruição de tudo o que resta, sendo os bolos atirados à cara do “parceiro”, as bebidas despejadas pela cabeça, enfim, desatam-se as vontades reprimidas pelas regras sociais e, então, vale tudo, é a destruição ritual. A transgressão e a inversão da “ordem” são um imperativo.

31A amizade dentro do grupo “Estrelas Cabo-verdianas” caracteriza-se por uma relação informal, tenuemente ancorada à estrutura social do bairro, constituindo um tipo de amizade com um carácter intersticial, não institucional, que cresce num ambiente particular, isto é, num contexto de bairro com características específicas. O sentido que os jovens dão à amizade advém, pois, de uma construção cultural e de uma inserção social (Bidart, 1997: 24).

32As relações de amizade entre os membros do grupo, alargadas aos amigos, namorados e parentes jovens, funcionam na base de compromissos e regras estabelecidas pelo líder e outros responsáveis, as quais são aceites de bom grado pelos outros elementos; a base é pessoal e voluntária, por isso há uma liberdade de movimentos que não é de todo desprovida de controlo, como se de um contrato se tratasse. Com efeito, um aspecto muito importante para alimentar a auto-estima dos jovens é a possibilidade de decidirem sobre o como e o que fazer em grupo, tornando-se agentes decisores e não apenas receptores de ordens emanadas de terceiros. Os direitos e deveres são estabelecidos pelos próprios membros, as sanções a aplicar definidas caso a caso, sempre que o grupo desenvolve endemicamente conflitos de pequena ou maior dimensão.

33No bairro Estrela d’África, esta forma de estar é fortemente apreciada pelas crianças e adolescentes. Muitos destes aspiram a fazer parte do grupo manifestando este desejo de duas formas: ou positivamente, observando os ensaios e esperando crescer para ser convidado a integrar o grupo ou negativamente fazendo todo o tipo de ruído e de desacatos no exterior ou no telhado da “escolinha” provocando a desestabilização do ensaio, obrigando à intervenção do líder.

34O estilo de sociabilidade dos “Estrelas Cabo-verdianas” constitui, como referimos, um mapa de orientação destes “candidatos a adulto” com referências culturais híbridas, baseadas numa mestiçagem (Kandé, 1999) ou negritude mais estigmatizante que libertadora. Ser um “Estrela Cabo-verdiana” significa desfiar o “novelo” da confusão em que sentem mergulhadas as suas vidas.

35O grupo é um espaço onde se tece uma identidade com fios de tradição e modernidade construídos a partir de um kit cultural cujos componentes se escolhem de acordo com as opções que, em cada momento, os jovens assumem individual e colectivamente. Neste contexto, os amigos, desempenham um papel muito importante na vida dos jovens, protegendo-se mutuamente ao longo do ciclo vital, proporcionando companhia e suporte emocional, contribuindo com eficácia para a construção da identidade pessoal e social, ajudando a ultrapassar os problemas e as crises da vida quotidiana, muitos dos quais resultam em rupturas e isolamento (Cucó i Giner, 1995: 53). Como refere esta autora, a amizade é uma construção social, modelada culturalmente, que implica uma relação dinâmica, com grande plasticidade de formas e conteúdos, que variam no espaço e no tempo.

d) O bairro Estrela d’África

36Este bairro é o espaço de referência do grupo, o lugar que os jovens elegeram para servir de habitáculo dos seus sonhos e experiências colectivas. Este bairro é a nossa casa é a expressão que melhor traduz o sentimento de pertença dos jovens a este território de identidade — o bairro Estrela d’África.

37Mesmo no coração do bairro, o local dos ensaios é um espaço de eleição, de festa, onde apetece, como vimos, provocar a inversão da realidade quotidiana cheia de constrangimentos.

38No bairro o grupo celebra o Natal como uma grande e unida família; há lugar a troca de prendas e afectos e se desfruta das indispensáveis iguarias que cada um prepara para o efeito, não faltando a música e a dança bem ritmada.

39De facto, o bairro é para os jovens do grupo o lugar de encontro e partilha por excelência, de reinvenção da tradição e da produção das suas identidades. Contudo, seria redutor imaginar que a interacção social dos jovens se confina às paredes da sala de ensaios. A rua e o beco constituem também espaços de encontro e de sociabilidade que servem de ponte para os jovens do grupo comunicarem com outros jovens que residem no bairro e na envolvente e de ponto de encontro para partirem, todos juntos, para o convívio noutros espaços da cidade.

À laia de conclusão

40A família e a escola constituem importantes ambientes socializadores das crianças e jovens a que se deve acrescentar o grupo e o bairro, como espaços privilegiados de socialização inter-pares, nos quais o desenvolvimento pessoal, social e cultural encontra o enquadramento fundamental.

41O grupo Estrelas Cabo-verdianas constitui, para os seus membros, um espaço com uma lógica própria engendrada pelos jovens actores sociais, que configura um estilo de sociabilidade sustentado pela amizade e o afecto. No grupo, rapazes e raparigas sentem-se como iguais no sentido em que têm os mesmos direitos e deveres pois as regras são construídas para todos e partilham, de igual forma, um conjunto de oportunidades. A amizade entre os seus membros é o cadinho e a dança é o fermento deste grupo que alimenta um estilo de vida e uma visão do mundo construídos intragrupo e realimentados através da interacção com o exterior. Uma relação de amizade deste tipo é, pois, indissociável da existência deste corpo sensível que revela uma idiossincrasia susceptível de influenciar todos os que contactam directa ou indirectamente com o grupo. De facto, os elementos do grupo têm redes de amizade mais amplas e sentem que transportam consigo esta “vantagem”, esta “marca de prestígio” por serem um membro dos Estrelas Cabo-verdianas. Esta marca reflecte-se, igualmente, nas crianças e adolescentes do bairro e arredores que idealizam poder vir a pertencer aos Estrelas, a ser um bailarino e bailarina, a deixarem o anonimato e merecerem o reconhecimento social, ao mesmo tempo que sofrem menos controlo familiar. Este aspecto contraria o efeito de contágio social assente, sobretudo, na ideia do predomínio do patológico, do potencial de delinquência que, à priori, são próprios destes contextos. Como verificamos no caso do grupo de jovens Estrelas Cabo-verdianas, o bairro Estrela d’África constitui um importante espaço de socialização, de responsabilidade e de integração para os jovens que encontram no grupo de iguais um espaço solidário, estável, seguro, onde trocam gostos e experiências, sensações e afectos que ajudam a sublimar os constrangimentos e as dificuldades do dia a dia. Por isso, o grupo apresenta um elevado grau de informalidade desenhada por fronteiras muito porosas, o que lhe confere uma singularidade que é valorizada através de experiências sociais e culturais, expressivas de um ethos resultante de percursos individuais e colectivos.

42A heterogeneidade cultural dos jovens tem a ver com múltiplos factores, sendo determinantes a classe, o lugar de residência e o contexto sociocultural do jovem. Nesta perspectiva, parece relevante analisar como cada geração constrói a sua cultura e, por conseguinte, conhecer as formas adoptadas pelos diferentes grupos de idade na produção cultural, estética, lúdica, musical, simbólica e ideológica, as percepções do tempo e do espaço, as formas de comunicação verbal e corporal, os mecanismos de resistência e de coesão social, as apropriações dos diferentes códigos, formas de organização e de participação (Feixa, 1999).

43A emergência de microculturas geracionais é, pois, um traço importante das sociedades contemporâneas e, no contexto de referência, revelam os processos de mudança social e cultural protagonizados por jovens que, embora conciliados com as origens dos progenitores, nem por isso deixam de criar um estilo de vida e uma visão do mundo próprios, transformando-os em emblema de identidade.

Bibliographie

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Notes de bas de page

1 Estas expressões correspondem à resposta dos jovens do grupo Estrelas Cabo-verdianas quando lhes foi colocada a questão “o que significa o grupo para ti?”; o crioulo é dos próprios sem correcções e significa: “O grupo é a minha alma; A minha família é o meu grupo; Aminha paixão são os meus amigos do grupo; Sinto que este grupo tem um significado especial para mim porque é como se fosse um segundo lar; Sou um jovem que teve vários problemas na vida e tive de saber lidar com eles, pedindo conselhos aos mais velhos, penso eu que se não estivesse no grupo poderia ser uma pessoa diferente, não haveria de ser a mesma pessoa que sou agora; Se estou triste e com problemas só de estar lá fico contente e muito satisfeito comigo próprio; Quando dei um primeiro espectáculo ao lado deles fiquei muito contente e muito satisfeito comigo próprio, tudo isso por ter o prazer de dançar”.

2 Expressão crioula que significa “nós juntamos as mãos”.

3 Parte destes são parentes e namorados que integram outras redes secundárias.

4 Gabriel Mariano (1991: 86) refere-se ao “nominho” como sendo “o nome de casa é um nome não oficial, mas sim, familiar, doméstico; o de igreja, de baptismo, é o nome oficial que figura no Registo Civil”.

5 Evito esta designação pelo carácter estigmatizante de que é portadora e que se estende aos próprios habitantes transformando-os em “feios, porcos e maus” imagem que faz parte de uma cartografia imaginária de representações dos urbanitas que vivem noutros habitats mais consolidados.

6 Empregadas de balcão no McDonald’s, por exemplo.

7 Na obra Twenty Girls (1988), centrada num grupo de jovens amigas de South London, Helena Wulff questiona a subordinação assumida pelas raparigas que, supostamente deveriam ser invisíveis, escondidas nos seus quartos de dormir (bedroom culture), enquanto os rapazes ocupavam as esquinas das ruas. Esta antropóloga coloca, pois, a ênfase nas culturas juvenis como contributo substantivo para o desenvolvimento do conceito de cultura, num sentido mais lato e define “microcultura” como o fluxo de significações e valores manipulados por pequenos grupos de jovens na vida quotidiana, tendo em consideração situações locais concretas.

8 Como refere Valerie Fournier (1999: 133), estas marcas “tribais” configuram, simbolicamente, a pertença ao grupo de referência. No caso do grupo Estrelas Cabo-verdianas são poucos os jovens que aderem a estes traços, sendo mais comuns os elementos ligados ao desporto.

9 Carles Feixa (1999: 84) na obra De jóvenes, bandas e tribus, define as “culturas juvenis” num sentido amplo, isto é, a maneira como as experiências sociais dos jovens são expressas colectivamente mediante a construção de estilos de vida distintos, localizados fundamentalmente no tempo livre, ou em espaços intersticiais da vida institucional; num sentido mais restrito, definem o surgimento de “microsociedades juvenis” com graus significativos de autonomia em relação às “instituições adultas”, que se dotam de espaços e tempos específicos e que se configuram historicamente nos países ocidentais a seguir à segunda guerra mundial, coincidindo com grandes processos de mudança social no campo económico, educativo, laboral e ideológico.

10 Segundo Feixa (1999: 97) “estilo” pode definir-se como a manifestação simbólica das culturas juvenis, expressa num conjunto mais ou menos coerente de elementos materiais e imateriais, que os jovens consideram representativos da sua identidade de grupo.

11 Para Clyde Mitchell é necessário investir mais na análise do contexto interaccional do que no background dos indivíduos implicados na situação ou nas “culturas” em nome das quais interagem.

12 Marcas culturais como a utilização do crioulo como meio de comunicação privilegiado no interior do grupo ou a reinvenção de danças tradicionais cabo-verdianas no seio do grupo.

13 Ainformalidade do grupo prende-se mais com o facto de não constituir uma organização legalizada em termos de registo formal. Porém, o grupo apresenta um grau de formalidade interna elevado, que se objectiva através da existência de cartões individuais de membro do grupo, de relatórios de actividades, actas de reuniões, processos de avaliação das performances, etc.

14 O discurso hegemónico sobre este tipo de habitat e de grupos, tende a destacar o seu carácter marginal, onde reina a delinquência e a criminalidade. O estudo antropológico centrado nestes casos permite-nos um afastamento, quase radical, desta perspectiva patológica, criminalista e de contágio social, dominante na literatura da Escola de Chicago.

15 Filho de pai “sampadjudo” de São Vicente e de mãe “badia” da Praia/Santiago.

16 Trata-se de uma “badia” retinta que veio, em 1980, da Praia, Ilha de Santiago, Cabo Verde.

17 Ricardo de Freitas (1996) aborda estes espaços na perspectiva de simulacros dos principais elementos da cidade.

18 “N’genga” é uma expressão angolana que significa “a festa”.

19 Feixa (1999: 117-118) faz uma abordagem muito curiosa sobre o papel destes espaços disco no quadro das sociabilidades dos jovens. Refere que a discoteca reflecte o papel de “instituição social total”, que pode “conceber-se como uma microsociedade com as suas regras próprias”… ao mesmo tempo reflecte “as condições económicas, sociais, matrimoniais e de consumo vigentes na sua envolvente social”… actua como difusora de determinadas modas musicais e juvenis… mas também como cenário de encontro e redistribuição de diversos estilos.

20 Sobretudo os aniversários dos membros do grupo e dos/as amigos/as.

21 Durante o trabalho de campo tive oportunidade de participar em duas estadias nas pousadas da juventude de Esposende e de Mira.

22 Há contornos semelhantes aos da “Kalela Dance” descrita e analisada por Clyde Mitchell (1996 [1956]) que também nos permitem avaliar o grau de ligação dos jovens à cultura de origem dos pais. Contudo, há uma diferença fundamental pelo facto de eles não terem vivenciado essa experiência directamente. Por vezes parece que querem demonstrar que, apesar de estarem tão distantes dessa cultura, respeitam-na.

23 A “Escolinha” é um jardim de infância gerido pela Associação Unidos de Cabo Verde que está localizado no Largo Ilha Brava, bairro Estrela d’África e que aos fins de semana serve de sala de ensaios ao grupo Estrelas Cabo-verdianas; o bairro e “escolinha” são as principais “arenas” do grupo.

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