Capítulo 9. Estilos de sociabilidade
p. 121-129
Texte intégral
1O conceito de sociabilidade reveste-se hoje de valor analítico renovado, muito em especial na procura de compreensão dos universos sociais e culturais da vida urbana actual. Essa particular valia cognitiva manifesta-se em vários planos, do conceptual ao descritivo, do teórico ao metodológico, do interpretativo ao explicativo. Antes de passarmos a um conjunto de ilustrações disto mesmo que se podem encontrar nos capítulos da segunda parte deste livro, elaborados com base em pesquisas levadas a cabo em contextos urbanos específicos, vejamos brevemente porquê em termos teóricos gerais.
2Apesar de uma utilização nas ciências sociais que por vezes se tornou excessivamente vaga e difusa, o conceito de sociabilidade parte de uma proposta teórica precisa de Georg Simmel (1981 [1917]). Não é necessário ficar-se preso à linguagem kantiana de que o autor na época se socorreu, com uma célebre distinção entre “conteúdos” e “formas” das relações sociais, nem, sobretudo, se tem de incorrer em interpretações rigidificantes e reificantes dessa contraposição categorial, para se reconhecer as potencialidades analíticas de um dos principais resultados a que a elaboração teórica de Simmel conduziu: justamente, o conceito de sociabilidade.
3Numa perspectiva socioantropológica actualizada, há um conjunto de aspectos a retomar dessas análises fundadoras. Talvez a ideia mais crucial de Simmel a este respeito seja a de que, entre as variadas razões que presidem à constituição de relações sociais, encontra-se uma muito especial, e, ao mesmo tempo, muito banal: o estabelecimento de relações sociais pelas relações sociais em si mesmas.
4Por outras palavras, o conceito de sociabilidade pretende designar as relações sociais que se formam, antes de mais, independentemente de outras necessidades ou orientações, de outros objectivos ou interesses, de natureza diversa, por exemplo, residenciais ou alimentares, sexuais ou culturais, religiosos ou militares, económicos ou políticos. O conceito refere-se a uma dimensão, por assim dizer, especificamente relacional, presente nos fenómenos sociais, os quais podem também comportar, em simultâneo, conteúdos substantivos diversificados, como os acima referidos. Seja como for, do ponto de vista da sociabilidade, o que está em causa — de maneira implícita ou deliberada, em graus e modos variados, acompanhando aqueles outros parâmetros ou surgindo como que em “estado puro” — é o estabelecimento, em si mesmo, de relações sociais.
5Esta conceptualização poderá parecer, a alguns, bastante trivial. Mas não era na altura em que Simmel a propôs, e, de certo modo, ainda não é, tendo em conta que os enfoques analíticos largamente prevalecentes nas ciências sociais se têm centrado na identificação quer de sistemas estruturais ou configurações institucionais, quer de sentidos subjectivos ou regimes de acção, concebidos de muitas maneiras, mas focando em geral parâmetros de carácter económico, político e cultural, valorativo, normativo e instrumental.
6Acontece que, para além destas dimensões, os fenómenos sociais têm uma componente especificamente inter-relacional. O que remete, prolongando a perspectiva de Simmel com alguns importantes contributos posteriores das ciências sociais, para um conjunto de conceitos como os de interacção social, comunicação simbólica e situação de co-presença, ou, a um outro nível, como, precisamente, os de formas e estilos de sociabilidade. Estes conceitos não são equivalentes uns aos outros mas têm afinidades claras entre si. Referem-se a um mesmo universo de questões.
7O relacionamento social recíproco, simbolicamente mediado e em situação de co-presença, é não só um elemento intrínseco à existência humana em sociedade, praticamente em quaisquer circunstâncias, como é um dado fundamental da vida social nas cidades de hoje, em especial nas grandes cidades, metrópoles e metápoles (Ascher, 1998 [1995]). É mesmo nestas cidades, de densidade social acrescida e intersecções múltiplas, de referências culturais plurais e quadros de relacionamento social fervilhantes, de estilos de vida variados, sejam eles consolidados, emergentes ou combinatórios, em suma, nestas cidades que se constituem como cenários por excelência de diversidade social e cultural, que a interacção maior gama de tonalidades adquire.
8O facto de as sociedades envolverem articulações estruturais e domínios sistémicos de ordem diferente da interaccional — estruturas e sistemas, aliás, que apresentam, eles próprios, complexidade crescente e âmbito cada vez mais vasto — não eliminou a ordem da interacção (Goffman, 1983), nem lhe diminuiu a importância enquanto co-determinante da acção social (Costa, 1999; Pires, 1999). Pelo contrário, esta importância pode mesmo ter-se acentuado, pelo menos nalguns casos, atendendo nomeadamente à intensificação da reflexividade, à diversificação dos contextos e situações, à multiplicação dos interlocutores e ao alargamento dos campos de possibilidades (Velho 1981, [1994]) que marcam hoje o desenrolar dessa acção. Com efeito, todos estes aspectos implicam a aquisição de novos patamares de pertinência e exigência por parte dos mecanismos interaccionais que estão presentes — conjuntamente com outros, como os disposicionais e os institucionais — na produção e na regulação da acção social.
9Por outro lado, o facto de a interacção social poder ser também comandada disposicionalmente ou calculada estrategicamente não anula a sua dimensão de comunicação simbolicamente mediada e, portanto, culturalmente inscrita. Nem esta dimensão vê a sua presença diminuída por efeito de dispositivos institucionais, quadros valorativos e recursos cognitivos crescentemente orientados para a racionalização instrumental da acção individual e colectiva. Pelo contrário, a interacção social vê-se ela própria impregnada pelo redobramento simbólico intensificado das sociedades actuais, de que os média, as indústrias culturais, o ensino de massas, as novas tecnologias da informação, a produção artística e científica, as políticas de identidade cultural (Costa, 2002) são alguns dos vectores mais salientes.
10Além disso, as relações de interacção têm por paradigma referencial, e por concretização mais frequente, a interacção face-a-face, em situações de co-presença. O alongamento espacial e temporal dos sistemas de relações sociais (Giddens, 1992 [1990]) não equivale ao desaparecimento da co-presença interaccional, nos mais variados contextos e nas mais diversas situações. Pelo contrário, os quadros de interacção (Costa, 1999) e as situações interaccionais multiplicaram-se. Em alguns casos, utilizando novos dispositivos tecnológicos como a internet (Cardoso, 1998) e o telefone móvel, ou como os da interactividade na rádio e na televisão, alargam as modalidades e o alcance dos processos interaccionais possíveis, ao mesmo tempo que redefinem a própria noção de co-presença. Em muitos outros casos, a co-presença directa continua a ser uma componente constitutiva fundamental das práticas sociais e das situações relacionais, nos contextos privados e nos espaços públicos, no trabalho e na família, na escola e nos transportes, nos serviços de saúde e nas actividades desportivas, nas associações e na política, nas relações afectivas e nos actos de cidadania, nos espaços de residência e intimidade, de consumo e lazer, e em tantos mais.
11Um certo número de asserções genéricas sobre as cidades contemporâneas, em voga no novo senso comum mediático, tendem a ver nelas, pura e simplesmente, cenários de desolação relacional, dos quais teriam praticamente desaparecido os laços sociais. A contra-corrente destes enunciados, demasiado apriorísticos e superficiais, tem vindo a ser realizado um conjunto de trabalhos que podem contribuir de maneira significativa para superar, em relação a essas abordagens, tanto insuficiências teóricas como défices de observação. No primeiro destes planos, fazem-no tomando decididamente em consideração os contextos e os processos interaccionais. No segundo, conseguem-no conduzindo observação sistemática, precisamente, ao nível da interacção. Não porque outros níveis de análise e outros modos de recolha de informação possam ser descurados, mas porque a observação deste tipo — directa, próxima, intensa, contextualizada, interaccional — constitui o complemento metodológico indispensável de um quadro conceptual que dá o lugar devido à interacção.
12É o que se passa, para dar um exemplo de referência, com as pesquisas de Gilberto Velho (1999, [1973]), em Copacabana, sobre o entrelaçamento dinâmico dos mundos sociais urbanos observados à escala do prédio e do bairro; ou com as investigações realizadas em contextos sociais urbanos como os bairros lisboetas da Bica (Cordeiro, 1997) e de Alfama (Costa, 1999), incidindo, precisamente sobre aspectos como as redes e os contextos de sociabilidade, os processos rituais e festivos, as mudanças sociais e as identidades culturais (Cordeiro e Costa, 1999); ou, ainda, com as pesquisas em bairros sociais da periferia urbana no Porto, focadas na respectiva constituição em “territórios psicotrópicos” (Fernandes, 1998).
13Muitos outros trabalhos se poderiam convocar em apoio das propostas analíticas aqui defendidas. Mas é suficiente referir exemplos recentes tão interessantes como as investigações realizadas no sul do Reino Unido em que Crow, Allan e Summers (2002) mostram como as relações de vizinhança e os contextos de bairro, estando em mudança no sentido de uma maior margem de manobra dos indivíduos relativamente ao controlo social local, não deixam por isso de constituir parâmetros decisivos dos estilos de vida urbanos actuais; ou como as análises em que John Urry (2002), ao procurar responder à pergunta de porque é que, numa sociedade de comunicações à distância e redes virtuais, as pessoas viajam tanto, evidencia que, hoje, mobilidade não se opõe simplesmente a proximidade, antes amplia o campo dos possíveis e multiplica as modalidades da interacção em co-presença.
14Igualmente de registar, neste sentido, são análises como aquela em que José Ignacio Homobono (2000) dá conta não só da evolução histórica mas também da importância actual recrudescente de contextos de sociabilidade urbana especializados (por exemplo, os bares) na Espanha contemporânea; ou como a comparação contrastante realizada por Loïc Wacquant (2001) entre as configurações urbanas, as composições sociais e os padrões relacionais nos guetos negros das grandes cidades norte-americanas e nos bairros de classes trabalhadoras nas periferias urbanas das grandes cidades europeias; ou, ainda, como as análises de Michel Agier (1999) sobre as situações interaccionais, as redes sociais e as formas de sociabilidade, identidade e criatividade cultural observáveis em contextos urbanos incertos — como favelas, urbanizações clandestinas, townships, bairros populares ou territórios suburbanos — das cidades da América Latina, da África e da Europa atravessadas por dinâmicas de urbanização contemporâneas dos processos de globalização.
15É também neste quadro societal globalizado que Luís V. Baptista e Joan J. Pujadas (2000) mostram um conjunto de articulações actuais entre processos de metropolização e dinâmicas de sociabilidade urbana; que Carlos Fortuna e Augusto Santos Silva (2002), e respectivos colaboradores, se debruçam sobre as presentes culturas urbanas em Portugal, na sua multiplicidade de vertentes e protagonismos; que José Machado Pais (1993) caracteriza os principais tipos de sociabilidades juvenis em contexto urbano, e, com um conjunto de equipas de pesquisa (Pais, 1999), localiza sociabilidades urbanas emergentes entre os jovens, em situações vistas habitualmente como de algum modo problemáticas; que João Teixeira Lopes (2000) foca as práticas culturais, sobretudo juvenis, susceptíveis de ser captadas em contextos de sociabilidade especializados da cidade do Porto; que Virgílio Borges Pereira (1999) traça um conjunto de retratos minucioso dos padrões de sociabilidade actuais num contexto urbano-industrial do Vale do Ave; que, a propósito de uma investigação sobre a Expo’98, Maria de Lourdes Lima dos Santos e António Firmino da Costa (1999), com a equipa que os acompanhou, encontram nos megaeventos contemporâneos um contexto privilegiado de amplificação interaccional e uma situação extraordinária de sociabilidades urbanas intensificadas; ou, ainda, que Vítor Matias Ferreira (2000) equaciona a cidadania como inseparável da urbanidade, entendendo esta última como elemento relacional decisivo da qualidade de vida propriamente urbana da cidade.
16Voltando a Simmel, se, por um lado, todas as relações sociais têm algo de especificamente interaccional (no sentido de processos de relacionamento recíproco, simbolicamente mediado, entre actores sociais), e se muitas delas envolvem, mesmo que secundariamente, algo de sociabilidade (de estabelecimento de relações sociais pelas relações sociais), por outro lado, algumas delas — dos rituais às festas, dos jogos às conversas informais, dos grupos de pares às redes de amizade, dos lazeres partilhados às experimentações conviviais — têm sobretudo esse carácter, isto é, o de relações de sociabilidade.
17Os textos que compõem este livro, designadamente os capítulos que se seguem, trazem-nos novos contributos para o conhecimento dos estilos de sociabilidade urbana que se vão gerando nos tempos que correm. Paradoxalmente, o que os unifica é a diversidade. Neles encontramos marcas de condições de existência fortemente estruturadas e de configurações culturais persistentes. Mas encontramos também as modalidades emergentes, as características de alternativa e os atributos de opcionalidade que algumas das mais importantes análises sobre os estilos de vida actuais, provenientes de diversos quadrantes — de Maffesoli (1988) a Giddens (1994 [1991]), de Waters (1999 [1995]) a Chaney (1996), de Ritzer (1999) a Boltanski e Chiapello (1999), entre muitos outros — têm acentuado.
18Como ressalta dos trabalhos a que se tem vindo a recorrer, as formas de sociabilidade inscrevem-se no núcleo em torno do qual se organizam relacionalmente e se configuram simbolicamente os estilos de vida. Tem cabimento, pois, na investigação socioantropológica da vida social nas cidades contemporâneas, ao proceder à captação e análise da efervescência caleidoscópica que as caracteriza ao nível da interacção quotidiana, prestar particular atenção aos modos alternativos, aos símbolos expressivos e aos significados distintivos das formas de sociabilidade nelas produzida, ou, dizendo o mesmo numa fórmula condensada, prestar particular atenção aos estilos de sociabilidade.
19Nos capítulos que se seguem encontram-se ilustrações elucidativas a tal respeito.
20As redes de sociabilidade dos imigrantes guineenses em Portugal, e dos seus descendentes directos, são o objecto de estudo sobre o qual se debruça aqui Fernando Luís Machado. O investigador analisa, de maneira fina, os laços destes imigrantes com familiares, vizinhos, colegas e amigos, estabelecidos predominantemente no contexto urbano da Área Metropolitana de Lisboa, evidenciando os efeitos da composição social das relações de sociabilidade (em termos de nacionalidade, classe social, género e etnia), assim como dos parâmetros temporais do processo migratório, na abertura interétnica ou no fechamento intraétnico dessas redes.
21Os estilos de sociabilidade de um grupo de jovens portugueses descendentes de imigrantes cabo-verdianos são estudados por Marina Manuela Antunes enquanto manifestação relevante das actuais culturas juvenis observáveis na Área Metropolitana de Lisboa. Os laços sociais, as práticas de sociabilidade e as referências identitárias do grupo são examinadas de perto, destacando-se elementos como a identificação com o bairro, na zona periférica da metrópole, como as actividades desenvolvidas, com particular destaque para a dança, como os espaços de interacção preferencial, quer associativos e locais, quer urbanos centrais, ou como certos elementos simbólicos de importância especial, como o domínio da expressão linguística crioula ou o uso de marcas corporais identificadoras de estilos juvenis urbanos difundidos mediaticamente.
22Os jovens, a dança e as associações são também elementos fundamentais de outro caso, muito diferente, de estilos de sociabilidade urbanos, estudados por Inês Pereira com pleno aproveitamento das potencialidades que a observação participante tem como método de investigação no contexto citadino contemporâneo. Um grupo praticante de danças galegas (e outras actividades performativas) em Lisboa torna-se, assim, revelador de redes sociais, práticas culturais e dinâmicas identitárias com tonalidades surpreendentes, e mesmo aparentemente paradoxais, que se constituem no quadro relacional do universo urbano actual.
23As associações entre juventude e desvio (nomeadamente, quanto ao consumo de drogas), muito presentes no senso comum contemporâneo, constituem problemática de fundo para a sistematização realizada por Maria Carmo Carvalho acerca de alguns dos principais tipos de cultura juvenil de origem anglo-saxónica, difundidos nas últimas décadas, como os beatnicks, teddys, rockers, mods, hippies e punks. Prepara, assim, a comparação com outros, mais actuais, como os new agers, ravers e trancers, e os instrumentos analíticos para uma investigação sobre as culturas juvenis, observadas através de abordagem metodológica de carácter naturalista, em contextos de sociabilidade festiva na área urbana do Porto.
24A problemática do “risco cultivado”, como ingrediente constitutivo dos estilos de vida contemporâneos, e, em particular, dos estilos de sociabilidade juvenis, está na base do enquadramento teórico e da perspectiva analítica que Susana Henriques utilizou numa investigação realizada em contextos urbanos do centro do país. Consegue, deste modo, pôr em evidência aspectos decisivos das relações actuais entre ambientes de sociabilidade festiva (discotecas, festas), certos tipos de música (house, techno e outros), consumo de drogas sintéticas (ecstasy e análogas) e estilos de vida jovens.
25Por fim, as raves, como contextos de sociabilidade festiva juvenil contemporânea, nos quais se combinam três elementos com significativa carga tecnológica (música, cenografia e químicos), são tomadas por Miguel Chaves como referente observacional para uma análise dos modos variados como elas são vistas e experimentadas pelos seus frequentadores. Identifica, deste modo, um conjunto de “éticas” — de informalização e descomprometimento, de empatia, de militância, de apresentação e sedução, de aprendizagem — que coexistem nestes espaços de sociabilidade urbana actual, e que os extravasam, projectando-se noutras dimensões da prática social.
26As cidades sempre foram, mas ainda são mais hoje em dia, lugares de diversidade. As análises acima referidas, cada uma com o seu objecto específico, têm um denominador comum: dão a conhecer estilos de sociabilidade diversificados, tais como ocorrem nas cidades contemporâneas. As relações de sociabilidade aparecem, em alguns casos, mais pelo lado das redes, noutros mais pelo lado dos grupos, em alguns são focadas sobretudo as práticas, noutros os contextos, nuns mais os símbolos, noutros os significados. Em todos eles, porém, se analisam estilos de sociabilidade, ilustrando a multiplicidade de possíveis e a permanente emergência de variedade que ocorre nos universos urbanos actuais.
Bibliographie
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Auteur
Sociólogo; Departamento de Sociologia do ISCTE; Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES/ISCTE).
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