Prefácio1
p. 13-21
Texte intégral
I
1No seguimento da edição da obra etnológica dispersa de Adolfo Coelho – subordinada ao título «Festas, Costumes e Outros Materiais para Uma Etnologia de Portugal» –, a colecção «Portugal de Perto» publica agora um volume consagrado aos seus mais relevantes textos de cruzamento entre antropologia e pedagogia.
2Desses textos, três remontam aos anos 80 e foram publicados no âmbito da «Biblioteca da Educação Nacional»: duas recolhas de literatura e tradições populares destinadas a fins pedagógicos – os «Contos Nacionais para Crianças» (Coelho, 1882) e os «Jogos e Rimas Infantis» (Coelho, 1883b) – e o ensaio «Os Elementos Tradicionais da Educação. Estudo Pedagógico» (Coelho, 1883a)2. A este núcleo inicial, vieram depois juntar-se, no final dos anos 90, «A Pedagogia do Povo Português» (Coelho, 1898) – um ensaio publicado na revista Portugália, dirigida por Rocha Peixoto e que, por razões difíceis de apurar, Adolfo Coelho não chegou a completar – e, já no início deste século, «Cultura e Analfabetismo» (Coelho, 1916)3.
II
3É de acordo com as grandes linhas caracterizadoras da obra antropológica de Adolfo Coelho – tal como tivemos anteriormente ocasião de as apresentar (cf. Leal, 1993) – que estes textos podem ser analisados.
4Assim, eles remetem-no antes do mais para o carácter aberto da concepção da antropologia em Adolfo Coelho, e, em particular, para o papel privilegiado que nessa abertura desempenharam os temas relacionados com a educação (cf. Leal, 1993: 14-19). Constituindo a pedagogia e a antropologia os principais focos da curiosidade científica de Adolfo Coelho, nada de mais natural que essa preocupação de cruzar as duas disciplinas de que estes textos são tributários.
5Nos volumes da «Biblioteca da Educação Nacional», essa preocupação exprime-se sob a forma de um projecto ainda algo limitado e de alcance sobretudo prático, orientado para a exploração do potencial pedagógico da literatura e das tradições populares. Essa exploração faz-se, por um lado, sob a forma da publicação de colectâneas destinadas expressamente a uma utilização educativa. Dado o tipo de público visado, essas colectâneas resultam de um duplo processo de selecção que começa por reter, no vasto corpus da literatura e das tradições populares, as áreas que melhor se prestariam a uma utilização desse tipo – os contos tradicionais (Coelho, 1882) e os jogos e rimas infantis (Coelho, 1883b) – para, num segundo momento, escolher os espécimens que parecem mais indicados para o fim em vista.4 Mas assenta, simultaneamente, na argumentação das virtualidades dos «elementos tradicionais» no processo educativo e das modalidades segundo as quais este as deveria incorporar. Presente nas «Observações» finais aos «Jogos e Rimas Infantis» [id., ibid.: 85-91 (123-126)], esta direcção de trabalho é concretizada de forma mais exaustiva no iii volume da colecção, intitulado justamente «Os Elementos Tradicionais da Educação. Estudo Pedagógico» (Coelho, 1883a).
6O cerne da argumentação que Adolfo Coelho aí desenvolve é fornecido pelo «paralelismo entre o desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento da humanidade» [id., ibid.: v (131)]. Encarados como um produto do desenvolvimento espontâneo da humanidade nos seus tempos iniciais, os elementos tradicionais seriam por essa razão particularmente úteis para o processo educativo, comprometido com os estágios do desenvolvimento inicial do indivíduo. Eles seriam em particular portadores de um certo número de valores – entre os quais avultaria a intuição – que, tendo fornecido à «humanidade inteira o ponto de partida de todo o desenvolvimento intelectual» (id., ibid.), deveriam também ocupar um lugar de relevo no próprio processo de desenvolvimento intelectual da criança.
7É a partir deste pano de fundo fornecido pela equação entre a «infância da humanidade» do etnólogo e a «criança» do pedagogo – recorrente no pensamento antropológico e pedagógico oitocentista – que Adolfo Coelho se propõe depois explorar, de uma forma mais detalhada, a importância pedagógica das áreas da «tradição» que haviam sido cobertas pelas duas colectâneas que antecedem «Os Elementos Tradicionais da Educação»: a literatura popular – em particular os contos populares e as rimas infantis – e os jogos tradicionais infantis.
8A importância das rimas infantis e, ainda, dos provérbios, relacionar-se-ia, pelo seu lado, com o ensino da moral. «A moral teórica pertence a um período adiantado do espírito individual, como do desenvolvimento da humanidade» [id., ibid.: 5 (135)] e, por essa razão, o seu ensino «deve começar por ser (...) concreto e intuitivo» (id., ibid.): as rimas infantis e os provérbios forneceriam um dos meios ideais para esse ensino prático da moral. Quanto aos contos populares, eles seriam, em conjunto com as rimas infantis, um dos meios essenciais para despertar nas crianças não apenas o gosto pela leitura, mas o gosto literário de uma forma geral. «Os contos tradicionais são uma forma simples, primitiva, espontânea da arte. Nuns há formas de velhos mitos naturalistas, outros nasceram de provérbios, preceitos morais, parábolas, observações da vida do homem e dos animais, desenvolvidos mais ou menos engenhosamente pelas gerações sucessivas. Verdades da ordem natural ou da ordem moral acham-se pois neles expressos na forma concreta de uma acção: são a verdade na forma da poesia» [id., ibid.: 59-60 (158)]. Por outro lado, da mesma maneira que seria a partir da literatura tradicional que se teriam desenvolvido as grandes criações literárias individuais, o ensino da primeira deveria também preparar o destas últimas. Finalmente, os jogos tradicionais – cujos méritos haviam já sido sublinhados por Adolfo Coelho nas «Observações» finais dos «Jogos e Rimas Infantis» – seriam fundamentais para a educação física da criança, em particular pela espontaneidade que os caracterizaria: «os jogos, os bons jogos infantis, foram esquecidos e a criança, apanhada no mecanismo moral e intelectual da escola que ameaça pulverizar-lhe toda a espontaneidade, é apanhada também no mecanismo físico da ginástica de aparelhos que não é um jogo, mas sim um trabalho pesado e perigoso» [id., ibid.: 71 (164)].
9Remontando a uma fase da obra de Adolfo Coelho em que a antropologia é sobretudo entendida como o estudo preferencial da literatura e das tradições populares, esta preocupação de cruzar antropologia e pedagogia reencontra-se depois, a partir dos anos 90, numa fase em que a antropologia tem já em Adolfo Coelho uma acepção mais alargada.
10É justamente essa concepção mais alargada da antropologia que Adolfo Coelho começa por evocar em «A Pedagogia do Povo Português» (Coelho, 1898). Remetendo para os seus programas etnológicos e antropológicos, Adolfo Coelho coloca este seu ensaio sob o signo da «necessidade [que neles havia sido formulada] de estudar a vida do povo sob todos os aspectos» [id., ibid.: 58 (175)]. Em contraste com as intenções mais circunscritas e práticas de «Os Elementos Tradicionais da Educação», este ensaio caracterizar-se-ia, segundo Adolfo Coelho, por um objectivo mais vasto e ambicioso. Na senda de autores como Ploss, Waitz ou Letourneau, o propósito é o de proceder ao «estudo desenvolvido da pedagogia tradicional de um povo» [id., ibid.: 59 (177)], definida como a «educação do povo pelo povo (...), educação na família popular» [id., ibid.: 58 (176)]. Embora se trate – como já foi referido – de um ensaio que permaneceu incompleto, as partes que dele foram publicadas confirmam a vastidão e o carácter ambicioso do projecto.
11Essas facetas transparecem, antes do mais, na natureza teórica da parte inicial do texto. Depois de uma Introdução consagrada à definição de conceitos como «povo» e «popular» e à caracterização da psicologia popular, Adolfo Coelho dedica o Capítulo 1 a uma reconstituição das grandes linhas da história da educação, conferindo particular atenção ao modo como nas principais línguas europeias a linguagem relacionada com a educação poderia ser entendida como um testemunho da própria evolução histórica desta.
12Depois de estabelecido este enquadramento teórico, Adolfo Coelho procede no Capítulo 2 a um conjunto de observações preliminares acerca da educação em Portugal e, em particular, acerca da educação popular, a partir das quais é abordado de forma mais detalhada o problema da determinação dos fins e meios da pedagogia do povo. Relativamente aos fins e depois de distinguir entre «a educação dos filhos do povo pelo e para o povo e a educação dos filhos do povo para saírem das classes populares» [id., ibid.: 218 (216 e 217)], Adolfo Coelho – centrando-se na primeira – refere que «dentro do seu círculo próprio de acção, os processos educativos populares têm por fim, em primeiro lugar, habituar para o trabalho, fazer dos filhos homens para a vida (...), das filhas mulheres para o governo da casa, inculcar-lhes a moral tradicional dos pais, fim eminentemente prático-utilitário no sentido vulgar, a que se juntam todavia outros mal definidos – estéticos, intelectuais; a educação religiosa colabora essencialmente para aquele fim prático-utilitário (a salvação é ainda uma vantagem prática para a eternidade)» [id., ibid.: 220-221 (219)]. Mas, mais para além deste sentido prático-utilitário, poder-se-ia ainda falar de um «tipo ideal» subjacente à educação popular. Esse tipo seria o do «português velho»: «dizer de um homem que é um português velho é na boca conservativa do povo, ou dos que são semipovo, o maior elogio, que não envolve a ideia das graças da cultura, das boas maneiras, sequer, mas se refere todo à franqueza, à lealdade, tenacidade, coerência nas acções, não excluindo portanto de modo nenhum a rudeza» [id., ibid.: 224 (222 e 223)]. «Na sua forma mais simples, determinada pela espontaneidade de uma natureza sincera e enérgica, esse tipo aparece ou aparecia nas camadas populares» [id., ibid. (223)] e seria de alguma forma ele o modelo que a pedagogia popular tenderia a inculcar.
13Quanto aos meios de que esta se serviria – «na sua máxima parte tradicionais» – dividir-se-iam «quanto à sua forma (...) em tradição oral, tradição de actos, gestos, movimentos, e tradição de produtos materializados das indústrias e artes populares» [id., ibid.: 225 (223)]. Na tradição oral, Adolfo Coelho distingue um primeiro grupo, marcado por uma maior fixidez, em que se encontrariam os provérbios, «alguns elementos poéticos, e parte da doutrina religiosa» (id., ibid.). Um segundo grupo – com maior variabilidade – seria constituído, para além de certos outros elementos poéticos – «a lírica e a epopeia popular, o enigma, a adivinha, as rimas dos jogos» (id., ibid.) –, pelas lendas, contos e crenças supersticiosas. Finalmente num terceiro grupo – onde o grau de variação, designadamente individual, seria máximo – encontrar-se-iam os «preceitos, regras, exortações, conselhos, a expressão de conhecimentos diversos, cujo conteúdo deriva da sabedoria tradicional» (id., ibid.). Depois de esboçada esta tipologia dos meios da pedagogia popular, Adolfo Coelho inicia, no Capítulo 3, uma abordagem mais detalhada daquele que seria, de acordo com ela, um dos meios mais importantes da educação popular, o provérbio. Tudo leva a crer que seria intenção do autor proceder do mesmo modo em relação aos restantes meios da educação popular antes mencionados, mas é justamente aqui que o texto é prematuramente interrompido.
14Não tendo dado continuidade ao ambicioso projecto representado por «A Pedagogia do Povo Português», Adolfo Coelho fará de qualquer maneira uma última incursão no questionamento antropológico dos problemas pedagógicos, com o ensaio «Cultura e Analfabetismo» (Coelho, 1916). Consagrado à discussão da alfabetização como estratégia central da instrução popular, o ensaio compreende duas partes distintas. Na primeira – intitulada «A Cultura Mental no Analfabetismo» – Adolfo Coelho procura rebater a ideia de acordo com a qual « o homem que não lê é uma espécie de tristíssimo pária, sem pátria, incapaz de preencher lugar no mecanismo da divisão do trabalho social, sem faculdade de formular um juízo» [id., ibid.: 9 (253)]. Insurgindo-se contra essa ideia, Adolfo Coelho procura demonstrar, apoiado sobretudo em material etnográfico português, como, apesar de analfabeto, « o povo (...) tem as suas artes, indústrias, saber, a sua educação e até a sua pedagogia reduzida a preceitos» [id., ibid.: 20 (258)]. Isto é: apesar do analfabetismo, existe uma cultura – no sentido «nobre» do termo – popular. Como diz Adolfo Coelho na conclusão da primeira parte, não só «grandes períodos da cultura da humanidade foram possíveis sem o conhecimento da escrita» ou «sem o conhecimento pouco vulgarizado dela», como «ainda hoje é possível educação adequada (...) sem esse conhecimento» [id., ibid.: 49 (271)].
15Quanto à segunda parte do texto – intitulada «Atraso da Cultura em Não Analfabetos» – é uma tentativa de demonstração, apoiada sobretudo na experiência alemã, do modo como a alfabetização, por si só, não seria forçosamente sinónimo de progresso cultural do povo. Como sublinha Adolfo Coelho no final, «a escola popular alemã, com os seus complementos, os meios ricos de propagação de cultura, contribuíram até hoje pouco para modificar o povo, especialmente o campónio, na sua higiene, na sua medicina, na sua moral, nas suas crenças e costumes religiosos e mágicos, deixando subsistir entre ele e os homens verdadeiramente cultos da nação um fundo abismo» [id., ibid.: 103 (297)]. «A julgar pelo que se dá na Alemanha, conclui-se que não só é insuficiente o conhecimento da leitura e da escrita, mas até uma instrução escolar bastante desenvolvida, ainda que generalizada de modo completo a um povo, para arrancar uma parte muito considerável dele a condições de grande atraso moral e intelectual» [id., ibid.: 107 (299)].
III
16Expressão da abertura temática que caracteriza a obra antropológica de Adolfo Coelho e, em particular, do relevo que nessa abertura têm os temas relacionados com a pedagogia e a educação, os textos reunidos no presente volume ilustram também aquele que considerámos ser um outro traço caracterizador da obra antropológica de Adolfo Coelho: o modo como ela é atravessada por um esforço interpretativo permanentemente atento aos desenvolvimentos que conhece o pensamento antropológico oitocentista (cf. Leal, 1993: 19-26)5
17Esse esforço assenta, nos ensaios que integram a «Biblioteca da Educação Nacional», numa matriz teórica de inspiração essencialmente romântica. Partindo da equação tradição popular / primórdios da humanidade / criança, Adolfo Coelho não está apenas interessado em sublinhar as potencialidades e virtualidades pedagógicas da literatura e das tradições populares, como advoga uma espécie de retorno da pedagogia às origens, «eliminando os processos pedantes que as fases (...) de reflexão incompleta, de racionalismo estreito, tinham substituído ao processo natural» [Coelho, 1883b: 87 (124)]. «Hoje compreendemos, explicamos teoreticamente, modificamos, vivificamos pelo espírito as formas achadas pela humanidade nos períodos anteriores: não criamos (...). A pedagogia – acrescenta Adolfo Coelho – sente-se impotente para criar um só elemento legítimo novo da educação: todo o seu papel consiste pois em aproveitar os elementos que a tradição oferece, extremando o bom do mau, e fundindo o bom num sistema alumiado pela teoria em todas as suas partes» (id., ibid.).
18Quanto aos textos posteriores aos anos 90, a influência neles predominante é a evolucionista. Em «A Pedagogia do Povo Português», os autores citados – em particular Wundt, mas também Waitz, Letourneau ou Vierkandt – situam-se maioritariamente nessa área teórica e é de acordo com os seus pressupostos básicos que Adolfo Coelho procede sucessivamente à caracterização inicial do povo, à análise da psicologia popular e, por fim, à reconstituição das grandes linhas da história universal da educação. Simultaneamente, deve ser sublinhada a abertura que o texto evidencia em relação ao pensamento sociológico francês, e em particular à «psicologia das multidões» de Le Bon. São referências teóricas similares que podemos reencontrar em «Cultura e Analfabetismo». Wundt e Letourneau são de novo citados, bem como Havelock Ellis e o evolucionismo é o pano de fundo que percorre muitos dos argumentos empregues no decurso do texto.6
19Em consequência desta reorientação teórica, a imagem da cultura popular que estes textos transportam distancia-se em muitos aspectos daquela que aflorava nos volumes da «Biblioteca da Educação Nacional». Os juízos de matriz romântica sobre a cultura popular, embora não desapareçam, articulam-se frequentemente com formas de olhar condicionadas por alguns dos estereótipos negativizadores da cultura popular característicos do evolucionismo. Esse aspecto é particularmente relevante na caracterização que Adolfo Coelho faz, em «A Pedagogia do Povo Português», da psicologia popular [cf. Coelho, 1898: 60-71 (183-187)]. Nesta, o «mecanismo psicológico» – reencontrável também nos «selvagens» e baseado em associações erradas de ideias e emoções e em movimentos instintivos – predominaria sobre o «logismo», exclusivo das classes cultas. Em «Cultura e Analfabetismo» é para ideias similares que somos também remetidos, tanto sob a forma de alguns comentários críticos sobre o sentimento estético popular português7 como, sobretudo, na avaliação extremamente negativa que, na segunda parte do texto, Adolfo Coelho reserva a alguns aspectos da cultura popular alemã.
IV
20Finalmente, os textos que Adolfo Coelho consagrou à cultura popular e educação testemunham ainda do peso que a problemática da decadência e da regeneração nacionais tem no seu pensamento (cf. Leal 1993: 26-30).
21Tendo uma das suas expressões mais claras nalguns dos programas etnológicos e antropológicos do autor, essa obsessão com a decadência e a regeneração nacionais constitui também – como sublinhou Rogério Fernandes (Fernandes, 1973) – o pano de fundo a partir do qual é possível explicar o interesse de Adolfo Coelho pela pedagogia e pela educação. Estas eram encaradas como os instrumentos principais de uma regeneração susceptível de pôr termo à decadência nacional.
22É no interior deste quadro que estes textos devem ser entendidos. O diálogo que neles se estabelece entre antropologia e pedagogia aparece de facto articulado, de uma ou de outra forma, com preocupações que têm a ver com o diagnóstico da decadência e com a procura de caminhos para uma regeneração nacional apoiada fundamentalmente na reforma educativa. Essas preocupações exprimem-se de forma particularmente clara nos textos – como «Os Elementos Tradicionais da Educação» ou «Cultura e Analfabetismo» – consagrados à análise de questões mais circunscritas. Argumentando, no primeiro caso, acerca da importância da literatura e das tradições populares num ensino básico reformado, e, discutindo, no segundo caso, a alfabetização como estratégia única da instrução popular, Adolfo Coelho está, em ambos os casos, a pronunciar-se sobre alguns problemas precisos relacionados com o ensino como instrumento principal da regeneração nacional.
23Mas, mesmo em «A Pedagogia do Povo Português» – apesar do carácter simultaneamente mais teórico e genérico do texto –, as preocupações inspiradas pela decadência e pela regeneração nacionais não deixam de estar presentes. Elas exprimem-se, antes do mais, no modo como o texto – ao referir alguns aspectos genéricos da educação em Portugal – se articula com uma crítica da educação nas chamadas classes cultas. Esta é entendida pelo autor como um reflexo do «estado caótico da nossa sociedade» [Coelho, 1898: 217 (215)]. «Os pais das classes que se dizem ilustradas, têm apenas um fim claro ante os olhos, objecto capital das suas preocupações, a que o resto adere mais ou menos fortuitamente: abrir a seus filhos, o mais depressa possível, as portas da vida pública, do emprego mais ou menos rendoso, da invejável influência. Como o diploma escolar é, não meio indispensável, mas conveniente para alcançar esse fim, mandam-se os filhos para as escolas, em que, por via de regra, impera a doce rotina e se harmonizam comodamente as coisas inconciliáveis e se deseja sobretudo não ser perturbado com inovações» (id., ibid.). Em consequência deste tipo de expectativas, o ensino das «classes cultas» em Portugal seria um dos grandes responsáveis pelo estado do país: «Quando se examinam psicologicamente os indivíduos que vivem numa sociedade como a nossa reconhece-se em grande número deles uma enorme vacuidade moral que causaria assombro se não se apresentasse como o produto de factores bem evidentes» [id., ibid.: 218 (216)]. Isto é: visto como instrumento indispensável para a regeneração do país, o ensino é também considerado, em «A Pedagogia do Povo Português» como um dos responsáveis pela decadência do país. Simultaneamente – e embora a confiança «romântica» no povo presente em «Os Elementos Tradicionais da Educação» se encontre aqui, como tivemos oportunidade de ver, mais matizada – Adolfo Coelho não deixa de chamar a atenção para o valor da pedagogia tradicional; fazendo-o ele está implicitamente a sugerir que certos elementos desta deveriam estar presentes numa concepção renovada do ensino em Portugal.
24Maio de 1993.
Notes de bas de page
1 Gostaria de expressar os meus agradecimentos aos colegas Joaquim Pais de Brito e Filipe Reis, que tiveram a amabilidade de ler e comentar uma versão preliminar deste prefácio. Ao Francisco Vaz da Silva agradeço a ajuda prestada no esclarecimento de alguns problemas relacionados com as colectâneas de contos populares de Adolfo Coelho. Nas citações de textos de Adolfo Coelho reeditados no presente volume acrescenta-se, além da referência ao original, que surge em primeiro lugar e entre parênteses rectos, a referência à página da presente reedição, em segundo lugar e entre parênteses curvos.
2 Tanto os «Contos Nacionais para Crianças» como «Os Elementos Tradicionais da Educação. Estudo Pedagógico» foram posteriormente traduzidos para castelhano. Cf. Gonçalves, 1947: 813-815.
3 Este texto consiste na reedição de dois artigos originalmente publicados em 1910, no Boletim da Assistência Nacional aos Tuberculosos (Coelho, 1910a e 1910b).
4 A própria organização interna das duas colectâneas obedece também a critérios em que é possível detectar implícita ou explicitamente o peso de pressupostos relacionados com a sua utilização educativa. Assim, nas «Observações» que inclui no fim dos «Jogos e Rimas Infantis» (Coelho, 1883b), Adolfo Coelho escreve que se «não demos (...) tudo o que conhecíamos da tradição nacional» isso se ficaria a dever não só aos «limites impostos a cada volume», mas também ao facto de «alguns jogos, por grosseiros, ou perigosos, [deverem] ser excluídos de uma colecção pedagógica, conquanto tenham interesse sob o ponto de vista tradicional» [id., ibid.: 85 (123)]. Entre os exemplos fornecidos a propósito por Adolfo Coelho está o do «vulgaríssimo jogo do Eixo, que, além de perigoso, é acompanhado geralmente de grosseiras rimas» (id., ibid.), e ainda «todos os jogos infantis em que haja por mira um ganho de dinheiro ou objectos, tais como penas de escrever, bolos, botões» (id., ibid.), como « o jogo da chapa, do botão, do rapa e quaisquer jogos de carta» (id., ibid.: 86). Estas observações devem ser confrontadas com aquelas que Adolfo Coelho incluiu em «Os Jogos e as Rimas Infantis de Portugal» (Coelho, 1883c). Dado o facto de esta última recolha não se destinar a uma utilização pedagógica, o autor faz questão de sublinhar que não modificou «os textos, nem mesmo quando eles podem ofender os que não entendem que para a ciência não há obscenidade» (id., ibid.: 567-568).
Embora não referida expressamente a propósito dos contos tradicionais, esta dissociação entre o que tem «interesse pedagógico» e o que tem «interesse tradicional» reencontra-se de forma implícita no modo como, entre os contos incluídos nos «Contos Nacionais para Crianças» (Coelho, 1882), Adolfo Coelho retém apenas seis dos inicialmente publicados nos «Contos Populares Portugueses» (Coelho, 1879), fornece de quatro outros versões distintas das publicadas nesse volume, sendo os dezasseis restantes inéditos.
5 Para a relação entre estes textos e as principais correntes do pensamento pedagógico de finais do século xix, inícios do século xx, cf. Fernandes, 1973.
6 A par das referências ao evolucionismo, um dos factos mais interessantes deste ensaio é a citação que nele Adolfo Coelho faz, a propósito dos conhecimentos geográficos do povo, de um dos mais célebres textos de Franz Boas sobre os esquimós. Como se sabe, Boas era já à altura da publicação de «Cultura e Analfabetismo» uma das figuras centrais do pensamento antropológico, e esta é uma das raras referências que encontramos em textos portugueses da época ao fundador da «escola americana».
7 Assim, embora considere imerecida a designação de «produtos dos selvagens do Algarve» (sic) com que um Museu de Londres classificava «os trabalhos de empreita, feitos naquela província com a folha da palmeira das vassouras» [Coelho, 1916: 34 (265)], Adolfo Coelho acha que ela se aplicaria entretanto «com justiça, a certos [outros] produtos da plástica algarvia». A descrição que Adolfo Coelho faz de um arraial numa aldeia da Estremadura é também elucidativa: «inúmeros rostos de indivíduos de aspecto boçal, inundados de lágrimas ao ouvirem recitar as loas do estilo por dois rapazolas, de fisionomia não menos boçal, com uma voz e um gesto horrivelmente monótonos» [id., ibid.: 35 (265)]. E se «não pode negar-se que houvesse ali (...) a manifestação de um sentimento estético» (id., ibid.) é apenas no sentido em que se pode falar da «existência de sentimentos estéticos nos animais inferiores» [id., ibid.: 36 (265)]: Adolfo Coelho tinha anteriormente esclarecido, num tom absolutamente isento de humor, que tinha sido «tentado a comparar o efeito das loas na gente do arraial (...) ao [efeito] que produz nos cães o toque das cornetas dos regimentos» [id., ibid.: 35-36 (265)].
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