Capítulo 3. A cidade exposta
p. 43-51
Texte intégral
1Esta abordagem quanto aos modos de expor a cidade, resultante de uma experiência e da reflexão posterior a que daria lugar, não teve na cidade o seu ponto de partida. Tratou-se da investigação desenvolvida a partir de finais dos anos 1970 sobre o fado que viria a ser, em 1994, objecto de uma exposição no Museu Nacional de Etnologia. No fado há uma matéria sonora, uma história, um facto social e fenómenos inscritos na cidade que, ao serem trabalhados, foram abrindo e construindo a cidade como objecto e como campo de problemas. E, se de início essa realidade não era proposta como tal, a cidade não era esse objecto ou esse projecto, ela viria a permitir, por correlações, comparações e antinomias, estabelecer contrastes com as mesmas práticas em espaços rurais, e, deste modo, viemos a compreender de outra maneira o fado como forma de expressão de cultura popular urbana. Quando este trabalho se iniciou eu estava a conduzir a minha própria investigação para doutoramento numa pequena aldeia do Nordeste Trasmontano. A realidade de um conhecimento muito próximo, íntimo diria, da pequena aldeia, também ele muito questionado do ponto de vista teórico e metodológico, veio a permitir construir instrumentos de identificação do fado na cidade de Lisboa. Porque eu fora encontrar o fado naquela aldeia supostamente isolada de Trás-os-Montes. E foi também isso que depois me permitiu perceber porque é que este é um fenómeno urbano e não rural. A exposição realizada sobre o fado trouxe propostas de leitura sobre a cidade. E, de algum modo, ela foi já uma exposição sobre a cidade de Lisboa.
2Não se expõe uma cidade enquanto totalidade, em si mesma, sem o olhar que para ela olhe. Tal procedimento, certamente impossível, impediria de pensar problematicamente uma realidade que é sempre interrogada a partir dos ângulos, questões e fenómenos que se escolheram. Como estes são infindáveis enquanto proposta de abordagem, também a exposição a fazer sobre a cidade pode concretizar-se em infindáveis soluções. Daí que estas notas procurem apenas identificar vertentes da realidade física, social e cultural da cidade, e dos olhares que sobre ela construímos que, pela sua articulação, poderão ajudar a enunciar processos narrativos e a definir a própria materialidade dos objectos, documentos, signos a trazer para essa exposição. Para esta devemos procurar romper com a hegemonia do sentido da vista, dimensão recorrente em qualquer exposição e em qualquer museu, que a associação com o ouvido veio mais tarde a enriquecer. É extremamente difícil conseguir conglomerar a possibilidade do recurso aos cinco sentidos na construção e na apreensão de uma exposição; e isto também pelo facto de, desde logo, alguns deles se encontrarem interditos, por definição, no mundo da museologia, como, por exemplo, o tacto (não tocar) ou o gosto (não provar). Mas esta questão é importante porque uma cidade apresenta-se-nos, constitui-se perante nós, pela via sensorial. Mesmo que ao escrever sobre ela os sentidos apareçam restituídos e traduzidos num acto linear de escrita, é com estes que ela é percebida como um todo, de forma complexa, cinestésica e sincrética, ao mesmo tempo que, também, em ruidoso uníssono, nas suas vozes e reverberações desencontradas.
Um território físico
3Procedendo a uma enumeração de vertentes de aproximação à cidade começaria pela mais óbvia e também por aquela que, pela sua extensão, diversidade e totalidade, será mais difícil dar a ver: ela é um território físico. Isto, que é verdade para qualquer cidade, é, neste espaço de discussão, referido a Lisboa, pois também foi em relação a esta que desenvolvi algumas das pistas de reflexão que viriam a traduzir-se em esforço da sua exposição no museu. Insisto na existência deste território físico independentemente da tendência para ele ser descurado, já que, nos campos disciplinares das ciências sociais e humanas (com a excepção óbvia da geografia e da história), a incidência da análise recai sobre temas específicos e qualidades sociais e culturais da cidade. Este território físico que é feito de volumetrias, de formas, de cores, de planos, inscreve-se numa paisagem de que já é parte. Numa cidade com uma certa grandeza, a paisagem nunca lhe é totalmente exterior, já que não sabemos bem onde terminam os seus contornos e não somos capazes de a pensar sem a referir à paisagem envolvente. No caso de Lisboa é o Tejo, a outra margem, os campos imediatos quando se está na zona de Monsanto, por exemplo, campos que antes eram de trigo e que por ali prolongam até ao núcleo urbano a zona saloia que a rodeia.
4Esta dimensão da inscrição num território amplo deverá estar presente numa exposição. Os limites da cidade foram definidos primeiro por muralhas, depois por portas, por cinturas de circulação com marcas construídas ou sinalizações que anunciam essa fronteira. Por outro lado, o fornecimento da cidade em géneros frescos, quando o fresco era também o próximo, é ele próprio um elemento da história económica, social e cultural da cidade que pode ser evocado por um veículo de transporte, por uma galeria de figuras estereotipadas caracterizando aqueles que a ela vinham vender os seus produtos. Do mesmo modo para os dias de hoje, com as placas de indicação de destino dos transportes públicos, por exemplo.
5Seria este o primeiro aspecto a permitir inscrever num tempo histórico o crescimento da cidade, a sua relação com uma periferia contrastada e, na actualidade, confundida já com a própria cidade numa área metropolitana que a prolonga, traçada por vias de circulação e de circunvalação densamente construídas. Na exposição iríamos talvez ver mapas, bilhetes de autocarro ou de comboio, uma placa a sinalizar a entrada no seu termo.
Planos em movimento
6Dentro da cidade, propriamente dita, aquele território físico tem a particularidade de se deixar ver por partes já que cada fragmento que temos perante nós esconde a infindável possibilidade de fragmentos a observar. Parece-me residir aqui um problema conceptual muito importante para pensar a cidade e mostrá-la numa exposição. Trata-se de uma espécie de paradoxo inerente à observação da cidade, quando nela nos encontramos, e que, num aglomerado de pequenas dimensões, uma aldeia por exemplo, é muito menos evidente ou algo irrelevante. Ele consiste em, a partir de um ângulo de observação, a cidade se revelar por aquilo que se vê e, ao mesmo tempo, por aquilo que esconde. Deslocamo-nos e novas coisas vamos vendo e escondendo numa contínua deslocação de movimentos e de planos que se justapõem, sobrepõem, ocultam. Quero sobretudo referir que aquilo que se vê tem implícito aquilo que está escondido. Como se não houvesse uma possibilidade de autonomizar a parte que se vê, sem o risco de perdermos a densa malha da construção urbana e social da cidade, a sua paisagem mais íntima. Assim, ao destacar um bairro, uma rua, uma praça, nele será sugerido aquilo que se não vê, e que permite dar os sentidos mais finos da cidade enquanto forma complexa.
7Esta dimensão que se oculta naquilo que é explícito através de sobreposições, pressuposições, suposições, é um território interpelativo que elabora o próprio imaginário em torno da cidade e da relação que com ela estabelecemos. Será interessante ponderar como se articula a história da fotografia com a própria cidade e o espaço urbano e a nunca esgotada deslocação e revelação de planos que o nosso olhar define. A cidade é pois também o nosso próprio movimento. A arquitectura de uma exposição deveria contemplar a cidade como território que se revela e surpreende no nosso deambular.
Diferenciação interna
8É esse extenso e compósito território que se afirma pela sua diferenciação interna. Bairros ou partes da cidade têm histórias sociais e de desenvolvimento urbano muito distintas que se reforçam por sectores de actividade que lhe estão associados, população que os habita, marcas urbanísticas ou arquitectónicas ou configuração topográfica. Será pertinente reflectir acerca do modo como locais da cidade que antes foram aglomerados individualizados no espaço e com expressões identitárias acentuadas e contrastantes (aldeias ou mesmo vilas) foram sendo articulados no todo — a cidade — que, nos discursos que a protagonizam, desenvolve como traços definidores a exibição desses mesmos contrastes. Com eles, temos ainda a percepção da história do crescimento que trouxe novos sectores, bairros, quarteirões, que viriam a definir-se em zonas singularmente caracterizadas da cidade.
9O cancioneiro, que a vai relembrando e desenhando no espaço fechado do teatro da revista e na presença recorrente da rádio com o seu poderoso papel na construção de territórios de pertença e de visitação, é um dos textos onde a atribuição de traços de caracterização dos bairros é mais recorrente e eficaz pela geografia que constrói. Mas também o cinema é uma via de acesso à cidade, às imagens que a fixam e às representações que para ela são propostas.
10A história intelectual da frequentação e dos olhares sobre a cidade da gente das artes e das letras é parte constitutiva da própria cidade como realidade e inseparável das ideias que a exprimem. Autores do mundo do espectáculo, cineastas, escritores, pintores, nos próprios espaços públicos que frequentam, nos grupos e tertúlias que animam, são personagens da cidade e da história dos seus lugares. Numa exposição sobre a cidade a presença destes pode ser trazida através das linguagens que os reificaram O cinema, a pintura, uma canção, para além da informação e conteúdos que exprimem, poderiam ser trabalhados como matéria plástica envolvente e insinuando-se enquanto espaço físico da cidade. É por todos estes registos pelos quais se vai tipificando a cidade, mas que igualmente dá voz às inovações e aos movimentos de modernidade que a cidade acolhe, que ela se destaca na sua singularidade, e que sobretudo distingue a cidade capital em relação a outras formas urbanas.
História, memória e imaginário
11Uma outra dimensão importante nos modos de a cidade se afirmar na sua singularidade reside nos processos como ela retém, constrói e ficciona a sua história. Expressões da sua dimensão física, sinais, discursos que se materializam em produtos de circulação icónica, explicita ou implicitamente, inscrevem a cidade num tempo sempre recriado, povoando selectivamente o passado e participando da fenomenologia do presente em conflito e negociação. Os monumentos que permitem contar a sua história e a sua fundação definem uma primeira topologia do poder instituído: igrejas, palácios, praças, e outros espaços de representação. Talvez que algum elemento destacável possa ser trazido para a exposição como objecto metonímico que sinaliza a acção desse mesmo poder que gere a cidade: um relógio, um cruzeiro, um cata-vento, um brasão, um tapete de entrada duma repartição pública.
12Depois, num processo continuado de povoar a cidade de personagens que ajudem a memorizar e fixar o texto da sua história e da história do país: a estatuária e a toponímia. Elas ocorrem exactamente com a história do aparecimento da cidade e do desenvolvimento urbano. As estátuas dos escritores, artistas, soldados, políticos ou figuras populares podem ser trazidas para a exposição como personagens de um jogo feito de pedagogia e opacidade pois insistem em dizer quem somos, e a narrativa histórica de que fazemos parte e, no entanto, frequentemente já não ecoam num reconhecimento de uma memória colectiva em que muitos deles se desvaneceram. Com as placas toponímicas, elas próprias podendo constituir objectos de exposição, o processo é ainda diferente, pois para as ruas e becos antigos elas vêm substituir designações anteriores percebendo-se com isso melhor os processos de construção do imaginário da cidade e de legitimidades que ela ajuda a instituir.
13Nesta relação ao tempo a cidade produz-se em problematizações de si mesma que só na aparência são anacronismos. Ela evoca aspectos do seu passado para com eles legitimar uma permanência no tempo, e o reforço da sua identidade alude a essa permanência, o que se vê em processos de folclorização que depois trazem para dentro dos estabelecimentos públicos as designações, as decorações, tal como o faz com personagens da sua história, do seu passado glorioso, ou com algumas figuras populares. Tudo isso se encontra também nos postais, folhetos e roteiros turísticos que levam a sua imagem para fora. E, a somar a este corpus de inscrições, outros aspectos frequentemente anedóticos e mais fluidos emergem aqui e ali evocando passados antigos. E outros pertencem a uma crónica efémera de acontecimentos associados à intervenção de um artista, a uma corrente fugaz, a um edifício construído e aos discursos que produziu, a uma moda ou um efeito de atracção que os espaços de lazer de uma rua geraram, e de que alguns serão recuperados para integrar esse discurso emblematizado sobre si própria.
Sonoridades problemáticas
14Por outro lado ainda, a cidade é um campo de sonoridades problemáticas, fracturadas e em tensão. Trata-se de uma questão, por vários motivos decisiva, também porque frequentemente seleccionamos, por gosto próprio, apenas algo do que se ouve na cidade, excluindo a maior parte da sua sonoridade, que sentimos como profundamente incómoda e que pode atingir graus de poluição agressora. Mas nesses estratos múltiplos que se sobrepõem e se confundem na paisagem sonora da cidade também se constrói a sua historicidade. Ali se descobrem registos antigos de sons que marcaram e continuam a marcar o seu ritmo, como as campainhas dos eléctricos e os ruídos da sua deslocação sobre os carris, ou a gaita do amolador, num sábado de manhã, num dos novos bairros da cidade. Este último entra também no universo musical construído em torno das actividades dos mercados, dos músicos de rua em lugares onde já não circulam carros, do vozear que se mistura ao som continuado do trânsito dos automóveis, dos aviões que passam e que, na beira do rio, não abafam o aviso dos barcos, a voz das gaivotas. Ouvem-se as sirenes dos bombeiros, da polícia, das ambulâncias; a cidade é o acontecimento que, pela sua recorrência, com ela se confunde, em ruído.
15Trata-se de um campo de sonoridades conflitivas que, em si mesmo, pode convidar a uma investigação em antropologia urbana comparada, a deixar ver singularidades e semelhanças. A própria consciência e processos de intervenção na instalação de barreiras acústicas que eliminem a intensidade do ruído é um elemento a ponderar quando se comparam cidades em distintos contextos culturais e graus de desenvolvimento socioeconómico. Um lanço de uma barreira acústica pode bem ser um objecto que, numa exposição, esboça a fronteira dos limiares de sonoridade aceitável e do próprio registo da presença de uma auto-estrada, de um aeroporto, de uma estação de comboio. Expor a cidade é também construir uma arquitectura sonora de múltiplos registos que poderá incluir a experiência museográfica da violência da poluição sonora.
Diversidades sociais, culturas
16Lisboa, capital do país e do império, foi sendo lugar de fixação e de passagem na busca do lucro, sonho ou apaziguamento das fomes, daqueles que vieram do interior do país, das ilhas ou de todos os lugares de além-mar. Para os primeiros ela foi-se revestindo de mantas de retalho das províncias, com que alguma da sua expressão e produção icónica em torno de certos ofícios e de formas e espaços associativos se elaborou. Para todos os outros, conforme as conjunturas da história da cidade e do país, outras expressões mais óbvias de diferenciação cultural marcaram a cidade, desde os modos de vestir, comer, cantar, à ocupação dos lugares e criação de vizinhanças.
17Na cidade depois das colónias, quando, além disso, também passou a ser uma porta de entrada da Europa mais ampla, a diversidade cultural que a compõe, com tudo o que traz de reelaboração e reconfiguração de identidade, é uma dimensão sem a qual dificilmente esta poderá ser problematizada como lugar de abertura, desafios e de exercício e construção de identidades individuais e colectivas. É também por ela que se realça a cidade como movimento que a conduz para fora de si própria. Objectos, sons, cheiros, sabores, cores desses lugares vêm também de longe e na exposição devem trazer essa presença da cidade feita de tantas influências. E é neste plano que também a exposição sobre a cidade permite formular questões dos sentidos que nela se confrontam e articulam.
18E não se trata apenas de migrantes ou imigrantes que vieram a integrar a população da cidade e o seu facies, porque ele é ainda feito de fracturas, de violentos contrastes, de riqueza exibida e pobreza extrema, de territórios de marginalização, de medos, inseguranças, e também de um permanente efeito de auto-satisfação celebratória.
Comunicação, apelo, sedução
19Continuando a ter como referência este exercício de expor a cidade parece-nos importante dar relevo ao facto de esta ser um território do apelo e da sedução. Referimo-nos a todo o tipo de publicidade que, pelos seus suportes, pela sua forma, cor e sonoridade, é substância de organização cénica e plástica da cidade, e que, para além de assim a marcar e a ajudar a construir, é geradora de afectos, memórias e identidades. A publicidade supõe, e com isso organiza, a diversidade dos géneros, aos quais se dirige, assim como de grupos etários, e elabora representações sobre a diferenciação das classes, estabelecendo pontes de intimidade com a realidade quotidiana dos consumos, e desdobrando-se em imaginários e ficções.
20É todo esse conjunto de formas, cores, produtos, personagens e sinais, que cria fortes laços de união entre as pessoas, por geração, nas memórias que guardam ou nos reencontros que fazem com slogans revisitados, ouvidos anos depois na rádio ou lidos nos jornais ou na embalagem de qualquer produto. Julgo que esta matéria plástica fortemente sensorial define muito da nossa identidade e, ganhando autonomia em relação às oficinas de gráficos, designers e agências, constrói uma das dimensões mais expressivas da cidade e da sua inscrição num tempo presente que continuamente elabora e institui. Referimo-nos a todo o tipo de informação, comunicação, anúncio ou apelo: cartazes e painéis de cinema, teatro, espectáculos, exposições, actividades nos espaços públicos e acções em torno da sua monumentalização, painéis publicitários de todo o tipo de produtos, por vezes em movimento nos transportes públicos ou em grandes extensões que ocupam o tapume que cobre um prédio ou uma área em construção. A ele se juntam os murais, graffitis, as palavras de ordem de campanhas eleitorais.
21Essa densidade dispersa, aleatória e fragmentada de sinais e de suportes materiais onde se inscrevem, é certamente uma matéria de grande virtualidade museográfica. É também neste campo do apelo e da sedução que poderemos tratar dos comércios e da forma como exibem os seus produtos, das montras que são já elas mesmas um equipamento de museu onde os objectos são dispostos, iluminados e dados a ver pelo efeito que podem causar em quem os observa. Também os restaurantes, bares e cafés, lugares de divertimento e espaços de sociabilidades, podem ser trazidos para o território de uma linguagem sensitiva feita de apelos afectivos, insinuando-se pelo conjunto dos nossos sentidos, reveladora, para dentro de portas, destes interiores da sua vida pública, aspectos que só com a cidade se descobrem.
O público e o privado
22Vejamos ainda uma outra dimensão que uma exposição deveria tratar e que permite destacar a construção das fronteiras e das articulações entre o público e o privado. A cidade no seu conjunto constitui-se como um espaço público em que as ruas e largos configuram a própria cidade que assim se apropria das fachadas das casas e impede de ver para dento delas. O modo como estas se relacionam com o exterior é escasso. Portas, janelas, varandas, não são já lugares de estar se exceptuarmos alguns recantos de bairros antigos que existem como pequenas aldeias dentro da cidade. Mesmo uma casa isolada, como todas as outras de propriedade particular, só parece perceptível enquanto lugar do espaço público.
23É esta hegemonia do público, que por isso também reforça o sentimento de individualidade de cada um, que transmuta o território da cidade numa segunda natureza. Como dizíamos numa mesa redonda onde alguns de nós estivemos presentes, a cidade enquanto território construído parece estar mais do lado da natureza do que da cultura. É apenas um aparente paradoxo que ressalta quando se propõe o contraste com o espaço da aldeia, todo ele resultado de permanentes negociações, investido que é por cada um dos habitantes que transportam muito do espaço interior da casa para a rua, cuja manutenção e limpeza é por eles próprios garantida. Ali, as responsabilidade compartidas obrigam a varrer em frente das casas, ali é possível arrumar a lenha à beira da escada já na rua, etc., etc. Na cidade, os habitantes não são directamente responsabilizados pela sua manutenção, pela sua ordenação, circulam por ela, surpreendem-se quando um prédio cai, observam como se transforma, tiram prazer dela ou suportam-na consoante os espaços onde apetece ou onde se evita estar. Ela é feita de múltiplos territórios com que nos sentimos identificados ou onde nos sentimos estranhos. Por isso também a cidade vê gerar esse efeito de uma natureza muito para além de nós. Uma natureza não isenta de ameaças, de perigos, de desconhecido. Como se a eficácia das instituições e da sua governação trouxessem o afastamento dos habitantes em relação à coisa pública que habitam e de que são parte. Como trazer para uma exposição a cidade como natureza apelativa e também inóspita? Como evocar uma ideia de grandeza que nunca abarcamos na sua totalidade?
Saída
24São apenas pistas para formular algumas questões que parecem conter a virtualidade de poder ser traduzidas como conceito, perspectiva e matéria sensível para o espaço tridimensional de uma exposição. Porque este universo que aqui discutimos constrói-se enquanto cenografia. É história, realidade e discurso, em que este, já inscrito na cidade, vai projectando imagens desta sobre si própria e assim acumulando, elaborando a sua plástica, a sua atmosfera, a sua respiração.
25Se nesta aproximação para a construção de uma exposição a interdisciplinaridade pode trazer importantes contributos, ela tem também de recorrer às imagens capazes de sintetizar a expressão de uma ideia ou de um conhecimento e de tocar e envolver aqueles a quem se comunicam. Elas são um instrumento poético próprio de outras linguagens que forçosamente serão também recurso da própria exposição. Daí que pensar em expor a cidade seja também avaliar a necessidade de alargar as fronteiras dos campos disciplinares que praticamos. Apetece fazer essa exposição também com esta última finalidade.
Auteur
Antropólogo; Museu Nacional de Etnologia; Departamento de Antropologia do ISCTE.
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