Capítulo 1. A antropologia urbana entre a tradição e a prática
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Texte intégral
Uma tradição de reflexão sobre cidades
Le citadin est bien plus que la ville
(Agier, 1999: 20)
1A designação de “antropologia urbana” surgiu há cerca de três décadas nos Estados Unidos da América, considerando-se a obra colectiva Urban Anthropology. Research Perspectives and Strategies, organizada por Elizabeth Eddy em 1968, de certo modo fundadora de um novo campo de especialização (Eames e Goode, 1977: 19; Hannerz, 1983 [1980]: 18; Brettel, 2000: 129).
2Ao longo da década de 1970 seguem-se outras publicações que concretizam, de um modo explícito, a génese de uma linha de investigação antropológica sobre cidades. Para além da revista Urban Anthropology, iniciada em 1972, alguns destes primeiros títulos merecem destaque, por terem sido os primeiros textos a identificar e apresentar alguns dos temas e problemas que acompanharão a história deste campo de estudos: Peasants in Cities: Readings in the Anthropology of Urbanization (Mangin, 1970), Urban Anthropology. Cross-cultural Studies of Urbanization (Southal, 1973), Anthropologists in Cities (Foster e Kemper, 1974), Anthropology of the City. An Introduction to Urban Anthropology (Eames e Goode, 1977), Urban Anthropology. Cities in their Cultural Settings (Fox, 1977), Urban Anthropology. The Cross-cultural Study of Complex Societies (Basham, 1978). A estas obras, cuja circulação se deu, sobretudo, no interior dos EUA, deve-se acrescentar uma outra de mais ampla divulgação, uma vez que foi traduzida em várias línguas — Exploring the City. Inquiries Toward an Urban Anthropology (Hannerz, 1980) — 1 onde se apresenta e discute, de um modo particularmente completo e apelativo, a problemática relação, histórica e teórico-metodológica, entre cidade e antropologia. Neste conjunto diversificado de textos, que vão desde versões aproximadas de manuais e/ou obras de síntese com o objectivo de apresentar a emergência deste novo campo, com as suas temáticas e problematizações próprias (Eames e Goode, 1977; Basham, 1978; Hannerz, 1980), até colectâneas que reúnem contribuições de vários antropólogos em torno de certos temas como, por exemplo, processos de migração rural-urbana e suas consequências na adaptação das populações (Mangin, 1970) ou a experiência de trabalho de campo em contexto urbano (Foster e Kemper, 1974), encontram-se as bases de uma nova área de interesses no interior da antropologia.
3Um conjunto de factores, exteriores e internos à disciplina, contribuíram para o aparecimento desta nova orientação de estudos. Por um lado, factores relacionados com as transformações do contexto social, económico e político pós Segunda Guerra Mundial, sobretudo a partir dos anos 1960. O culminar do processo de descolonização e a intensificação dos fluxos migratórios para as cidades de populações provenientes, na sua maioria, das até então designadas “sociedades exóticas” estudadas pelos antropólogos; a quebra nos financiamentos à investigação nessas mesmas sociedades; a irreversibilidade do processo de urbanização e a importância crescente das cidades como lugares cada vez mais centrais e, também, de emergência e alastramento de vários tipos de “problemas urbanos”, tais como a pobreza, marginalização, etnicidade são apenas alguns dos factores apontados como conducentes, em larga medida, a uma mudança do “olhar antropológico”, responsável por novos posicionamentos epistemológicos e institucionais no interior da disciplina (Eames e Goode, ob. cit.; Hannerz, ob. cit.). A irrupção de novas “situações de conhecimento”, neste quadro, não podia deixar de alterar a própria relação investigador/investigado, levando a uma crítica — e a uma crise — que, na opinião de Eduardo Menéndez, terá comprometido definitivamente o modelo antropológico clássico (2002: 77-80).2 Segundo este autor, tendo a antropologia começado por ser “o estudo do ‘outro’ pensado espacial, cultural e historicamente como radicalmente diferente da própria cultura do investigador” essa perca de “terreno” terá criado uma nova relação de conhecimento em que “os sujeitos a estudar (passaram a ser) cada vez mais imediatos, sendo a própria comunidade, a própria etnia, os próprios marginais, a própria loucura ou a própria adicção” objecto de interesse, convertendo-se “o outro, cada vez mais, num recurso metodológico de distanciamento para a descrição etnográfica de nós próprios” (ob. cit.: 107). Tais mudanças na conjuntura social, económica, política — e académica — conduziram, inevitavelmente, a um ajuste epistemológico e a um re-questionamento ideológico no seio da antropologia (Gutwirth, 1982).
4Por outro lado, factores de ordem científica contribuíram, igualmente, para o reconhecimento de uma vocação urbana na antropologia, a partir de finais dos anos 1960. Algumas orientações de estudo sobre cidades, produzidas tanto do interior da disciplina como na intersecção com outras áreas disciplinares, fazem hoje parte da memória e do património da antropologia urbana, como marcos importantes de uma reflexão antropológica continuada sobre as cidades e a sua vida social (Eames e Goode, 1977; Basham, 1978; Hannerz, 1983 [1980]; Gulick, 1999). Algumas referências são particularmente importantes: abordagens pré-históricas, históricas, geográficas e culturais das cidades (Weber, 1921; Pirenne, 1925; Childe, 1950; Miner, 1953; Redfield e Singer, 1954; Sjoberg, 1960; Mumford, 1961; Christaller, 1966 [1933]; Jacobs, 1972); o corpus de investigações sociológicas e etnográficas realizadas na cidade de Chicago sob orientação de Robert Park entre 1918 e 1933 (Anderson, 1923; Park e Burgess, 1925; Trasher, 1927; Wirth, 1928; Zorbaugh, 1929; Cressey, 1932);3 os primeiros “estudos de comunidade” feitos nos EUA que, tal como no caso dos trabalhos da “Escola de Chicago”, são igualmente reivindicados pela antropologia e sociologia (Warner, 1941-63; Lynd e Lynd, 1929, 1937; Whyte, 1943; Gans, 1962); também as investigações sobre o desenvolvimento urbano na América Latina e muito particularmente no México e na sua capital, com análises pormenorizadas do seu processo de urbanização, formas de urbanismo particular, migrações campo-cidade, pobreza urbana (Redfield, 1941; Lewis, 1961, 1965); e, ainda, a incursão feita pela antropologia social britânica nas cidades da África Central, no âmbito do Rhodes-Livingstone Institut (sediado na Zâmbia) ligado à Universidade de Manchester, onde os processos de mudança social associados à urbanização e a etnicidade urbana foram analisados com metodologias inovadoras, como sejam o “estudo de caso prolongado”, as análises de “situação” e de “rede” (Wilson, 1941-2; Gluckman, 1940; Mitchell, 1969), assim como os estudos sobre redes familiares e de vizinhança na cidade de Londres (Bott, 1957; Young e Willmott, 1957). Nesta ampla enumeração de orientações de estudo, convém destacar duas em particular — as chamadas “Escola de Chicago” e “Escola de Manchester” — pela relevância com que, em termos empíricos e teóricos, elas participam do património da antropologia urbana, cuja tradição anglo-saxónica (americana e britânica) é “central na própria constituição da antropologia social e cultural como disciplina diferenciada” (Homobono, 2000: 16)
5É fruto, pois, de uma conjunção de vários tipos de factores que, pelos anos 1970, alguns antropólogos se começaram a orientar para as cidades ou, como refere Hannerz, simplesmente a já não fugir delas. Tal facto levou à constituição de uma comunidade de interesses relativamente ao “meio urbano”, partilhando um conjunto de problemas, saberes e instrumentos orientadores da sua pesquisa urbanológica (Hannerz, 1983 [1980]: 17).
6A institucionalização desta vertente de estudos ocorreu primeiro nos Estados Unidos da América e mais tarde noutros países da Europa (Grã-Bretanha, França, Espanha, Itália) da América Latina (Brasil, México) e, até da Ásia (Japão, China). No caso português, que nos merece uma atenção particular, esta área de interesse tem assumido um lugar particularmente frágil. Se para alguns, a antropologia urbana contém elementos de refrescamento que podem contribuir para uma renovação da disciplina, por obrigar a certos reposicionamentos e reelaborações teórico-metodológicas, para outros ela continua a ser olhada como sinal de puro oportunismo, revelando apenas uma tentativa de encontrar “selvagens de substituição” (Robin Fox, cit. in Hannerz, ob. cit.: 19). Jack Rollwagen, um dos editores da revista Urban Anthropology, sintetiza bem o tipo de “ataques” feitos:
Alguns afirmam que essa coisa chamada ‘antropologia urbana’ não existe. Outros dizem que, mesmo que exista, nunca terá qualquer importância. Para outros, o argumento é que antropologia urbana é apenas antropologia feita em lugares urbanos. Para outros, ainda, antropologia urbana é apenas sociologia feita por indivíduos a quem falta a competência para conduzir tais investigações. Muita literatura se tem consumido com argumentos desta natureza, pouco consistentes, pois decorrem mais de opiniões do que de factos… (1975: 2)
7Mais susceptível de discussão é a crítica de que esta designação revela uma usurpação dos “estudos urbanos” por parte da antropologia, demonstrando claramente o seu paroquialismo e estreiteza de horizontes, por definir de um modo arbitrário limites “artificiais e retrógrados, que tentam justificar um objecto no seio de uma disciplina que não pode nem deve apropriar-se dele” (Leeds, cit. em Sieber, 1994: 9). Contudo, se é certo que o autor desta última opinião, Anthony Leeds, ainda em 1963 insistia em chamar ao curso que dava na Universidade de Texas Urban Analisys, anos mais tarde, na Universidade de Boston, já utilizava o rótulo Urban Anthropology, muito embora fosse particularmente crítico quanto à “cegueira” demonstrada pela maior parte dos antropólogos relativamente à complexidade das inter-relações entre as unidades de estudo observadas e as entidades sociais mais abrangentes (Leeds, 1994 [1968]: 235). O que justifica, em certa medida, a sua visão pouco ortodoxa de antropologia urbana, mais preocupado em conhecer os fenómenos na sua complexidade, do que em respeitar estritas divisões académicas, razão pela qual sempre insistiu na absoluta necessidade de uma intersecção de perspectivas disciplinares na análise dos fenómenos urbanos: “em ambos os lugares (…) o seu ensino, tal como a sua investigação, tinham raízes profundas na sociologia, economia, geografia, história e teoria dos sistemas”, conta-nos Tim Sieber (1994: 9) autor de uma síntese biográfica sobre Tony Leeds, cuja obra continua a inspirar antropólogos e sociólogos.
8Outros, ainda, afirmam que, numa sociedade pós-industrial se trata de um termo desactualizado por já não “distinguir” realidades — uma vez que, pelo simples facto da sociedade contemporânea ser toda ela “urbana”, a antropologia ter-se-ia automaticamente tornado urbana, sendo sinónimo de “antropologia das sociedades complexas”. O que acaba por ser uma fonte de eterna confusão, não só porque aquilo que na Europa tem esta designação se tem caracterizado por estudar predominantemente sociedades camponesas, como também por não ser equivalente ao estudo de contextos urbanos e industriais generalizados o estudo de algo mais específico como é o caso das “cidades”. Como afirmam Eames e Goode, “a melhor justificação para a especialização em antropologia urbana decorre da existência de um campo de estudos urbanos em crescimento, centrado no estudo das cidades entendidas como instituições particulares” (ob. cit.: 32-3).
9Por conseguinte, a consagração deste campo de interesses não tem sido pacífica na história da antropologia. Talvez porque, por um lado, se caracterize por uma certa heterodoxia de perspectivas teóricas e práticas de investigação relativamente a definições mais clássicas e restritivas dos “objectos possíveis” da antropologia social e/ou cultural;4 e, por outro lado, por estar indiscutivelmente em diálogo permanente não só com a sua matriz disciplinar, mas também com outras disciplinas que, há mais tempo do que ela própria, se têm debruçado sobre tais realidades como objectos de estudo. Na realidade, a antropologia urbana tem-se construído, ao longo destas cerca de três décadas de história, como uma subdisciplina de certa forma pouco “pura”, ambígua nas suas fronteiras, quase híbrida, o que tem suscitado frequentes e sistemáticas dúvidas sobre a sua pertinência, a sua legitimidade e, até, a sua existência. Razão pela qual faz, ainda, todo o sentido citar Ulf Hannerz, quando, há mais de trinta anos afirmava a necessidade de reconhecer a “especialização relativa” desta nova área de estudos no quadro da antropologia:
A antropologia urbana precisa da sua própria história de ideias, uma tomada de consciência colectiva do desenvolvimento dos conhecimentos sobre os fundamentos do urbano e da vida urbana. Alguns destes conhecimentos não são de hoje; outros são recentes e extremamente actuais (…) Muitos dos conceitos que constituem hoje uma aquisição da antropologia urbana e que parecem decorrer naturalmente da disciplina nasceram, efectivamente, fora do seu campo disciplinar, tendo sido importadas. Devem ser resgatadas da história, da sociologia, da geografia… (Hannerz, ob. cit.: 21)
10Inspirando-se na noção de tradição de Thompson (1979), como um “conjunto de modelos de conduta e cosmovisões partilhadas por uma comunidade, fruto, tanto da acumulação selectiva de experiências do passado, como das respostas aos desafios do presente”, Carles Feixa caracteriza a antropologia urbana como um “património de problemas, saberes e instrumentos que orientam o investigador no seu trabalho” (1993: 15), o que lhe confere uma identidade particular como ‘tradição’ académico-intelectual de reflexão sobre a vida nas cidades (idem). Tal definição tem, ainda, a enorme vantagem de evitar certo tipo de “polémicas essencialistas” em que frequentemente os antropólogos se envolvem (ob. cit.: 18):
Entendida como “tradição” a antropologia urbana traça a sua própria genealogia (…); tem as suas polémicas teóricas (…) as suas prioridades analíticas (…) algumas técnicas recorrentes (…) e uma certa tendência a utilizar de forma aplicada os conhecimentos adquiridos (…). A cidade é, assim, entendida, não tanto como um objecto separado, mas sim como um laboratório para o desenvolvimento de estudos socioculturais. (ob. cit.: 17)
11Na impossibilidade de, em tão breve texto introdutório apresentar, mesmo brevemente, a genealogia desta tradição, gostava de me deter nalguns pontos cruciais da história da antropologia urbana que ilustram uma das polémicas teóricas e metodológicas que, de um modo simplificado, se pode caracterizar como a complexa e muito discutida relação entre a etnografia (lugar observado) e o seu contexto (cidade).
Olhar a cidade: etnografia e contexto
A cidade como contexto
As cidades têm um registo, uma atmosfera e um espírito que lhes dá a singularidade (…) A biografia é dada pela espessura em que se foi construindo uma história e um discurso, ele próprio já inscrito na cidade, projectando imagens de si própria e sobre si própria, que se vão acumulando, que vão fazendo a sua plástica e a sua respiração. (Joaquim Pais de Brito)5
12Até 1950 sobressaem duas tradições fortes no modo como os antropólogos olham a cidade (Peattie e Robbins, 1984). Uma, inserida na história cultural da humanidade, que enfatiza o papel histórico da cidade na transformação cultural das sociedades humanas como um centro de especialização e de mudança (recorrendo às contribuições da arqueologia, da pré-história, da história das cidades tradicional e pré-industrial); outra, em continuidade com o estudo das sociedades “primitivas”, que olha a cidade como uma “comunidade”, cidade-tribo e/ou pequena cidade típica, ou, alternativamente, como lugar de imigração, pobreza e marginalização, insistindo em descrições naturalísticas de pequenos grupos e ambientes microscópicos (ob. cit.: 87). Neste último caso, o fechamento e aparente autonomia são enfatizados e a exotização do próximo uma das estratégias descritivas mais comuns (podendo-se exemplificar com os chamados estudos de comunidade).
13Baseando-se na análise da literatura antropológica em língua inglesa, até meados dos anos 1970, Eames e Goode (1977) classificam em três grandes conjuntos os estudos antropológicos feitos nas cidades: aquele que focaliza os camponeses migrantes na cidade, enfatizando as causas e padrões migratórios e a adaptação inicial ao meio urbano; outro, que analisa certos problemas urbanos como sejam a pobreza, as minorias, os grupos desviados; e, por último, o que empreende abordagens analíticas tradicionais, transpondo problemas teóricos clássicos da antropologia para a cidade, como sejam o estudo do parentesco, a análise de rituais, etc. Estas três modalidades possuem uma característica comum: em nenhuma delas o contexto urbano surge como um “dos elementos fortes, cujas capacidades de condicionar atitudes e comportamentos sejam valorizadas” (Signorelli, 1999 [1996]: 72). Acidade é apenas o locus da actividade, mas não o focus da investigação. Por outras palavras, em nenhuma destas perspectivas a cidade é problematizada, iludindo-se, assim, a própria situação de investigação.
14Entre 1950 e 1970, a antropologia urbana foi, sobretudo, uma antropologia na cidade composta por uma profusão de trabalhos empíricos em torno da pobreza urbana, migração rural-urbana, bairros, associações voluntárias, persistência das relações de parentesco, análise de redes, etnicidade (Sanjek, 1990). Tais estudos assentavam em recolhas de dados baseados na trilogia observação participante/sincronia/holismo, herança do modelo estrutural funcionalista fundador da moderna antropologia praticada no estudo das sociedades ditas primitivas, esquecendo, por vezes, algumas das dimensões estruturantes das sociedades urbanas.
15A valorização excessiva da autonomia e fechamento das unidades de estudo no interior das cidades (em torno do parentesco, da vizinhança, do trabalho ou das sociabilidades lúdicas) dificultava, pois, nesta primeira antropologia urbana, a percepção das ligações complexas e múltiplas entre a unidade de estudo (muitas vezes arbitrariamente definida) e a sociedade mais vasta. Contudo, tal perspectiva tão aprofundada quanto desequilibrada acerca das “partes de cidade” tem sido um dos contributos distintivos da antropologia relativamente aos estudos urbanos (Rodwin e Hollister, 1984: 10). A difícil relação (integração) entre o pormenor etnográfico perceptível na microescala do contacto pessoal (base da observação participante) e o contexto relevante para a unidade observada, continua a ser, ainda hoje, uma das fontes de reflexão no âmbito da antropologia, ciência que se desenvolveu com o pressuposto que se atingia o conhecimento totalizador das sociedades pela recomposição de um conjunto sistemático de observações minuciosas.
16Em contraposição com esta antropologia na cidade, outros modos de pesquisar têm valorizado o contexto urbano enquanto variável importante nos quotidianos mais microscópicos da vida social citadina. Richard Fox (1977), cuja conhecida distinção entre três tipos de antropologia urbana — da urbanização, da pobreza urbana e do urbano (urbanism) — se aproxima desta última classificação, considera que uma antropologia urbana “completa” requer uma combinação dos três tipos, acentuando uma visão globalizante, culturalmente comparada, só possível com uma orientação diacrónica. Para este autor, a história particular de cada cidade e do seu hinterland económico e político é fundamental na sua caracterização, defendendo uma visão tripla: de baixo, baseada na observação participante, em torno da análise dos microsistemas familiares, vicinais, associativos, etc.; um pouco acima, nos sistemas regionais urbanos, onde se integram as cidades e ainda mais acima, analisando os sistemas nacionais e internacionais, onde se integram os anteriores sistemas, numa perspectiva mais histórica que etnográfica. Um bom exemplo desta perspectiva “em casca de cebola” encontra-se no seu texto Rationale and Romance in Urban Anthropology (1972), onde o passado e o presente de duas cidades americanas (Charleston, Carolina do Norte e Newport, Rhode Island) são comparados do ponto de vista dos laços interactivos entre cidade e sociedade, dos seus modelos adaptativos e na sua organização funcional (ob. cit.: 217) através de uma metodologia mista com base em observação participante, pesquisa histórica e inquérito.
17Mais recentemente, Michel Agier, afirma igualmente ser possível uma verdadeira antropologia da cidade, não no “sentido de definir a priori a coerência de um objecto, sempre problemático no plano cultural e político, mas no sentido em que a cidade é um lugar para o pleno exercício da antropologia, oferecendo-lhe fontes de conhecimento para alimentar a sua reflexão sobre os homens em sociedade e sobre as dinâmicas culturais” (1999: 16). Uma antropologia da cidade que ultrapasse o limite da investigação confinada às monografias, e que não ignore nem coloque entre parêntesis a relação entre os fenómenos de microescala e as estruturas e processos de macro escala de que o campo de observação faz parte. Como sintetiza Signorelli: “As cidades estão aí. Sejam o que for, não são idênticas nem aos bandos primitivos, nem às sociedades tribais, nem às aldeias” (1999: 71).
18De certa forma, esta é uma polémica datada já que “uma investigação antropológica em meio urbano que não traga nada de novo sobre a especificidade das formas de vida que aí surgem, mais do que uma antropologia na cidade, é uma má antropologia” (Feixa, 1993: 18). No entanto, esta discussão tem uma importância não desprezível na construção de uma tradição antropológica urbana, pelo problema que levanta sobre a relação entre etnografia e contexto.
Etnografia urbana, entre a parte e o todo
Encontramo-nos perante a cidade não propriamente como um objecto de estudo, mas um contexto de estudo. Só que, levando isto com algum cuidado, a cidade como objecto de estudo reemerge, porque os próprios protagonistas sociais e os próprios processos sociais produzem cidade e produzem imagens da cidade e por essa via, que não é uma via de delimitação apriorística do objecto, mas uma consequência da análise do próprio processo social, reencontramo-la enquanto tal. (António Firmino da Costa)6
19Uma das maiores dificuldades nos estudos antropológicos urbanos tem sido, pois, a relação entre a parte e o todo, entre a produção da etnografia e o seu contexto.7 Tal relação tem-se constituído como um dos principais eixos de problematização, não apenas da antropologia urbana, é certo, mas com implicações particularmente relevantes neste caso — e que se tem desdobrado num feixe de questões interrelacionadas, de alcance teórico e metodológico. Como segmentar uma cidade? Como relacionar o segmento analisado com outros segmentos? Como integrá-lo na sociedade/cidade envolvente? Como identificar as suas unidades de análise, etnograficamente pertinentes? Como lidar com diferentes escalas de observação e de análise?
20O legado da antropologia clássica de que as culturas são entidades discretas, delimitáveis espacialmente, não terá contribuído para ultrapassar esta dificuldade. No entanto, o problema é também teórico e a dificuldade em agarrar, por exemplo, os fenómenos de mobilidade e pulverização, não só geográfica, como também cultural, revela que a complexidade das sociedades contemporâneas só pode ser entendida através de um cruzamento de perspectivas disciplinares.
21Várias tentativas têm sido feitas no sentido de conceptualizar a cidade como totalidade fragmentável do ponto de vista etnográfico (Eames e Goode, 1977; Hannerz, 1983 [1980]; Gulick, 1989; Agier, 1999 [1996]). Com intencionalidades e objectivos diferentes, tais propostas são extremamente simples e, embora possam parecer ingénuas, têm a enorme vantagem de propor sistematizações de um universo fluido, complexo, múltiplo — e como tal constituírem pontos de partida sólidos para uma reflexão sobre a ideia de cidade.
22De acordo com a unidade etnográfica preferencialmente abordada, Eames e Goode (1977) classificam um vasto conjunto de etnografias urbanas em três grandes conjuntos: aquelas que estudam unidades primárias (compostas por redes egocentradas, unidades de parentesco e unidades domésticas), unidades maiores formalmente limitadas, (compostas por grupos baseados numa residência comum, grupos baseados numa cultura comum de origem e grupos baseados na divisão de trabalho) e unidades de integração ou de junção (compostas por instituições formais/ ou informais e situações temporais ou espaciais que juntam diferentes segmentos de população urbana segundo certos mecanismos integradores) (ob. cit.: 116).
23Gulick (1989), por seu lado, identifica dois grandes níveis de conexões sociais nas grandes cidades, que designa como sistemas de suporte de microescala e de macroescala, baseando-se o primeiro em conexões pessoais (de base territorial, como bairros e vizinhanças, ou dispersas, em rede), o segundo em subculturas de tipo universal (étnicas, de classe social, de ciclo de vida),8 ou em estilos de vida colectiva.
24Ulf Hannerz (ob. cit.) sugere a repartição da vida social urbana em cinco grandes domínios, compreendendo cada um deles uma multiplicidade de papéis: lar e parentesco, abastecimento, lazeres, vizinhanças e tráfego. Uma antropologia que se queira da cidade e não apenas na cidade deverá olhar as cidades como estruturas sociais de domínios múltiplos, com uma particular atenção às formas e graus de inter-relações entre papéis, não só no interior dos domínios, como entre eles (ob. cit: 142). Segundo este autor, a cidade deve ser olhada como o contexto da observação etnográfica, um “pano de fundo” sobre o qual se analisam casos particulares, tão diversificados quanto possível, de modo a deixar transparecer as conexões e cruzamentos (redes de redes) que compõem a cidade. A comparação entre duas investigações contrastantes, por ele conduzidas, sugere dois modos de fazer antropologia urbana, conforme se valorize ou não o papel do contexto/cidade — uma, em Winston Street, na cidade de Washington, onde a unidade de vizinhança afro-americana foi apenas o locus de análise (Hannerz, 1969), outra, anos mais tarde na cidade de Kafanchan, na Nigéria, onde a etnografia urbana se desmultiplicou em torno de uma variedade máxima de actividades e cenas urbanas, no sentido de captar as características peculiares da vida urbana dessa cidade, reflectindo a embeddedness das unidades sociais de pequena dimensão no interior da estrutura urbana global (Hannerz, 1982).
25A dificuldade em encontrar as ligações pertinentes entre os segmentos da vida social urbana escolhidos como unidades etnográficas observáveis e cognoscíveis através do contacto directo — ruas, bairros, grupos étnicos, associações, etc. — e essa entidade densa, grande e heterogénea (Wirth, 1979 [1938]), difusa e complexa, inabarcável aos olhos de um observador solitário e, portanto, inalcançável através dessas mesmas técnicas de aproximação, tem constituído, assim, umas das polémicas estruturantes no desenvolvimento da antropologia urbana.9 Este facto por si só tem aproximado significativamente a antropologia urbana de outras disciplinas, como a história, a sociologia, a economia política, a geografia. “A insistência nas ligações verticais que ligam os grupos sociais estudados pela antropologia à sociedade mais vasta, as ligações entre microcosmos e macrocosmos, e as relações recíprocas entre populações e processos” (Mullings, 1987: 6) levou os antropólogos, sobretudo a partir dos anos 1970, a introduzir novos conceitos, até aí património de outras disciplinas, como instrumentos de análise imprescindíveis na análise de novas realidades — demonstrando, por exemplo, como raça e etnicidade exprimem relações de classe, e criticando utilizações demasiado estáticas e rígidas do conceito de cultura, que dissociavam símbolos e ideologias de estrutura social e acção (ob. cit.). Muito embora, ao longo dos anos 1980, se tenha produzido todo um conjunto de investigações inseridas numa perspectiva teórica preocupada com a análise da estrutura social mais ampla por via, sobretudo, da introdução da economia política no seu paradigma, certos autores continuam ainda a criticar vivamente a “cegueira” da antropologia relativamente ao contexto urbano onde as suas unidades de estudo estão “embebidas” (Sanjek, 1990; Low, 1996).10
26Anthony Leeds foi, seguramente, um dos antropólogos que mais criticamente trabalharam os pressupostos teórico-metodológicos da antropologia clássica, no sentido de redefinir, em torno das realidades urbanas, instrumentos conceptuais mais adequados. Nas palavras de Eames e Goode:
… o melhor exemplo sobre o modo como cada etnografia pode ser útil na compreensão de unidades contextuais mais amplas pode ser encontrado no trabalho de Leeds (…) que tem desenvolvido modelos analíticos capazes de conjugar o comportamento directamente observado na pequena escala da situação etnográfica com os contextos mais amplos que, simultaneamente, influenciam e são afectados por essas situações (…). (1977: 109)
27A sua abordagem das favelas no Rio de Janeiro exemplifica esta combinação entre perspectiva etnográfica e análise de contexto, onde o impacte do contexto citadino regional, nacional e internacional na favela é contrabalançado pelas estratégias com que os seus habitantes lidam com as “forças supralocais” (Leeds e Leeds, 1978). O seu célebre texto “Locality power in relation to supralocal power institutions” (1973) onde desenvolve conceitos e modelos úteis na compreensão da articulação entre instituições de estado, unidades geográficas (localidades) e unidades sociais (comunidades), continua, ainda hoje, a ser de leitura obrigatória na formação de todo o urbanólogo, independentemente da sua proveniência disciplinar.
Escalas de vida, escalas de observação
28Muitos observadores assumem a sua própria escala de percepção como idêntica à escala da vida quotidiana dos citadinos. Uma das consequências mais desastrosas desta confusão é o bem enraizado estereótipo de que a ‘vida na cidade’ é, por natureza, de larga escala e, como tal, desumanizada — o que é reforçado pelo facto das cidades serem grandes. (Gulick, 1989: xv)
29O conhecimento antropológico estrutura-se em torno de dois eixos centrais: a microescala do quotidiano e o contacto pessoal entre observador/observado (Agier, 1999: 9). Qualquer tipo de etnologia citadina deverá assentar nestes dois pilares, constitutivos da própria antropologia enquanto ciência: por um lado, uma especificidade de escala que a leva a produzir conhecimentos bem ancorados no nível microssocial, o que significa tomar a escala mais básica da convivialidade como estruturante das sociedades; por outro, a especificidade do terreno antropológico,11 baseada em informações directas, de primeira mão, transmitidas no contexto de relações de carácter pessoal (idem).
30Sendo a antropologia fundamentalmente indutiva, a “cidade surge, assim, como uma representação a partir do lugar que os próprios sujeitos ocupam” (Agier, 1999: 16). Por esta razão, a descrição urbana deve centrar-se em exemplos singulares, “apanhados ao vivo”, não com o objectivo de traçar uma panorâmica quantitativa, ou “ingenuamente realista”, mas sim com a finalidade de dar a conhecer uma cidade dupla e incerta (ville bis), que emerge
… do coração das práticas citadinas, alertando para a necessidade de distinguir o diagnóstico pessimista da cidade feito pelos seus profissionais daquele que é mais incerto no que toca às populações urbanas. Não se pode deduzir um do outro. Uma boa maneira de termos a possibilidade de falar da cidade consiste em nos situarmos o mais próximo possível das práticas microscópicas, singulares e plurais dos citadinos. (Agier, 1999: 9)
31Muito embora se possa afirmar que a cidade, de um ponto de vista etnográfico, é inacessível, através da crítica da representação do urbano enquanto totalidade socioespacial, frequentemente reificada, o conhecimento etnográfico e singular, adquirido no quadro de um questionamento antropológico da cidade, abre-se a linhas de investigação que têm esta como objecto, percorrendo vários níveis de análise no estudo das práticas e representações. Estudo que vai desde o nível mais microscópico das práticas da sociabilidade quotidiana, territorializadas ou dispersas, até ao nível da representação da cidade e da sua vivência ao nível dos sentidos e do imaginário (Cordeiro e Frias, 2001), ou mesmo ao nível estruturante dos próprios discursos que interactivamente a dizem e a fazem (Mondada, 2000). É pois, a partir da microescala da vida citadina que novas imagens de cidade se vão construindo.
32Neste sentido, é mais uma vez Agier quem sugere um percurso transversal de investigação que parta dessa “unidade irredutível” composta pelo “indivíduo e os seus fantasmas de solidão”, que se constitui como um nó de relações primárias, mas também com ligações fortes a certos lugares de vida, mínimos e próximos, como as casas, as ruas, as redes de casas; que vá descrevendo, criticamente, um certo tipo de estigmatizações identitárias (pobres, subúrbios, negros) e que, finalmente, desemboque nas sociabilidades alargadas, na participação social e na expressão cultural dos indivíduos — apoiando-se no estudo de algumas criações rituais e artísticas populares (1999: 9).
33A relação entre diferentes escalas de observação tem sido, pois, um dos problemas centrais da antropologia urbana. Para John Gulick (1989), a vida social nas cidades só pode ser adequadamente compreendida através de uma visão que consiga separar, de uma forma integrada, a microescala da vida quotidiana da macroescala das realidades massivas da vida urbana. Sem querer negar o que há de desumanizado nas cidades importa descobrir o que há igualmente de humano, diferenciando as escalas de interacção social em que os citadinos comunicam (desde a relação entre próximos e amigos, passando por aquela que se dá entre os que se conhecem menos bem até ao contacto entre desconhecidos),12 daquelas que são selectivamente percebidas pelos que estudam e escrevem sobre a vida urbana — e esta postura crítica constitui, ainda segundo o mesmo autor, uma das mais-valias da antropologia urbana no seio dos estudos urbanos.
34É, pois, na continuidade deste “património de problemas, saberes e instrumentos que orientam o investigador no seu trabalho” (Feixa, 1993: 15), que fazem parte da tradição genérica da antropologia urbana, que se pode procurar uma ‘tradição’ nacional de contornos particulares, mesmo se produzida no interior de outras disciplinas académicas.
Práticas latinas de antropologia urbana
A antropologia urbana situa-se, nas suas várias facetas, no contexto de outras disciplinas vocacionadas para o estudo das cidades (…) Não há um consenso generalizado sobre o que a antropologia urbana é, não sendo, certamente, uma ideologia ortodoxa. Os antropólogos urbanos ainda estão a experimentar, a tentar o seu caminho. Não é evasivo dizer que a antropologia urbana é o que os seus praticantes estão a fazer e a pensar. (Gulick, 1989: xv, 10)
35Se é certo que a antropologia urbana se institucionalizou nos Estados Unidos ao longo dos anos 1970,13 sustentada por um conjunto de textos de referência que traçaram a sua biografia e os seus principais leitmotivs, os anos 1980 trouxeram alterações importantes a este panorama, com antropologias urbanas a irromper em países como o Brasil, a França ou a Espanha — enriquecendo com uma variedade de tradições nacionais o património desta “tradição antropológica” hoje imensa.14
36Sendo o contexto da emergência da antropologia urbana marcadamente anglo-saxónica torna-se quase obrigatório resgatar outras tradições nacionais. A referência a dois países próximos, cultural e linguisticamente, afigura-se útil como ponto de partida para uma reflexão sobre o caso português, que de uma forma curiosa contrasta visivelmente com eles: a vizinha Espanha onde, a partir da década de 1980, floresceu uma antropologia urbana extremamente diversificada nos seus temas, perspectivas e metodologias (Pujadas, 1991) e o Brasil onde a sua institucionalização foi precoce, em plenos anos 1970 (Mendonza, 2000).
37Gilberto Velho é muito justamente considerado um dos pioneiros da antropologia urbana no Brasil.15 O seu livro Utopia Urbana publicado em 1973, como resultado de uma pesquisa de mestrado levada a cabo entre 1968 e 70 num prédio de classe média no bairro de Copacabana, foi uma novidade na antropologia brasileira da época, sendo considerada, por E. Mendonza (2000) uma das obras paradigmáticas da antropologia urbana brasileira.
Embora eu tivesse tido o apoio de algumas pessoas fundamentais houve, sem dúvida, um sabor um pouco herético no trabalho que fazia. Tive um professor norte-americano de antropologia urbana que estava no Rio e que me estimulou muito — Anthony Leeds — e depois, como orientador, um outro professor americano que estava de passagem — Shelton Davis — um professor muito jovem que tinha acabado de fazer o seu doutorado em Harvard. Ambos me estimularam bastante. Acharam que eu estava realmente com um filão diante de mim, uma coisa nova, e apostaram nessa novidade, acreditando que era um avanço no conhecimento, na construção da antropologia. Embora não tivesse havido uma resistência séria por parte de ninguém, porque eu lidava com um mundo de profissionais, de colegas basicamente esclarecidos, durante um determinado tempo houve um olhar um pouco desconfiado — mas afinal que antropologia era essa que estava estudando Copacabana? (…) (entrevista conduzida por Bastos e Cordeiro, 1997: 321)
38O que importa aqui assinalar, no caso de um país onde a antropologia urbana começou bastante cedo — quase em paralelo com os EUA, fruto também da relação muito próxima entre ambos os países — são alguns dos elementos que contribuíram para esse facto. Assim, não se pode deixar de referir uma precoce institucionalização das ciências sociais neste país a partir de um tronco comum, multidisciplinar, o que fez com que a antropologia se tivesse constituído como uma disciplina plural com uma forte matriz transdisciplinar (Peirano, 1991: 50) impulsionada pelo desenvolvimento institucional da investigação e do ensino ao longo da década de 1930; nem a influência forte da antropologia e sociologia americanas, que levaram ao aparecimento de um conjunto de estudos pioneiros sobre cidades entre 1930 e 40, directamente influenciadas pela Escola de Chicago (Mendonza, 2000). Se acrescentarmos a estes factores a criação das primeiras pós-graduações em antropologia no final da década de 1960, compreendemos as condições que permitiram que uma nova geração de antropólogos, nos anos 1970, se afirmasse no estudo de populações e modos de vida urbanos, a partir de uma razoável heterogeneidade de pesquisas, bem ilustrada por alguns dos trabalhos mais relevantes na antropologia brasileira. Daí, em parte, a “vantagem da antropologia sobre outras disciplinas, oscilando entre uma ambição totalizadora mais ampla e um particularismo que dificilmente se encontra noutras disciplinas, residindo nesse paradoxo a sua originalidade” (Mendonza, 2000: 259).
39Para além da já referida obra de Gilberto Velho (1973), outras investigações marcaram o início de uma antropologia urbana brasileira — e cabe aqui mencionar quatro delas (Mendonza, ob. cit.: 270-290): a colectânea de textos de Anthony Leeds e Elizabeth Leeds, A Sociologia do Brasil Urbano (1978) onde as favelas, as carreiras brasileiras, a “panelinha”, a ruralidade na cidade são analisadas do ponto de vista das relações com o poder local, constituindo, como já foi referido, um óptimo exemplo da integração entre perspectivas micro e macro; A Caminho da Cidade: a Vida Rural e a Migração para S. Paulo de Eunice Durham (1973), sobre as transformações dos padrões de comportamento de famílias em situação de migração rural-urbana; Carnavais, Malandros, Heróis: para uma Sociologia do Dilema Brasileiro, de Roberto da Matta (1978) onde toda uma interpretação da sociedade brasileira é construída, através dalgumas das suas representações e manifestações mais ritualizadas, como a procissão, a parada militar e o Carnaval; e, finalmente, Festa no Pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade, de José G. Magnani (1984), onde as relações sociais construídas no lazer são analisadas, a partir de uma etnografia do circo-teatro, insistindo no valor heurístico da categoria nativa de “pedaço”, lugar entre a casa e a rua, simultaneamente territorial e social, onde se pode observar as sociabilidades e as redes de vizinhança.
40Tais obras, pioneiras no olhar antropológico sobre a cidade, anunciaram uma diversificação de terrenos urbanos ao longo dos anos que se seguiram. As universidades do Rio de Janeiro (Museu Nacional) e de S. Paulo (USP e UNICAMP) continuam a ser lugares centrais de difusão de modos de fazer antropologia urbana onde temas tão diversos quanto o estudo de camadas médias e populares, música, religião, comportamentos desviantes, organização da vida familiar, bairros, condomínios, associações, cultura popular, lazer, entre outros, se desenvolveram (Mendonza, ob. cit.: 291-302).
41Na Europa do Sul os desenvolvimentos da antropologia urbana tiveram uma história menos linear, do ponto de vista da sua continuidade com as tradições disciplinares. No prefácio ao livro Urban Life in Mediterranean Europe. Anthropological Perspectives, (Kenny e Kertzer, 1983), Jeremy Boissevain alertava para um facto paradoxal: muito embora a Europa mediterrânica tenha uma orientação essencialmente urbana, do ponto de vista físico, cultural, político e económico, constituindo a vida urbana uma referência cultural (cultural point of reference), associada a civilização, educação, poder, riqueza; apesar da mais de metade da população desta área habitar núcleos urbanos e os campos serem, desde há séculos, dominados política e economicamente pelas cidades, o principal objecto de estudo dos antropólogos continuava, ainda nesses anos 1980, a ser a vida rural, concluindo: rural bias is inherent to anthropology (ob. cit: vii).
42O impulso dado pelos mediterranean studies ao desenvolvimento de antropologias nacionais nalguns países europeus situados próximos da bacia do mediterrâneo — onde poderemos incluir Portugal — influenciou, sem dúvida, esta perspectiva marcadamente “ruralcêntrica”, que ainda em plenos anos 1980 se fazia sentir fortemente (Signorelli, 1999 [1996]). As razões para o curso da história da antropologia nestes países são inúmeras — e não cabe neste curto texto referi-las. Contudo, uma coisa parece clara: embora possam haver razões epistemológicas, que se prendem com a própria história da disciplina, aparentemente menos apta para lidar com a dimensão e as complexidades da vida urbana do que outras ciências sociais, a verdade é que tais dificuldades não impediram que os antropólogos estudassem cidades em África, na América Latina ou nos EUA.16 As razões para este “subdesenvolvimento” da vertente urbana na antropologia da Europa do Sul não parecem ser, portanto, de ordem exclusivamente científica, mas também de outra ordem.
43O percurso histórico da antropologia em Espanha contém alguns paralelismos com o da antropologia portuguesa. Igualmente influenciada pelas correntes estrutural-funcionalistas anglo-saxónicas, duas orientações de investigação prevaleceram no nascimento da moderna antropologia — os estudos de comunidade e uma focalização em sociedades camponesas — marcando claramente as temáticas das investigações de doutoramento de uma primeira geração de antropólogos espanhóis, desde os anos 1960 até aos 1980. Contudo, com as mudanças políticas de finais dos anos 1970, e a criação das primeiras autonomias nacionais em 1980, novos âmbitos de análise foram-se afirmando podendo-se destacar dois: um, em torno das identidades colectivas, com a redescoberta da cultura popular e da festa como lugares de produção identitária; outro, no âmbito da antropologia urbana, cujo desenvolvimento se fez por uma ampla diversificação de objectos e terrenos (Prat, 1999: 39-49).
44O primeiro estado da arte sobre antropologia urbana em Espanha foi feito em finais dos anos 1980 por Joan J. Pujadas (1991),17 um dos precursores desta área em Espanha.18 Apesar da forte tradição de estudos ruralistas neste país, as décadas de 1970 e 1980 viram a antropologia desenvolver-se como um facto plural, afirma o autor. O que não significa que se possa ainda falar, nesta época, de uma antropologia da cidade, capaz de a teorizar enquanto tal — mas sim apenas de uma antropologia “em âmbito urbano” (ob. cit: 50). Mesmo assim, segundo o autor, é possível traçar um quadro optimista sobre a produção urbano-antropológica deste país a partir do final dos anos 1970.19 Joan J. Pujadas faz uma análise comentada da então ainda “escassa bibliografia espanhola que (tinha) a cidade com cenário” (idem), agrupando-a em cinco grandes conjuntos temáticos:20 urbanização dos espaços rurais; processos migratórios; transformações de instituições e grupos sociais; processos produtivos, cultura do trabalho e economia subterrânea; identidades de grupo e processos étnicos (Pujadas, 1991). Dez anos passados, uma reordenação em torno das investigações mais significativas aparecidas ao longo de um período mais alargado de cerca de vinte anos, permite especificar certas linhas temáticas, com as inevitáveis sobreposições, em torno de algumas das investigações mais expressivas,21 como sejam, o estudo de lugares e populações marginalizadas (bairros, pobres, ciganos, etc.), a análise dos processos migratórios internos ao Estado Espanhol, mas também a imigração estrangeira, processos de urbanização e crescimento urbano e, finalmente, um conjunto particularmente expressivo na antropologia espanhola, que tem focalizado a juventude (Feixa, 1998), o consumo de droga (Romani, 1983, 2000), as sociabilidades e o associativismo (Cucó, 1991, 2000; Escalera, 1990; Homobono, 2000a), a memória e a construção simbólica da cidade (Cátedra, 1997), entre outros. A panorâmica traçada por José Ignacio Homobono numa cuidadosa resenha apresentada na revista basca Zainak,22 agrupa, afinal, de um outro modo, as investigações espanholas mais recentes, caracterizando-as como estudos sobre elites, associacionismo, sociabilidades, rituais festivos, espaço urbano, género, pobreza, marginalização, movimentos sociais, construção simbólica das cidades (Homobono, 2000: 26-41).23
45Tanto no Brasil como em Espanha, a antropologia urbana pode-se, pois, caracterizar pelo seu pluralismo (Peirano, 1991; Pujadas, 1991), estando, em ambos os casos a sua trajectória consideravelmente envolvida com o processo de construção das sociedades nacionais onde se integra (idem). Salvaguardadas as devidas diferenças entre estes países, a verdade é que, tanto a sociedade brasileira, por um lado, como as autonomias nacionais do estado espanhol, por outro, mais do que apenas um contexto passivo têm tido importantes consequências no discurso antropológico destes países, como matrizes de referência na reflexão destes antropólogos implicados na vida social e política dos seus países de pertença.
46Sendo certo que, à semelhança de outros países da Europa do Sul, a antropologia em Portugal também se desenvolveu a partir de uma clara herança ruralista, registou aqui, no entanto, uma abertura mínima aos “terrenos urbanos”, num momento em que eles se impunham como pólos de transformação incontornável na sociedade portuguesa, tendo deixado para outras disciplinas o seu estudo. Facto que revela um contraste com os dois países referidos onde tais “terrenos” foram “agarrados” também antropologicamente. Em Portugal, certos temas como o fenómeno imigratório, a etnicidade urbana, o consumo de drogas, as culturas juvenis, as sociabilidades e identidades urbanas têm sido preferencialmente investigados pela sociologia, pela geografia, pela psicologia, com raros e pontuais trabalhos provenientes da antropologia.
47É, pois, neste contexto de subreflexão sobre os universos citadinos do país por parte da antropologia portuguesa, que se deve situar a emergência daquilo que, de um modo optimista, podemos designar como a recente antropologia urbana portuguesa (Bastos, 1999; Velho, 1999; Homobono, 2000: 31; Cordeiro, 2001).
48Algumas destas pesquisas, iniciadas nos anos 1980, abriram linhas temáticas e dossiers etnográficos que se aprofundam na década seguinte, o que fez com que tal reflexão antropológica não surgisse, pois, tanto de uma diversificação de terrenos de pesquisa (como nos casos atrás referidos do Brasil ou de Espanha) mas antes de um aprofundamento em torno de certas temáticas e linhas de investigação já iniciadas anteriormente em estudos de menor fôlego.
49Sendo verdade que a maior parte destes trabalhos não se “filiem” explicitamente em qualquer tradição de antropologia urbana, e nem sequer se reclamem como tal, mesmo quando se tratam inequivocamente de investigações antropológicas, o critério de selecção de alguns dos estudos mais representativos sobre realidades urbanas portuguesas incluiu algumas investigações que, apesar de não provirem da antropologia, revelam uma perspectiva etnográfica marcante. Sem que o objectivo deste curto texto seja o de traçar uma visão panorâmica e abrangente da produção nacional sobre o tema em causa, algumas referências são, contudo, obrigatórias, pelo lugar de destaque que ocupam.
50Em primeiro lugar, os trabalhos pioneiros de Joaquim Pais de Brito sobre o fado que o legitimaram como objecto de interesse antropológico. Tendo coordenado uma pesquisa colectiva no interior da licenciatura de sociologia do ISCTE, em torno do fado lisboeta como expressão de cultura popular urbana e factor de sociabilidade, de onde resultaram algumas incursões etnográficas na cidade de Lisboa (Costa e Guerreiro, 1984), publicou ainda um conjunto de textos sobre o tema (Brito, 1982, 1983, 1994, 1999). Mais tarde, no âmbito da “Lisboa 94 Capital Europeia da Cultura” coordenou uma investigação de ano e meio sobre o mesmo tema cujos resultados foram apresentados numa exposição e respectivo catálogo (Brito, 1994).24
51Um segundo conjunto temático, em continuidade com o anterior, já que o quadro de referência são as “culturas populares urbanas”, refere-se a investigações sobre sociabilidades populares urbanas, formais e informais.25 Certas práticas lúdicas como o jogo da laranjinha (Cordeiro, 1987) festivas e cénicas, como os casos do Carnaval ou das marchas populares de bairros (Costa, 1991; Cordeiro, 1994), são apenas alguns exemplos. O bairro constituiu igualmente lugar privilegiado de observação e de análise, com um enfoque particular no seu crescimento físico e social, a partir da imigração campo-cidade (Rego, Lisboa; ver Baptista, 1987), nas suas vivências familiares, associativas e festivas (Madragoa, Lisboa; Pujadas e Cordeiro, 1990; Pujadas e Lima, 1990; Pujadas, 1994), nos processos de construção identitária, local e supra-local, no quadro da antropologia (Bica, Lisboa; ver Cordeiro, 1997) e da sociologia (Alfama, Lisboa; ver Costa, 1999).26 Tais investigações devem ser olhadas como digressões socioantropológicas sobre bairros particulares numa cidade particular, sustentadas em pontos de intersecção e de confluência explicitadas nalguns casos (Cordeiro e Costa, 1999; Baptista e Cordeiro, 1999; Cordeiro e Baptista, 1999).27
52Uma terceira orientação de estudo pode ser classificada sob o rótulo de “margens” (Cabral e Meneses, 2000), “exclusão” ou “marginalidades”, tendo em vista investigações onde a perspectiva etnográfica é central, provenientes tanto da antropologia, como da sociologia e da psicologia. Pesquisas sobre práticas e representações associadas à construção de identidades marginais “em torno do mendigo-vadio e seus equiparados” (Bastos, 1997: 13) ou ao consumo de drogas (Fernandes, 1998, Chaves, 1996) são bons exemplos desta orientação. Sobretudo estas últimas que têm surgido com alguma força, destacando-se as investigações dinamizadas por Luís Fernandes em “territórios psicotrópicos”, na cidade do Porto, a partir de um ponto de vista assumidamente emic, com rigorosas metodologias de observação no terreno (Neves, capítulo 7; Carvalho, capítulo 13).
53Por último, cabe referir todo um amplo conjunto de investigações feitas em ambiente urbano, muito embora se filiem em áreas cujos eixos temáticos remetem para uma antropologia industrial, do espaço, do turismo, do género, da medicina.28 No entanto, e apesar de explicitamente não participarem de uma “tradição” estrita da antropologia urbana — na sua genealogia, nas suas polémicas teóricas — os seus temas encaixam-se, em parte, nalgumas das suas “prioridades analíticas”, utilizando aqui, mais uma vez, uma expressão de Carles Feixa (1993). Algumas destas investigações merecem, pois, uma referência à parte. A análise de redes e valores familiares em contexto urbano e empresarial (Cabral, 1991; Lima, 2003), a construção de identidades sócioprofissionais, a meio caminho para uma antropologia das organizações (Durão, 2003 e capítulo 6), o estudo das migrações e etnicidade, vasta área partilhada com a sociologia e com a geografia (Pires, 2000 e capítulo 5; Malheiros, 1996; Machado e capítulo 10, 2002; Bastos e Bastos, 1999) não podem deixar de ser citados como pertencentes a um património de reflexão sobre as cidades.29
54Tais vertentes de pesquisa constituem contributos positivos ao desenvolvimento de uma antropologia urbana, independentemente da sua área disciplinar de referência. Todas elas têm em comum o facto de partirem da cidade como contexto de referência e, também, buscarem “um ângulo através do qual a observação e a análise da realidade social é feita com proximidade aos actores, às práticas, às actividades, aos quotidianos (…)”, procurando encontrar os “sítios, os agentes, os processos, em que essa visão próxima, complementar de outras, é captada”, sem prescindir de um enquadramento teórico mais abrangente.30
55Mais centradas em problemas de investigação do que na afirmação ritualizada da pertença a uma determinada comunidade académico-científica, parte destas investigações estabelecem um diálogo fértil entre a antropologia, a sociologia, a psicologia, a geografia cultural — o que significa que “o que interessa mais é encontrar as aproximações mais estratégicas para explicar, interpretar e/ou actuar sobre um problema específico, e não distinguir se procedem desta ou daquela disciplina” (Menendez, 2002: 44). O que leva a repensar o próprio sentido de certas fronteiras disciplinares.
Se fossem os problemas a definir a identidade de uma disciplina ou de um conjunto de disciplinas, há muito que algumas já se teriam unificado ou, pelo menos, reorganizado. (…) As causas da manutenção das especificidades disciplinares não se referem exclusivamente a critérios de tipo epistemológico nem à problematização da realidade, mas sim a condições de institucionalização profissional das ciências. (Menéndez, 2002: 45)
56Este autor aponta um facto paradoxal. A partir de meados do século XX, do mesmo modo que a sociologia e história se projectaram sobre alguns dos objectos estudados pela antropologia, esta passou a estudar objectos que até esse momento eram apenas estudados pela sociologia, tendo ocorrido, pois, todo um processo de dispersão e difusão de teorias, de objectos, de técnicas. No entanto, tal convergência não se traduziu, nem numa dissolução de identidades profissionais, nem no nascimento de uma nova relação interdisciplinar, mas sim num reforço das identidades disciplinares e profissionais.
A antropologia tratou de garantir a sua reprodução, a qual não caminhou no sentido de uma racionalidade científica de convergência, mas sim de uma racionalidade profissional de diferenciação (…) e autonomia baseada num processo de institucionalização académica articulado com processos ideológicos e económico-políticos. (Menéndez, ob. cit.: 45-6)
57Com efeito, algumas das características distintivas da antropologia — o ênfase no holístico, no qualitativo, no local, na etnografia, no simbólico (Menendez, 2002: 33), como possibilidades teórico metodológicas para a descrição e interpretação dos processos sociais — não são exclusivas desta disciplina, tendo a pesquisa de terreno adquirido um lugar importante na sociologia:
Na realidade, não há nenhuma diferença fundamental quanto ao modo de produção dos dados entre a sociologia chamada por vezes ‘qualitativa’ e a antropologia. Duas tradições fundem-se claramente: a dos primeiros etnólogos de terreno (Boas e Malinowski) e a dos sociólogos da Escola de Chicago. (Sardan, 1995: 71)
58É neste sentido que faz todo o sentido questionar uma delimitação demasiado estrita da antropologia urbana, confinada por fronteiras nitidamente definidas no interior de uma disciplina que, no âmbito dos estudos urbanos, se tem caracterizado por um relativo deficit de comunicação interdisciplinar (Low, ob. cit.). É certo que a indagação sobre a diversidade urbana, permite “matizar as generalizações homogeneizadoras habituais em trabalhos sociológicos mais próximos de censos e de inquéritos (…) Em qualquer caso, a fronteira é cada vez mais difusa no âmbito do urbano, onde há décadas existe uma sociologia urbana, bem consolidada como ramo especializado” (Homobono, 2000: 25).
59No caso português e de um modo, talvez, similar ao caso italiano, quase que se pode afirmar que a antropologia urbana se tem construído, não numa relação de “filiação directa” (Giglia, cit. em Signorelli, 1999: 5) com a antropologia portuguesa que, desde finais dos anos 1970, se tem desenvolvido em torno de departamentos universitários e centros de investigação, mas sim como um “terreno de confrontação” com essa tradição recente (Signorelli, ob. cit.: 6). Em contrapartida, a par desta confrontação interna, ela tem registado uma aproximação a outras perspectivas disciplinares que com ela partilham um conjunto de objectos.31
60Esta é uma das razões pela qual parece possível que a antropologia urbana, em Portugal, se afirme como um campo disciplinar híbrido, na confluência de uma “certa” antropologia, focalizada nos universos citadinos e urbanos, com uma “certa” sociologia, mais centrada na dimensão activa (da acção social) dos contextos interaccionais do que na dimensão mais determinista e passiva dada pelo background dos indivíduos, partilhando ambas um objectivo muito claro: o conhecimento, in locu, das cidades plurais através de uma abordagem etnográfica que seja um “antídoto às abstracções desenraizadas” praticadas em vários campos disciplinares.32
61Na impossibilidade de encontrar um consenso absoluto sobre o que a antropologia urbana foi, é, ou será, fica, então, a proposta de utilizar este rótulo como indicador de uma região de “consenso suposto que viabilize um encontro entre pessoas que partilham muitas das referências teóricas, das perspectivas analíticas, dos objectos preferenciais” dessa tradição.33 Tal encontro surge como o resultado “de anos de trabalho em disciplinas distintas, de desenvolvimento de contactos, de ligações, de várias linhas de pesquisa praticadas com heterogeneidade de disciplinas de partida e de pertenças institucionais”.34 O que permite insistir no facto de que aquilo que se pode designar hoje como antropologia urbana em Portugal, tem condições para se construir de uma forma peculiar como um terreno de confluência temática e disciplinar. É com esta perspectiva que se apresentam os estudos que se seguem — contribuições importantes para a construção desta tradição de estudos em Portugal.35
Bibliographie
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Notes de bas de page
1 Não há, lamentavelmente, qualquer tradução em língua portuguesa.
2 O quadro teórico metodológico clássico da antropologia caracteriza-se por “uma concepção antropológica que não apenas é a-histórica e pouco preocupada com processos de mudança estrutural, como também tende a acentuar os aspectos coesivos, de autonomia, autosuficiência e integração da comunidade/sociedade estudada (…) e dá conta preferencialmente do sistema normativo, dos factores e processos que contribuem para o equilíbrio, a estabilidade, a continuidade (…) excluindo o conflito, sobretudo o conflito político, em termos de movimentos sociais de diferente tipo” (Menéndez, 2002: 87-8).
3 Nas palavras de Amalia Signorelli: “A contribuição mais importante desta escola (…) está justamente em ter tematizado a cidade como tal. (…) Com uma certa ingenuidade simplificadora, mas talvez precisamente por isso mesmo inovadora, os estudiosos de Chicago emanciparam a cidade” (1999 [1996]: 67-8).
4 Esta visão quase “territorializada” da partilha de uma realidade social e cultural entre objectos “possíveis” e “impossíveis” (para não dizer, proibidos e permitidos) revela resquícios de uma concepção anacrónica, historicamente datada, de uma ciência que construiu a sua identidade e autonomia científica, a partir de finais do século XIX, em torno do conhecimento de uma “fatia da humanidade” então mal conhecida — as chamadas “sociedades primitivas”, mais tarde as “sociedades sem…” (história, escrita, organização política, etc.) — e que hoje, mais por razões ideológicas, de política académica científica, de defesa de fronteiras corporativas, resiste, por vezes, a uma natural aproximação com certas ciências sociais irmãs, como é o caso da sociologia.
5 Comunicação oral na mesa redonda do workshop de 11/09/2001 (ver apresentação).
6 Comunicação oral na mesa redonda do workshop de11/09/2001 (ver apresentação).
7 Ver as actas do simpósio “The city as context”, publicadas no n.° 4 da revista Urban Anthropology (Rollwagen, 1975).
8 Entendendo por subculturas, “sistemas de comportamentos e valores de um agregado particular de indivíduos que também são membros da sociedade mais vasta que contém outras subculturas. Cada subcultura detém uma identidade própria e costumes, embora os seus membros partilhem padrões culturais da sociedade onde se integram.” (Gulick, 1989: 182).
9 Propondo uma reflexão sobre os “saberes urbanos da antropologia” (1996) Michel Agier identifica três “conceitos intermédios que ajudam a descrever e pensar a cidade numa perspectiva antropológica (…)”. Região, situação social e rede social permitem à “antropologia construir uma reflexão e uma metodologia centrada no indivíduo inserido em espaços social e culturalmente heterogéneos, sem abandonar as suas próprias questões fundadoras” (36-7). Inspirando-se nas perspectivas teóricas e metodológicas da Escola de Chicago e da Escola de Manchester, Agier demonstra, aprofundadamente, como estas noções cumprem este papel de intermediação entre a parte e o todo.
10 Setha Low (1996), com base numa revisão de literatura de antropologia urbana desde 1989, identifica imagens, metáforas, conceitos e temas abordados, valorizando a contribuição antropológica no seio dos estudos urbanos. Contudo, afirma que, ainda nos anos 90, a cidade continuava a ser subteorizada pela antropologia, sendo esta forma de conhecimento absolutamente marginal em relação às principais correntes teóricas no interior dos estudos urbanos — lideradas pela arquitectura, planeamento, economia, sociologia, história e geografia. Um dos problemas desta falta de visibilidade da antropologia estaria, sugere ainda a autora, numa excessiva preocupação em apenas interpretar problemas, em detrimento da procura de um valor explicativo e, muito concretamente, na recusa em intervir e participar, não só em debates políticos públicos, como também em projectos de intervenção interdisciplinares.
11 Terreno é aqui entendido “como um conjunto de relações que se desenvolvem em espaços ou meios de interconhecimento acessíveis ao investigador, desenrolando-se o inquérito antropológico num tempo longo de familiarização progressiva com ruas, fábricas, microbairros, vãos de escada, associações, igrejas, etc.” (Agier, 1999: 9).
12 John Gulick dá exemplos pormenorizados sobre estudos que têm abordado a cidade a partir destes três pontos de vista: observers small-scale studies, observers large-scale studies e observers ultimate large-scale studies (1989: 25-35).
13 Convém “não confundir a invenção de uma etiqueta com a emergência de um objecto, nem tomar o que sucede nos Estados Unidos como modelo universal” (Feixa, 1993: 17).
14 Não podemos deixar de referir o caso de França, onde uma ethnologie urbaine se tem desenvolvido, a partir das obras pioneiras de Georges Balandier (1955), Colette Pettonet (1968, 1982) Jacques Gutwirth e C. Pettonet (1987), Gerard Althabe (1984), para apenas citar os seus precursores; nem o caso da Itália com os trabalhos de A. M. Sobrero (1992) e de Amalia Signorelli (1999 [1996]).
15 Ver o livro organizado por este autor O Desafio da Cidade (1980), com particular atenção para o texto de Ruben G. Oliven aí incluído.
16 O evitamento da “cidade próxima”, segundo Luís V. Baptista, “tem a ver com uma interpretação absolutamente folclórica do que deve ser o distanciamento do senso comum (…). Sendo nós habitantes da cidade, apelando as Ciências Sociais a que tenhamos um distanciamento do objecto com que estamos a analisar, logicamente a cidade, não é tida como um objecto natural da nossa investigação, porque isso coloca problemas complexos de entendimento”, em comunicação oral, mesa redonda do workshop de 11/09/2001. (ver apresentação).
17 O texto foi apresentado em 1988, embora a sua publicação seja de 1991.
18 Veja-se também Cucó e Pujadas (1990), Pujadas (1996).
19 O trabalho de Ignasi Terradas Les Colonies Industriales, publicado em 1979 é considerado um dos primeiros estudos que tomam a cidade por cenário.
20 Afonte utilizada pelo autor é a obra de Joan Prat Trenta Anys de Literatura Antropológica sobre Espanya, Arxiu d’Etnografia de Catalunya, vol. 4-5, publicado em 1986. Para uma actualização veja-se a edição especial da mesma revista, publicada em 1999 por este mesmo autor (Prat, 1999).
21 Tal reordenação foi proposta por Joan Pujadas no seminário Els estudis urbans a la Península Ibérica i a América Latina, que decorreu em Janeiro de 2001, no âmbito do Programa Doutoral em Estudis Urbans i Moviments socials (Universidad Rovira i Virgili, Tarragona).
22 O n.° 19 desta revista basca (S. Sebastian) publica as actas das I Jornadas de Antropologia Urbana, que tiveram lugar em Janeiro de 1997 em S. Sebastian. As II Jornadas realizaram-se em Bilbao, em Maio de 2002, ambas organizadas pela Secção de Antropologia-Etnografia da Sociedade de Estudos Bascos, cujas actas estão em fase de publicação, na mesma revista.
23 Para esta produção científica contam vários factores, um dos quais é, sem dúvida, a implementação do ensino pós-graduado, sendo um dos casos mais relevantes o Programa de Doutoramento em Antropologia Urbana que desde 1988 se iniciou na Universidade de Barcelona em Tarragona, hoje autonomizada como Universidad Rovira i Virgili, lugar onde algumas das perspectivas mais arrojadas se continuam hoje a desenvolver.
24 Vale a pena referir o caso de Teresa Fradique que tem pesquisado outras expressões musicais associadas a culturas populares juvenis, com os casos do rap e do hip-hop, entre jovens descendentes de imigrantes africanos e caboverdeanos (Fradique, 2003).
25 Algumas delas inspiradas nas investigações que, ao longo dessa década, se desenvolveram no país vizinho, em torno do associativismo, das festas populares, também de bairros (Cucó e Pujadas, 1990).
26 Aos quais se deve acrescentar a investigação sobre o bairro Estrela d’África, na Amadora, de Marina Antunes (ver capítulo 11 neste volume), sobre as ilhas no Porto (Seixas, 1997), sobre o bairro da Mouraria, em Lisboa (Menezes, 2001).
27 Ver também a obra colectiva organizada por Magda Pinheiro, Luís V. Baptista e M. João Vaz (2001) como exemplo de uma digressão transdisciplinar sobre a cidade (entre outras), que inclui um dossier sobre bairros; e, também, o texto conjunto de Joan J. Pujadas e Luís V. Baptista (2000).
28 Apenas se referem investigações desenvolvidas em contextos urbanos portugueses; daí a omissão de alguns trabalhos cuja perspectiva inovadora é indiscutível, com uma particular referência para a pesquisa conduzida por Cristiana Bastos sobre a sida (2002) ou de Maria Cardeira da Silva, em meio popular urbano, em Marrocos (1999).
29 Apesar do seu interesse indiscutível, não coube neste curto ensaio referir mais extensivamente investigações na área da história, da geografia, da sociologia urbana e do território, da sociologia da cultura. Um menção particular, no entanto, deve ser feita ao texto sobre sociedade urbana, de José Madureira Pinto (1997: 367-402).
30 António Firmino da Costa em comunicação oral na mesa redonda do workshop de 11/09/2001 (ver apresentação).
31 Esta ideia da antropologia urbana como um conjunto de “objectos partilhados” foi avançada por Fernando Luís Machado, na mesa redonda do Workshop de 11/09/2001.
32 António Firmino da Costa, em comunicação oral no workshop de 11/09/2001.
33 Idem.
34 Ibidem.
35 Sou devedora, neste texto, da discussão em torno da mesa redonda que animou o workshop que constituiu o ponto de partida deste livro, em que participaram, entre outros, Joaquim Pais de Brito, Juanjo Pujadas, Gilberto Velho, Fernando Luís Machado, Luís Fernandes. Estou particularmente reconhecida ao Luís Baptista e ao António Firmino da Costa pela leitura atenta que fizeram de uma primeira versão deste texto e pelos seus (sempre) certeiros comentários. Qualquer ideia menos clara ou mais polémica é, todavia, da minha inteira responsabilidade.
Auteur
Antropóloga; Departamento de Antropologia do ISCTE; Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS/ISCTE).
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