Conclusões
p. 167-177
Texte intégral
Ce livre [Homo Hierarchicus] a rarement été pris pour ce qu’il disait être, une sorte d’expérience
Dumont 1979: VIII
1No início deste trabalho levantei algumas questões àcerca do modelo hierárquico desenvolvido por Dumont para a análise do sistema social indiano (cfr. supra, cap. 2). Agora, reflectindo sobre o material etnográfico que recolhi em Valthera, posso questioná-lo um pouco mais sistematicamente.
Em primeiro lugar, tomarei o conjunto das castas (da “minha” aldeia e não só) que atrás foram sendo referidas, para dele extrair uma relativização e como que uma instabilização da própria noção de hierarquia; as quais, além de interessantes em si, não deixarão de se repercutir sobre a noção de intocabilidade.
Em segundo lugar, concentrar-me-ei nos Intocáveis Vankar de Valthera. E então, considerando os seus rituais e os seus sistemas de representações, tentarei:
reapreciar a lógica da poluição, que não é passivamente aceite por estes (e outros) Intocáveis — os quais replicam vigorosamente os interditos de que são objecto — e cujo fundamento (a oposição pureza-impureza) é muito mais ambíguo do que à primeira vista, e na doutrina dominante, parece:
criticar a concepção dumontiana de um escalonamento linear do sistema, o qual, pelo contrário, comporta um princípio de reversibilidade.
AS CASTAS DA ALDEIA
2Uma apreciação da forma como as diferentes castas avaliam os respectivos estatutos põe em relevo significativas recorrências. A saber:
indivíduos de castas diferentes propõem sempre diferentes imagens de cada uma das outras, excepção feita a Bramanes, Rajput e Intocáveis, àcerca dos quais se verifica grande consenso;
entre indivíduos da mesma casta não há consenso sobre a posição das outras no sistema, nem mesmo sobre a da sua própria;
o mesmo indivíduo elabora em diversos momentos diferentes imagens de uma mesma casta.
3Acresce o seguinte: sempre que por mim questionados sobre os critérios de hierarquização, os habitantes da aldeia não só os misturavam, como discordavam sobre a forma de os hierarquizar. De resto, utilizavam-nos com pouca frequência, a não ser quando eu os instava nesse sentido.1
4Por outro lado, certas castas estão socialmente muito próximas umas das outras, sem que isso lhes ponha qualquer problema estatutário ou relativo ao seu posicionamento no sistema. Por exemplo, Ode e Raval partilham um mesmo espaço, sendo difícil traçar entre os respectivos habitats uma divisória nítida, a não ser em circunstâncias particulares: na altura da seca, os Ode, especialistas na construção de casas de adobe e trabalhadores agrícolas, abandonaram maciçamente a aldeia para procurar trabalho em fábricas de tijolo e em programas de emprego fomentados pelo Governo; ao passo que os Raval, estavam, na sua qualidade de ritualistas da deusa e de exorcistas, impedidos de deixar Valthera. As duas castas partilhavam, além disso, alguns objectos e lugares de culto. Nos encontros que tive com eles, ouvi muitas vezes um Ode responder a questões postas a um Raval e vice-versa. Esta grande proximidade também se exprimia no facto de serem chamados por algumas castas Ode-Raval, como outros se chamam Koli-Patel, ou Turi-Barot,… Ora, observei uma semelhante contiguidade entre secções de outras castas, designadamente entre a dos Rajput e a dos Koli-Patel. Pelo contrário, grupos como os Soni, Luhar e Sutar, muitas vezes vistos como pertencendo a uma mesma casta, tendiam a marcar a respectiva identidade estabelecendo entre si grandes distâncias.
5Para aumentar a nossa perplexidade, há, no interior de várias castas, singulares distinções e hierarquizações; as quais, por vezes, parecem constituir verdadeiras oposições e implicar, pelo menos logicamente, potenciais exclusões. Assim, já vimos (cfr. supra, cap. 4), que pela via do ritual a casta dos Bramanes se subdivide em Bramanes de pleno direito, Bramanes que só podem exercer algumas das funções sacerdotais (e que, como disse, são assimilados aos sacerdotes intocáveis) e Bramanes sem funções sacerdotais. Não será ilegítimo hierarquizar linearmente formações sociais que apresentam tamanhas contradições internas?
6Enfim, também já vimos que castas desvalorizadas — como os Ode, os Raval e os Intocáveis Vankar — são solicitadas, em momentos de crise, a intervir como autênticos restauradores da ordem natural e social ameaçada. E também fomos confrontados com a grande ambiguidade do estatuto de castas, como a dos Koli-Patel; bem como com a relatividade do próprio sistema constituído pelas castas presentes numa mesma aldeia. A propósito, lembre-se que os Ode contam, para os seus rituais de passagem, com um Bramane de fora de Valthera, que dentro da sua aldeia recusa oficiar para os Ode locais (cfr. supra, cap. 4); e que os Khumbar preferem procurar trabalho fora do mercado agrícola dos Vankar porque não recebem deles alimentos ou bīdīs, mas que fora da aldeia os aceitam de outros Vankar (cfr. supra, cap. 4). Repito-me, pois, quando digo que cada aldeia é caracterizada por um conjunto de possibilidades e de interdições que a delimitam enquanto sistema social e ritual. Fora dela, outros sistemas existem e o que os liga é a acção estruturante — em todos — de uma lógica da poluição.
7Insisto que a intocabilidade é incompreensível no quadro de determinadas especializações profissionais — e lembro a inconstância da intocabilidade dos tecelões na Índia e o facto de profissões mais poluentes como a do barbeiro e do lavadeiro não acarretarem intocabilidade: o que sugere que ele tem muito a ver com o poder ritualizado.
*
8Estes factos levam-me a insistir numa tecla já atrás tocada: a de que a hierarquização do sistema social indiano me parece corresponder antes do mais a uma necessidade teórica de graduar e valorizar sentida pelos observadores.
OS INTOCÁVEIS VANKAR
9Como ao longo deste trabalho já várias vezes disse, uma grande lacuna afecta a vasta produção sociológica sobre o subcontinente, devida à quase inexistência de estudos etnográficos sobre Intocáveis, acompanhada, em regra, de um grande desinteresse dos investigadores pelas personagens e práticas que não se ajustam ao modelo teórico estabelecido.2
10Esta carência está na origem de formulações relativas a Intocáveis que o conhecimento efectivo desses grupos não corrobora. Os materiais que recolhi entre os tecelões Vankar de Valthera levam-me a criticá-las em dois planos: o da lógica da poluição e o do sistema de representações da referida casta.
LÓGICA DA POLUIÇÃO
11De acordo com a oposição ritual pureza/impureza, à medida que nos afastamos do polo bramânico do sistema aproximamo-nos de castas intocáveis, caracterizadas por uma impureza extrema e, além disso, permanente e indelével.
12Não é, no entanto, esta a imagem que os Vankar nos dão, ao manifestarem um enorme rigor na forma como observam a linguagem da poluição e uma grande minúcia relativa aos processos que permitem removê-la.
13Já vimos (cfr. supra, cap. 5) como a vida quotidiana destes Intocáveis se acha circunscrita por uma pormenorizada etiqueta, que visa libertar a alimentação de um contágio, por parte quer de membros da família e da casta de um indivíduo, quer de pessoas exteriores a esses círculos, a que ela é particularmente vulnerável. A única circunstância em que os mesmos alimentos são partilhados por indivíduos diferentes é a amamentação, ao longo da qual a mãe pode consumir as sobras alimentares do filho, com o qual entretanto mantém uma relação de grande proximidade. A referida etiqueta recai tanto sobre a confecção de alimentos (com rigorosa protecção da cozinha contra quaisquer ingerências exteriores à família), quanto sobre o seu consumo, que deve ser sempre precedido pelo banho purificador e pelo pūjā.
14Também já vimos (cfr. supra, cap. 6) como os Vankar se protegem das ocorrências e das entidades que consideram mais poluentes: do nascimento e da morte, por um lado, e, por outro, da mulher, figura cuja análise em profundidade, que aqui não cabe, é sem dúvida imprescindível ao entendimento da lógica da poluição e da intocabilidade. De facto, seja qualquer for a casta a que pertence, a mulher constitui um repositório dos estigmas da intocabilidade: no parto e durante o período menstrual ela é extremamente poluente e, como tal, segregada, ou seja, afastada da cozinha, dos lugares de culto e de abastecimento de água e proibida de tocar nos membros da sua família e da sua casta. Em suma: nesses períodos, a mulher Vankar torna-se, ela mesma, para os indivíduos da sua família e da sua casta, intocável.3
15Por outras palavras: ao chegarmos ao polo dito impuro do sistema, o que se nos depara não é a impureza extrema e permanente que as formulações teóricas atrás referidas atribuem aos Intocáveis, mas antes a devolução ao polo oposto — “puro” — da imagem que lhes é imputada: um grande cuidado posto em evitar o contágio ritual e um grande rigor relativamente aos dispositivos de purificação sempre que esse contágio ocorre.
16Com efeito, os Intocáveis Vankar consideram-se contaminados por castas consideradas estatutariamente superiores: como observámos (cfr. supra, cap. 6), a parteira Vankar sente-se mais poluída quando partilha a grande poluição decorrente dos partos de mulheres de castas não-intocáveis do que quando trata de mulheres da sua casta. No primeiro caso exige um sāri novo, para substituir o seu, que queima; no segundo, limita-se a lavar uma roupa que de novo usará.
17Se chamarmos, agora, a este dossier elementos retirados doutras zonas do subcontinente (segundo Moffatt os Intocáveis Parayar da Índia do Sul sentiam — se tão poluídos quando um bramane penetrava no seu cheeri, que o expulsavam com sandálias de couro e se submetiam a uma purificação tão rigorosa como a que tem por objecto a morte (Moffatt 1976: 115),4 teremos de atribuir importância teórica ao facto de os Vankar devolverem escrupulosamente o evitamento de que são alvo por parte das outras castas.
18Deste ponto de vista, esta casta intocável não é singular: autores como Srinivas (1952; 1965) e Moffatt (1976; 1979) referem a existência entre outros Intocáveis de um semelhante rigor na linguagem da poluição. Ora estes factos, se não bastam para refutar o modelo hierárquico, parecem, no entanto, dificilmente integráveis na “échelle linéaire et gradative” de Dumont, de acordo com a qual a oposição ritual do puro e do impuro oporia, num sentido (descendente) e de forma irreversível, superiores-puros e inferiores-impuros ou, na terminologia de Dumont, englobantes e englobados.
19Meena Kaushik fornece elementos que nos convidam a reconsiderar, a partir do plano terminológico, este tratamento teórico da lógica da poluição. O termo chhuth é compósito, derivado de chhuna “tocar”, e, segundo a autora, é usado “to convey contagion with regard to vessels he [the chief mourner] uses, the clothes he wears (Kaushik 1976: 287). Ainda de acordo com aquela antropóloga,” the problem arises when we see the terms chhuth and impurity or pollution as interchangeables. […] chhuth signifies a state, where something is conveyed by touch. The thing can be both pure and impure “(Kaushik 1976: 287; destacado meu). E acrescenta a seguinte ilustração:” Smallpox is seen as chhuth ki bemāri (disease through contact). Here the element being conveyed is disease. Similarly sukhandi is a disease in children, associated with retardation of growth, which is believed to be conveyed to the child through the mother. The mother after bathing is in a state of extreme purity, which is believed to be very potent in that if she were to touch the child witouth eating (i. e., becoming jutha) she would cause sukhandi. In this case the element being conveyed is the danger of extreme purity. Thus chhuth can convey both impurity and purity “(ibidem: 287; destacado meu).
20Sob o ponto de vista terminológico, puro e impuro surgem assim como elementos que não se excluem, antes frequentemente se equivalem, numa espécie de coincidentia oppositorum, ininteligível à luz da concepção dumontiana linear do sistema de castas. Em Valthera, à ideia de impureza temporária dos Bramanes oposta à impureza permanente dos Intocáveis postulada pelo modelo hierárquico, vemos contrapor-se a impureza permanente de Bramanes desqualificados, impuros. Já observei, além disso (cfr. supra, caps. 5 e 6), que, por via da mulher, todas as castas são afectadas por uma impureza regular e permanente — de carácter distinto do da poluição provisória de que fala Dumont (1966: 70).
21É verdade que a linguagem da poluição constitui um poderoso factor de regulamentação de distâncias e de estatutos sociais, seja entre castas, seja entre subdivisões da mesma casta ou entre indivíduos. Por isso (e falo com base na minha observação em Valthera), ela intervem sobretudo nos casos em que essas distâncias são imprecisas ou esses estatutos são omissos, e não termo a termo ao longo de todo o sistema — cujos limites são, no entanto, inequivocamente fixados.
22Mas conceber esta estrutura social como um jogo de estatutos entre superiores e inferiores que por completo a esgote é forçá-la a ajustar-se a um molde (hierárquico) à revelia do qual — e mesmo contra o qual — ela frequentemente funciona.
23Os mitos de origem dos Intocáveis Vankar fornecem elementos essenciais para o entendimento dos problemas teóricos que tenho vindo a levantar.
SISTEMA DE REPRESENTAÇÕES VANKAR
24Analisei alguns mitos cosmogónicos Vankar (cfr. supra, cap. 8), em que estes Intocáveis se atribuem um papel social decisivo, tradicionalmente desempenhado pelo rei hindu: são rain-makers e, nesta medida, intimamente associados à fertilidade social e cósmica. Ora, este papel é-lhes reconhecido pelas outras castas, que, em momentos de crise, os instam a restaurar a ordem ameaçada ou interrompida.5
25A associação simbólica entre Intocáveis e reis (ou outras personagens estatutariamente valorizadas) no estabelecimento da ordem socio-cosmogónica também não constitui uma singularidade social dos Vankar. Robert Deliège fornece-nos o seguinte mito de origem, comum, segundo ele, a muitas castas intocáveis da Índia e a todos os Parayar do Tamilnad, região do Sul onde realizou trabalho de campo:
“Au début, il y avait deux frères qui étaient pauvres. Alors ils partirent ensemble pour trouver dieu et pour prier. Dieu leur demanda de ramasser les restes d’une vache morte. Le frère ainé répondit: Een thambi pappaan (“mon jeune frère va le faire”), mais Dieu comprit: Een thambi paappaan (“mon jeune frère est un Brahmane”) et depuis ce jour le jeune frère devint Brahmane (paappaan) et le frère ainé devint Parayar. Toutes les castes descendent de ces deux frères” (Deliège 1989: 109).
26Para Deliège, este mito exprime um modo de pensar próprio dos Intocáveis, que através dele racionalizam a sua depreciação estatutária;6 e temas análogos têm curso noutras castas de baixo estatuto: “Le cas est général en Inde: une caste qui désire améliorer son statut adoptera un nouveau nom, jugé plus prestigieux, et écrira, sous forme mythologique, une nouvelle histoire faisant naître la caste d’un couple divin ou de quelque personnage fameux.” (ibidem: 107).
27Aceitar a interpretação de Deliège seria, porém, considerar o conceito de sanscritização, proposto por Srinivas (cfr. supra, cap. 3), como o mais pertinente para interpretar o pensamento mitológico dos Intocáveis e de outras castas socialmente desvalorizadas. Com efeito, poderíamos detectar nestes mitos (e, por que não, nos mitos Vankar acima apresentados) uma forma utilizada pelos grupos em questão para melhorar o seu estatuto degradado, atribuindo-o a um erro, a um equívoco ou a um mal-entendido ocorrido num remoto passado, no qual estariam ligados a deuses, reis, sacerdotes e outras figuras estatutariamente proeminentes.
28Mas, se é verdade que este tema recorre um pouco por toda a parte na Índia (cfr. Srinivas 1952, Kolenda 1964, Cohn 1973, Moffatt 1979), e se também é verdade que, sobretudo durante a administração britânica, castas de baixo estatuto — que não Intocáveis — viram aceites reclamações de promoção estatutária apoiadas em mitos como estes, um exame atento da realidade obriga-nos a pôr a questão noutros termos.
29Ainda segundo Deliège, no Tamilnad, durante os rituais de casamento dos Bramanes, é reposta simbolicamente a relação fraternal afirmada pelo mito. De facto, quando se casa, um bramane faz uma série de ofertas ao irmão mais velho: annanvarisai, folhas de betel, frutos, flores, “ce qui montre bien — sugere o autor — ” que les Brahmanes se souviennent encore de leur ainé" (ibidem 1989: 110). Além disso, no Kerala, os Parayar são chamados “irmãos mais velhos” (Iyer 1981, I: 69, apud Deliège 1989: 110).
30Por outras palavras: não é só o mito, é também a realidade que, em determinadas circunstâncias, atribui papéis decisivos a personagens socialmente depreciadas. Em Valthera, observei uma valorização semelhante, relativa aos Vankar: na altura da seca, eles eram solicitados por alguns agricultores (na sua maior parte Rajput, ou seja, aqueles que, precisamente, mais os segregavam) e pelo paṭel, o chefe da aldeia, a exercer a sua capacidade de rain-makers, de forma a restabelecer a ordem interrompida. Assisti também à intervenção ordenadora dos Raval, ritualistas da deusa da fecundidade, por eles propiciada com sacrifícios de animais, que, embora contrários ao princípio hindu do ahiṃsā, lhes eram solicitados pelas castas mais prestigiadas da aldeia.
31Materiais etnográficos semelhantes aos acabados de expor podem ser encontrados numa área mais vasta e socialmente mais diversificada. No Sul da Índia, um papel idêntico ao atribuído aos Raval em Valthera e noutras aldeias do Gujarat é desempenhado por uma Intocável celibatária da casta dos Madiga, que, em circunstâncias análogas àquelas em que os Raval intervêm, subverte radicalmente a ordem social. Segundo Kinsley, no festival da deusa, Matangi, a mulher em questão, “will dance wildly, use obscene language, drink intoxicants, spit on spectators, and push people around with her backside. She seems to take special delight in abusing members of the high castes, […] rushes about spitting on those who under ordinary circumstances would almost choose death rather than to suffer such pollution from a Madiga” (Kinsley 1986: 207; destacado meu). Ora, segundo os habitantes da aldeia estudada por Kinsley, o comportamento inversor de Matangi, que em circunstâncias normais seria extremamente poluente, torna-se purificador. Por isso, “instead of avoiding her spittle and insults, people go out of their way to be subjected to her abuse” (ibidem: 208; destacado meu).
32Ainda quanto à Índia do Sul, Michael Moffatt refere a existência de análogos fenómenos de inversão, protagonizados por Intocáveis que actuam como garantes da ordem social ameaçada. Numa aldeia do Tamilnad, um Intocável da casta dos Parayar é possuído semanalmente pela deusa Periyapalaiyattar (forma de Parvati, a consorte divina de Shiva), a fim de exorcizar os indivíduos possuídos por um peey, espírito maléfico. Nessa altura, diz Moffatt, as mulheres do uur (termo que, recorde-se, designa o espaço social das castas “tocáveis”, afastado por vezes uma milha do cheeri dos Intocáveis) “accept from the Mugan-as-the-goddess things such as uncooked fruits, acceptances that they could never make from Mugan in an unpossessed state” (Moffatt 1979: 243; destacado meu). Para isso, as mulheres do uur têm de franquear os limites do cheeri/colony; ora, o autor refere que os mesmos Intocáveis tinham, tradicionalmente, o direito de expulsar, recorrendo ao uso da força, “any high caste intruder […] — specially a Brahmin who, in an intetresting inversion of the order of purity and pollution, was treated as a source of pollution to the colony” (Moffatt 1976: 115).
33Se olharmos agora para o Norte, vemos reproduzir-se a mesma lógica no domínio ritual da morte. Os Intocáveis Dom de Benares, extremamente poluentes devido à sua grande proximidade com os cadáveres, cuja cremação asseguram, são imprescindíveis à salvação da alma dos defuntos, e, nesta medida, indispensáveis à manutenção da ordem social, já que, sem eles, os mortos se podem transformar em seres maléficos que ameaçam o mundo dos vivos. Depois de o corpo ter sido tratado para a cremação “like a sacrificial object” (Kaushik 1976: 277), os Dom preparam a pira funerária, dispõem a madeira e acendem o fogo sagrado que deve arder continuamente, pois a sua interrupção comprometeria a salvação do defunto. Assim, a sua presença no ghāt crematório e a sua intervenção no ritual é considerada mais importante que a de outros dois ritualistas: o barbeiro e o Mahapatra, sacerdote funerário das castas não-intocáveis. Diz-nos a referida antropóloga que: “Cremation in Banaras is carried out at two major cremation grounds, the Harishandra ghāṭ and the Manikarnika ghāṭ. The dead are brought from the surrounding areas, and often from all parts of India, for cremation. The cremation ghāṭ is the point of interaction for a number of service castes. The most important caste of these, which also has rights of ownership of the ghāṭ are the Doms. They are the funeral attendants, and the local belief is that ‘salvation’ is not possible unless the Dom provides the fire for cremation” (ibidem: 268).
34Ainda no Norte da Índia, no Gujarat, um Bhangi é um Intocável extremamente depreciado, estando-lhe atribuídas na comunidade a que pertence as funções mais poluentes. Segundo Fuchs, porém, “the sight of one member of this caste carrying his basket is auspicious and before crossing the Mahi river in a flood, the blessing of a Bhangio was asked in the past for a safe passage” (Fuchs 1981: 244).
*
35Factos como estes não têm, insisto, interessado a maioria dos antropólogos que trabalham na Índia, quase sempre presos a um modelo teórico que tomam como inquestionável.7
36Mas os materiais fornecidos pelos Vankar e por outras castas de Intocáveis, relativos, por um lado, à lógica da poluição, e, por outro, ao seu sistema de representações, em que estas castas se atribuem papéis sociais imprescindíveis à manutenção da ordem — acrescendo que a própria sociedade lhos confere, deles exigindo o respectivo cumprimento —, obriga-nos a rever a concepção dominante da hierarquia social hindu.
37Com efeito, à luz de todo o material etnográfico acabado de expor — acrescentando o que recolhi dos Vankar de Valthera ao que outros autores vão fornecendo —, deixa de ser possível conceber o sistema de castas na Índia como uma hierarquia cujos elementos mantêm entre si uma relação de exclusão e de irredutibilidade. Pelo contrário, esses materiais permitem sugerir contra a linearidade dumontiana a existência daquilo a que chamaria princípio de reversibilidade.8
38Para explicitar este princípio insisto sobretudo em dois argumentos já enunciados:
a complementaridade existente, sob o ponto de vista do poder, entre castas situadas em polos opostos do sistema: por um lado, os Rajput, economicamente predominantes e detentores e gestores, em circunstâncias normais, do poder político; e por outro lado os Intocáveis Vankar que, embora estatutariamente depreciados — como depreciados são os Raval e os Ode, duas castas muito ligadas à fertilidade —, assumem, em momentos de crise, a função de garantes ou de restauradores de uma ordem sócio-cósmica ameaçada ou já interrompida.
a fixação nas castas ditas puras, por via das mulheres, de uma poluição permanente — que não temporária, no sentido dumontiano do termo —, assimilada à intocabilidade.9
39Evidentemente, aceitar a existência do princípio de reversibilidade proposto implica abandonar o tema da singularidade sociológica do sistema de castas.10 Aquele dispositivo é, com efeito, familiar a outros contextos culturais. Brian O’Neill assinalou a existência, na Europa, de fenómenos desta natureza, protagonizados por mendigos, proletários rurais, delinquentes, escravos, ciganos (O’Neill 1992: comunicação oral).
*
40É esta a sugestão final deste trabalho — que mais não tem feito, eventualmente, do que apresentar sugestões — : a de que a antropologia da Índia prescinda de valorizar nela singularidades e especificidades sociais — sublinhando diferenças que reflectem expressivamente a natureza da observação em antropologia —, a favor de princípios mais universais, que lhe darão seguramente maior inteligibilidade.
41Invocando, para tanto, como dizia Madeleine Biardeau, o auxílio da deusa…
Notes de bas de page
1 Excepção feita, como vimos (cfr. supra, cap. 4) aos critérios alimentares e sexuais que assinalam os limites da subcastaeàpresença ou ausência de Bramanes nos rituais de passagem, que indicia simultaneamente o estatuto dos Bramanes e o das castas às quais oferecem e recusam prestações profissionais. Apoio estas conclusões em numerosos questionários realizados na aldeia (cfr. supra, Introdução).
2 Alguns trabalhos recentes têm vindo a corrigir esta tendência (cfr. principalmente Hietelbietel 1989 e Gomes da Silva 1990).
3 E, nesse sentido, a mulher é uma das personagens sociais mais completas e significativas: pela via da poluição é assimilável aos Intocáveis, pela via da fecundidade e da provisão de alimentos é assimilável aos reis.
4 Lembro que o couro, resultante da pele do animal morto, é uma das matérias mais poluentes para o hinduismo; donde a obrigatoriedade de um indivíduo se descalçar antes de entrar num templo ou numa casa.
5 Há nisto bem mais do que replicação, no sentido de Moffatt.
6 "Il est difficile d’imaginer une transmission orale des mythes dans des régions si éloignées, séparées d’ailleurs par plusieurs Etats, et de langues très différentes. Il est préférable de penser que ce mythe exprime bien un mode de penser propre aux intouchables de l’Inde, une manière d’expliquer leur position dans le système de castes et de rendre compte de celui-ci" (Deliège 1989: 113).
7 Num trabalho editado por Alfred Hiltebeitel em 1989 e dedicado precisamente a figuras transgressoras da ordem hindu, Madeleine Biardeau traduz de forma expressiva a persistência desse modelo: “From the beginning of my Indological studies, I have been quite convinced that Hindu society was much less divided ideologically, that the top and the bottom were not so utterly alien to each other, than was usually contended, particularly among anthropologists. Being myself of classical philosophical training, I could not imagine how to convince others, including anthropologists, of this belief, and I was prepared to say that, after all, it was a philosophical matter that should not be debated in scholarly circles, because everyone had his own opinion beforehand. I now think, however, the Hindu gods have been with me, and even more so the Hindu goddess” (Biardeau 1989: 19; destacado meu).
8 Ao sugeri-lo, não me afasto sobremaneira de Gomes da Silva quando detecta no sistema social indiano uma lógica cíclica, a qual, como o autor demonstra, é muito mais familiar ao pensamento hindu do que as abordagens correntes deixariam pressentir (cfr. sobretudo Gomes da Silva 1989; 1990).
9 Abre-se aqui, obviamente, uma questão teórica que este trabalho se limita a enunciar: tanto quanto categoria sociológica, a intocabilidade é uma categoria lógica, ou seja, um eficaz princípio de classificação e de ordenação do sistema.
10 Ganha, assim, pertinência, lembrar um autor cujo contributo teórico os estudos antropológicos sobre a sociedade hindu não apreciaram devidamente. Refiro-me a Edmund Leach, que, na sua introdução de 1960 à colectânea Aspects of Caste in South India, Ceylon and NW Paquistan, lançou uma questão conceptualmente decisiva: deve ser a casta considerada um fenómeno cultural ou estrutural? (Leach 1960: 2); por outras palavras: o que torna a casta uma realização especificamente hindu? (ibidem: 2).
Ora, para Leach, a especificidade do sistema de castas reside na natureza peculiar da própria organização sistémica (ibidem: 5). O que é essencial reter (e é esse decerto um dos contributos teóricos mais importantes de Dumont), é o carácter relacional das castas, a sua natureza de sistema.
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