Capítulo 8. Reis e intocáveis
p. 155-165
Texte intégral
1Na segunda fase do meu trabalho de terreno, o estado do Gujarat vivia, como disse, os efeitos de uma seca prolongada que tinha levado um grande número de aldeias a uma situação de terrível escassez. A última monção ocorrera em 1984. No ano seguinte, face à ausência de chuvas, tornou-se necessário proceder à exploração do subsolo e promover sistemas de irrigação ad hoc, que foram instalados por um pequeno número de agricultores possuidores de poços e de motores de aspersão. Estes processos revelaram-se, todavia, ineficazes: por um lado, foram descobertos lençóis de água salgada, inutilizável para propósitos agrícolas; por outro, a terra absorvia à superfície toda a água que lhe era fornecida.
2No segundo ano sem monção, a seca no Gujarat (e no vizinho Rajasthan) constituía já um problema nacional, tendo o governo procurado assegurar processos de distribuição de água, que em breve se revelaram insuficientes.
3E quando, em Setembro de 1987, cheguei a Valthera, há muito se tinham esgotado todos os recursos. O lago da aldeia estava completamente seco. Os campos não eram plantados havia dois anos consecutivos. Famílias da casta dos Patar1 iam de aldeia em aldeia apanhando nos campos à volta raízes, que vendiam para fins alimentares. Pastores Kutchi-Barwad vinham a Valthera de tempos a tempos, oferecendo-se para pastorear, em longínquas regiões do Sul, o gado de castas com disponibilidade económica para lhes pagar os serviços.
4Estava-se no período mais difícil da crise. Nessa altura, os Vankar de Valthera foram solicitados para “fazer” chuva, primeiro por alguns agricultores (na sua maioria Rajput, note-se), depois pelo próprio paṭel, o chefe da aldeia.
5Ora, é precisamente dessa atribuição que nos falam os seus mitos de origem.
Mito 1
Há dois mil anos os Vankar eram chamados Meghaval. Habitavam fora da aldeia, cuja entrada lhes estava absolutamente vedada.
As castas superiores reconheciam-nos através de uma série de elementos: eram obrigados a levar às costas um grande ramo que apagava as marcas dos seus pés no chão; traziam ao pescoço um recipiente que lhes recolhia a saliva, para que ela nunca caísse no solo. Tinham de usar vestes com três mangas e de manter a cabeça coberta por um turbante. E era-lhes interdito o contacto físico com as castas superiores.
Um dia nasceu nesta comunidade um rapaz excepcional, de tal forma brilhante que podia ser comparado a um deus. O seu nome era Virmeghamayo.
A criança cresceu e fez-se homem.
Nesse tempo, havia no Gujarat uma grande cidade chamada Patan, governada pelo rei Sidharaya Jayasinh, que decidiu fazer um grande lago, o lago Sahatraliag. Mas, depois de profundas escavações, a água não aparecia. Alguém comunicou ao rei que ela só surgiria quando um batrisōnar, “homem com trinta e dois talentos”, se sacrificasse no local. E precisou que o próprio Sidharaya Jayasinh preenchia essas condições. O soberano replicou: “Sou rei, se sacrificar a minha vida, quem reinará sobre os meus súbditos?”; e ordenou que se procurasse por toda a parte um “homem com trinta e dois talentos”.
Os astrólogos forneceram então os elementos que identificariam esse indivíduo: deveria chegar com as mãos abaixo dos joelhos; quando virado para o sol a sua sombra projectar-se-lhe-ia à frente; teria trinta e dois dentes; e seria destituído de mamilos.
Os súbditos do rei iniciaram a busca. Depois de um longo percurso, chegaram ao lugar onde viviam os Meghaval. E encontraram aí Virmeghamayo, o batrisōnar.
O homem foi levado à presença do rei, que lhe perguntou a que comunidade pertencia e onde vivia. “Sou um Meghaval”, respondeu. “Os Meghaval vivem fora da aldeia, na flo resta”.
O soberano pediu-lhe que se sacrificasse. Mas Virmeghamayo pôs-lhe condições: a sua comunidade passaria a viver no interior da aldeia, a leste; o recipiente que traziam ao peito seria colocado no local reservado às grandes cerimónias; o ramo que transportavam ser-lhes-ia retirado mas um pedaço de madeira ficaria guardado numa sala nobre do palácio; o rei cortar-lhes-ia a terceira manga para nela pôr a bhūngaḷa2 dos rituais mais importantes. Enfim, a intocabilidade seria abolida.
Sidharaya aceitou estas condições, satisfazendo ainda uma última exigência: os Meghaval seriam conduzidos a Patan onde o rei os libertaria publicamente dos sinais distintivos da intocabilidade.
Cumprida a promessa, o jovem declarou: “Estou pronto a dar a minha vida”. Conduziram-no ao local do sacrifício, num grande cortejo presidido pelo soberano, ao som de música. No centro desse espaço, Virmeghamayo cortou o indicador direito. Quando o sangue tocou a terra, a água brotou abundantemente e cobriu o corpo do jovem que pereceu no lago.
Todos os que presenciaram a cerimónia recolheram água e voltaram às suas casas. Os Meghaval regressaram à aldeia; e foi então que começaram a tecer (gujarati vaṇvu), razão pela qual são conhecidos hoje em dia por Vankar.
*
6É ao rei de Patan, garante da ordem, que compete providenciar o abastecimento de água, atribuição que o soberano indiano desde sempre detém: é um verdadeiro rain-maker. Mas, durante o período de seca a que o texto alude, é em vão que procura exercer estas funções. O mito põe-nos, pois, perante uma situação de crise particularmente grave.
7Um astrólogo sugere como solução o sacrifício de um “homem de trinta e dois talentos”, e acrescenta que o próprio rei corresponde a essa definição. Recusando, contudo, sacrificar-se, com o argumento de que a sua morte criaria um insustentável vazio de poder, o soberano parece revelar-se incapaz de garantir a ordem ameaçada.
8Para encontrar quem o substitua, são dados os sinais de um indivíduo particular; o qual, enfim descoberto, se identifica explicitamente com a chuva (megha), como o seu nome (Vir meghamayo) indica. Assim, poder-se-á dizer que o mito concentra no herói privilégios reconhecidos à casta em geral. Sublinhando vigorosamente a identificação do herói com a água, o texto afirma também a relação de incompatibilidade entre ele e o Sol: a sua sombra projecta-se-lhe sempre à frente. Virmeghamayo é, pois, no mito, substituto do próprio soberano, definindo-se, à imagem deste último, como rain-maker.
9Estas formas de correspondência simbólica admitem outra leitura: aceitando sacrificar-se, Virmeghamayo exige que os traços distintivos da sua casta sejam assimilados pela realeza. O recipiente que os Meghaval traziam ao pescoço e no qual recolhiam a sua saliva poluente teria de ser guardado no palácio, no lugar das “grandes cerimónias”; o ramo que levavam às costas ser-lhes-ia retirado mas um pedaço ficaria na sala destinada às cerimónias de casamento; a terceira manga seria eliminada e substituída pela bhūngaḷa, elemento imprescindível da vida ritual dos Rajput e, muito particularmente, do ritual do casamento.
10Portanto, não é só um Intocável que se substitui a um rei num sacrifício. O mito leva mais longe a permutabilidade destas duas personagens, pois sugere que a casta da realeza incorpora na sua vida ritual um conjunto de caracteres que definem os Intocáveis. E convirá notar, a propósito, que os Vankar, nos seus rituais de casamento, realizam o mesmo percurso em sentido inverso, ao atribuírem-se um conjunto de traços distintivos da realeza.
11Regressemos, por um instante, às cerimónias nupciais dos Vankar.
12Três dias antes do dia marcado para o casamento, o sacerdote Garoda, bem como todos os participantes na cerimónia, são chamados a casa do noivo. O Garoda molda com farinha de trigo e água uma imagem do deus Gampati e encosta-a à parede no fundo da casa. O noivo senta-se em frente dela. A irmã mais nova segura um loṭa contendo algumas pedras de sal e agita-o sobre a cabeça dele. A mulher do irmão mais novo mistura pīthī com água, produzindo uma pasta com a qual cobre o rosto, os braços e as pernas do noivo; e cobre-lhe a testa com uma mistura de chāndaḷo e arroz.
13O avô do noivo (ou, na sua falta, o tio paterno ou o irmão mais velho) entrega-lhe uma espada e põe-lhe na mão um coco. Ao noivo é também entregue um kaṇkāvarthī com vermelhão, outro traço distintivo da realeza. Durante os três dias seguintes, os que faltam para a consumação definitiva do casamento, andará sempre com a espada e manterá o kaṇkāvarthī e o coco em frente da imagem do deus.
14Esta cerimónia, chamada varthī, realiza-se na mesma altura, como já sabemos, em casa da noiva; e compreende as mesmas partes, à excepção do episódio da espada.
15Os Vankar fundamentam a entrega da espada ao noivo na assimilação do homem que vai casar a um rei, rei por três dias. O uso da pasta de sândalo, justificam-no invocando um critério estético inspirado na realeza (“Os reis são os homens mais belos”), com a qual o sal, associado ao casamento, também tem a ver: nas cerimónias de coroação, os agricultores lançam sobre o rei terra salgada (Marglin 1985: 73). Finalmente, Gonda atribui ao termo kaṇkāvarthī uma significação que o situa uma vez mais na esfera semântica da realeza [divina]: “the term cankravartin — the title of the emperor who according to the later belief (cfr. e. g. Brāhmaṇḍa Purāṇa 1, 29, 78) consisted of a part of Vishnu, i. e. was a partial incarnation of that Supreme Deity” (apud Marglin 1985: 118).
16Ao longo do varthī são assim impressos no noivo alguns símbolos, conotados com a realeza, que pretendem afirmar a identificação do noivo intocável com um rei.
17Avancemos um pouco mais. Em princípio, qualquer interrupção do ritual de casamento Vankar é censurada e passível de pesadas sanções. Nada pode interferir na sua sequência normal, desde o primeiro rito, o sagāi, até à consumação.
18O único acontecimento que altera obrigatoriamente o ritual em qualquer momento é, como vimos, a morte. Se alguém morrer na família dos noivos, o casamento será imediatamente suspenso e só se realizará depois do bāramuṅ. O ritual funerário terá a sua sequência e duração normais. Mas tudo parece estar ordenado de modo a evitar a intercepção do casamento e da morte. Os noivos e convidados transferem-se para o ritual funerário e só voltarão ao matrimonial depois do bāramuṅ (cfr. supra, cap. 6).
19Há, no entanto, uma situação em que a ocorrência da morte não interfere na sequência do casamento. Se o corpo do noivo já tiver sido coberto com pó amarelo e a espada já lhe tiver sido entregue, o ritual não poderá ser adiado e terá lugar no dia marcado. As cerimónias funerárias realizar-se-ão de acordo com as normas, mas alguns ritos serão reduzidos à sua expressão mais simples. O morto é enterrado o mais depressa possível e a cerimónia de purificação antecipada, sendo os homens barbeados nesse mesmo dia. Apenas a refeição que celebra a supressão do luto terá lugar no momento em que normalmente se realizaria o bāramuṅ.
20O noivo, esse, é subtraído a todos os ritos funerários e afastado de qualquer contacto com a morte. A noiva, em relação à qual é observada a mesma atitude, deverá comportar-se como se nada tivesse ocorrido: não pode exibir o menor sinal de dor e é excluída do choro feminino, manifestação ritual que pontua as diferentes sequências da cerimónia fúnebre.
21Depois de o noivo ter assimilado provisoriamente alguns traços distintivos do rei, morte e casamento, que se repelem, podem coexistir, desde que os nubentes sejam retirados de todos os ritos funerários. Acontece que, tradicionalmente, o soberano hindu é excluído dos rituais funerários e subtraído aos mecanismos da poluição. Diz-nos Marglin que: “It is not only that he as well as his relatives take no role at all in the funeral ceremonies but also that the death of the king itself is in a sense denied. When it occurs it is anounced as the death of a ‘foreigner’ and not as the death of the king” (Marglin 1985: 170; destacado meu). Por isso, “when the king dies, his eldest son does not perform the funeral ceremonies for him, as it is the norm for everyone else. A brahmin is appointed who will substitute for the eldest son and will perform the death ceremonies as well as observe death pollution. The eldest son, who is the heir, does not observe death pollution. In fact, the king is not affected by relational pollution at all” (ibidem 1985: 77; destacado meu) e “The heir behaves as if there had been no death (ibidem: 78; destacado meu). Também deste ponto de vista o noivo Vankar se comporta como o soberano.
22Ao proceder sistematicamente, no mito como no ritual, a estas formas de assimilação dos Intocáveis aos reis, o pensamento Vankar parece contrariar a ordem hierárquica habitualmente adoptada pelos antropólogos.
23Quando, no fim do mito, o Intocável se sacrifica no lago, essa assimilação parece já ter sido simbolicamente completada: a água resultante do contacto do seu sangue com a terra é recolhida por todos os indivíduos de Patan, independentemente da casta a que pertencem.
24Frédérique A. Marglin oferece-nos um curioso mito protagonizado por Lakshmi, mulher de Jagannatha (Vishnu), em que a associação realeza-intocabilidade, desta vez concebida a partir da primeira, reproduz traços significativos das representações Vankar.
25Diz o mito que, na altura em que se realizava o seu pūjā, Lakshmi pediu ao seu real marido autorização para visitar as casas onde decorria o ritual que lhe era consagrado. Sucessivas passagens por diferentes casas provocaram-lhe, todavia, um profundo descontentamento: o pūjā não estava a ser adequadamente realizado.
26Lakshmi dirigiu-se então para a periferia da cidade e desembocou no espaço dos Chandalas [termo genérico para designar Intocáveis], onde foi atraída pelas piedosas orações de uma mulher. Entrou na casa da devota, a quem assegurou grande auspiciosidade e com a qual consumiu alimentos.
27Tendo tomado conhecimento da ocorrência, o cunhado, Balabhadra, convenceu Jagannatha a punir a transgressão de Lakshmi com expulsão definitiva do palácio. Proscrita pelo marido, a deusa proferiu uma verdadeira maldição: “If the sun and the moon really move, Ah Jagannatha, you won’t get any food. You will be poor for twelve years. You won’t be able to get food, clothes or water. When I, a Caṇḍāḷunī give you food, then you will eat” (Marglin 1985: 179; destacado meu).
28Esta maldição cumpre-se e os dois irmãos, confrontados com uma grande carência de alimentos, vêem-se simultaneamente destituídos dos traços distintivos da realeza e confundidos pelos seus súbditos ora com pedintes ora com ladrões. Mais: a suspensão daqueles traços faz-se acompanhar pela suspensão de atributos inerentes à realeza: à sua aproximação os tanques secam, a natureza como que se torna estéril.
29Após um período de doze anos de errância, os dois irmãos chegam, sem o saber, à casa onde habita Lakshmi-Chandaluni, para verem confirmar-se a sua impotência e, mais do que isso, a sua intervenção destrutiva sobre a cultura. De facto, os alimentos que a deusa lhes fornece resistem a serem cozinhados pelo fogo. Desesperado, Balabhadra sugere então a Jagannatha que aceitem os alimentos da Chandaluni. Ao consumir o doce poḍāpithā, Jagannatha compreende que apenas uma mulher poderia tê-lo cozinhado daquela forma: Lakshmi. Instada a regressar, a deusa põe uma condição: “The food I cook for you, your prasād, will be eaten by everyone, brahmin and caṇḍāḷa alike and they will not wash their hands. The brahmin will take food from the hāḍ i ‘s [sweeper] hand” (Marglin 1985: 180). Só depois de Jagannatha aceder, Lakshmi regressa ao palácio, restabelecendo a ordem que suspendera.
30Assimilando-se a uma mulher intocável, Lakshmi, conotada com a provisão de alimentos, desempenha funções semelhantes às que os Vankar se atribuem e que, como ela, retiram aos reis: repõe a ordem social enquanto procede a uma verdadeira a-hierarquização do sistema. Estabelece, além disso, uma teia semântica que liga a mulher aos Intocáveis e à soberania. Acontece que a realidade confirma em circunstâncias rituais essa indiferenciação. De acordo com Marglin: “The story also accounts for one of the remarkable features of the temple of Jagannātha. Mahāprasād can be eaten by everyone alike; out of the same pot the brahmin and the untouchable sweeper can both eat, and neither of them washes his hands but cleams them by wiping them on his hair” (ibidem: 180).
*
31Voltando aos Vankar, deve dizer-se que, ao estabelecer uma relação privilegiada de um Intocável com a água, o mito mais não faz do que apropriar-se de uma concepção corrente no Gujarat rural. Margaret Sinclair Stevenson (1939: 10) fornece elementos que nos permitem ir um pouco mais longe:
Mito 2
Origem do termo Meghavala
“Uma vez, no tempo em que todos os Dhed eram famosos como fazedores de chuva, deixou de chover. Durante três anos e meio o céu parecia de bronze e nem uma gota de água caía sobre a terra.
Com o passar das estações, um certo rei foi ficando cada vez mais zangado até que por fim, perdida a cabeça, agarrou num certo Dhed e perguntou-lhe: «Tu, tão famoso como Meghavala, porque é que não trazes alguma chuva a esta minha terra?». E, num acesso de fúria, prendeu-o, pondo--lhe pesadas cadeias nos pés.
Mas o Dhed, homem fortíssimo, não ficou nada preocupado. Juntou todos os membros da sua casta para celebrarem o culto e, como as grilhetas o não deixavam tomar o banho ritual, pediu aos outros Dhed que lhe deitassem água por cima e lhe marcassem a fronte com o traço sagrado. Depois, entoaram todos juntos a oração chamada keḍārō, que ainda hoje, quando assolados pela fome, cantam com a mesma melodia.
Ora, enquanto cantavam, veio ao captivo uma enorme força: apertando os joelhos um contra o outro, despedaçou as grilhetas que lhe prendiam os tornozelos".
(Stevenson 1939: 10)
32Convém lembrar aqui o parentesco entre estas três castas de Intocáveis: Meghaval (a), Dhed, Vankar. No Gujarat, a palavra ḍheḍ designou durante muito tempo as castas de tecelões; mas, tendo-se tornado fortemente pejorativa, elas substituíram-na por vaṇkār, derivada do verbo vaṇvu “tecer”’. Por outro lado, também não deve esquecer-se que Meghaval (de megha, ‘chuva’) designa subcastas não só de Vankar mas também de Rajput.
33No mito de Stevenson, os Meghaval reaparecem como indivíduos capazes de “produzir” chuva. Mas desaparece o sacrifício de um membro da casta particularmente ligado à água, sendo os Dhed (Meghaval)3 quem colectivamente se especializa na produção de chuva. É essa de facto a expectativa do soberano, que transfere para esta casta de Intocáveis uma função (e o respectivo poder) que ele próprio deveria em princípio assegurar. Neste texto, como no anterior, o rei revela-se impotente, incapaz de actuar como rain-maker.
34Os Dhed parecem contudo suspender temporariamente o exercício da sua arte, negligência que o soberano se apressa a punir. A sanção nada mais faz do que reafirmar a impotência dele: o Dhed que tinha sido acorrentado é liberto pelos membros da casta, que assim anulam a acção punitiva de um rei manifestamente incapaz.
35A ideia central é preservada: quando os reis não conseguem exercer um atributo essencial do poder — intervir sobre a Natureza —, são substituídos por Intocáveis.
36A transferência deste poder, retirado pelo mito aos primeiros e conferido aos últimos é, como vimos, expressamente reconhecida em algumas zonas do Gujarat rural. Quando a seca de 1985-1988 levou a maior parte das aldeias a interromper todos os trabalhos agrícolas, numa altura em que se encontravam esgotados todos os recursos, os Vankar eram insistentemente solicitados por membros de “boas” castas para atrair a monção e repor a ordem natural interrompida.
37Utilizando dispositivos diferentes, os mitos acima analisados insistem na partilha de papéis entre um Intocável e um rei. Que sentido deveremos atribuir a essa insistência? Que quererão os mitos dizer ao implicar no restabelecimento da ordem personagens que a sociedade desvaloriza?
Mito 3
Viveu em tempos em Dholka um rei que sofria de uma terrível doença nas costas que ninguém era capaz de tratar. Um astrólogo afirmou que só um “homem com trinta e dois talentos” poderia curá-lo.
Iniciou-se então a busca desse homem, que seria reconhecido por ter um só mamilo, e o braço direito muito mais comprido do que o esquerdo e uma sombra que se projectaria à sua frente quando estivesse virado para o sol. Muitos meses depois, foi identificado na aldeia de Kesardi um Intocável que correspondia a esta descrição. Chamava-se Jodal pir.
Foi conduzido a Dholka mas, durante a viagem, ocorreram estranhos incidentes: quando o homem tocou uma cabra que coxeava muito, logo ela começou a andar normalmente; e, a partir de certa altura, o pesado recipiente que ele devia transportar à cabeça começou a andar sozinho no ar.
Quando chegaram à cidade, os emissários do rei já não duvidavam de que Jodalpir era um homem fora do comum. Na margem do lago Mahadav estava sentado um faquir que quis pôr à prova os seus poderes. Lançou o pote do Intocável ao lago, no qual logo surgiram cem mil potes a boiar, de entre os quais o homem sem hesitar retirou o seu. Os faquires que presenciaram a cena, caíram aos seus pés e reconheceram--lhe a superioridade.
O rei foi informado da existência desse Intocável excepcional. Mas entretanto escurecera e Jodalpir dirigiu-se ao bairro dos Vankar para passar a noite. No dia seguinte, o soberano chamou-o à sua presença e perguntou-lhe se ele era, como diziam, um homem absolutamente fora do comum. “Sou uma pessoa como as outras”, afirmou o homem. O rei ignorou a sua resposta e pediu-lhe que o libertasse do seu terrível sofrimento. Jodalpir tocou-lhe nas costas e as dores desapareceram completamente. O soberano presenteou-o com um tecido de 52 gāj de cumprimento, um longo bastão de prata e um conjunto de instrumentos musicais.
Jodalpir pertencia à linhagem dos Makwana, da casta dos Rajput. Houve em tempos três irmãos Makwana que eram guerreiros. O primeiro foi morto com um golpe de lança na cabeça e o segundo com um golpe de lança no coração. O terceiro fugiu da guerra a cavalo e entrou no bairro Vankar. Cavalgou sobre as peles de búfalo que secavam ao sol e, por ter ficado impuro, foi expulso pelos outros Rajput. Passou a viver com os Vankar e os seus descendentes chamaram-se Dhed.
38Reencontramos neste mito a ordem sintagmática4 que atrás salientámos: um rei, impossibilitado de exercer adequadamente o poder que lhe foi atribuído, pede a intervenção de um Intocável.
39Mas, do primeiro para o terceiro mito, os sinais que distinguem o herói foram modificados a favor de uma assimetria do corpo que põe em destaque o lado direito, que é, para o hinduismo, o lado puro. Traço distintivo que se mantém, a sombra que se projecta à sua frente quando virado para o sol, encontra legibilidade no recurso paradigmático aos mitos anteriores: embora de uma forma indirecta, Jodalpir mantém uma relação privilegiada com a água.
40O modo de intervenção deste Intocável (que deixou de ser Meghaval para se tornar um Dhed da casta dos Vankar fechando, assim,5 o sistema em que os três grupos se entrecruzam) sofreu, no último mito, um desvio: aqui, a intervenção sobre a Natureza é mediada; com efeito, o Intocável não intervem directamente sobre ela, antes recuperando um rei cuja doença afecta a ordem social de que ele é o principal garante.
41Forma expressiva de insistir numa mesma ideia: sempre que o poder se encontra em crise, é necessária a intervenção dos Intocáveis.
42Se o mito não insiste claramente na função de Jodalpir como rain-maker, já a realidade lhe atribui evidentes poderes como instrumento de fecundidade: divindade com culto e templo próprios, é a ele que as diferentes castas recorrem em caso de esterilidade das mulheres.6
43Garantes da fertilidade natural e feminina, estas figuras, mesmo quando explicitamente associadas à impureza, parecem assegurar uma ordem socio-cósmica que o soberano se revela incapaz de manter. É de resto significativo que o último mito atribua antepassados Rajput aos Vankar, voltando deste modo a acentuar a identificação simbólica entre realeza e intocabilidade.
*
44Os mitos analisados evidenciam uma recorrência: a permutabilidade entre reis e Intocáveis, em circunstâncias de crise, inexplicável à luz de uma concepção hierárquica, dumontiana, do sistema de castas na Índia. Chegou, pois, a altura de sistematizar os dados até aqui apresentados e de procurar conferir-lhes inteligibilidade.
Notes de bas de page
1 Os habitantes de Valthera identificam com muito pouca precisão esta casta. Segundo os Censos trata-se de uma casta de Intocáveis. Permaneceram durante um período relativamente longo à entrada da aldeia e voltaram a partir, em busca de raízes comestíveis e de novos “mercados” para as colocar.
2 A bhūngaḷa é uma espécie de bastão, com uma das extremidades em forma de sabre.
3 Esta ligação dos Meghaval com a água é insistentemente afirmada. De acordo com Margaret S. Stevenson: “They say that in the earliest cycle of time, the satya yuga, they were known as the truthful followers of the true Patha. In the second cycle they possessed (doubtless as a reward for their virtues) the power of bringing rain, and so were called Meghavala. To this day the polite and honorific title to apply to a Dhed is Meghavala. In the third cycle of time they were called Eliya, and they have some dim tradition of this term Eliya being connected with the prophet who brought rain. It is always worth to tell the story of Eliya in a Dhed village, if you want a good introduction. In the present cycle of time they have sinned by eating carrion, and lowered themselves to becoming Dheds (Stevenson 1939: 9-10).
4 Utilizo os termos sintagmático e paradigmático (cfr. pag. seguinte) com a significação que lhes foi atribuída por Roman Jakobson.
5 Nesta medida, é invertida a ascendência social Dhed-Vankar, uma vez que, neste caso, os Vankar surgem como antepassados dos Dhed.
6 A ideia de fertilidade está, aliás, contida no seu nome: em gujarati, um dos significados da palavra jōdā é “gémeos”.
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