Introdução
p. 1-5
Texte intégral
1A vasta produção antropológica sobre o sistema de castas na Índia evidencia uma grande lacuna, decorrente da falta de trabalhos sistemáticos sobre Intocáveis. O modelo teórico a partir do qual esse sistema é habitualmente entendido — o modelo hierárquico — edificou-se a partir de uma perspectiva eminentemente bramano-cêntrica, privilegiando o ponto de vista de castas situadas no “topo” do sistema.
2Põe-se, assim, a questão de saber se e em que medida os dispositivos conceptuais dominantes reflectem essa lacuna, e foi ela que me levou a realizar um trabalho de campo sobre os Vankar, casta intocável de tecelões do Gujarat.
3A minha opção por esta zona da Índia resultou de contingências: com efeito, a região do subcontinente onde, ao longo de uma investigação teórica prévia, pensara vir a realizar pesquisa etnográfica — o Bihar — decretara o estado de emergência e depois a censura a todos os trabalhos de estrangeiros, medidas estas oficialmente atribuídas à pressão de problemas políticos desencadeados, precisamente, por Intocáveis.
4O Gujarat surgiu-me, então, como a área em que o Indian Social Institute de Nova Delhi, responsável pelo fomento de investigações como a que pretendia realizar, me assegurou um certo apoio, após ter manifestado durante algum tempo fortes reservas. Era, no entanto, ao princípio, uma região alheia às minhas expectativas, porque lhe associava os indicadores pelos quais costuma ser identificada e que dela têm afastado os antropólogos: forte presença muçulmana (lembremos que foi uma das zonas da Índia de maior influência mogol); grande industrialização; e elevados índices de migração — não foram os seus portos, desde sempre, os de maior abertura ao exterior, quer a ocidentais, quer a remotos visitantes asiáticos?
5Tudo isto é certo e confere ao Gujarat a sua singularidade. Mas, passada a cintura de Ahmedabad, uma das maiores metrópoles da Índia, extensos arrozais se vão sucedendo ao longo dos talukā1 de Dholka, Sanand, Dascroi, Kesara, e guardam do exterior intactas aldeias hindus.
6Por aí cheguei a Valthera.
7Assiduamente solicitada por projectos governamentais de desenvolvimento rural e por missões de jesuítas que realizam junto das populações locais um trabalho articulado de conversão e de acção escolar e sanitária, a aldeia opõe uma vigorosa resistência a ingerências exteriores, mesmo quando partem de instâncias oficiais.
8Com cerca de 1 500 habitantes, Valthera pertence administrativamente ao talukā de Dholka, no distrito de Ahmedabad, um dos maiores talukā do estado do Gujarat, seccionado por duas grandes estradas: a primeira liga os portos de Kandla e Portbandar, no mar Arábico, a Ahmedabad; a outra é uma via transversal da estrada que leva de Ahmedabad a Bombaim.
9Sob o ponto de vista agrícola situa-se no bhāl, ‘terra negra’, que produz essencialmente arroz, trigo e algodão. Por razões geológicas, estas produções, que contam com a água do subsolo, são geralmente fracas: trata-se de uma zona afectada pelo declive do rio Sabamarti que desagua no Golfo de Cambaia. Devido à gradual inclinação do solo até ao nível do mar, o subsolo é salgado, particularmente no sul do talukā, onde a concentração salina é mais elevada do que na água do mar: daí um problema de falta de água potável e para irrigação, que afecta muitas aldeias desta zona; e daí, também, uma sua acrescida dependência dos favores da chuva…
10Escolhida a aldeia, tive de desenvolver os contactos necessários para assegurar a minha permanência numa família Vankar. Os Rajput, casta dominante em Valthera (cfr. infra, cap. 4), tentaram dissuadir-me dessa intenção, oferecendo-me quer o edifício do panchayāt (local de reunião do conselho de aldeia, mas habitualmente destinado a albergar funcionários administrativos e outras pessoas de fora), quer algumas das suas próprias casas. A minha recusa permitiu-me partilhar com os Vankar, até certo ponto, a experiência da intocabilidade: os Rajput desviavam-se de mim no caminho de acesso a Valthera, ocupavam lugares distantes do meu nos transportes para Dholka, e deixaram de me receber em suas casas (o lugar dos encontros com eles passou a ser o panchayāt), protegendo também da minha presença os pontos mais vulneráveis à poluição — poço e templos — , dos quais excluem os Intocáveis.
11A minha estadia entre os Vankar caracterizou-se por uma grande ambiguidade. Passados os primeiros dias de reconhecimento mútuo, mais do que como observadora fui aceite — com o intérprete, Vankar de origem, cristão por conversão — como parente distante. Não sei em que medida esta proximidade interferiu na objectividade da observação etnográfica, marcando-a com indesejáveis categorias do observador. Mas também não sei se alguma vez poderá deixar de ser marcada ideologicamente uma investigação realizada entre pessoas que vivem quotidianamente a experiência da discriminação, da segregação social, da intocabilidade…
12O trabalho de campo foi realizado em dois momentos: de Setembro de 1983 a Março de 1984 e de Setembro a Dezembro de 1987. Quando regressei (1987), a paisagem de Valthera tinha-se desfigurado: o grande lago, a leste, secara; os campos, em circunstâncias normais preparados para a colheita do arroz, não estavam trabalhados; aqui e ali, gado morto era arrastado para fora da aldeia pelos Intocáveis Bhangi, seguidos de perto por pequenos bandos de abutres; grupos de pessoas acampavam à entrada de Valthera: eram os Patar, colectores que se deslocavam de aldeia em aldeia vendendo raízes comestíveis; pastores Kutchi-Barwad chegavam com os seus camelos, oferecendo-se para pastorear, em distantes campos do sul, o gado das famílias com capacidade económica para pagar os seus serviços.
13O Gujarat vivia o terceiro ano de uma seca devastadora. No segundo sem monção, o governo tinha tomado uma série de medidas de apoio às zonas mais afectadas. Os resultados foram, todavia, escassos. E as tentativas locais de perfuração para obter água do sub-solo viram-se igualmente goradas: dada a sua grande salinidade, essa água era inutilizável para fins agrícolas e, por vezes, também, para a confecção de alimentos. Os últimos recursos tinham-se esgotado e a seca do Gujarat era já uma catástrofe nacional.
14Foi então que entendi um poder insuspeito detido pelos Vankar. O pat el, chefe da aldeia, e os agricultores Rajput — aqueles que, justamente, guardavam a • maior distância social em relação aos tecelões — pediam-lhes insistentemente que mandassem vir as chuvas. Ora, a função de rain-makers que torna os Vankar imprescindíveis à manutenção da ordem, de que são normalmente excluídos, não é compreensível no quadro das teorias produzidas sobre o sistema social indiano (cfr. infra, cap. 2), antes convida a que as reapreciemos.
*
15Faz parte das praxes académicas o autor de uma tese apresentar, na introdução, o seu contributo para o progresso do conhecimento… Cumpre-me, pois, elucidar, que o meu trabalho pretende:
no plano etnográfico, carrear um conjunto considerável de informações sobre a casta dos Vankar e as múltiplas relações que ela mantém com as outras castas da aldeia; e incluir-me, ao fazê-lo, no número ainda escasso de antropólogos que começaram a debruçar-se sobre Intocáveis, ajudando a preencher a lacuna que atrás referi.
no plano da reflexão antropológica, submeter concepções correntes sobre o sistema de castas a uma crítica baseada no conhecimento directo de Intocáveis; e esboçar, a partir dessa crítica, novos princípios interpretativos. Deste último ponto de vista, este trabalho tem o seu epicentro na demonstração daquilo a que chamo princípio de reversibilidade; o qual, intervindo sempre que a ordem social e cósmica está ameaçada de grave ruptura, faz num certo sentido dos últimos os primeiros, ao levar a casta mais desvalorizada (intocável) ao exercício, em estado de excepção, do poder de sustentar ou restabelecer essa ordem vacilante. Em Valthera, numa emergência, a seca, vi os Vankar serem solicitados por toda a aldeia — e primeiro lugar pelos Rajput, casta dominante — a exercer esse poder de “fazer chuva”.
16Mas os materiais que apresento, permitem ainda, penso:
sugerir outro princípio hermenêutico, a saber, o da relatividade de todo o escalonamento hierárquico do sistema social indiano, muito menos rígido do que grande parte da literatura antropológica sobre ele produzido defende; e com muito mais passagens, contactos e contaminações entre as castas, em teoria rigorosamente separadas umas das outras.
apontar a necessidade de reavaliar a lógica da poluição, dado: a) o carácter aleatório e arbitrário da sua atribuição a certas castas e não a outras, cuja impureza parece, por vezes, muito mais “espessa” do que a das consideradas Intocáveis; b) o facto de, por via das mulheres, ela “atravessar”, todas as castas, marcando-as com uma intocabilidade muito mais fixa do que a poluição temporária em que Louis Dumont fala; acresce que, a forma como esta sociedade representa as mulheres e os Intocáveis, articulando — os em planos de significação que fazem sistema, insinua que por aqui passa uma via privilegiada para a inteligibilidade da lógica da poluição e, com ela, da intocabilidade.
17É pena que alguns destes temas apenas sejam, neste livro, esboçados; o facto de não os desenvolver, deve-se, em substância, à riqueza de materiais empíricos, cuja decantação teórica exige uma longa reflexão.
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18Este trabalho divide-se em quatro partes. Na primeira analisarei a forma como se põe à sociedade indiana contemporânea, e como se tem posto aos antropólogos, o problema da intocabilidade; tentando mostrar que a abordagem antropológica da intocabilidade é largamente determinada pelo modelo hierárquico, a partir do qual tem sido analisado o sistema de castas na Índia. Adoptando a perspectiva dos Intocáveis Vankar, apresentarei, na segunda parte, uma visão de conjunto da aldeia e das castas que a constituem; e depois, na terceira, os Vankar “em pessoa”, com as suas práticas, os seus rituais, os seus deuses e os seus demónios, os seus mitos. Finalmente, na quarta, questionarei o modelo hierárquico, baseando-me nos materiais recolhidos, sobretudo os relativos ao sistema de representações Vankar.
19Pela sua proibitiva extensão, prescindo de incluir neste livro um vasto dossier de questionários cujo objectivo foi apreender o modo como as castas de Valthera perspectivam a hierarquia social. Encontram-se disponíveis para leitura, na sua versão original, no Centro de Estudos de Antropologia Social do ISCTE.
Notes de bas de page
1 O talukā é uma divisão administrativa, constituída por um determinado número de aldeias. Seguem-se-lhe, por ordem crescente, o distrito e o estado.
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