1. O investigador e o terreno: da construção do objecto à sua problematização
p. 29-46
Texte intégral
1.1. O INVESTIGADOR E O TERRENO
1O olhar introspectivo que se pretende adoptar neste ponto do trabalho, talvez se apresente ao leitor como um registo algo desconexo em relação ao corpo central desta dissertação. Importa desde já confessar que esse é um efeito desejado, pois estes parágrafos visam mais discutir um processo do que expressar uma interpretação, sugerir hipóteses ou expor resultados. De facto, neles é o trabalho etnográfico, enquanto processo de construção de conhecimento, que se constitui em objecto de debate. Pode por isso dizer-se que é aqui distinto o lugar de enunciação, já que nos capítulos subsequentes esta problematização do processo dará lugar à expressão dos resultados obtidos, ou seja, o questionamento assumidamente subjectivo dará lugar a um esforço de neutralidade axiológica do investigador1. Pretende-se então que a enunciação se faça aqui a partir do interior do processo dialéctico que o investigador travou com o seu terreno – desde logo com as pessoas, mas também com um espaço que lhe era estranho e com um tempo singularizado, pelo menos na medida em que o devia viver de uma forma particular e, de algum modo, única na sua carreira de investigador. A intenção não é aqui, em todo o caso, partilhar as notas de campo ou trazer a público essa figura algo mítica do diário do investigador. Tampouco devem ver-se estes parágrafos com um substituto ou arremedo de textos onde a experiência de terreno é tomada como objecto autónomo de escrita ou reflexão2. O objectivo é aqui menos ambicioso: trata-se de fazer o leitor participar das dúvidas e hesitações que acompanharam o investigador no terreno, bem como do modo como tentou resolvê-las3.
2Quando este trabalho não passava ainda do projecto vago de estudar a fronteira e a memória social, Campo Maior surgia a meus olhos apenas como um ponto mais na extensa linha que separa Portugal e Espanha. Nenhum laço pessoal me ligava a essa terra, nem sequer nenhuma referência particular como lugar de passagem ou veraneio. Não existiram pois razões de ordem afectiva a determinar a escolha dessa localidade como campo de trabalho. Foram de outra natureza os factores que fizeram com que essa vila se destacasse do mapa e se tornasse no ponto de focagem da investigação que aqui se apresenta. Parece-me importante referir neste ponto que se tratava do meu primeiro contacto a sério com o terreno, experiência que nem a licenciatura nem os mais de dez anos de trabalho como docente e investigador haviam suscitado até aqui. Este facto condicionou, também ele, a minha escolha. É certo que apesar de viver e trabalhar no norte, as planícies do sul não podiam representar, e evidentemente que nem tal se pretendia, a procura do exótico, nem mesmo de um putativo exótico dentro de portas. Ainda assim elas prometiam uma quebra no quotidiano, fosse pela diferente espacialidade que ofereciam fosse pelo distanciamento face a quem me era próximo. Dito de outra forma: mesmo não implicando, no seu sentido pleno, a viagem quase iniciática e a aventura mítica da antropologia clássica, a verdade é que as ideias em que de um ou outro modo todos os antropólogos foram instruídos, como as da importância do distanciamento e do mergulho no que não se conhece, acabaram tomando conta do seu quinhão neste projecto.
3A transformação da experiência de Malinowski no paradigma metodológico dominante e quase absoluto da antropologia, teve um efeito de fetichizar uma técnica, a da observação-participante (Kilani, 1990:105), que não deixa de se manifestar mesmo no quadro de análises que se pretendem desmistificadoras (cf. Durand, 2001:127). Não é por isso surpreendente, apesar de estar longe de ser um «homem do terreno», o modo como Lévi-Strauss encara a questão:
É por uma razão bem profunda, presente na própria natureza da disciplina e nas características distintivas do seu objecto, que o antropólogo tem necessidade da experiência do terreno. Para ele, ela não é nem um objectivo da sua profissão, nem uma finalidade da sua cultura, nem uma aprendizagem técnica. Ela representa um momento crucial da sua educação, antes do qual ele poderia possuir conhecimentos descontínuos, que não formariam jamais um todo, sendo somente após essa experiência que os seus conhecimentos se «cimentarão» num conjunto orgânico, adquirindo repentinamente um sentido, que anteriormente lhes faltava (Lévi-Strauss, 1958:409)4.
4Esta ideia de um «homem novo» (Lévi-Strauss, 1958:410) emergindo da experiência de terreno, é aquela que Rabinow confessa ter encontrado quando preparava a sua investigação em Marrocos:
Foi-me dito que os meus artigos careciam de importância porque uma vez que tivesse realizado trabalho de campo passariam a ser radicalmente diferentes. (…) A promessa de iniciação nos segredos do clã resultava sedutora. Pessoalmente aceitei totalmente o dogma (Rabinow, 1977:25).
5Evidentemente que compreendia bem que as transformações sofridas desde há décadas pela disciplina, nomeadamente a ampliação do seu objecto resultante da integração das sociedades complexas no seu universo analítico, tiveram consequências também ao nível das estratégias metodológicas. Dada a localização e as características do tema que me propus trabalhar, esta questão assumia a meus olhos particular pertinência:
Perante a dificuldade de demarcar os objectos em que a singularidade é dada de imediato através da distância cultural e histórica que separa o observador daqueles que observa, como foi o caso até aqui com os objectos modernos da própria experiência e historicidade do observador, a antropologia feita «em casa» parece querer fundar o seu projecto sobre uma espécie de «efeito etnográfico» (Kilani, 1990:104).
6De resto, ao trabalhar um tema tão intangível quanto o da memória, mais se acentuava a eventual inadequação da metodologia mais clássica ao objecto. Poderá fazer-se observação participante estudando a memória? O investigador pode sem dúvida recolher memórias e mesmo suscitá-las ajudando a sua emersão, mas não pode participar delas, pois não as pode viver. E certo que não se tratava da evocação da memória enquanto registo pessoal, mas antes da sua participação num sistema de representações. Dessa forma a conciliação parecia possível: mesmo assentando que na memória não se participa, as expressões múltiplas que formam um sistema de representações e que integram a memória, reaproximam o objecto da prática etnográfica tradicional.
7Para mim a questão colocava-se de uma forma que de algum modo me dividia. Por um lado significava a iniciação àquela que não era apenas uma técnica, mas a técnica do universo disciplinar e profissional em que me movia. Por outro lado existia o risco de a definição do objecto se revelar inadequada ao seu uso. Mesmo sabendo que lidava com uma certa mitificação do trabalho de campo e da observação participante, a ideia da aplicação destas técnicas como exercício de iniciação, fazia também em mim o seu percurso. A este estado de alma dubitativo respondia bem o solipsismo epistemológico traçado por Jean Jamin (1985:18): «Eu sou etnógrafo, logo o que eu observo é etnográfico.» Para lá do percurso histórico da disciplina e da redefinição do seu objecto, este postulado de Jamin vincava a especificidade e pertinência do olhar antropológico e do texto etnográfico para com eles fundar e legitimar novas práticas (cf. Kilani, 1990:104). Se esta perspectiva não resolvia o problema da iniciação que faria de mim um «novo homem», postulava, pelo menos, a participação do que pretendia fazer na tradição disciplinar em que me revia.
8Esta evocação do terreno, dos seus fascínios e limitações, fez perder à narrativa não o norte, mas o sul, já que era dele que se falava antes da sua aparição sob a forma de problemática epistemológica. Tratava, alguns parágrafos atrás, de justificar a escolha do sul frisando que embora o exótico e a ideia de descentramento não estivessem envolvidas nem pudessem ser evocadas, a distância física tivera a sua importância5. Em todo o caso, por estas ou outras razões menos traduzíveis analiticamente, foi desde cedo que as minhas expectativas se orientaram para sul, e foi assim que Campo Maior se recortou no horizonte. Começou por ser uma possibilidade entre várias, uma silhueta no horizonte algo indistinto dos campos alentejanos, só gradualmente ganhando consistência, conforme as outras hipóteses de trabalho iam sendo arredadas6. De alguma forma, numa investigação apontada a sul e que tomava a fronteira como tema central, ou pelo menos como nó articulador da sua argumentação, essa vila surgiria inevitavelmente como um dos locais não apenas possíveis, mas também óbvios para centrar o trabalho.
9Bastará notar como a favor dessa escolha pesava um dado que finalmente se revelou determinante: ali a fronteira não só fora importante no passado, como deixara como herança uma indústria de cafés que marcava o presente da vila de forma absolutamente determinante. A ideia era pois a de que a transfiguração do contrabando tradicional numa indústria forte, que garante emprego e dá projecção à vila, conferia um valor acrescentado ao tema que se pretendia estudar. Por outro lado, contra a escolha de Campo Maior, pesava sobretudo a dimensão demográfica de um local que foi «vila quase cidade»7 no passado, resistindo hoje, como já vimos, à acentuada desertificação das regiões vizinhas. O peso do modelo clássico da pequena unidade sociocultural homogénea (Casal, 1996:100), fazia-me confrontar neste ponto com as duas faces de uma mesma moeda: se a dinâmica actual de Campo Maior era estimulante, já que revelava a importância da fronteira que queria estudar, por outro lado a sua dimensão demográfica e a sua heterogeneidade social surgiam a meus olhos como dificuldades acrescidas, que, acreditava eu, se não colocariam no estudo de uma pequena comunidade.
10De facto, os problemas que antevia nesta primeira experiência de terreno pareciam-me mais controláveis se o objecto de estudo fosse de outra natureza. Não falo estritamente do peso demográfico de um aglomerado urbano em confronto com a pequena aldeia, mas dos problemas de escala daí derivados. A impossibilidade de falar com toda a gente ou mesmo conhecer e tornar-me conhecido de toda a população, era um facto do qual derivava um problema:
A escala e a diversidade da vida urbana significavam que é apenas possível estudar as pessoas superficialmente ou estudar um pequeno número de informantes em profundidade (Burgess, 1984:16).
11Para o investigador o problema colocava-se, naturalmente, nas escolhas que lhe competia fazer e que só o terreno e não os manuais lhe diria como: com quem falar, que critérios usar na escolha de informantes, como garantir autoridade etnográfica para além do «eu estive ali» (Clifford, 1988:153)? Todavia, de forma optimista, acreditava que a evidência empírica do terreno, em articulação com uma razoável dose de intuição, seria suficiente para ajustar a metodologia matricial da disciplina com o contexto concreto de investigação.
12Para lá desta questão de escala e das suas implicações na organização da pesquisa, o objecto de estudo tinha outras especificidades a que havia também que atender. Desde logo porque não se tratava de realizar uma monografia sobre Campo Maior, mas de estudar aspectos concretos e delimitados a partir dessa vila. Isto significa que não eram apenas questões de ordem metodológica que se levantavam, mas também outras de cariz epistemológico. Voltarei a este tema um pouco mais à frente, mas importa notar neste ponto que a orientação do interesse para a memória de fenómenos como o contrabando ou de acontecimentos como a Guerra Civil, fragmentava por si só o universo de pesquisa. Quero com isto dizer que, dada a especificidade temática, só uma parte da população poderia estar implicada na investigação. Yolta-se de novo à importância do terreno, pois só empiricamente se podem definir os sujeitos e segmentos da população relevantes – nomeadamente pelo envolvimento directo nos fenómenos ou por assumirem uma memória e se disporem a partilhá-la. Por outro lado, num contexto com as características do que íamos abordar, a disponibilidade de fontes documentais, nomeadamente de natureza histórica, surgia como algo capaz de compensar eventuais problemas de representatividade dos informantes.
13Estas considerações a priori, que na altura não seriam sequer formuladas de um modo tão analítico e ponderado, podem hoje, olhadas já a alguma distância, ser entendidas como reflexo de uma espécie de conflito interior entre a sedução do terreno e o temor do desconhecido. A chegada a Campo Maior não resolveu propriamente esse conflito, mas colocou-o num segundo plano, submergido na evidência do estar ali e ser ah que era necessário trabalhar. Fosse este um terreno exótico e distante e não resistiria, por certo, a começar aqui a narrativa, recorrendo a velhas e eficazes fórmulas: «Foi numa tarde fria mas ensolarada de Dezembro que o meu velho e cansado carro parou na praça central da vila…» Não sendo esse o caso, abandone-se a expressão poética para dizer que de facto, após algumas visitas exploratórias e de muito curta duração, me instalei em Campo Maior em Dezembro de 1997 para uma estada que se prolongou até Outubro do ano seguinte. A este sucederam-se alguns outros períodos curtos de presença na vila, procurando com eles complementar informações e esperar que a impregnação do terreno no investigador favorecesse a análise dos dados e posterior escrita.
14A dimensão da vila e a sua significativa abertura ao exterior, jogaram a meu favor na altura de encontrar lugar para me instalar, não tendo vivido as dificuldades que um espaço mais pequeno e fechado pode colocar, como outras experiências mostram. Miguel Vale de Almeida, por exemplo, viveu numa aldeia geograficamente próxima de Campo Maior, Pardais, algumas dificuldades a este nível: «A ideia, cem vezes por mim reiterada, de “querer viver com as pessoas” tinha o seu quê de absurdo e ameaçador…» (Vale de Almeida, 1995:28.) Campo Maior, porém, habituou-se nos últimos anos ao vai e vem de jogadores de futebol, de representantes comerciais da Delta e outras empresas e ainda de estudantes de uma escola profissional instalada na vila. Criou, por isso, estruturas formais de acolhimento, que vão desde um hotel de três estrelas a pequenas residenciais, para além da disponibilidade de particulares para alugar casas ou quartos – sobretudo estes, que têm particular procura por parte dos alunos da referida escola profissional.
15Não foi pois difícil arranjar uma casa, na verdade parte independente de uma velha casa de lavrador, com uma topografia incómoda pelo excesso de portas e escadas, mas com a vantagem de possuir um terraço aberto ao sol e ao casario. Tratava-se, além do mais, de uma casa situada bem dentro do casco antigo da vila, facto que me parecia bem adequado aos objectivos, pois a inserção num espaço como aquele parecia-me facilitar a integração e as relações de proximidade – como adiante veremos, Campo Maior tem uma parte nova que se me apresentava mais incaracterística e menos acolhedora. A descoberta do lugar é uma primeira etapa imprescindível e necessária. Começamos por nos orientar no emaranhado de ruas irregulares, aprendendo a identificar os lugares referenciais, tanto os que hoje se distinguem, como aqueles que se distinguiram no passado e se revelam na escrita produzida sobre a vila. Esta necessidade de conhecer o espaço que durante alguns meses ia ser o meu, não se circunscreveu à vila. Estendeu-se também ao reconhecimento dos limites do concelho e ao conhecimento da topografia da fronteira, para lá dos locais em Espanha que constituem referência no espaço que estudei.
16Nesta fase os mapas são um auxiliar importante do investigador, pois são eles que fazem a mediação entre o empírico e um certo grau de abstracção que favorece uma mais rápida compreensão do espaço. As ruas, as casas, os monumentos e mesmo os lugares que percebemos serem de encontro e convívio, vão ganhando consistência quando percebemos de que forma se arrumam no espaço. A própria natureza do trabalho que me propunha fazer obrigava a uma atenção particular a esse aspecto, pois era necessário perceber o modo como o tempo agira com o espaço. A leitura dos jornais locais das décadas de 20 e 30, por exemplo, colocava-me perante uma toponímia urbana que entretanto fora modificada e perante uma ocupação do espaço rural bem mais densa do que aquela que podia observar no presente. O mesmo acontecia com as informações que ia recolhendo oralmente e nas quais, por vezes, as referências usadas eram as do passado. Os mapas, quer da vila quer do concelho e da região, ajudavam então a perceber o efeito do tempo, tanto no modo de nomear os lugares como na sua ocupação.
17Esta fase inicial da pesquisa foi marcada por uma relação muito física com o terreno. Sentia necessidade de caminhar muito, de frequentar os lugares públicos, de observar as casas e o quotidiano da vila, como se essa fosse a única forma de que dispunha para me impregnar naquela realidade. E de alguma modo era mesmo isso que acontecia. Apesar de estar a falar de uma vila relativamente populosa, foi inevitável um certo efeito de estranheza mútua: do investigador perante uma realidade nova, composta de fragmentos – de rostos que se reencontravam, de olhares curiosos, de casas que repetiam e mudavam sinais – que só o tempo arrumaria; das pessoas da comunidade perante alguém que chega com objectivos que não eram facilmente compreendidas ou explicadas. A entrevista que conseguira com o Presidente do Município não ajudara muito a este nível: Campo Maior não é assim tão pequeno que permita a introdução do investigador e da investigação no seu quotidiano apenas por intervenção autárquica.
18Da assessoria presidencial obtivera, ainda assim, meia dúzia de nomes de pessoas supostamente entendidas nos assuntos que me interessavam e que, pelo menos nalguns casos, se revelaram úteis no desenvolvimento do trabalho. As relações que ia estabelecendo não escapavam ao peso de uma expectativa que se repartia em partes iguais: do investigador que tacteando procurava acercar-se das respostas às questões que trazia consigo, mas também dessas pessoas que ia conhecendo e que se interrogavam acerca do trabalho que motivava aquela estada algo inclassificável nos padrões locais. Sublinhe-se, neste ponto, a dificuldade em encontrar o registo adequado à explicação de um trabalho desta natureza. Os seus fins estritamente académicos e a sua associação a uma instituição física e simbolicamente distante como a Universidade do Minho, surgiam como um empreendimento bizarro, pelo menos aos olhos de alguns. O facto de a pessoa que se propunha fazer o estudo nada ter a ver com a região e, mais ainda, de esse estudo não visar nada de concreto nos planos sempre enaltecidos da economia ou do desenvolvimento regional, acentuavam o efeito.
19Falo de uma estranheza que nunca chegou a ser animosidade e que só raras vezes roçou a desconfiança. Julgo antes, que nalguns casos se tratou de uma efectiva dificuldade de comunicação em que tão difícil era compreender como explicar a razão de ser do exercício académico que ali me levara. De facto, que alguém se disponibilizasse a permanecer na vila por tempo indeterminado mas em todo o caso longo, procurando estudar algo de que não obteria qualquer proveito material, chegou mesmo a gerar, pontualmente, alguma desconfiança, ainda que, em rigor, não tenha nunca constituído um verdadeiro obstáculo à investigação. Esta dificuldade em integrar um trabalho como este nas categorias disponíveis localmente foi parcialmente resolvida pela atribuição ad hoc de um sentido à investigação que eu nunca lhe dei. Ou seja, sem que eu fizesse nada capaz de justificar o equívoco, algumas das pessoas com quem falava assentaram na ideia de que a minha intenção era a de estudar algo que, pelo menos naquela altura, estava muito longe de me interessar: as Festas do Povo.
1.2. AS DINÂMICAS DA INVESTIGAÇÃO
20À margem do que definira como matéria de investigação, existia na altura um tema premente na vila, algo que não podia ignorar, pois ia preenchendo muito do quotidiano que me era dado observar. Falo das Festas do Povo, evento que ia ocorrer em Setembro de 1998, mas que desde o começo do ano já pautava as conversas de café e começava a alterar hábitos, ocupando serões, reforçando alianças ou confirmando azedumes. Assim, apesar de à partida as referidas festas não constituírem um tema central ou mesmo secundário do projecto de investigação – na verdade a sua existência nem sequer me ocorrera quando escolhi trabalhar em Campo Maior –, elas acabaram por surgir a muita gente como a razão mais plausível e aceitável para a minha presença na vila. Tudo isto, reitero, à margem da minha vontade, pois se é certo que nunca manifestei desinteresse por tal tema, sempre deixei claro que ele não constituía o meu interesse principal.
21Apesar do meu esforço de distanciamento, este tópico de investigação, que era inexistente à partida, fez o seu percurso, mostrando algo que é também dos manuais, exactamente a interactividade entre o investigador e o terreno. Na verdade, contrariando a minha intenção inicial, as Festas do Povo, acontecimento periódico e muito relevante no quotidiano da vila tanto no passado como no presente, vieram ocupar um lugar significativo na investigação, ainda que no presente trabalho elas não constituam senão uma referência muito sumária e pontual. Dentro do processo de investigação, o surgimento das Festas do Povo veio evidenciar que o objecto de estudo não era uma realidade estática pronta a deixar-se desvendar pelo antropólogo, tal como este não era também um tabula rasa cultural (Rowland, 1987:15) disponível sem mácula para o terreno. Existiram momentos no processo de investigação onde me pareciam maiores os inconvenientes do que as virtudes de tal interacção: as tentativas de perceber o que de facto me interessava, as memórias do contrabando e da Guerra Civil, acabavam sempre sendo atravessadas por um tema que na verdade não era o meu, mas que quase inevitavelmente era evocado pelas pessoas com quem me cruzava8. Desta forma, para muitas destas pessoas eu passei a ser o «senhor que estava a fazer um trabalho sobre as festas» e temo mesmo que nalguns casos este equívoco não tenha chegado a ser completamente sanado.
22De forma inesperada, como aconteceu com as Festas, ou resultado de uma abordagem sistemática das fontes documentais, o terreno ia-se desvendando. Se os mapas facilitaram a percepção da ordenação do território através da abstracção, os documentos escritos abriram pistas no diálogo com os informantes. Por vezes um nome ou acontecimento preservado pela escrita, por exemplo num jornal local, era suficiente para despoletar memórias ou clarificar situações. Naturalmente que aquilo que nas páginas seguintes se oferece à leitura, ou seja, a estrutura final do trabalho, é algo que se constrói fora do terreno e nesse sentido é um acto de criação do investigador. Isto significa que a desejada coerência interna do argumento é um objectivo a que se procura chegar através de um processo de maturação, mas também de leitura subjectiva dos dados, que apenas é desenvolvido após o regresso a casa. Durante a investigação de terreno vai-se procurando ordenar a informação seguindo critérios que parecem ser suficientemente sólidos para formatarem o trabalho final. É necessário, todavia, distanciamento para que da amálgama da informação recolhida saia sentido e consistência. Este recentramento da produção do conhecimento no investigador releva a dimensão interpretativa do seu trabalho, sugerindo ao mesmo tempo o carácter algo ilusório das propostas mais radicais de uma antropologia dialógica (cf. Tyler, 1986, Reynoso, 1998:43 sgg.), tema a que voltarei um pouco mais à frente.
23Para lá da questão do reajustamento imposto pela realidade empírica, os objectivos fundamentais do trabalho, aqueles que levara para o terreno e para cuja persecução definira um conjunto de estratégias, não foram alterados. O que importa perceber neste ponto é o modo como foram abordados no concreto, ou seja, de que forma se procurou concretizá-los a partir do terreno. Como disse atrás, foram duas as dimensões analíticas que procurei cruzar nesta investigação. Começando pela fronteira, pode dizer-se que, para lá do plano da representação, ela se apresentava também como realidade física, tangível, como algo cuja história se podia inquirir fora da memória. De facto, quer se tratasse do seu acto fundador ou do longo processo da sua demarcação, quer se olhasse a partir das práticas sociais que a envolveram, existia uma base documental de suporte. Porém, para lá dessa história documentada e, acrescente-se, em certos aspectos muito lacónica, a fronteira encontra também expressão no modo como essas práticas sociais são narradas por quem nelas participou, ou seja, por quem assume a legitimidade de contar a partir de dentro a sua experiência raiana. Desta forma, o estudo da fronteira era concebido a partir de um binómio que integrava base documental e recolha de informação oral, o que significava procurar uma articulação entre história e memória, conceitos a que no capítulo seguinte voltaremos.
24Quanto ao outro nó analítico, o da memória social, os procedimentos metodológicos assumiam contornos diferentes. Por um lado a base documental não podia servir aqui senão para pontuar o que verdadeiramente me interessava e que era o relato directo, a experiência pessoal maturada pelo tempo e pelo envolvimento no grupo, isto é, a mescla indiscernível entre recordação factual e interpretação. Usando uma outra fórmula, pode dizer-se que a relação memória/história surgia invertida neste plano de análise, expressando um claro desequilíbrio em favor do primeiro desses vectores. Por outro lado, os dois registos principais que me propusera estudar, a Guerra Civil e o contrabando, sugeriam também eles diferentes abordagens. Se o primeiro era um acontecimento delimitado no tempo, mesmo que, como veremos, com margens algo imprecisas, o segundo era um processo de longo curso, algo que marcou várias gerações e conheceu diferentes fases. Assim, do ponto de vista do trabalho de terreno, foi necessário ter em conta que em relação à Guerra Civil o número potencial de informantes era bem mais limitado do que acontecia com o contrabando. De facto, tratando-se de um acontecimento sobre o qual decorreu já mais de meio século, uma memória vivida dos factos estava restringida apenas a algumas pessoas9. Porém, ainda mais importante do que esta distinção no universo dos informantes, foi a diferente natureza das memórias envolvidas-traumáticas e mesmo reprimidas num caso, de uma certa heroicidade no outro – que obrigou a diferentes posturas na investigação.
25Como trabalhar então, no concreto, a partir destes tópicos de análise? A postura mais optimista é, talvez, a que acredita que a aplicação de um certo pragmatismo metodológico (Burgess, 1984:5) dará resposta adequada às dificuldades. Este era, todavia, um pragmatismo temperado: não só a tradição disciplinar em que me integrava e revia privilegiava abordagens de cariz marcadamente qualitativo, como eu próprio não tinha meios, competência e vontade para aplicar questionários ou outros instrumentos de cariz quantitativo. De resto, a dimensão da vila tanto impossibilitava o conhecimento de toda a população, como é comum em estudos de pequenas comunidades, como tornava impraticável a aplicação de um questionário a toda a população. Dada a natureza do estudo, também a constituição de amostras aleatórias me parecia inadequada: os temas que procurava inquirir apenas encontravam expressão num número restrito de elementos da população, não havendo nenhum critério que os demarcasse claramente – nem área de residência, nem grupo sócio-econó-mico, nem mesmo escalão etário.
26Tanto a memória da guerra civil como a do contrabando eram transversais a toda a população, mas a experiência pessoal das situações e a capacidade (ou vontade) de rememorar, introduziam um critério de subjectividade que eu entendia apelar a instrumentos de análise de natureza qualitativa. Do que se tratou então foi de procurar trabalhar intensivamente com informantes, técnica que coloca, naturalmente, o problema dos critérios de selecção, não tanto, como nota Burgess, por uma questão de representatividade, mas sim de adequação aos objectivos pretendidos:
a selecção de um informante exige que o investigador tenha conhecimento da situação que vai ser estudada, de forma a avaliar a posição das pessoas num dado contexto e o seu conhecimento desse contexto. (…) não é pois feita exactamente em termos de representatividade (Burgess, 1984:79).
27Pode dizer-se, aceitando este ponto de vista, que a permanência no terreno, na medida em que o vai desvendando de várias formas, contribui por si só para uma selecção adequada de informantes. Evidentemente que a questão não é tão simples quanto isso, pois também aqui o terreno não se deixa apreender passivamente, antes interage com o investigador. A minha experiência a este nível mostrou-me que mesmo aceitando que o conhecimento do contexto ajuda a decidir com quem falar prioritariamente, era necessário exercer uma espécie de autovigilância de forma a evitar uma excessiva concentração em torno de grupos específicos dentro da comunidade. O que quero aqui sugerir é que, pelo menos nalguns casos, o informante prende o investigador, nem sempre ou apenas a si próprio, mas remetendo-o para um círculo social restrito, aquele que ele próprio conhece e de alguma forma domina. As razões podem ser de diferente natureza e não assentarem numa acção propriamente consciente, mas provocam, de qualquer forma, um efeito de ocultação de parte da realidade que se quer conhecer.
28Este efeito perverso de centramento manifestava-se também quando eram as próprias entrevistas a suscitar outros interlocutores, fenómeno que me parecia criar um círculo auto-referencial quase sempre indesejável. Era pois necessário, por vezes, romper deliberadamente esse encadeamento, funcionando então as duas aldeias do concelho, Ouguela e Degolados, como espaços onde me foi possível quebrar uma certa rotina no processo de recolha de testemunhos, impondo maior diversidade. Também aqui o tempo e o envolvimento com o terreno são critérios fundamentais: se no início pouco resta senão seguir as vozes de quem assegura que «fulano sabe muito sobre esse assunto», gradualmente o investigador vai traçando o seu próprio percurso, percebendo mais claramente a lógica interna dos sinais que lhe são lançados10. Isto não obsta, evidentemente, ao reconhecimento de uma dimensão intuitiva, e por isso mesmo subjectiva e falível, numa metodologia como esta. Trabalhar com informantes privilegiados, sobretudo num contexto tão heterogéneo e amplo como Campo Maior, é sempre susceptível a deixar de fora personagens e perspectivas relevantes mesmo para os temas específicos de que me ocupava.
29As entrevistas, a que na verdade prefiro e julgo ser mais correcto chamar conversas, decorreram em momentos, lugares e ocasiões diversas. Chamo-lhe aqui conversas como forma de acentuação do seu carácter, mas também porque é essa a sua decorrência, ou seja, quase sempre elas surgiram como desenvolvimento de contactos informais. Ainda assim há algo que as distingue das conversas correntes e não programadas. Não são tanto questões de método ou técnica que me parece relevante sublinhar, mas de forma. Projectadas e combinadas como entrevistas, elas produziram muitas vezes uma modificação inconsciente de postura por parte do investigador e dos informantes. A utilização de gravador não me parece sequer que tenha sido a causa maior de tal efeito, mas antes uma espécie de valorização simbólica da entrevista, que conduzia a algo como a formalização ritual da postura e do comportamento. Nem sempre este efeito se verificava e por vezes era bastante subtil, mas não deixou de ser um aspecto significativo de uma dinâmica de interacção entre investigador e terreno que não é controlável.
30Em todo o caso, essas entrevistas constituem um sustentáculo importante do que se dirá nos próximos capítulos, sobretudo porque ao serem gravadas elas permitiram um efeito de rigor e cristalização da palavra. Era habitual ao longo do dia, ou mais frequentemente no seu final, registar os aspectos que me pareciam mais importantes das conversas que ia tendo. Era algo que nunca fazia presencialmente, pelo que o desfasamento temporal entre a conversa e o seu registo impediu a sua utilização em discurso directo. Porém, não é apenas uma questão de estilo de escrita que está aqui em causa: é também uma questão de separação das vozes que nela se faziam ouvir. Nas notas de terreno o investigador, mesmo quando transcreve conversas, é assumidamente parte interventiva na narração dos factos. Este aspecto acentua-se mais ainda quando, já longe do terreno, a leitura desses registos obriga à sua reinterpretação. Ao contrário, a transcrição de registos fonográficos permite a implicação efectiva de outras vozes, ainda que a escolha daquilo que passará da fita gravada para o texto etnográfico seja feita pelo investigador.
31Discutir a questão das vozes que compõem o texto e da autoridade que o legitima, é fundamental no debate sobre a legitimação do conhecimento científico produzido em etnografia. Trata-se de um tema a que acima fiz referência e com que adiante encerrarei o capítulo. Neste ponto, não deixando a dimensão impressiva da minha experiência no terreno, direi que ele se expressou de diferentes modos no terreno e depois no processo de escrita. Em relação a este último aspecto, procurei que outras vozes complementassem a do autor. Ou seja, assumindo que o discurso é e não pode ser senão o do autor, procurei ainda assim construir o texto de forma a diversificar os lugares de enunciação, negando dessa forma o modelo de narrativa omnisciente. Quanto ao terreno, essa preocupação traduziu-se na tentativa de ser o menos interventivo possível, nomeadamente nas entrevistas. Em face do que me interessava estudar, tratou-se de encontrar o tom que permitisse suscitar as memórias sem orientar a rememoração.
32Reconheço, por outro lado, que alguns factores não controláveis e decorrentes da própria natureza da pesquisa etnográfica, marcaram o processo. Muito embora a maioria das entrevistas tenha decorrido em casa dos entrevistados, algumas realizaram-se em lugares públicos, como tabernas ou Centros de Dia. Nalguns casos, minoritários também, o investigador teve mais que um interlocutor em simultâneo. Finalmente, por razões não desejadas mas talvez inevitáveis, foram ouvidos mais homens que mulheres. A tentativa de diversificar as fontes, tanto do ponto de vista documental como nas pessoas ouvidas, foi marcada a este nível por algumas inacessibilidades. A mais significativa delas foi sem dúvida a de Rui Nabeiro, personagem central da história de Campo Maior nas últimas décadas, mas que, apesar das tentativas feitas nesse sentido, não pôde ser entrevistado. Como mais à frente se verá, a não realização dessa entrevista não impediu que o referido empresário ocupasse lugar destacado neste trabalho, como de resto seria inevitável falando de Campo Maior, da fronteira e do contrabando.
33Aquilo a que a antropologia se habituou a chamar observação participante coloca o investigador na situação singular de não poder separar claramente o seu trabalho das outras actividades que pautam o seu dia-a-dia. Tomar um café após o almoço ou uma cerveja ao fim da tarde, são actos banais que ganham relevância se a tarefa de quem os pratica é a de observar e tentar perceber uma realidade que também se expressa no café e nas sociabilidades que aí se tecem. Este aspecto deve ser tido em conta na constatação de que o exercício etnográfico é acompanhado de um certo velamento quanto ao processo de investigação:
No regresso, o etnógrafo muito raramente analisa aberta e francamente esta experiência vital e as suas mudanças tanto a nível pessoal como profissional; apresenta apenas os seus dados, mas não o modo como foram recolhidos (Cátedra, 1992:16).
Os antropólogos esforçam-se pouco para expor claramente os seus métodos de inquérito, o que alimenta as críticas que lhes fazem os investigadores de outras disciplinas (Durand, 2001:128).
34A reserva do antropólogo à enunciação clara de processos de pesquisa pode então ser remetida para uma dificuldade que se expressa no plano técnico e no plano afectivo. Técnico porque a sua investigação se dilui verdadeiramente nos gestos do quotidiano; afectivo porque esses gestos o revelam também a si para lá do que revelam da comunidade.
35Mesmo deixando de lado a dimensão afectiva, aquela onde a sensibilidade pessoal define, caso a caso, as fronteiras do indizível, as questões técnicas são só por si relevantes. Como integrar num quadro analítico objectivado e perceptível fora da disciplina a convivialidade numa mesa de café? Como distinguir, no plano metodológico, a informação que se adquire numa conversa com os amigos que se vão fazendo no terreno, da que decorre de entrevistas? Estas têm, mesmo quando são informais, um objectivo informativo assumido por ambas as partes, enquanto as primeiras, descontando o eventual registo de confidencialidade que pode ser pedido, não são menos importantes e úteis ao investigador. Podiam-se multiplicar os exemplos, mas estes bastam para defender a ideia de que a apresentação formal do quadro metodológico de uma investigação centrada na observação participante, parece não poder evitar um certo reducionismo e parcialidade. A adopção de um modelo de escrita próximo do diário de campo pode quebrar esse efeito, mas transporta o discurso etnográfico para uma esfera menos reconhecível por disciplinas tradicionalmente próximas. Ou seja, é uma opção que afasta a antropologia do modelo canónico de produção científica.
36A investigação, que como já disse significou para mim a descoberta do terreno e do que me ensinaram a classificar como observação participante, colocou-me também questões de natureza epistemológica a que de algum modo já aludi atrás e quero neste ponto recuperar de uma outra forma. A evidência da interacção do investigador com o terreno que se encontra a estudar, leia-se com o espaço e com as pessoas que o habitam, parecia-me colocar inevitavelmente a questão do conhecimento mais do lado da compreensão do que da explicação, para usar aqui as categorias weberianas. O conceito semiótico de cultura que Geertz nos propõe vai no mesmo sentido, ou pelo menos implica a mesma leitura: «a análise da cultura terá que ser, portanto, não uma ciência experimental em busca de leis, mas antes uma ciência interpretativa em busca de significações» (Geertz, 1973:20). Colocada desta forma a questão resulta pacífica, mas o debate ganha outro interesse quando se parte de uma prática etnográfica concreta e se ambiciona produzir conhecimento a partir dela.
37O modo de construir o texto, quer dizer, de transformar uma experiência individual numa representação textual investida de legitimidade científica, constituiu, muito antes de a escrita começar a ganhar forma, objecto de inquietação e dúvida. Se a implicação do autor nas escolhas que faz, seja no que diz seja no modo de o dizer, está contida no assentimento da dimensão interpretativa da disciplina, as características de um projecto de investigação centrado na memória social, colocavam a questão do conhecimento de uma forma diferente da que ocorre numa monografia dedicada, por exemplo, às regras de parentesco ou à abordagem de um sistema político. Não visando o estudo da estrutura social, dos seus mecanismos de reprodução e mudança, ou mesmo a descrição de um sistema cultural, este trabalho orientava-se para algo de distinta natureza: convocar vozes que de diferentes maneiras evocassem memórias. Este trabalho vive então de um duplo efeito discursivo: desde logo no modo como o autor escolhe construir a narrativa, mas também no modo como cada voz convoca o passado e o transmite.
38A imaterialidade da memória favorece a pluralidade de leituras e interpretações, ou, usando uma expressão cara às correntes pós-modernas, um universo de heteroglosia (e.g. Kilani, 1990:109 e Casal, 1996:92), quer dizer, de distanciamento face às tendências centrípetas e homogeneizadoras (Reynoso, 1998:26). A recusa do papel de narrador omnisciente não deve todavia confundir-se com a diluição de papéis e estatutos como chega a ser proposto:
Uma vez que a etnografia pós-moderna privilegia o «discurso» sobre o «texto», o monólogo é preterido pelo diálogo, e a natureza cooperativa e de colaboração da situação etnográfica é enfatizada, contrastando com a ideologia do observador transcendental. De facto, a ideologia do «observador-observado» é rejeitada, nada havendo de observado nem ninguém como observador. Existe, em alternativa, a produção mútua e dialógica de um discurso, de um certo género de estória (Tyler, 1986:126).
39Como lembra Mondher Kilani, o texto etnográfico não pode ser restringido à evocação de uma experiência ou ao prazer que a sua leitura pode proporcionar. Ainda que estes efeitos possam estar nele presentes, ele serve sobretudo para comunicar conhecimento, o que significa que assume uma posição no campo da produção intelectual e da instituição científica (Kilani, 1990:72). Enquanto lugar de debate, o texto etnográfico não pode diluir-se numa eventual polifonia, que de resto é sempre ilusória, mas assumir o que nele é inevitável: a autoria enquanto produtora de significações.
40Relativamente a este trabalho em concreto, procurei equilibrar a dimensão interpretativa com focalizações tanto quanto possível objectivadas. Assim, se em certos momentos, nomeadamente ao abordar o contrabando e a Guerra Civil, tentei que fossem as vozes que evocam ou narram esses acontecimentos a ganhar visibilidade, procurei noutros momentos contrapor a este registo um olhar do exterior fundamentado no documento. Evidentemente que mesmo esta dimensão não escapa à lógica interpretativa: é o autor que sublinha em cada momento o que lhe parece pertinente para afirmar uma ideia, confirmar uma tese ou salvaguardar uma posição. Ainda assim são diferentes em cada um dos casos as esferas de interacção e, através delas, o modo como o texto se produz e se oferece à leitura. O efeito pretendido pela escrita foi o de harmonizar estes diferentes registos, criando dessa forma uma narrativa coerente, conforme aos cânones da retórica científica (cf.Tyler, 1986:131).
Notes de bas de page
1 Pode dizer-se que o confronto destes parágrafos com o restante trabalho expressa a seu modo a assunção de uma certa dimensão esquizofrénica (Cátedra, 1992:12), que separa radicalmente o texto etnográfico dos relatos sobre a experiência no campo (sobre a mesma questão, cf. Kilani, 1990:80).
2 Pense-se em textos tornados clássicos a este nível, como Tristes Trópicos de Lévi-Strauss ou Reflections on Fieldwork in Morocco de Paul Rabinow, no tratamento humorístico da experiência de terreno de Nigel Barley, por exemplo em The Innocent.Anthropologist, ou, entre nós, na expressão literária, a que não falta sequer a ilustração artística, de Aromas de Urze e de Lama de Pina-Cabral — pode encontrar-se em Kilani (1990:80-81) alusão a outros exemplos deste género de escrita, o mesmo sucedendo em Casal (1996:106-9).
3 Cabe aqui aludir à consciência da dificuldade deste objectivo: «O paradoxo da metodologia antropológica é que enquanto o trabalho de campo e a observação participante assumem o papel emblemático da actividade antropológica, conservando o estatuto de espaço-laboratório do saber antropológico por excelência, muito raros são os antropólogos que decidem explicitar os seus métodos de forma clara e desinibida.» (Casal, 1996:105.) Este paradoxo é expresso também por Rabinow na ideia de «duplo vínculo»-a experiência de terreno versus os dados objectivos que se recolhem-que teria marcado a antropologia durante décadas (cf. Rabinow [1977], Um pouco mais à frente voltaremos a esta questão, perspectivando-a então de uma outra forma.
4 A tradução das citações ao longo deste trabalho é da responsabilidade do autor.
5 Distância relativa, entenda-se, mas suficiente ainda assim para evitar um rápido retorno a casa perante estados de alma menos auspiciosos. Afinal, IP acima, IP abaixo, sempre se tratava de cinco horas de carro, que transportes públicos era coisa que não havia.
6 Perante o elenco final de terrenos possíveis e já limitados à fronteira alentejana, o orientador deste trabalho, Professor Pais de Brito, acabou tendo um papel importante, ajudando a vencer com o seu entusiasmo algumas das reservas que eu ainda tinha relativamente a essa hipótese.
7 Expressão usada pelo historiador Rui Vieira (1987) para caracterizar Campo Maior dos séculos xvi e xvii.
8 Podemos dizer, de algum modo, que esta foi uma forma de participação dos informantes na construção do trabalho, interpretação que remete para o debate sobre a autoridade no discurso etnográfico, situando-a, neste caso, no lado dos informantes: «o controlo indígena sobre o conhecimento que se adquire no terreno pode ser considerável e até determinante.» (Clifford [1988].)
9 Em todo o caso, deve notar-se que a memória da guerra se prolonga para lá daquela que é geralmente aceite como data do seu final (1939). Pesa aqui, como veremos, não só a eclosão da II Guerra Mundial, como a presença no concelho de refugiados espanhóis, os últimos dos quais só serão capturados em 1945 (cf. Cap. 6.3.).
10 A metáfora da piscadela de olho, reportada a Gilbert Ryle e usada por Geertz (1973:21-22), pode servir aqui para explicar o que quero dizer. Do mesmo modo que é necessário perceber o contexto e os intervenientes para distinguir, no piscar de olho, entre um tique e um sinal deliberado, torna-se mais fácil compreender por que se torce o nariz ou se aplaude a escolha de um informante, conforme a comunidade se vai tornando menos estranha ao investigador.
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