Introdução
p. 17-26
Texte intégral
1A ideia da realização de um trabalho com os contornos que este veio a assumir, partiu do desejo de perceber de que forma categorias tão fundamentais para a compreensão da vida em sociedade, como as de espaço, tempo e memória social, se articulam no concreto e se oferecem à percepção do investigador. A esta ideia, excessivamente vaga, procurámos dar consistência recorrendo a um terreno de investigação possuidor de características específicas. Assim, com a escolha de uma localidade fronteiriça visámos, antes de mais, acentuar uma dessas dimensões, a do espaço, que dessa forma surgiu como eixo onde entroncariam as duas restantes. De resto, a singularidade de um espaço recortado por uma linha de separação política, definida pelo poder do Estado mas vinculativa também no plano local, pareceu-nos capaz de polarizar por si só as outras categorias: o tempo, através da história de um território que se construiu com base na liminaridade; a memória social, pela expressividade das experiências comuns vividas num território com tais características.
2Pode então dizer-se que os objectivos que nortearam esta procura de um espaço fronteiriço como campo de investigação, entroncaram em dois nós analíticos principais. Por um lado, a própria fronteira, constituída em objecto de inquirição, ou seja, tomada como factor diferenciador, quer quando funcionou como recurso para as populações quer quando foi atravessada pelo conflito. Por outro lado, a memória social como elemento articulador de diferentes experiências de vida e distintas temporalidades, também ela recurso a seu jeito, já que por ela se mostra, se pensa e se interpreta o mundo. Foi então na tentativa de deslaçar estes nós que o trabalho assentou. Alicerçado num quadro temporal pouco rígido, que podemos defmir, grosseiramente, como o tempo passível de ser evocado na primeira pessoa do singular – o que podemos traduzir cronologicamente pelo período que vai do começo dos anos 30 do século xx aos nossos dias – o trabalho procurou em acontecimentos e fenómenos concretos expressões de memória partilhada.
3De um ponto de vista substantivo, foram dois os temas que desde cedo se impuseram ao tipo de abordagem que pretendíamos. Por um lado o fenómeno do contrabando, essa realidade que se distende no tempo e da qual há uma memória não vivida de «outros tempos» agregada à experiência pessoal. A persistência desta prática no tempo permitiu-nos perceber de que forma a mudança histórica e os ajustamentos conjunturais são reflectidos na narrativa, no modo de contar o contrabando. Esta actividade, que foi para alguns um modo de vida, mas para muitos mais um complemento dos rendimentos incertos do trabalho agrícola, é assumida quase sempre de uma forma positiva. Expressão de bravura e coragem, a sua evocação traduz ainda a nostalgia de uma juventude capaz de arrostar com os perigos e dificuldades que lhe eram inerentes. No caso concreto da vila que estudámos, a sua importância enquanto actividade de referência, isto é, como algo que marca a vila e a singulariza, é particularmente notória. O que a vila é hoje, aquilo que lhe dá argumento de identidade, tanto para os seus membros como para o exterior, é uma herança viva e actualizada do contrabando de café de outros tempos.
4O outro tema tem uma natureza diferente, embora seja a seu modo tão marcante quanto o primeiro. Trata-se da Guerra Civil de Espanha, ou melhor, do modo como esta guerra penetrou em território português e marcou o quotidiano de quem viveu esse período, persistindo hoje como memória frequentemente evocada. Diferentemente do contrabando, a guerra civil circunscreve-se a um período de tempo definido, algo que teve um princípio e um fim conhecidos. Não é pois uma constante que se adaptou às transformações sociais, como aconteceu com o contrabando, mas um acontecimento que irrompe no quotidiano da comunidade e o modifica. A memória desse conflito não remete apenas, nem sequer fundamentalmente, para o que se passou em Espanha, mas para o modo como a guerra foi vivida em Portugal, evidenciando diferenças sociais através das atitudes então tomadas. Pela sua própria natureza é também espaço de silêncios, de meias-palavras e de esquecimento, dimensão que é afinal tão reveladora como a da recordação.
5Para lá destes dois temas centrais, o decorrer da investigação foi revelando todo um feixe de questões igualmente relevantes para a abordagem pretendida. Fundamentalmente, tentámos perceber as modificações ao nível da percepção do espaço e das práticas de sociabilidade, bem como a forma como o poder e o seu reconhecimento se foram articulando com a memória e a temporalidade. Destas questões, que, naturalmente, também se revelam tanto no contrabando como na guerra civil, procurámos sublinhar um aspecto específico, exactamente o que diz respeito ao poder e à sua gestão. Do que tratámos, concretamente, foi de tentar mostrar de que modo se efectuou a substituição da elite dirigente na vila e como esse processo é indissociável das características especificas daquele espaço raiano.
O ESPAÇO E AS PESSOAS
6Se olharmos para um mapa, Campo Maior1 surgemos como um pequeno ponto no extremo sudeste do distrito de Portalegre, que parece ser empurrado para Espanha pelos concelhos limítrofes de Arronches a norte e de Elvas a sul. Este efeito cartográfico, chamemos-lhe assim, deve-se não só ao facto de o concelho parecer uma língua de terra que penetra em território espanhol, mas também porque é maior a extensão do seu território delimitado pela fronteira do que aquele que se abre a Portugal. Os seus 347 km2 são partilhados apenas por três freguesias, duas delas dividindo a vila sede do concelho e a outra centrada na aldeia de Nossa Senhora da Graça de Degolados, que dista da vila menos de dez quilómetros2. Trata-se de um concelho que está francamente centrado na vila. Quer Degolados quer a outra aldeia do concelho, Ouguela, são espaços claramente periféricos, não tanto do ponto de vista da distância física mas sobretudo simbolicamente: não só toda a vida social, administrativa e laborai se centra na vila, como é apenas ao espaço limitado deste aglomerado urbano que se associam as designações de «Campo Maior» e de «campomaiorense».
7O Alentejo interior em que este concelho se insere, apresentava tradicionalmente um parentesco muito forte com as regiões espanholas contíguas, quer ao nível do coberto vegetal quer ao nível dos sistemas de cultura e métodos agrícolas3. A sua situação de região fronteiriça acentua a similitude geográfica de Campo Maior com as terras espanholas contíguas. Localizando-se a sul da serra de S. Mamede, serra que liga, ela própria, ao sistema montanhoso ibérico dos Montes de Toledo (Ribeiro, Leutensach & Daveau, 1987 (I): 12), nenhum obstáculo natural se interpõe entre as terras de Campo Maior e as que se abrem para os vales de Albuquerque e Badajoz. Apenas num pequeno troço de fronteira o ribeiro Abrilongo separa os dois países, sendo no resto campo aberto e relativamente uniforme. Do ponto de vista climático, Campo Maior apresenta mesmo maior semelhança com a região espanhola contígua do que com grande parte do Alto Alentejo – por exemplo a muito baixa pluviosidade que caracteriza a bacia de Badajoz estende-se a Campo Maior, o mesmo acontecendo com a elevada amplitude térmica (Ribeiro, Leutensach & Daveau, 1987 (II):366 e 384-5)4.
8Os problemas derivados do modelo de exploração agrária do sul do país são múltiplos, não cabendo aqui discuti-los, ainda que um pouco mais à frente neste trabalho nos venhamos a confrontar com alguns deles. Por agora interessa-nos apenas sublinhar determinadas características da estrutura agrária de Campo Maior. Desde logo o facto de a dimensão média das explorações agrícolas neste concelho (31,7 ha) ser significativamente menor do que a que se verifica nos concelhos vizinhos de Arronches (48,4 ha), de Elvas (57,3 ha) e, já em Espanha, de Albuquerque (68 ha). Neste aspecto só Badajoz (28,1 ha) se aproxima de Campo Maior (Lourenço, 1996). Note-se ainda que de todos os concelhos portugueses e comarcas espanholas que Fernando Lourenço (1996:25) integra no mesmo grupo que Campo Maior, é nesta vila que se encontra o melhor índice na relação entre a superfície total das explorações agrícolas e a superfície agrícola utilizada (98,3%). A explicação desta relativa singularidade parece passar por vários factores. Um deles é a partilha de terras baldias no século xix pelos habitantes da vila (Defesa da Godinha5) e das localidades de Degolados e Ouguela (parcelas das respectivas refertas6.) Outro aspecto importante a considerar é o da diversidade e qualidade dos solos. Se ele não impede que muitas das terras atribuídas aos chefes de família acabem por ser vendidas, vindo depois a constituir propriedades mais vastas7, a verdade é que noutros casos a exploração de parcelas relativamente pequenas se conservou, acabando por se tornar rentável, sobretudo devido ao olival.
9As características da sua estrutura agrária, associadas à polarização exercida pelo contrabando, terão contribuído para a capacidade de atracção de mãode-obra proveniente de outros concelhos. Ainda hoje a percentagem de imigrantes em Campo Maior está um pouco acima da média distrital, tal como os Censos de 2001 comprovam (2,5% versus 2,1%), mas no passado o peso desse factor terá sido ainda maior – por exemplo, em 1960 17% da população de Campo Maior era natural de outros concelhos. Hoje pode dizer-se que se esta vila não escapou totalmente à desertificação que a partir dos anos 50 marcou o interior do nosso país, a intensidade do fenómeno não foi em Campo Maior tão significativa como noutros locais – basta referir que enquanto o distrito de Portalegre, entre 1950 e 2001, perdeu 34,6% da sua população, em Campo Maior, durante o mesmo período, essa quebra cifrou-se em 14,5% (cf. Quadro 1). Notese ainda que essa perda demográfica é ainda menos significativa se considerarmos apenas as freguesias urbanas. Este facto reforça, desde logo, a ideia da notória centralidade da vila no contexto concelhio, evidenciando o carácter essencialmente urbano da sua população. Por outro lado, e complementarmente, ele indicia que a relativa singularidade de Campo Maior assenta em actividades que se desenvolvem na vila, o que nos conduz à indústria de torrefacção de café e ao modo como esta actividade marcou o desenvolvimento de Campo Maior nas últimas décadas.
CAMPO MAIOR: DO DOMÍNIO LEONÊS A CENTRO DE INDÚSTRIA DO CAFÉ
10Uma breve abordagem histórica da vila de Campo Maior pode começar por aquilo que é mais consensual no seu passado remoto: a data em que se tornou território pertencente ao reino de Portugal. Foi em 1297, através de um tratado assinado em Alcanises por D. Fernado IV e D. Dinis, que um conjunto de localidades e seus termos, entre as quais Campo Maior e Ouguela, passaram do reino de Castela para o de Portugal, sucedendo o inverso a algumas outras. A sua história anterior é algo mais vaga. Terá sido conquistada aos muçulmanos cerca do ano 1230, passando então a integrar o concelho de Badajoz e o Reino de Leão. Sabe-se que foi outorgada ao bispo dessa cidade em 12 5 58, que cinco anos depois lhe concedeu o seu primeiro foral. A descoberta de vários objectos, como machados de pedra e cerâmica, parecem atestar a presença humana desde a pré-história (Vieira, s.d.:l), do mesmo modo que alguns vestígios romanos, nomeadamente monumentos epigráficos (Encarnação, 1989), atestam a presença romana no espaço que o concelho hoje ocupa.
11A passagem de Campo Maior do reino de Castela para Portugal é expressiva da sua situação de terra fronteiriça e indiciadora daquelas que são as marcas fundamentais da sua história. Falamos, naturalmente, das batalhas que aí se travaram e lhe marcaram a fisionomia, seja pela imponência do castelo que defendeu a vila seja pela influência que as guerras tiveram nas transformações demográficas que foi sofrendo. O peso desta marca é evidente naquilo que ao longo dos anos se escreveu sobre Campo Maior, tanto em memórias produzidas nos séculos xviii e xix (Moura e Azevedo, 1993 e Dubraz, 1868), como em trabalhos recentes de história local. Ele pode aferir-se ainda noutros planos, como na toponímia ou no registo biográfico das personalidades marcantes da vila9. Por esta razão, a história de Campo Maior pode, em grande medida, ser contada a partir do seu castelo, apesar das incertezas quanto à sua origem e fundação10. A sua importância está, porém, documentada desde 1388, data em que D. João I lhe moveu um cerco e conquistou a vila, pondo fim dessa forma à fidelidade a Castela que mantinha em consequência da crise de 1383-8511. A situação fronteiriça agudizava a questão da fidelidade a uma ou a outra coroa, como aconteceu no século xiv e se repetiu em 1580, quando o alcaide de Campo Maior se recusou a entregar o castelo ao mandatário de Filipe II. A Restauração de 1640 tampouco trouxe paz à vila, pois a guerra entre Portugal e Castela fez-se sentir aí de forma intensa. Em 1712 são de novo tropas espanholas que cercam o castelo que desta vez resiste, apesar de perdas elevadas de vidas e bens (Vieira, s.d.:16). Dois outros episódios militares, em 1801 de novo cercada pelos espanhóis e em 1811 pelo exército francês, são igualmente importantes referências na história da vila, tendo mesmo o segundo destes cercos e a resistência que suscitou, conferido à vila o título de «leal e valorosa», que ainda hoje o seu brasão ostenta (Vieira, s.d:20-21).
12Se por um lado a localização de Campo Maior era um factor de crescimento, atraindo imigrantes, muitos deles castelhanos12, representava por outro uma ameaça permanente à estabilidade da população. Não só os momentos de guerra e de crise representavam perdas demográficas significativas, como estas ocorriam também fruto de acidentes decorrentes do seu carácter de vila fortificada. O mais grave destes acontecimentos ocorreu em 1732 quando um raio atingiu o paiol de pólvora instalado na torre de menagem, destruindo por completo o castelo e a maior parte da vila. Esta torre de menagem era um edifício imponente, com cerca de trinta e cinco metros de altura, ou seja, o correspondente a um edifício de onze andares (Vieira, s.d.:12). Aquele que à época era governador do castelo, descreveu o sucedido da seguinte forma:
Era a Torre toda de pedraria grossa, assim por fora como por dentro, e as abóbodas das nove ruas que tinha, eram também de pedra de enchilaria, sem que entrasse ali outro material. Foi tal o impulso da pólvora, que arrancou a Torre dos seus alicerces e a desfez em miúdos pedaços, e juntamente todo o muro do mesmo castelo (…). Ao estrondo da pólvora, e da Torre, caíram ao mesmo tempo 836 moradas de casas das 1076 de que se compunha esta povoação (…). Morreram 256 pessoas entre grandes e pequenas, ficaram feridas mais de duas mil (Moura e Azevedo, 1993:137-8).
13A Capela dos Ossos, anexa à Igreja Matriz da vila e um dos pontos de referência nos folhetos turísticos actuais e passados, passa por ser a expressão dessa tragédia: «E de admitir que a sua construção tenha sido em memória de todos aqueles que morreram com a explosão. Cobrem as paredes laterais e tecto, ossos de cerca de 800 cadáveres humanos, tendo um ainda a pele ressequida.» (Marques de Matos, 1995:18.)
14É apenas no século xix que se criam condições para a vila virar as costas ao castelo, libertando-se da sua sombra tutelar. A pacificação da fronteira transforma o castelo mais num lugar de memória (conceito a que adiante voltaremos), do que num efectivo instrumento de defesa. A sua desactivação em 1848 foi apenas o primeiro passo para o seu abandono, que já se notava em 1860 (Vieira, s.d.:22) e que de alguma forma era ainda o seu estado na altura em que realizámos a nossa investigação13. No século xix, ao mesmo tempo que os últimos militares desocupam o castelo, a vila surge marcada durante largos períodos, por uma forte conflitualidade interna14. E, afinal, o reflexo das dissensões políticas entre liberais e absolutistas que marcaram a história de Portugal nessa época. Do ponto de vista da evocação do passado transmitida pelos autores locais, este não é, todavia, o acontecimento mais referenciado desse período. Foi uma questão política e administrativa que acabou por ocupar o lugar destacado que até aí fora desempenhado pela guerra, sobretudo porque essa questão revê e altera a relação de Campo Maior com os outros centros urbanos da região. Trata-se da decisão tomada em 1867 de extinguir o concelho de Campo Maior, ficando em suspenso a possibilidade de o integrar no vizinho concelho de Elvas ou de vir a constituir, juntamente com Arronches e Monforte, um novo concelho, de que não seria, todavia, a localidade sede (Botelho, 1996:131).
15A evocação deste episódio oitocentista não obsta à constatação de que os séculos xix e xx não têm merecido senão escasso interesse por parte de quem escreve sobre Campo Maior. A persistência do passado militar como referência fundamental e emblematizadora da vila parece dificultar o olhar sobre a história mais recente. Assim, a síntese histórica da primeira metade do século xx tende a surgir como uma espécie de crónica social feita a partir das memórias de quem escreve – vide e.g. Joana Muñoz (1998) ou Fernando da Silva Dias (2000). Apesar deste desinteresse, aquilo que Campo Maior é hoje decorre de transformações relativamente recentes, como a substituição de uma espécie de oligarquia de proprietários rurais pelas figuras emergentes do contrabando e da indústria do café. Numa obra recente e de carácter monográfico (Muñoz, 1998), podemos ver como a «evocação literário-etnográfica» de Campo Maior dispensa a referência à actividade industrial constituída em torno do café. O que prevalece como imagem da vila são os «usos e costumes» e uma certa ideia de «cultura popular», conceitos remetidos essencialmente para a actividade agrícola e para as Festas do Povo. Julgamos que não é tanto a contemporaneidade – e note-se que mesmo esta é relativa, pois já nos anos 40 existiam torrefacções importantes em Campo Maior – a excluí-lo desta e de outras obras sobre a vila. O que nos parece pesar mais é a ideia da inadequação dessa actividade à matriz simbólica que define o popular e o genuíno15.
16Uma nota final nesta Introdução para referir que a centralidade da vila de Campo Maior no contexto concelhio subalterniza outros lugares que, no entanto, se revelaram importantes para este trabalho. Falamos das aldeias de Degolados e Ouguela, hoje mais periféricas do que no passado, mas que constituem, ainda assim, topoi referenciais importantes, sobretudo a segunda. A semelhança de Campo Maior, Ouguela foi integrada na coroa portuguesa através do Tratado de Alcanises (1297), mas várias fontes apontam para uma origem bem mais remota – fundação celta com o nome de Niguella, que com os romanos se teria transformado em Budua (Costa, 1984). Quanto à aldeia de Degolados há a referir que se trata de uma designação que existe pelo menos desde o século xiii, aparecendo nessa altura atribuída a um ribeiro que passa no local onde hoje se ergue a povoação. Quanto a esta, sabe-se que no século xviii a freguesia se encontrava já instituída, remontando ao século anterior a edificação no local de casas de habitação e arrecadações agrícolas (Lopes & Vieira, 1987). A sua ligação a Campo Maior é, porém, mais tardia, pois só em 1926 se concretiza definitivamente a sua passagem do concelho de Arronches para o de Campo Maior.
17Antes de entrarmos no estudo deste contexto específico que acabámos de definir e de avançarmos para os dados que o terreno nos forneceu, importa agora introduzir neste trabalho um olhar algo introspectivo, com o qual procuraremos dar conta dos processos de trabalho e do afmamento dos objectivos que foram guiando a investigação, conduzindo-a aos resultados que aqui se oferecem.
Notes de bas de page
1 Optámos por utilizar o nome real da vila que estudámos por uma razão fundamental: não era possível falar de Campo Maior sem que facilmente se percebesse que era dessa vila que se falava, pois a existência de uma importante torrefacção de café numa localidade da raia alentejana sinalizaria a vila inevitavelmente. Do mesmo modo, sempre que se tratava de figuras com projecção pública e facilmente identificáveis, optámos por usar o nome verdadeiro, recorrendo, porém, a pseudónimos no caso dos nossos informantes.
2 Esta configuração administrativa foi alcançada apenas em 1926, quando se deu a transferência da freguesia de Degolados, com excepção de alguns lugares, do concelho de Arronches para o de Campo Maior. A aldeia de Ouguela, que chegou a ser concelho, foi integrada em Campo Maior ainda no século xix como freguesia, estatuto que veio a perder em 1936, quando passou a lugar da freguesia de S. João Baptista.
3 É essa a perspectiva que ainda nos anos 30 Hermann Lautensach nos transmite, numa obra em que analisa Portugal no contexto ibérico (cf. Ribeiro, Lautensach & Daveau, 1987(1):20). Os projectos de irrigação que decorreram em momentos diferentes do século xx-primeiro em Badajoz e mais tarde, com a barragem do Caia, também em Portugal-alteraram parcialmente esta semelhança. A contiguidade referida é também notada e sublinhada por Mattoso, Daveau & Belo (1997).
4 Esta contiguidade tem sido observada também em vectores de diferente natureza, nomeadamente na linguística (cf. e.g. Eduardo Barajas, 1985, Matias, 1984).
5 Dividida em 1871 em 1300 talhões de cinco alqueires de terra cada um (Vieira, s.d.:7).
6 Um pouco mais à frente teremos oportunidade de conhecer melhor a natureza das chamada refertas, terras que foram exploradas de várias formas, mas que escaparam ao modelo dominante de exploração extensiva característico do latifúndio.
7 Fenómeno também observado por Cutileiro (1977) em Vila Velha.
8 Para Rui Vieira (1985:9) este ano «apresenta-se, actualmente, como o primeiro a partir do qual se pode começar a fazer a história de Campo Maior».
9 Sobre este último aspecto veja-se o trabalho de um jornalista ligado à vila, João Pessoa, que nos anos de 1957 e 1958 publicou no jornal eborense Democracia do Sul cinquenta biografias de personagens locais, sendo clara a preponderância de figuras ligadas ao passado militar de Campo Maior.
10 Para uns a construção primitiva deve-se aos romanos e para outros aos muçulmanos, havendo ainda quem aponte D. Dinis como o seu obreiro, seja porque o reedificou seja porque o construiu de raiz (Vieira, s.d.:9).
11 No Alto Alentejo são os lugares de Campo Maior, Ouguela e Olivença aqueles que resistem até mais tarde, tendo Campo Maior permanecido fiel a Castela até 1388. A esta situação não é indiferente, por certo, o facto de estas localidades terem sido incorporadas no Reino de Portugal apenas em 1297 como referimos (cf. Vieira, 1985:22 sgg.).
12 Entre 1532 e 1574a sua população terá aumentado cerca de 50%, parecendo ser significativo o contingente de judeus que, perseguidos em Castela, vieram viver para Campo Maior nessa altura (Vieira, 1985:23).
13 Numa visita posterior (Dezembro de 2002) pudemos constatar que algo se modificara. O IPPAR (Instituto Português do Património Arquitectónico), instituição responsável pelo castelo, que é considerado património nacional desde 1911, parece ter-se empenhado na recuperação e dinamização do castelo com resultados já visíveis.
14 Recordações dos Últimos Quarenta Annos, obra de João Dubraz, publicada pela primeira vez em 1868, é bem ilustrativa das tensões vividas em Campo Maior durante esse período.
15 A importância destes conceitos numa certa mitificação do passado, tem vindo a ser relevada a partir da antropologia portuguesa (e.g. Pina-Cabral, 1991:11 sgg. e Leal, 2000:27 sgg.) e também da história (e.g. Melo, 2001).
Le texte seul est utilisable sous licence Licence OpenEdition Books. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.
Proprietários, lavradores e jornaleiras
Desigualdade social numa aldeia transmontana, 1870-1978
Brian Juan O'Neill Luís Neto (trad.)
2022
O trágico e o contraste
O Fado no bairro de Alfama
António Firmino da Costa et Maria das Dores Guerreiro
1984
O sangue e a rua
Elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
João Fatela
1989
Lugares de aqui
Actas do seminário «Terrenos portugueses»
Joaquim Pais de Brito et Brian Juan O'Neill (dir.)
1991
Homens que partem, mulheres que esperam
Consequências da emigração numa freguesia minhota
Caroline B. Brettell Ana Mafalda Tello (trad.)
1991
O Estado Novo e os seus vadios
Contribuições para o estudo das identidades marginais e a sua repressão
Susana Pereira Bastos
1997
Famílias no campo
Passado e presente em duas freguesias do Baixo Minho
Karin Wall Magda Bigotte de Figueiredo (trad.)
1998
Conflitos e água de rega
Ensaio sobre a organização social no Vale de Melgaço
Fabienne Wateau Ana Maria Novais (trad.)
2000