1. Grandes empresas familiares
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Texte intégral
1. AS GRANDES EMPRESAS FAMILIARES COMO OBJECTO DE ESTUDO
1O universo de empresas familiares com que trabalhei é, como já afirmei, constituído por empresas, ou grupos de empresas1 de grande dimensão, de grande importância económica e que ocupam uma posição importante no seu sector de actividade. Todas elas são empresas de grande prestígio, com projecção internacional, com múltiplos accionistas, que podem ser ou não da família do fundador, mas onde o núcleo de acções nas mãos dos membros da família garante o controlo dos destinos da empresa ou do grupo.
2Para denominar estas grandes empresas em que, pelo menos durante três gerações, membros da mesma família têm mantido a titularidade da maioria do capital e o controlo da gestão, uso o conceito de «empresa familiar». Esta opção pode parecer estranha, na medida em que, normalmente, as grandes empresas não fazem parte do universo definido por este conceito. No entanto, faço-o porque creio que a frequente associação entre a ideia de empresa familiar e pequenas estruturas económicas decorre mais da verificação de uma superioridade estatística que de razões definicionais. Vejamos porquê.
3De uma maneira geral, a definição de empresa familiar reporta-nos ao universo das pequenas empresas, a situações em que um indivíduo dinâmico e empreendedor montou, sozinho ou em conjunto com outros familiares, um negócio com algum sucesso, sendo a família a proprietária exclusiva da empresa e a maior parte dos empregados e dirigentes são membros da família (cf. Jones e Rose 1993, Guerreiro 1996 e Gersick et al 1997)2. Esta associação entre empresa familiar e pequena empresa não é apenas uma ideia do senso comum. Ela é igualmente veiculada por compêndios e dicionários de economia. A título de exemplo, no Dicionário de Economia organizado por Bannock, o item «empresa familiar» remete-nos para o item «pequena empresa» (Bannock 1987: 154), por sua vez definida como «uma empresa gerida de um modo pessoal pelos seus proprietários ou sócios e que detém apenas uma pequena quota do mercado em que se encontra» (Bannock 1987: 314).
4O termo empresa familiar é, por outro lado, frequentemente usado num sentido algo pejorativo, sugerindo que os gestores dessas empresas não estão bem preparados para os cargos que ocupam, em resultado das suas relações de parentesco. Associa-se com frequência o termo «empresa familiar» à prática do nepotismo – entendido como a promoção dentro da empresa com base na pertença à família e não com base na competência profissional –, considerado um critério que coloca a empresa em desvantagem no mercado.3
5As empresas familiares existem em todo o mundo e a variedade das suas organizações e do seu êxito é enorme. Numa amplitude que pode ir desde a mercearia de esquina até às grandes corporações multinacionais, há uma longa, rica e variada tradição de propriedade e envolvimento familiar nos negócios. Para além disto, as empresas familiares assumem um papel central na economia de diferentes países, como se verificou, por exemplo, no desenvolvimento do sistema americano de livre iniciativa, onde elas são, por isso mesmo, consideradas o tipo de empresa americana por excelência (cf. Rose 1983: 1). Noventa e cinco por cento das empresas americanas são, pelo menos em parte, de propriedade familiar (Donnelley 1964: 96, Buchholz e Crane 1989: 15/24 e Goody 1996: 203)4.
6Algumas das maiores e mais importantes empresas dos países capitalistas industrializados foram inicialmente fundadas como empresas familiares. Em 1993, a lista das quinhentas maiores empresas dos Estados Unidos publicada pela Revista Fortune chamava a atenção para o facto de um terço destas ser de propriedade familiar. Na lista que a mesma revista apresenta das grandes sociedades europeias deste tipo estão incluídas empresas como a Michelin, a Mars, o C & A e a Caterpillar Inc. Apesar de as grandes empresas familiares não constituírem a regra no mundo empresarial elas funcionam, no entanto, como exemplos de viabilidade e sucesso para a generalidade das empresas familiares.
7A diversidade deste tipo de empresas é enorme. Porém, todas partilham de uma característica comum: estão ligadas a uma família e esta ligação torna-as um tipo particular de empresa. Da mesma forma, estas empresas vinculadas a um universo familiar têm uma clara influência na organização e na vida dessas famílias. Assim, as empresas familiares são constituídas por dois subsistemas interligados e por vezes sobrepostos: a família e a empresa, facto que as torna instituições particularmente complexas. Cada um deles tem os seus próprios valores, regras de pertença e estruturas organizacionais e alguns dos seus membros têm obrigações nos dois círculos. Encontrar maneiras de satisfazer os dois subsistemas é um desafio central para todas as empresas familiares, pois a sua continuidade depende, em grande parte, do sucesso dessa articulação.
8Por esta razão, considero que o principal elemento de definição das empresas familiares é a articulação entre os referidos sistemas e não a dimensão da sua estrutura organizacional. Claro que a dimensão da empresa é um elemento importante a ter em conta no processo de investigação, pois analisar estas grandes empresas implica, necessariamente, uma perspectiva distinta da que se adoptaria para pequenas empresas. No entanto, essa distinção decorre das exigências específicas da organização de cada um desses contextos empresariais e não do facto de a sua diferente dimensão imprimir uma natureza essencialmente diferente à empresa.
9Vejamos, através de uma das grandes famílias empresariais que estudei, como a noção de empresa familiar se pode aplicar a empresas integradas num grande grupo económico que, apesar de grandes mudanças na sua dimensão, ao longo de mais de dois séculos de existência, enraíza nesse critério uma parte importante da caracterização identitária da instituição.
10A casa Jerónimo Martins foi fundada, em 1792 no Chiado, por um jovem e empreendedor galego. A longa existência da Jerónimo Martins é exaltada, em 1989, numa brochura publicitária da seguinte forma: «Vivemos cinco regimes políticos, as invasões francesas, duas guerras mundiais, quatro revoluções e o incêndio do Chiado.» Das inúmeras vicissitudes dos seus duzentos anos de existência, as mais significativas verificaram-se, no entanto, nos últimos cinquenta anos, durante os quais com pequeno estabelecimento comercial se transformou numa empresa de distribuição de produtos alimentares com participações na indústria e, posteriormente, num dos maiores e mais poderosos grupos económicos nacionais.
11Hoje em dia, o Grupo Jerónimo Martins domina diversas grandes empresas em três sectores de actividade: indústria (Lever, Fima, Iglo, Melgaço, Vidago e Pedras Salgadas), distribuição (JM Distribuição) e comércio (supermercados Pingo Doce, Cash & Carry Recheio, Hipermercados Feira Nova, uma cadeia de supermercados na Polónia, e outra no Brasil). Para cada um dos ramos de actividade em que estão envolvidos, as empresas do grupo têm joint ventures com prestigiadas empresas nacionais e internacionais. A melhoria dos serviços prestados no âmbito do seu sector de actividade tem estado sempre associada ao desenvolvimento das empresas desta família. Prova disto foi o seu lançamento, em 1996, em conjunto com o Grupo BCP/Atlântico, numa nova aposta: os bancos Expresso Atlântico que funcionam dentro das lojas dos supermercados, em horário alargado, sete dias por semana, para irem ao encontro das necessidades dos clientes. A modernização e a procura de novos investimentos nas suas áreas tradicionais de acção são as linhas de orientação do crescimento deste grande grupo económico.
12A Jerónimo Martins SGPS, SA, é uma sociedade gestora de participações sociais, detida em sessenta por cento pela holding familiar Francisco Manuel dos Santos, cujo quadro de administradores é composto maioritariamente por membros da mesma família. O actual presidente do conselho de administração da Jerónimo Martins, SGPS – que é também o maior accionista individual da holding familiar, da qual detém quarenta por cento –, pertence à terceira geração da família Santos que adquiriu a Jerónimo Martins & Filhos em 1921. Três dos seus quatro filhos varões já integram esse conselho e o quarto está a receber formação especializada para poder, em breve, ser admitido no referido órgão, sem escapar aos apertados níveis de competência e experiência exigidos para tal. É de prever que, tal como o seu pai sucedeu ao seu avô, também um dos filhos do actual presidente venha a ocupar a presidência do Grupo. Para além dos membros do conselho de administração, numerosas pessoas da família trabalham nas empresas do grupo, numa diversidade de lugares que vão desde o secretariado, passando por chefes de publicidade, marketing, distribuição e administração. Os próprios elementos da família definem desta forma o seu grupo económico:
A Jerónimo Martins é uma empresa familiar. Está nas mãos da família há cem anos e antes de nós esteve nas mãos de outra família ao longo de três gerações. Como vê, desde a origem que a estrutura familiar acompanha a evolução da nossa empresa e ela é uma parte fundamental da nossa cultura de empresa e do nosso sucesso (Teresa).
13As características organizacionais da Jerónimo Martins, a quantidade de membros da família que trabalham nas diversas empresas do grupo e que nelas ocupam os principais lugares de decisão, permitem-me afirmar que este grupo económico de grande dimensão – que em 1999 empregava mais de 15 000 trabalhadores e facturava 654 milhões de contos (cf. Relatório e contas 1999) – assenta numa base fortemente familiar. Consequentemente, podemos integrar este poderoso grupo económico na categoria «empresas familiares».
14O êxito e a continuidade de muitas empresas familiares – sejam elas pequenas, médias ou grandes empresas –, indica claramente que a participação familiar não é, em si mesma, um factor decisivo no sucesso ou no fracasso desse projecto económico, mas a forma como se concretiza essa participação e, sobretudo, a qualidade, o empenho e a competência profissional que os diversos membros da família investem nesse projecto comum.
15Um dos factores decisivos para a consolidação de uma grande empresa familiar decorre da transmissão, pelo fundador do negócio aos seus descendentes, da ideia que o legado empresarial – e não meramente económico – que lhes vai deixar é algo importante, algo que deve ser continuado. Conseguir criar nos descendentes a vontade e a vocação de virem a ser empresários, dando continuidade aos projectos do fundador, é uma mais-valia decisiva para o sucesso deste tipo de empresas5.
16Para se perceber melhor a importância do fundador na história do desenvolvimento das empresas familiares, usarei como exemplo uma outra das famílias com que trabalhei: a família Espírito Santo. O fundador, José Maria Espírito Santo Silva, criou uma fortuna muito considerável para a sua época. Em 1884, fundou a casa bancária a partir da qual os seus filhos viriam a constituir (em 1920) o Banco Espírito Santo e criou uma excelente rede de relações sociais em Lisboa, no seio da qual os seus filhos foram educados, cresceram e casaram, aumentando o património – tanto a nível material e económico como a nível social e relacional – deixado por seu pai. Desde cedo, os filhos começaram a trabalhar com o pai e, após a sua morte, souberam aproveitar os seus ensinamentos e expandir a actividade bancária de tal maneira que, em 1955, eram já considerados o primeiro banco português (Magalhães 1996: 199) e são, hoje em dia, considerados por vários autores como a única dinastia de banqueiros portugueses (Resener 1991). José Maria Espírito Santo e Silva não transmitiu aos filhos apenas uma fortuna considerável e um bom negócio. O seu maior trunfo foi ter conseguido transmitir-lhes a ideia de que lhes estava a deixar algo que era importante continuar, preservar e, se possível, expandir: tarefas que os filhos cumpriram com o êxito que actualmente conhecemos6.
17Em redor da figura do fundador das grandes empresas familiares portuguesas os familiares contam episódios, factos e histórias que se repetem com orgulho, de pais para filhos, de avós para netos, alimentando a memória familiar das gerações, consolidando a união entre os descendentes. Encontrei exemplos da importância simbólica do fundador em todas as famílias que estudei.
O Avô José é o fundador, é o ponto de identificação da família. Todos lhe chamamos avô apesar das gerações que nos separam dele. A clara apetência pelos negócios que existe na família foi herdada dele. É por isso que todos sentimos esta profunda ligação a ele, como sendo a nossa origem (Gonçalo).
O Banco era do meu avô e por isso eu tenho imenso orgulho de estar aqui e participar neste projecto (Mariana).
Se não fosse a coragem dos avós e dinamismo dos D’Orey velhos que mantiveram unidas várias gerações da família na Orey Antunes, isto nunca aconteceria, nunca teríamos esta festa tão bonita que reúne toda a família (Marília).
O avô era um homem de vontade de ferro. Quando, com oitenta e dois anos, lhe cortaram a perna, reagiu logo no dia seguinte, pedindo que lhe levassem a correspondência do escritório. Dois anos depois, quando a KLM ofereceu um voo inaugural da carreira Amsterdão-Lisboa, apesar da idade e de andar de muletas, não quis deixar de experimentar a nova era dos transportes que então começava, na Companhia que a sua empresa representava em Portugal (Lúcia).
Eu acompanhei o meu pai toda a sua vida. Mais ou menos da mesma maneira que ele acompanhou o pai dele. E assim vamos aprendendo os meandros dos negócios, de pais para filhos, na prática, que é onde aprendemos as melhores lições (Paulo Jorge).
Grupo numeroso [a família Pinto Basto] (...) apresenta uma colecção bem recheada de talentos individuais unidos por uma coesão fora do comum. Daqui resulta a formação de um corpo social com forte consciência da sua individualidade, quase com consciência de formar uma classe à parte, praticando o «culto do fundador», obedecendo a uma chefia bem definida (Bobone 1998: 21).
18Através destas lendas que «correm» na família, o antepassado empreendedor e dinâmico é transformado num herói fundador da grande família.
19Apresentemos uma outra das famílias estudadas. A família Pinto Basto é um caso particular entre as grandes famílias com que trabalhei. E de todas a maior – são mais de dois mil os Pinto Bastos identificados no livro da família (cf. Bobone 1998 e mapa genealógico n.° 7) –, e a mais antiga – quando se referem ao avô Pinto Basto, referem-se a José Ferreira Pinto um dinâmico empresário, nascido em 1774. Esta grande família é um excelente exemplo do êxito de uma boa transmissão da ideia de um projecto económico conduzido pela família ao longo de dez gerações.
20O dinamismo empresarial dos descendentes do fundador é evidente. José Ferreira Pinto foi contador geral dos Tabacos e das Reais Saboarias do Reino, Ilhas Adjacentes e Macau, construiu um cais no Tejo para os seus navios, foi um dos fundadores daquilo que viria a ser a Associação Comercial de Lisboa, foi provedor da Casa Pia de Lisboa, fundou uma fábrica de moagem em Aveiro e a Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, que se encontra hoje nas mãos da sétima geração de membros da família Pinto Basto, numa situação de longevidade única no país. Na geração seguinte, os seus filhos iniciaram-se no sector da navegação criando a Casa E. Pinto Basto que, tal como a Vista Alegre, ainda hoje se mantém nas mãos da família. A família Pinto Basto foi, também, aquela que, de uma forma mais evidente e continuada, teve uma participação activa na política do país, atravessando vários regimes políticos, marcando com a sua presença a cena política, tanto a nível local como nacional, ao longo de dois séculos. Efectivamente, durante um longo período, que vai de meados do século xix até cerca de 1965, a família tinha uma grande representação política a nível de Câmaras e no Parlamento e, durante a monarquia, diversos Cavaleiros da Casa Real.
21Nas duas principais empresas da família – Fábrica de Porcelanas da Vista Alegre e Casa E. Pinto Basto – ocorreram nos últimos dez anos grandes alterações no panorama accionista e de gestão que visaram modernizar as empresas e retirar-lhes o peso excessivo que, no entender de alguns membros, a família continuava a ter nos seus órgãos de gestão. Apesar disso, os corpos de gestão das empresas continuam a ser ocupados por membros da família que são ainda, no seu conjunto, accionistas maioritários. Para além das empresas, os membros da família possuem em comum um vasto património imobiliário.
22Os dois exemplos apresentados demonstram claramente que o critério da dimensão não é útil para definir a longevidade e competência das empresas familiares. O que as define enquanto empresas familiares é o facto de estarem vinculadas a uma família, é o tipo de distribuição da sua propriedade e o facto de a ocupação dos seus cargos de gestão ser garantida por descendentes do fundador. O que as define em termos de mercado é a sua competitividade e o sucesso da sua performance empresarial.
2. ESTUDOS SOBRE EMPRESAS FAMILIARES NAS CIÊNCIAS SOCIAIS
23As pequenas empresas familiares têm sido um tema muito frequente de investigação em sociologia, em economia e em história. Existe sobre ele uma vasta bibliografia que, no entanto, se circunscreve fundamentalmente ao papel por elas desempenhado no processo de industrialização dos países ocidentais7. A maior parte destes trabalhos é elaborada, sobretudo, a partir de duas perspectivas: a) enaltecer o carácter empreendedor, dinâmico e exemplar dos fundadores ou de algum dos seus sucessores8; b) fornecer ferramentas que sirvam de «manual de sobrevivência» a essas empresas e a essas famílias, por parte de empresas de consultoria especializadas nesta área9.
24Mas, porquê dedicar um tão elevado número de publicações a este tema, se este tipo de empresas é normalmente remetido pelos analistas para uma segunda ordem de importância no âmbito da economia actual? Será que o facto de serem de propriedade familiar faz com que estas empresas sejam diferentes das outras? Porquê, então, presumir que a gestão familiar promove, necessariamente, fragilidades na continuidade e no crescimento da empresa, que poderia ser evitada por uma gestão profissional? Será que a sobreposição de relações de natureza distinta mina, de facto, as relações familiares e constitui, simultaneamente, um impedimento real ao desenvolvimento económico das empresas? Se tal fosse verdade, como explicar a enorme proliferação e o evidente sucesso de empresas familiares em todo o mundo10? Não será que estamos, simplesmente, perante a necessidade de explicar a contradição encerrada num modelo cultural que afirma a separação e a incompatibilidade entre empresa e família? Entre racionalidade económica e solidariedade familiar?
25Para debater estas questões tomemos como referência um texto de Jack Goody, do seu livro The East in the West (1996), onde o autor discute o etnocentrismo subjacente à ideia de que o sistema capitalista se desenvolveu no Ocidente e não no Oriente, devido às diferentes formas de organização familiar e ao peso distinto que as relações de parentesco têm num e noutro contexto. Segundo Goody, foi o facto de o sistema capitalista se ter desenvolvido primeiro no Ocidente, onde predomina a família nuclear, que serviu de base à ideia de que este tipo de sistema económico não se poderia desenvolver em contextos onde o parentesco tivesse um peso excessivo, pois tal implicaria que as empresas familiares fossem a forma predominante de organização empresarial. Neste estimulante texto, Goody demonstra a importância das empresas familiares no desenvolvimento económico da Índia e na sua passagem para um sistema de produção industrial moderno. Com base nesta ideia, o autor critica o argumento que defendia que as empresas familiares e o sistema de castas impediram o desenvolvimento económico do capitalismo na Índia, pois, como podemos constatar em Londres e Nova Iorque – e podemos acrescentar, em Lisboa –, os «indianos» estabelecem com grande sucesso os seus negócios um pouco por todo o mundo ocidental (Goody 1996: 150).
26Com este texto Goody contribui, de forma decisiva, para refutar a ideia que associa empresa familiar a pequenas empresas, a lógicas de organização económica pouco desenvolvidas e, em última análise, a sociedades não ocidentais. Quando analisamos as grandes empresas familiares no âmbito das sociedades capitalistas verificamos, pelo contrário, que as redes familiares são elementos decisivos no centro das suas actividades económicas. As grandes empresas de base familiar que ocupam um lugar de destaque na economia das sociedades ocidentais constituem, paradoxalmente, um exemplo da modernidade organizacional e económica.
27Seguindo um argumento semelhante num estudo sobre grandes grupos económicos na Nicarágua, Marvin Dunn, defende que a fusão da propriedade e do parentesco não pode ser pensada como um mero vestígio de estádios anteriores de capitalismo, na medida em que ela é, pelo contrário, um mecanismo central da continuidade inter-geracional da estrutura de classes das sociedades capitalistas mais avançadas (Dunn 1980: 18).
28Mesmo nos casos, pouco frequentes, em que os especialistas da gestão e da economia não relacionam a capacidade de êxito da empresa familiar com a sua dimensão, tendem a considerar que a longevidade dos negócios familiares é curta:
Misturar família e negócios sempre foi algo precário. A maior parte das empresas familiares neste país caem mais depressa que o índice Dow Jones em segundas-feiras negras. Elas têm uma esperança de vida de menos de vinte e cinco anos. Apenas trinta por cento sobrevivem à segunda geração. De entre as que o conseguem, apenas metade conseguirá chegar à terceira geração. As quartas, quintas e sextas gerações são praticamente inexistentes nas empresas familiares (Buchholz e Crane 1989: 15).
29De acordo com os dados apresentados por Goody, só vinte e quatro por cento das empresas familiares atingem a segunda geração e só catorze por cento sobrevivem à terceira geração (Goody 1996: 201). Esta curta duração é geralmente justificada pelos economistas pela falta de preparação dos membros da família na área de gestão, que conduziria à adopção de estratégias de gestão baseadas em critérios de afectividade o que, num mundo de competitividade económica, reduz as possibilidades de sobrevivência da empresa. É a partir deste argumento que vários especialistas neste tema, entre os quais Chandler, defendem que o crescimento e eficiência dos negócios familiares só poderá acontecer nas situações em que a gestão for atribuída a técnicos especializados que substituem o controlo familiar (cf. Chandler 1977). A curta duração e o insucesso das empresas familiares resultaria, de acordo com estes autores, do facto de se aliarem dois domínios que deveriam permanecer separados: família e negócios. Aliás, é por esta razão que as empresas familiares são apresentadas como um primeiro estádio da evolução organizacional, veiculando a ideia de formas empresariais pouco evoluídas e que, mais cedo ou mais tarde, serão substituídas por outras mais complexas e profissionalizadas.
30Porém este argumento não se aplica da mesma forma a todos os momentos históricos do desenvolvimento do sistema capitalista. Como referem Giddens e Stanworth, durante as primeiras fases do desenvolvimento capitalista a concentração de propriedade e administração de empresas nas mãos de uma família é considerada adequada. Todavia, à medida que a economia capitalista se desenvolve, a separação entre empresa e família torna-se necessária (cf. Giddens e Stanworth 1974)11. Quando as empresas crescem e entram em estádios mais complexos de desenvolvimento, é necessário reorganizar a administração em moldes mais profissionais e menos pessoais pois a concentração da propriedade e da administração nas mãos de uma família torna-se um obstáculo ao desenvolvimento (cf. Gersick et al 1997).
31Ao contrário das teorias da gestão empresarial dominantes que consideram os interesses da família incompatíveis com valores do trabalho, como a eficiência e a racionalidade, alguns estudos de caso demonstraram que a mobilização de recursos humanos e ideológicos da família poderá trazer vantagens para as empresas. Como afirma Maria das Dores Guerreiro, a propósito das Pequenas e Médias Empresas (PME’s) portuguesas:
Aspectos das relações constituídas na esfera da família, tais como sentimentos de confiança e lealdade, interesses e projectos de vida partilhados, estatutos de autoridade associados ao parentesco, são mobilizados para gerir as questões relativas à propriedade e direcção das empresas (Guerreiro 1994: 53).
32Como demonstram estes trabalhos, as empresas familiares têm a vantagem de dar aos membros da família um emprego e estes poderem, assim, construir uma carreira rapidamente, trabalhando em algo que também lhes pertence. Neste tipo de empresas as pessoas podem dedicar-se ao mesmo tempo à sua carreira e à sua família, investindo na continuidade do seu nome e na melhoria da sua situação económica.
33Um caso exemplar do êxito da articulação entre empresas e famílias é o das empresas japonesas, onde a analogia entre empresa familiar e família – no sentido de grupo de descendentes – e, simultaneamente, a analogia entre família e empresa dá origem a empresas familiares com grande continuidade temporal e grande êxito económico (cf. Fruin 1980 e Hamabata 1990). O trabalho recente de Roger Goodman mostra como a metáfora organizativa da família nas empresas japonesas está a ser levada até às últimas consequências por algumas empresas que se estão a organizar como se fossem famílias (cf. Goodman 1999). Vários outros trabalhos de investigação, realizados noutros contextos sociais e geográficos, têm também mostrado como a articulação entre família e empresa não só é benéfica como chega até a ser um factor essencial para o seu sucesso12.
34Do grupo de sete famílias empresariais que analisei, todas elas existindo há mais de três gerações familiares, apenas uma, a família Mendes Godinho, não consegue manter actualmente o seu sucesso empresarial. Mesmo assim, o seu último presidente representa a quarta geração da família do fundador e vários representantes da quinta geração trabalham em empresas do Grupo.
35A Sociedade Mendes Godinho & Filhos foi fundada em 1917, por um dinâmico agricultor e comerciante da cidade de Tomar. Em 1930 a sociedade tinha alcançado uma importância local considerável e, por volta dos anos sessenta, tinha lançado em Portugal empresas industriais que se tornaram líderes do mercado nacional e internacional nos seus respectivos ramos de actividade: cerâmicas vermelhas, transformação de oleaginosas e aglomerados de madeira. O conselho de administração da sociedade familiar sempre foi constituído exclusivamente por membros da família. Quando morreu o fundador, a presidência foi assumida pelo seu filho mais velho. Como resultado da repentina morte deste, foi o seu filho mais velho que assumiu o comando do grupo de empresas. Mais tarde, um sobrinho assumiu a liderança do Grupo e depois, um outro sobrinho, ocupou esse cargo (ver quadro 1).
36No culminar de uma série de problemas financeiros que se tinham vindo a arrastar desde 1975 (altura em que a casa bancária da família foi integrada no banco que representava o Banco Espírito Santo & Comercial de Lisboa BESCL)13 a principal empresa do grupo (a Tagol) foi tomada pelo Banco Português do Atlântico (BPA) que era, na altura, o seu maior credor. O desmembramento deste grupo familiar tem sido atribuído pelos especialistas a um excesso de espírito de família que obrigava a que apenas membros da família podiam assumir lugares de direcção nos negócios familiares. Este ideal estava tão fortemente enraizado que não foi abandonado nem nos momentos em que conduzia, claramente, à ruptura da empresa e das relações familiares.
37A propósito da importância simbólica da preservação deste ideal vale a pena lembrar que ao longo da história europeia, a empresa e a família são instituições sociais imbricadas. Ao nível do desenvolvimento dos grandes negócios na Europa medieval, eram precisamente os grandes grupos económicos familiares, como os Mediccis ou os Fugger, que dominavam. De facto, os mais destacados exemplos históricos no sector da banca estiveram desde sempre ligados a famílias, como as já referidas famílias italianas, mas também os Warbourg, os Rothschild ou os Rockfeller. Quanto ao caso português, verificase que, no final do século passado, a maior parte das empresas era de base familiar, sendo as sociedades anónimas de capital disperso ainda praticamente inexistentes (Castro 1971: 5 1). O ideal de separação entre família e empresa só se produziu recentemente e nem sempre se verifica na prática. Afirmar que família e empresa são entidades separadas é, portanto, considerar uma realidade que apenas caracteriza o presente da sociedade ocidental industrializada, cuja ideologia hegemónica as define como instituições separadas e onde actualmente o são, na maior parte dos casos. Fazê-lo significa esquecer um passado, não muito longínquo, onde a empresa era a família.
38O êxito das grandes empresas familiares actuais representa, consequentemente, um desafio permanente à ideia de insucesso, precariedade e falta de profissionalismo que a racionalidade capitalista, hegemónica no mundo ocidental, associa às empresas familiares. Foi, portanto, com surpresa que verifiquei a existência de tão poucos trabalhos publicados sobre esta questão.
39Na verdade, as análises dos grandes grupos económicos de base familiar têm estado arredadas das ciências sociais. As poucas que existem são orientadas para uma análise organizacional que procura explicar o funcionamento e a história da instituição, publicados muitas vezes a pedido das próprias empresas com propósitos comemorativos. Os economistas tendem a analisar a empresa como uma unidade de produção que compete no mercado, pelo que a eficácia dos seus desempenhos é o objectivo central dos seus estudos. Pelo seu lado, os sociólogos têm analisado as empresas enquanto organizações, retomando, de maneira geral, as categorias analíticas definidas pelos economistas. Michel Bauer foi um dos primeiros sociólogos a identificar o centro da questão ao afirmar que o problema das análises produzidas, tanto por sociólogos como por economistas, resulta do facto de ignorarem que os gestores proprietários de empresas são também pais de família, pelo que as suas preocupações empresariais são muito influenciadas pelas suas preocupações patrimoniais (Bauer 1991: 23-5). Em Portugal é de destacar o trabalho da socióloga Maria das Dores Guerreiro (1996) sobre empresas familiares, em que a autora se debruça sobre a relação entre família e empresa, no âmbito das Pequenas e Médias Empresas (PME) demonstrando as vantagens económicas desta associação.
40No que diz respeito ao contexto específico da produção antropológica, a análise das grandes empresas familiares é um tema praticamente inexistente. Podemos destacar o trabalho de George Marcus nos Estados Unidos da América (1988e 1992),o de Sylvia Yanagisako em Itália (1991) e o de Adriana Piscitelli no Brasil (1999).
41Sobre grandes empresas familiares em Portugal não existe nenhum trabalho, nem do ponto de vista económico nem do ponto de vista sociológico. Existem alguns trabalhos sobre os sete grandes grupos económicos de base familiar que dominaram o panorama da economia portuguesa antes do 25 de Abril de 1974, entre os quais se devem destacar os de Maria Belmira Martins (1973), Américo Ramos dos Santos (1977) e Miguel Pintado e Alvaro Mendonça (1989). No entanto, estes trabalhos visaram, sobretudo, identificar as diversas empresas que constituíam cada um dos grupos e as suas ligações a cada uma das famílias que os detinham. Nunca foi realizada uma análise detalhada sobre a importância da relação entre empresa e família que, no meu entender, está no centro do sucesso desses grandes grupos, no âmbito da pequena dimensão da economia portuguesa. É, aliás, estranho que os investigadores do desenvolvimento económico e político tenham negligenciado o estudo deste universo, pois a grande importância que estes grupos tiveram no controlo de sectores-chave da actividade económica a nível nacional dominaram, pelo menos durante cinquenta anos, a economia e o desenvolvimento do país. É, portanto, óbvia a importância da sua análise para uma melhor compreensão do nosso passado recente.
42Ao longo da sua longa existência, os membros das famílias que constituem o meu universo de análise cruzaram-se várias vezes no desempenho das suas actividades. Já referi a relação entre o Grupo Espírito Santo e Fábricas Mendes Godinho. Nessa mesma altura o Grupo Espírito Santo mantinha também relações com a empresa Orey Antunes. Em 1906, José Maria Espírito Santo era sócio dos irmãos D’Orey na Companhia Colonial do Buzi – uma empresa açucareira de Moçambique.
43A Orey Antunes, fundada em 1886 por Ruy e Waldemar Orey, é uma empresa que actua nos sectores de transportes marítimos e armazenistas de ferro, carros e máquinas. Em 1900, a empresa fundiu-se com a Casa José Antunes dos Santos dando origem à Orey Antunes & Ca, de que todos os irmãos Albuquerque D’Orey eram sócios. A partir de 1920, começaram a representar automóveis-Pacard, Nash e Peugeot e, em 1939, tornaram-se agentes da KLM em Portugal. Nos anos trinta, compraram uma companhia marítima de transportes e pescas – a Empresa de Pescas de Viana – e, no final da II Guerra Mundial, construíram os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Nos anos sessenta, tentaram a sua sorte na construção turística no Algarve – Hotel da Balaia, em parceria com o Konin Klipke Rotterdamshe Lloyd – , fundaram um serviço particular de contentores tendo como sócio o BPA e depois a Kilom, uma empresa de agro-pecuária. Nalguns negócios tinham como sócios a Sonasim e Manuel Bulhosa. Nas décadas seguintes alargaram as suas actividades aos sectores do turismo, viagens e mediação de seguros. Actualmente, o Grupo Orey Antunes é constituído por várias empresas de diversos sectores de actividades, nas quais se encontra sempre alguém da família em cargos de gestão14.
44Um outro grupo económico de base familiar com que trabalhei pode também ser apresentado a propósito das suas ligações com o Grupo Espírito Santo: o Grupo Semapa, da família Queiroz Pereira, virado fundamentalmente para as áreas dos cimentos, automóveis e imobiliária. A colaboração entre as duas famílias é muito forte desde, pelo menos, os anos quarenta. O avô do actual presidente do grupo era um importante accionista e administrador da Companhia das Aguas de Lisboa. Desde cedo foi desmultiplicando as suas participações em empresas e estava ligado à banca através do Banco Comercial de Lisboa. Foi o filho, Manuel Queiroz Pereira quem, em conjunto com Ricardo Espírito Santo, concretizou a fusão com o Banco Espírito Santo, dando origem ao Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL), em 1937. Têm participações na Sorel, na Licar, no Hotel Ritz e em diversas empresas na área da indústria cimenteira – Secil, a Cimianto e a Cimenteira de Maceira e Pataias e a Compta – nalgumas das quais detêm o controlo.
45Os casos apresentados mostram claramente exemplos do sucesso de empresas familiares, pelo que se torna surpreendente o facto de haver tão poucos estudos sobre estas organizações em Portugal, onde a sua incidência e impacto a nível da economia nacional é tão forte.
3. GRANDES GRUPOS ECONÓMICOS DE BASE FAMILIAR EM PORTUGAL: UMA PERSPECTIVA HISTÓRICA
46A presença de grandes empresas familiares tem sido um elemento marcante na economia portuguesa deste século. A política económica do Estado Novo privilegiou a concentração do investimento, favorecendo, dessa forma, a criação e o desenvolvimento de grandes grupos económicos, a que muitos autores chamaram «núcleo monopolista» da economia portuguesa (cf. Santos 1977 e Pintado e Mendonça 1989). O período Marcelista – de 1968 a 1974 – representou o culminar desta situação, tendo-se então desenvolvido consideravelmente o poder e a influência dos sete grupos económicos que dominavam a economia nacional. Curiosamente, todos estes grandes grupos económicos tinham uma ampla base familiar. Eram eles: o grupo CUF, o Grupo Espírito Santo, o Grupo Champalimaud, o Banco Português do Atlântico, o Banco Borges e Irmão, o Banco Nacional Ultramarino e o Banco Fonsecas e Burnay (cf. Martins 1973, Santos 1977, Pintado e Mendonça 1989). Para além do seu imenso poder económico, as famílias que dominavam estes grupos15 gozavam de um enorme prestígio social e de uma intervenção significativa, ainda que indirecta, na política portuguesa.
47Estes poderosos grupos económicos de base familiar começaram a sua implantação em Portugal no final do século passado e projectaram-se durante a Primeira República. No entanto, o insucesso da Primeira República na reconstrução material, política e social do país fez com que durante este período a situação económica se degradasse progressivamente, tanto mais que os efeitos da Primeira Grande Guerra foram desastrosos para a economia portuguesa. Na altura do golpe militar de 1926, o problema mais grave do país era económico e não político. Portugal era, então, um país maioritariamente agrícola, onde o desenvolvimento industrial era incipiente e atrasado, o sistema de comunicações deficiente e a iliteracia predominava entre a população. Para piorar a situação, os sectores mais desenvolvidos – entre os quais se encontrava a extracção mineira, os transportes, os telefones e a electricidade – estavam nas mãos de capital estrangeiro (cf. Robinson 1976: 35-43).
48Quando Salazar ocupou pela primeira vez a pasta das Finanças em 1926, tinha como objectivo principal equilibrar as finanças e estabilizar a economia. Por razões de natureza ideológica Salazar optou por travar e controlar o desenvolvimento da industrialização, retardando, consequentemente, o crescimento dos grupos económicos dominantes na cena nacional, sobretudo até ao final da Segunda Guerra Mundial (cf. Santos 1977: 80).Teoricamente, o seu projecto de recuperação económica assentava na criação de infra-estruturas que permitissem promover o desenvolvimento do país a longo prazo, através dos diversos Planos de Fomento16 elaborados para cumprir esse objectivo.
49O primeiro Plano de Fomento, aprovado em 1953, investia fundamentalmente na dotação do país de infra-estruturas, entre as quais se destacaram os caminhos-de-ferro, estradas, portos, aeroportos, telefones, hidroeléctricas e escolas. Estes investimentos foram o principal factor de aceleração do crescimento industrial a que assistimos em Portugal a partir de finais dos anos cinquenta. Com a entrada de Portugal na EFTA17, em 1959, a economia portuguesa abre-se, ainda que só relativamente, aos mercados internacionais, introduzindo um importante elemento de dinamização interna. O segundo Plano de Fomento, iniciado em 1959, visava o desenvolvimento das citadas infra-estruturas e o aumento da produção e do consumo, de forma a contribuir para uma melhoria das condições de vida da população portuguesa. Estes objectivos foram continuados tanto no Plano Intercalar (1964-67) – que procurava também estimular as relações económicas e os investimentos nas ex-colónias – como ainda no terceiro Plano de Fomento, iniciado em 1968, que pretendia corrigir progressivamente os desvios regionais18.
50Porém, estes planos de desenvolvimento da economia nacional e as preocupações em dotar o país de infra-estruturas foram sempre implementados com parcimónia e sem grande vigor, atitude para a qual contribuiu decisivamente a política do condicionamento industrial19. De acordo com o actual presidente do conselho de administração de uma das empresas estudadas.
O condicionamento industrial talvez tenha tido razão de existir à época. Mas, depois, foi completamente distorcido. Constituía uma arma nas mãos de alguns grupos para transformarem o país numa quinta, entravando o desenvolvimento. Nós fomos muito afectados. Estivemos anos e anos a lutar para obter a licença de hidrogenação, um processo necessário para alterar o ponto de fusão, de forma a tornar as margarinas mais duras. Até 1960, a Fima não conseguiu essa autorização, fundamentalmente devido à oposição da CUF. No princípio da década de 1960, essa autorização foi, por fim, dada. Mas sempre que queríamos aumentar a capacidade da refinaria também não nos davam licença. Só já muito para o fim dos anos sessenta é que as coisas melhoraram (Soares dos Santos in Mónica 1990).
51Estas observações mostram bem os entraves colocados pela política de desenvolvimento económico de Salazar à livre iniciativa na criação, expansão ou modernização da indústria e das actividades económicas em geral. Esta orientação do regime, apoiada nos ideais corporativistas, familistas e tradicionalistas, bem expressos na ideologia subjacente ao condicionalismo industrial impediram, não apenas o desenvolvimento económico do país, como a própria criação das infra-estruturas de base que os Planos de Fomento pareciam defender, contribuindo para a consolidação de um enorme atraso de Portugal em relação a todos os outros países do mundo industrializado.
52O grande desenvolvimento que um reduzido grupo de empresas portuguesas teve durante o Estado Novo deveu-se, em grande medida, ao regime do condicionamento industrial que conduziu a que, na prática, só os grandes grupos obtivessem autorização para novos projectos e dispusessem de capital para os realizar. Como consequência, assiste-se a partir dos anos cinquenta em Portugal a uma situação muito particular. Como resultado de necessidades de auto-financiamento, os grupos preferencialmente industriais viraram-se para as áreas financeiras e seguradoras. Tal se passou, por exemplo, com o grupo CUF. Por seu turno, os grandes grupos financeiros, como o Grupo Espírito Santo (GES), expandiram os seus investimentos para a área industrial.
53O Grupo Espírito Santo foi, até 1974, o segundo maior grupo económico português sendo, no entanto, aquele que tinha uma maior projecção internacional, com excelentes contactos com poderosos grupos internacionais. José Maria Espírito Santo e Silva que, no final do século passado, fundou a casa bancária que viria a dar origem ao primeiro banco da família – o Banco Espírito Santo – começou a sua vida em Lisboa como um modesto mas dinâmico revendedor de lotaria espanhola tendo, mais tarde, conseguido grandes rendimentos com a compra e venda de terrenos e prédios em Lisboa. Fez uma fortuna considerável em apenas duas décadas, tendo também adquirido importantes relações sociais e ganho uma notável consideração pública. Teve cinco filhos, três rapazes e duas raparigas e, através das suas bem sucedidas actividades económicas, pai e filhos construíram uma rede internacional de relações profissionais e pessoais. O grupo tinha uma raiz eminentemente financeira: detinha um dos mais importantes bancos portugueses que, a partir de meados dos anos quarenta, após a sua fusão com o Banco Comercial de Lisboa, em 1937, passa a denominar-se BESCL (Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa) e se torna o maior dos grandes bancos portugueses (Pintado e Mendonça 1989: 18) e representava o Chase Manhattan Bank. Juntamente com o First National City Bank (também norte-americano) tinham constituído o Banco Interunido de Angola. O grupo dominava também a Companhia de Seguros Tranquilidade que era a segunda mais importante do país, e a Tranquilidade Moçambique. A partir dos anos trinta, as colónias portuguesas tornam-se um importante mercado para as actividades do Grupo Espírito Santo, sendo nesse contexto que o grupo diversifica a sua área de actuação económica para o sector agrícola20, industrial21 e imobiliário22. Antes de Abril de 1974, eram mais de sessenta as grandes empresas portuguesas que eram participadas pelo Grupo Espírito Santo ou que com ele mantinham relações directas (cf. Martins 1973: 27-31, 135-177 e Pintado e Mendonça 1989: 18-20, 63-69).
54A nacionalização dos bancos e companhias de seguros que ocorreu em 1975 forçou muitos membros da família a partir para o Brasil, Inglaterra e Suíça, deixando para trás os seus antigos impérios económicos nas mãos do Estado. No estrangeiro, construíram um novo grupo económico que rapidamente se desenvolveu, baseado de novo na conjugação de áreas financeiras (bancos, sociedades de investimento e companhias de seguros no Luxemburgo, Brasil, EUA, Bahamas e França) e não financeiras (empresas imobiliárias e hoteleiras nos EUA e Brasil, unidades agrícolas no Brasil e Paraguai). Apesar de este novo projecto económico da família Espírito Santo se ter desenvolvido em conjunto com sócios estrangeiros, a família manteve sempre o controlo accionista. A rede de relações sociais dos elementos desta família e a sua elevada reputação no mundo da finança internacional foram elementos centrais para a sua nova entrada no mundo dos negócios, na medida em que dependeu de um crédito financeiro considerável e da angariação de sócios poderosos. Em meados dos anos oitenta os membros desta família, iniciaram um lento regresso a Portugal. Quando começaram os processos de privatização, compraram as suas antigas empresas ao Estado. Em meados dos anos noventa, o Grupo Espírito Santo tinha já reconquistado a sua antiga posição de destaque na vida económica portuguesa. Actualmente, a sua influente actividade nacional e internacional é, de novo, extremamente diversificada: seis bancos (dois em Portugal, um no Luxemburgo, um no Brasil, um nas Bahamas e um na Florida), duas grandes companhias de seguros (em Portugal e no Brasil), participações em empresas industriais, em telecomunicações, na televisão, no ramo imobiliário, na hotelaria, na agricultura e na criação de gado.
55O enorme crescimento e expansão das actividades do GES a partir dos anos cinquenta não é, apesar do carácter excepcional da sua dimensão, um exemplo único de desenvolvimento de um grande grupo económico, a coberto do regime proteccionista então vigente em Portugal.
56O caso de outra empresa familiar que analisei – a Somague, pertencente à família Vaz Guedes – é também um bom exemplo. A empresa que está na origem do grupo Somague, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia, Duarte &Vaz Guedes, foi criada em 1947 por dois engenheiros civis, Ernesto Moniz da Maia e José Vaz Guedes, para poderem participar no concurso público, que ganham, para a construção da barragem de Castelo de Bode, no rio Zêzere. Mais tarde foi-lhes adjudicada a construção da auto-estrada Lisboa-Caxias. Segundo contam os seus descendentes, o que deu ânimo a José Vaz Guedes para avançar na constituição de uma sociedade própria, aos trinta e nove anos, foi a autonomia financeira que adquiriu com estas duas grandes obras, e os generosos apoios pessoais e financeiros que daí resultaram.
57A pouco e pouco, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia &Vaz Guedes, Lda adquire uma posição destacada na construção de barragens em Portugal: Ceira, Arade e Cabril, Pocinho no Douro e a barragem do Limpopo, em Moçambique. Desde então, a empresa não parou de crescer, tendo-se tornado um marco fundamental no sector das obras públicas em Portugal – construiu a doca seca da Lisnave e da Setenave, fez as obras do Porto de Aveiro e o terminal de carvão do Porto de Sines. Paralelamente, foi constituída outra empresa – a Mague – com o objectivo de aproveitar o equipamento existente: transformaram o seu estaleiro de reparações numa metalomecânica pesada que fabricava turbinas hidráulicas, turbo-grupos para centrais térmicas e aparelhos de elevação e movimentação, em colaboração com a empresa suíça Brown Boweri. Em poucos anos, a Mague impôs-se como uma das maiores empresas de metalomecânica portuguesas, tendo como única concorrente a empresa estatal Sorefame.
58A política de dinamização económica conduzida a partir de meados da década de cinquenta teve repercussões claras na economia do país, demonstradas pelo valor anual médio de crescimento do sector industrial entre 1953 e 1970 que foi de oito por cento. Este valor deve, no entanto, ser relativizado devido ao baixíssimo índice deste crescimento verificado até à década de cinquenta (cf. Santos 1977 e 1998). Os incentivos promovidos pelo Estado foram aproveitados fundamentalmente pelos grupos económicos já estabelecidos, não promovendo a criação de novos grupos que dinamizassem a economia nacional. Pelo contrário, dando, assim origem a uma situação de monopólio em que os já referidos sete grandes grupos económicos controlavam todos os sectores básicos da economia portuguesa, quer a nível da esfera produtiva, quer ao nível dos sectores da banca, seguros e transportes (cf. Robinson 1979, Martins 1973, Santos 1996 e Lopes 1996).
59Maria Belmira Martins caracteriza a economia portuguesa desse período como tendo «um baixo grau de desenvolvimento e um elevado grau de concentração» (Martins 1973: 1 1). Segundo esta autora, tal situação decorria fundamentalmente do facto de «as transformações estruturais em Portugal não resultarem apenas do desenvolvimento das forças produtivas, mas serem provocadas pela intervenção estatal» (Martins 1973: 12), permitida pela situação política do nosso país. Na sua opinião, foi a política seguida por Salazar – condicionalismo industrial, benefícios e incentivos fiscais, leis do Fomento Industrial com uma política selectiva de crédito e apoios aos empreendimentos considerados chaves-que acelerou o processo de concentração e permitiu que um pequeno número de grupos adquirisse uma enorme dimensão.
60Dando uma ideia muito clara da dimensão da concentração no panorama económico português, Américo Ramos dos Santos refere que «em 1973, das quatrocentas e onze empresas que vendiam mais de trinta mil contos por ano, cerca de trezentas são dominadas pelos sete grandes grupos nacionais» (Santos 1977: 78).
A partir de 1960 há uma centralização e concentração crescentes excepcionalmente intensas nos últimos oito anos do regime. Será neste período que os grandes grupos económicos irão evidenciar uma dimensão verdadeiramente anormal para um país tão pequeno. (...) Em 1973, 2,4% das sociedades detém 75,4% do capital social total da economia portuguesa. É a partir de 1959 e sobretudo a partir de 1968 que o desenvolvimento monopolista vai eliminando a pequena empresa (Santos 1977: 80)
61Todavia, após a conjuntura favorável que se viveu durante os anos sessenta, no final da década a economia portuguesa entrou em dificuldades, no momento em que Marcelo Caetano substituía Oliveira Salazar na chefia do governo, em 1968, na linha da grande crise da economia internacional. A aceleração da inflação, o agravamento do défice comercial, a dispendiosa guerra colonial e o crescimento muito rápido da emigração marcaram a fase final do Estado Novo (1969-1973).
62A partir da década de cinquenta, e apesar de manter um enorme atraso em relação ao resto da Europa, Portugal passou de país agrícola a um país relativamente industrializado, tendo aumentado grandemente a importância de um pequeno número de industriais capitalistas. No entanto, e como lembra Hermínio Martins, não se devem exagerar as mudanças na composição e no aspecto das classes altas e na elite governante portuguesas. Segundo este sociólogo, num país pequeno como Portugal a elite governante e a classe alta23 eram facilmente identificáveis e estavam, frequentemente, interligadas por casamentos sobrepostos. Para além disso, partilhavam uma educação comum, os seus valores e estilos de vida eram convergentes e «tendiam mais para um consumo aristocrático do que para uma racionalidade burguesa» (Martins 1998: 105).
63Este panorama foi radicalmente alterado com a revolução democrática de Abril de 1974. A nova orientação da política económica, claramente visível no processo das nacionalizações, promoveu uma ruptura total no processo de crescimento e desenvolvimento dos grandes grupos económicos então existentes em Portugal. A 14 de Março de 1975, como reacção ao golpe militar frustrado do dia 11 desse mês, foram nacionalizados os sectores financeiros (bancos e companhias de seguros nacionais) e industriais mais importantes (cimentos, siderurgia, adubos, petróleos, tabacos, cervejas, construção e reparação naval), bem como outros sectores de interesse público, como a electricidade, gás, água, transportes colectivos. Os processos de nacionalização de empresas privadas tiraram às famílias que constituíam o denominado «núcleo monopolista» do Estado Novo o controlo sobre os seus negócios e sobre os destinos económicos do país, ao mesmo tempo que fizeram desaparecer as condições privilegiadas em que viviam antes da revolução.
64Ironicamente, foram aqueles que tentaram instituir uma democracia e iniciar um processo articulado de desenvolvimento económico que receberam a pesada herança de um regime totalitário que tinha retardado o desenvolvimento industrial, onde a agricultura estava demasiado atrasada e era insuficiente e o sector terciário muito incipiente. Depois de quarenta e oito anos de um crescimento e desenvolvimento económico limitado, os primeiros dez anos de regime democrático foram caracterizados por oscilações político-económicas que não contribuíram para o desenvolvimento industrial e económico do país. Um dos principais elementos de limitação da transição aberta pelo 25 de Abril resulta, precisamente, do fosso existente entre as urgentes necessidades de transformação da sociedade portuguesa e as capacidades internas disponíveis para o fazer. Segundo Augusto Mateus tal é particularmente identificável
no terreno das realidades económicas: dez anos depois, o desenvolvimento económico português continua à espera de uma estratégia e de uma realidade prática capazes de responder quer aos anseios internos quer aos desafios colocados pelas mutações que atravessam a própria economia mundial (Mateus 1985: 285).
65Apesar de a transição política imposta pelo 25 de Abril ter promovido importantes transformações institucionais, o facto de, em 1974, a economia portuguesa se encontrar numa situação incipiente e precária, levou a que o processo de desenvolvimento e modernização económica do país fosse muito lento. Como lembra Augusto Mateus, no artigo citado anteriormente, não devemos esquecer que as transformações económicas estruturais não podem ser induzidas apenas por mudanças institucionais, é necessária uma alteração de comportamentos, e estes resultam de processos muito lentos.
66A partir da segunda metade dos anos oitenta, com os três governos sucessivos do Partido Social Democrata (PSD), a economia portuguesa entrou numa nova fase, com características marcadamente diferentes das dos dez anos anteriores, caracterizados por uma grave crise económica que, apesar de coincidente com a mudança de regime político, não lhe deve ser atribuída em exclusivo.24
67Em 1986, a entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu reforçou os efeitos da tendência para um enquadramento económico mais liberal, mais assente nas forças de mercado e na iniciativa privada, tendo os primeiros apoios dentro do quadro comunitário (iniciados em 1987) e a descida do dólar e do petróleo contribuído largamente para a consolidação da estabilidade social25, política26 e económica27 que se atingiu nesse período. No decorrer destas legislaturas o governo promoveu reformas estruturais nas instituições, regulamentações e mecanismos de funcionamento da economia com vista a reduzir os obstáculos que se opunham à livre actuação das forças de mercado e da iniciativa privada. Um dos aspectos centrais destas reformas foi a privatização de algumas empresas nacionalizadas iniciada em 198728.
68O contexto global de estabilidade que se começa a sentir nos anos oitenta, fortemente marcado pela reconstituição da classe média e do seu nível de vida, transmitiu àqueles que tinham saído do país a ideia de que estavam reunidas as condições necessárias para poderem regressar a Portugal. Mas foi, sobretudo, o início do processo de privatizações e a possibilidade de readquirirem as suas antigas empresas que permitiu às grandes famílias retomar as suas actividades e relações económicas, sociais e políticas no contexto nacional. Desde então, assistimos ao rápido crescimento destas empresas, revelando o grande dinamismo das novas gerações das antigas famílias que dominavam a economia portuguesa antes da revolução democrática e que, desta forma, conseguiram readquirir a importante posição que tinham perdido. Efectivamente, foram principalmente os elementos das gerações mais novas que levaram a cabo este processo de reconstituição dos grupos económicos das suas famílias, recuperando as suas prestigiadas posições no mundo económico português e internacional.
69Actualmente, alguns dos antigos grupos de base familiar que se desenvolveram e cresceram ao longo deste século voltam a ter um peso importante no panorama económico nacional e, embora com características e dimensões diferentes, ocupam de novo um lugar de destaque na sociedade portuguesa29. Simultaneamente, neste período de expansão da economia portuguesa, em grande parte resultante do estímulo à iniciativa privada, começaram a desenvolver-se outros grupos económicos de grande dimensão, de entre os quais podemos destacar a SONAE, o Grupo Amorim e o Grupo BCP.
70A mudança de regime político em 1974 implicou transformações radicais na economia que tiveram impactes distintos nas diversas empresas portuguesas. As diferenças desses impactes devem-se, fundamentalmente, ao facto de umas terem sido nacionalizadas e outras, apesar de na altura terem passado por períodos agitados, terem continuado nas mãos dos seus proprietários.
71Para o conjunto de empresas que estudei, o 25 de Abril teve efeitos e consequências muito diferentes. Por exemplo, as empresas da família Mendes Godinho foram muito afectadas pelo processo de nacionalizações, pois foi-lhes nacionalizada a Casa Bancária que tinham em Tomar. Como já se disse, o facto de esta ter sido posteriormente integrada no BESCL foi fatal para a continuidade da actividade do grupo económico desta família, pois as restantes empresas do grupo eram propriedade da sociedade que detinha a Casa Bancária. Durante um primeiro período a Tagol, sendo uma empresa muito rentável, permitiu a sobrevivência económica da família e do seu grupo económico30. Porém, este período de sucesso não durou muito tempo, pois o grupo não conseguiu recompor-se e reestruturar-se de forma a superar as alterações promovidas no sistema económico português após 1974.
72Por seu lado, as empresas da família Espírito Santo foram, na sua grande maioria, nacionalizadas em 1975. A saída para o estrangeiro obrigou os membros desta família a dar um salto muito grande a nível da organização da gestão e planificação dos seus investimentos, que não se vislumbrava num futuro próximo, caso Portugal tivesse continuado sob um governo que defendesse a ideologia e a política económica do Estado Novo. O espírito nacionalista de Salazar era aplicado também aos mercados de concretização dos negócios, pelo que as empresas portuguesas investiam fundamentalmente em Portugal e nas Províncias Ultramarinas. Os empresários mais ligados ao regime aceitavam as regras do jogo. Num depoimento à revista Exame, Manuel Ricardo Espírito Santo relata a resposta que o seu pai, então presidente do Conselho de Administração do BESCL, lhe dava sempre que ele insistia na ideia de que era oportuno o Grupo e a família fazerem alguns investimentos no estrangeiro:
Portugal e grande demais para que nos possamos dar a esse luxo; não se esqueça de que o País não é apenas um canto da Europa mas também as Províncias de Além-Mar; e os elevados investimentos que lá temos feito, como bons portugueses, não nos permitem encarar outras alternativas além das nacionais (in Manuel Ricardo Espírito Santo 1989: 44).
73No caso do Grupo Espírito Santo, foi o exílio forçado dos seus membros e a necessidade de recomeçar, no estrangeiro, as suas actividades económicas «a partir do zero», como gostam de lembrar, que transformou o que era um grande grupo financeiro de âmbito nacional num grupo internacional de grande envergadura. Neste momento, o grupo que é aparentemente o mesmo de há vinte e cinco anos, nada tem a ver com o Grupo Espírito Santo anterior a 1974. Já não são uma tradicional família de grandes banqueiros portugueses. São, nas palavras de Manuel Ricardo, «uma partnership, um grupo com parceiros internacionais poderosos» – de entre os quais se destacam o Crédit Agricole (francês), o Grupo Agnelli (italiano) e o Chase Manhathan Bank (norte-americano) – com uma estrutura muito complexa de holdings e sub-holdings que são ramificações das duas holdings maiores: a Espírito Santo Financial Holding e a Espírito Santo Resources, dependentes da Espírito Santo International Holding.
74Para as famílias D’Orey, Soares dos Santos, Pinto Basto e Queiroz Pereira, os efeitos do novo sistema económico instalado em Portugal no pós-25 de Abril não se fizeram sentir de uma forma tão dramática nem foram tão afectadas como para as famílias Mendes Godinho e Espírito Santo. No caso da família Pinto Basto as dificuldades que se sentiram depois deste período tiveram a ver, sobretudo, com as grandes mudanças no âmbito dos seus negócios tradicionais. A decadência da popularidade dos navios de passageiros e a sua substituição progressiva pelos aviões afectou o núcleo central da actividade da Casa E. Pinto Basto. Depois de passados os momentos de reivindicação sindical mais activos dos primeiros anos do regime democrático, a participação deste conjunto de famílias nas empresas não foi alterada. Por outro lado, os efeitos da internacionalização da economia portuguesa no período pós-1974, da liberalização do desenvolvimento industrial e, sobretudo, do estímulo dado pela integração de Portugal no Mercado Comum Europeu, foram decisivos para o seu desenvolvimento posterior.
75Desde 1974 a posição, a importância e o destaque das empresas familiares na economia portuguesa sofreu uma grande alteração. Deixando de ser beneficiadas – tanto a nível legal pelo condicionalismo industrial como a nível ideológico pela importância do ideal de família do Estado Novo e a nível político – as grandes empresas familiares portuguesas estão actualmente em situação de igualdade com as empresas que têm uma estrutura accionista diferente. Aquelas que conseguem manter a sua importância no actual panorama empresarial português tiveram de adaptar a estrutura da sua organização, gestão e processos de recrutamento de pessoal às exigências da economia moderna.
4. AS GRANDES FAMÍLIAS DE LISBOA FORMAM UMA COMUNIDADE DE PRÁTICAS
76As famílias com que trabalhei estão na base da formação de poderosos grupos económicos. Podia tratar-se, simplesmente, de um conjunto de famílias cujo único elemento unificador fosse a natureza e a preponderância da sua intervenção económica e social em Portugal.
77Mas, será o facto de partilharem um elevado estatuto social e económico o suficiente para se concluir que constituem uma elite? Será que esta comunidade, que domina economicamente a nossa sociedade e que tanta importância social e política tem a nível nacional, forma uma classe na sociedade portuguesa? Já em 1965, num dos textos mais influentes no âmbito da teoria das elites, Tom Bottomore afirmava que «uma das questões mais problemáticas de todas as doutrinas sobre as elites é a assunção de que os homens com poder constituem um grupo coeso» (Bottomore 1965: 35). Se assim fosse, qualquer grupo de pessoas poderia constituir uma elite.
78Desde as primeiras entrevistas foi-se tornando claro que as pessoas que constituem estas famílias empresariais partilham muito mais do que um lugar no topo da hierarquia das empresas nacionais e que estes grupos familiares apenas aparentemente são independentes. A constatação das múltiplas relações entre estes grupos a nível profissional mas também social verificada nas relações de interconhecimento e sociabilidade que partilham levantou a questão de saber se este conjunto de famílias constituía um grupo social com consciência de si próprio, cujos membros partilhassem valores, representações e práticas. Para além de possuírem um elevado estatuto social, os membros destes grupos familiares partilham um conjunto de interesses, ideais, um modo de vida, atitudes, formas de comportamento, formas de ser, fazer e vestir. As práticas que desempenham em comum remetem para a partilha de algo mais abrangente e significativo que o simples êxito empresarial; partilham um «estilo de vida de grupo», que é, afinal, aquilo a que Abner Cohen denominou «mística da elitilidade».
A «elitilidade» é o conjunto de qualidades de excelência, que só pode ser aprendido informalmente, na «alta sociedade». Esta mística não é só uma fórmula ideológica, é também uma forma de vida, que se manifesta em padrões de comportamento simbólico. A ideologia é objectivada, desenvolvida e mantida por um corpo de símbolos e de performances dramáticas: maneiras, etiqueta, estilo de vestir, acento, padrões de actividades recreativas, regras de casamento e um conjunto de outros traços que fazem o estilo de vida de um grupo. É um culto muito elaborado e que se adquire durante longos períodos em contextos sociais informais como a família, o clube e nas actividades extracurriculares de escolas exclusivas (Cohen 1981: 2-3).
79Para além de partilharem um estilo de vida em comum as pessoas deste grupo social formam uma rede estreita de relações, na qual é difícil um estranho entrar31. Quando no decorrer de uma entrevista acontece referir alguém que não está aparentemente relacionado com a pessoa com quem estou a falar, as respostas são, frequentemente, do tipo: «Conheço lindamente, é filho de uma amiga íntima da mãe», ou «é super meu amigo, andámos juntos na escola», ou «o meu irmão andou com ele no colégio», ou «o pai caçava sempre com ele».
80Os membros destas famílias relacionam-se em situações diversas e sobrepostas: partilham relações de amizade, relações profissionais, andam nos mesmos colégios, têm amigos comuns, frequentam os mesmos clubes, são convidados para as mesmas festas, têm casas próximas umas das outras. Estes múltiplos espaços de sociabilidade e interconhecimento promovem redes de relações mais ou menos fechadas que tendem a reproduzir-se no tempo e através das gerações criando barreiras informais à entrada de novos membros. Claro que alguns elementos definidores da pertença a um grupo de elite podem ser adquiridos ou aprendidos – como sejam, por exemplo, as formas de falar e de vestir, as escolas que frequentam os filhos, os locais onde residem ou onde passam as férias. Porém, uma pessoa só será reconhecida como um verdadeiro membro da elite se fizer parte dessa densa rede de solidariedades primárias que liga os membros do grupo. Na verdade, são estas redes extensas, complexas e exclusivistas que fornecem as bases da identidade colectiva destas famílias. As relações que este colectivo de homens e mulheres mantém e o estilo de vida e interesses económicos, sociais e políticos que partilham, derivam de um processo cultural relacional que os transforma numa comunidade que partilha um conjunto de práticas e intersubjectividades.
81No entanto, estas famílias não constituem propriamente um grupo social, pois o seu sentimento de pertença comum não se baseia na definição de um grupo com fronteiras claramente definidas, mas sim em laços de conhecimento pessoal de longa data, no cruzamento de factores identitários comuns, na partilha de projectos de vida e de uma certa visão do mundo que tem continuidade nas gerações seguintes. Constituem aquilo que Jean Lave e Wenger (1991: 29, 42) designaram por uma comunidade de acção: um conjunto de indivíduos, de famílias que se relacionam e partilham um mesmo conjunto de valores e ideais, que promovem, consequentemente, sentimentos de identificação mútua e asseguram a unidade do grupo, permitindo-nos pensá-las como um grupo social perfeitamente identificável na sociedade portuguesa. A comunidade de acção que formam não deve, portanto, ser descrita em termos de processos formais de integração, mas sim através do que Abner Cohen denomina por redes de «amity» (1981: 222) – redes de relações sociais que englobam as pessoas com as quais um indivíduo pode contar e que incluem parentes e amigos. Estas redes de identificação interpessoal unem pessoas com base, sobretudo, em formas de intersubjectividade32.
82A comunidade que estas grandes famílias de Lisboa constituem não tem, portanto, uma correspondência territorial. E uma comunidade de práticas, de representações e de valores, que une pessoas que partilham um conjunto de relações próximas e que se reconhecem como membros de um colectivo sempre activado, que partilham um passado comum e que, no presente, dão continuidade aos laços de afinidade, aos hábitos e valores que têm em comum, reproduzindo a rede de solidariedade que os une. As pessoas que pertencem a um grupo dessa natureza tendem também a integrar os seus filhos na rede de sociabilidades em que estão inseridas. Através das suas solidariedades primárias, os indivíduos criam uma comunidade de acção que estabelece, simultaneamente, as bases que permitem a sua continuidade nas gerações seguintes, pois os seus filhos, para além de estarem juntos em momentos de lazer, tenderão a frequentar as mesmas escolas e os mesmos lugares de sociabilidade. Desta forma, lançam as bases sobre as quais reproduzirão, ao longo de sucessivas gerações, o conjunto de valores e ideais que partilham, consolidando, assim, uma densa rede de relações sociais. E no âmbito destas relações partilhadas quotidianamente que se constrói um certo sentido de vida em comunidade33.
Notes de bas de page
1 Quando se fala em «grupo de sociedades» «grupo económico» ou «grupo de empresas» referimo-nos, em geral, a um conjunto de empresas juridicamente distintas, que se subordinam à direcção ou ao controlo de um centro comum. No entanto, a aparente simplicidade desta ideia é desmentida quando procuramos definir quais as situações em que se deve entender que existe o apontado poder por parte do referido centro comum, ou seja, quais os critérios para delimitar o âmbito do «grupo de empresas». De acordo com a lei comercial portuguesa, o referido conceito de «grupo» corresponde às «sociedades em relação de grupo» (os casos em que uma sociedade é a única sociedade titular das acções de uma sociedade comercial anónima, os casos em que duas ou mais sociedades independentes aceitam subordinarse por contrato a uma direcção unitária e comum e os casos em que uma sociedade aceita subordinar a gestão da sua actividade à direcção de outra) e às «sociedades em relação de domínio» (os casos, mais numerosos, em que o controlo de uma sociedade é assegurado por uma participação maioritária no capital social ou através da participação nos órgãos de gestão) (cf. Código das Sociedades Comerciais art.° 486.° e 488.°).
2 De acordo com economistas e sociólogos, a distinção entre os vários tipos de empresas-micro, pequena, média e grande-não se baseia apenas em indicadores quantitativos (facturação, capital e número de trabalhadores), mas inclui também o tipo de organização da empresa, das suas funções, sistemas de produção e tipo de trabalho de gestão e de execução (cf. Gersick et al 1997 e Guerreiro 1996).
3 Um bom exemplo desta associação ao nepotismo e da dificuldade em separar a definição de empresa familiar da conotação de pequena ou média empresa foi-me claramente revelado durante a investigação pelo presidente de uma conhecida grande empresa portuguesa, que me disse que não valia a pena ter uma entrevista comigo porque a sua empresa não era uma empresa familiar mas «uma empresa moderna cotada em Bolsa».
4 A predominância estatística das empresas familiares no quadro da economia norte-americana pode explicar a impressionante quantidade de trabalhos publicados sobre este tipo de empresas nos EUA, sobretudo na área da economia e da gestão de empresas, tendo também dado origem a um grande desenvolvimento de empresas de consultoria nesta área. A grande maioria destes serviços de consultoria tem como objectivo ajudar as famílias proprietárias de empresas a definir as estratégias de desenvolvimento e organização, de forma a não sofrerem as consequências dos problemas de sucessão que, em muitos casos, promovem rupturas irreversíveis na empresa, podendo mesmo dar origem à sua extinção. Há também uma vasta literatura de aconselhamento aos profissionais que trabalham com estas empresas, revistas dedicadas exclusivamente aos negócios familiares – como a Family Business Review –, congressos e seminários regulares para as pessoas que trabalham ou detêm empresas familiares.
5 No seu trabalho sobre grandes empresas familiares no Texas, EUA, George Marcus salienta também a importância deste elemento na formação e desenvolvimento do projecto de continuidade familiar. Na sua opinião, as grandes formações empresariais de base familiar só se desenvolvem nos casos em que o fundador consegue transmitir aos membros da segunda geração, de uma forma integrada, três coisas: uma organização empresarial de sucesso, uma família e uma fortuna pessoal (Marcus 1992: 21).
6 O caso da família Cupertino de Miranda é também um claro exemplo, embora pela negativa, da importância do papel do fundador na continuidade da empresa familiar. Cupertino de Miranda fundou o Banco Português do Atlântico (BPA) e desenvolveu-o de uma forma tão hábil que rapidamente o transformou no primeiro banco português. No entanto, não conseguiu produzir sucessores à altura do seu projecto económico, tendo os seus descendentes acabado por vender as suas participações. «Tenho pena de não ter seguidores. O meu filho não tem vontade e o meu genro é engenheiro químico. As minhas filhas são raparigas e são as únicas que me deram netos, mas também não servem. Sabe, têm outros nomes que não o meu.» (Arthur Cupertino de Miranda 1987 in Fernandes 1999). O exemplo do destino do empório de um dos mais importantes empresários portugueses até aos anos setenta mostra que uma grande fortuna empresarial não se consegue transmitir se os descendentes não se mostrarem aptos a recebê-la e a continuá-la.
7 A centralidade deste tema é bem ilustrada na preponderância do lugar que ocupa nas colectâneas organizadas por Giddens e Stanworth (1974), Jones e Rose (1993), e nas obras de Rubinstein (1987) e Jaher (1973) em que se defende que as empresas familiares não só eram compatíveis com o rápido progresso económico na Europa do século xix, como foram o seu principal agente.
8 Vejam-se, por exemplo, os casos das inúmeras biografias publicadas sobre os mais dinâmicos e bem sucedidos homens de negócios. De entre estas podemos destacar Aldrich (1996), Attali (1985), Norrington (1983) e Ferguson (1998 e 1999).
9 De entre a vasta literatura existente sobre formas de apoio à sobrevivência de empresas familiares vejamse, por exemplo, as obras de Rosenblatt (1985), Dyer (1986), Buchholz e Crane (1989), Gersick et al (1997) e pelas revistas norte-americanas Family Business e Nations Business.
10 Vejam-se, por exemplo, os casos do Japão (Fruin 1980 e Hamabata 1991) das Seyschelles (Benedict sd), da China e da Índia (Goody 1996), dos Estados Unidos da América (Dyer 1986) e de Portugal (Guerreiro 1996) onde se mostra a amplitude do sucesso económico deste tipo de empresas.
11 Adriana Piscitelli mostra que, no Brasil, economistas e sociólogos, seguindo esta mesma linha de argumentação, construíram uma linha sequencial de fases político-económicas do desenvolvimento do país, às quais está associada uma progressão de tipos de empresas predominantes. Num primeiro momento da era capitalista, na década de 1920, surgem empresários no sentido schumpeteriano do termo – noção de empresário baseada na iniciativa individual no processo de desenvolvimento económico – que deram um contributo fundamental para o desenvolvimento industrial do país. Nesta fase, a concentração entre propriedade e administração das empresas numa mesma família é considerada adequada. Na década de cinquenta, entrar-se-ia numa fase de expansão e burocratização das empresas, em que o desenvolvimento económico implica a profissionalização dos agentes tornando desadequada a sua associação a famílias (Piscitelli 1999: 12-4)
12 Neste âmbito, lembro o trabalho de Joana Afonso sobre as famílias de circo em Portugal, onde a autora defende que o facto de os circos portugueses serem empresas familiares é um elemento decisivo para a sua continuidade (cf. Afonso 2002).
13 Uma história que os membros da família contam frequentemente remonta ao princípio do século quando Manuel Mendes Godinho emprestou dinheiro ao seu amigo José Maria Espírito Santo Silva para lhe resolver um problema de liquidez financeira. As boas relações com o banqueiro, e posteriormente com os filhos deste, são seladas em 1934 com a abertura em Tomar de uma casa bancária, representante do Banco Espírito Santo. Para a família Mendes Godinho é, portanto, irónico que, após o 25 de Abril, o Banco Espírito Santo os tenha integrado nos seus activos em cumprimento de uma medida estatal e que tenha tentado retirar-lhes a titularidade das outras empresas que possuíam e controlavam. Esta situação resultou do facto de os familiares que estavam à frente dos destinos da empresa nunca terem feito a autonomização jurídica (imposta pelo Estado em 1960) da Sociedade Fábrica Mendes Godinho e da casa bancária e que atribuía setenta e cinco por cento de Fábrica Mendes Godinho à Casa Bancária. Assim, ao perder o controlo sobre esta última, perderam também o controlo dos restantes negócios.
14 Sociedade Comercial Orey Antunes; Orey Antunes Transportes e Navegação; Orey técnica Naval e industrial; Orey Viagens e Turismo; Orseg – mediadora de seguros; Orey Angola, Lda; Agência de Navegação, em Luanda; Casa Marítima Agência de Navegação; Agência de Transportes e Navegação. Detêm ainda participações noutras empresas de navegação (NedLloyd Portugal Navegação, Lda) e armadores (Portwal).
15 «São apenas catorze as famílias que dominam os sete grandes grupos financeiros portugueses durante o Estado Novo: Espírito Santo, Mello, Champalimaud, Burnay, Cupertino de Miranda, Pinto de Magalhães, Quinas, Mendes de Almeida, Queiroz Pereira, Figueiredo, Feteiras, Vinhas, Albano de Magalhães e Domingos Barreiro» (Martins 1973: 123-4 e Santos 1977: 72).
16 Os Planos de Fomento eram planos globais de orientação da política económica e social. Foram elaborados quatro planos de Fomento: o primeiro para aplicar no período compreendido entre 1953 e 1958; o segundo de 1959 a 1964; o terceiro de 1968 a 1974 e o quarto de 1974 a 1979 que nunca chegou a ser implementado. Para o período de 1965 a 1967 foi elaborado um Plano Intercalar (cf. Santos 1996a).
17 EFTA: sigla inglesa de Associação Europeia do Comércio Livre. O acordo de Salazar sobre a adesão de Portugal à EFTA surpreendeu a comunidade internacional. No entanto, esta só implicava um acordo comercial, ao contrário da CEE, que implicava também um acordo político, e onde só eram admitidos países democráticos. A abertura da economia portuguesa aos mercados internacionais e a liberalização do investimento estrangeiro em Portugal, que se verificou na mesma altura, aceleraram significativamente a economia portuguesa (cf. Lopes 1996: 73).
18 Para informações mais detalhadas sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Brandão de Brito 1996 e Santos 1996.
19 O condicionamento industrial foi o modelo de desenvolvimento industrial adoptado durante o Estado Novo, que se baseava numa política proteccionista e nacionalista que, na prática, impediu o crescimento da livre iniciativa e incentivou o crescimento dos grupos monopolistas (cf. Brandão de Brito 1989).
20 O GES liderava o mercado nacional do açúcar (com a Sociedade Agrícola do Cassequel, em Angola, a Sociedade Agrícola do Incomati, em Moçambique e a refinaria Sores, no Continente) e do café (com as plantações de café da Companhia Angola de Agricultura e a indústria de torrefacçào Tofa, em Lisboa); explorava uma das maiores herdades do Continente (a Herdade da Comporta) e em Angola era dono da Sociedade Agrícola do Quanza Sul, com largos milhares de hectares de culturas diversificadas; e detinham uma importante posição na exploração de petróleo (em Angola é um dos principais sócios da Petrangol e da Purfina e na metrópole participa nas duas refinarias de capital nacional – Sacor e Sopa).
21 No campo industrial, o GES participa na Companhia Portuguesa de Celulose, na Socel, na INAPA, na Firestone portuguesa, na Gás Cidla, na Marconi, na Central de Cervejas, na Tabaqueira Intar, na têxtil angolana Siga, nas Cervejas da Angola, é o maior accionista da Companhia Portuguesa de Electricidade e participa no importante Grupo Amoníaco Português.
22 O Grupo controla a Sodim – proprietária do Hotel Ritz de Lisboa-e participa na Sociedade que controla o Hotel Sheraton.
23 Hermínio Martins definiu a classe alta portuguesa como sendo composta por: «latifundiários, financeiros, grandes industriais e outros homens de negócios; os mais altos escalões dos corpos oficiais e do professorado, o episcopado católico e os mais prestigiados profissionais liberais» (Martins 1998: 105).
24 De acordo com José da Silva Lopes, a verdadeira explicação para essa crise deve procurar-se na influência conjugada de três factores preponderantes: 1) os choques petrolíferos de 1974 – o preço do crude passou de três para doze dólares por barril – e de 1979 – o preço duplicou; 2) o choque da descolonização – que causou um aumento de cerca de sete por cento da população portuguesa durante os anos de 1975 e 1976; 3) o choque das perturbações revolucionárias que se seguiram à mudança de regime político (Lopes 1996: 240).
25 Os movimentos sociais de carácter mais radical que marcaram o período pós-1974, como as greves, as ocupações de empresas, casas e terras.
26 Pela primeira vez desde 1974 assistia-se a um governo de longa duração: entre 1985 e 1995 sucederam-se três governos do Partido Social Democrata (PSD) liderados por Aníbal Cavaco Silva.
27 Marcada pela estabilização da inflação e a diminuição da dívida externa para as quais muito contribuíram a estabilidade do mercado internacional e dos preços do petróleo (cf. Lopes 1996).
28 «A possibilidade legal para promover as privatizações foi aberta pela revisão constitucional de 1989 e em 5 de Abril de 1990 publica-se a lei quadro das privatizações, que enunciava como objectivos da reprivatização de empresas do sector publico a modernização e o aumento da competitividade das unidades económicas, o reforço da capacidade empresarial nacional, o desenvolvimento do mercado de capitais (...) e a redução da dívida pública. Várias privatizações parciais tinham, porém, sido já efectuadas (até 49% do capital, como foi o caso do Totta & Açores e da Unicer) antes da publicação da lei» (Lopes 1996: 356).
29 A série de artigos publicados por Helena Garrido no Diário de Notícias em 1995 sobre este assunto intitulava-se, significativamente, «O regresso das grandes famílias».
30 A Tagol era, aliás, uma importante referência económica nacional (em 1990 facturou vinte e três milhões de contos) tendo o presidente do seu conselho de administração sido considerado por Filomena Mónica um dos grandes patrões da indústria portuguesa (Mónica 1990).
31 O exercício do controlo sobre quem pode, ou não, entrar na densa rede de relações que constitui a elite e a garantia de que os seus descendentes lhe continuem a pertencer constituem a chave para a manutenção do estatuto de elite ao longo de gerações familiares. A «exclusividade» que caracteriza o grupo de elite, claramente visível na dificuldade de admissão de novos membros no seu interior, é apontada pela maior parte dos autores que se debruçam sobre este tema como sendo uma importante característica das elites (cf. Cohen 1981; Bottomore 1965; Mills 1956; Nadei 1990; McDonogh 1989). Esta é a principal base para a formação da ideia de que a elite é um grupo conspiratório, cuja formulação atinge o seu expoente máximo na forma como Meisel argumenta que a elite desenvolve três cês: Consciência, Coesão, Conspiração (cf. Cohen 1981: xvi-xvii).
32 Entre este conjunto de famílias de elite de Lisboa encontrei apenas um espaço onde a sua existência como grupo assume uma dimensão formalizada: a pertença ao único clube social português – o Turf Club. O Turf era frequentado pelas mais importantes famílias da sociedade lisboeta e pelas famílias reais europeias que passavam pela cidade (cf. Langhans 1973). O limite do número de sócios, exclusivamente homens, era em 1973 de duzentos. Entre os sócios encontramos um grande número de membros das famílias que estudei, sendo de destacar a família Espírito Santo e a família Pinto Basto, cujos membros masculinos eram todos sócios.
33 São vários os autores que propuseram definições de comunidade neste sentido desterritorializado. De acordo com esta perspectiva defende-se que as relações sociais que os indivíduos estabelecem entre si são a base sobre a qual se produz, verdadeiramente, a comunidade. (Sobre a forma como a socialidade deixou de ser pensada como resultado directo de processos de agregação passando a ser vista como o centro da constituição das comunidades sociais, vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Calhoum 1980; Worsley 1983, Strathern 1988, Lave e Wenger 1991, Sobral 1999 e Pina Cabral 2000).
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