Nota final
p. 209-211
Texte intégral
1Tal como afirmei na nota de apresentação deste livro, a escolha da música rap como objecto de estudo de um projecto de investigação antropológico esteve relacionada com uma motivação mais vasta para analisar um conjunto de questões que marcam alguns traços das mudanças que a sociedade portuguesa vem sofrendo nas últimas duas décadas. A forma como essas mudanças se vão tornando mais ou menos visíveis na plataforma das representações públicas prende-se não só com as dinâmicas que as regem, mas também com os significados que elas permitem incorporar. A multiculturalidade da sociedade portuguesa e a consolidação da visibilidade de culturas juvenis urbanas constituem duas dimensões importantes deste processo. É a tendência dos discursos públicos para as apresentar de uma forma homogénea e cristalizada que esta investigação procurou problematizar.
2No caso da música rap e da cultura juvenil urbana de onde esta emerge, vimos que os significados que emitem situam-se num espaço limite entre a união em torno de um conjunto de valores e práticas e a heterogeneidade na representação desses mesmos valores e práticas. Um dos objectivos desta pesquisa foi mostrar que essa diversidade não é contraditória mas é antes uma parte integrante das estratégias de construção identitária que utilizam as formas de expressão juvenil contemporâneas.
3Essas estratégias assumem contornos específicos – as culturas de evasão referidas no segundo capítulo – que assentam em projectos reinvindicativos e reflexivos. E impõem-se na forma como ocupam o espaço urbano aparentemente anónimo, criam locais de performance expressiva e criativa, constroem e orientam a experiência quotidiana, reflectem sobre o mundo que as rodeia e analisa. É sobre a forma como esse mundo exterior representa as culturas de evasão que procurei, também, reflectir.
4O facto destes movimentos juvenis se inspirarem no consumo de produtos culturais e assumirem-se, eles mesmos, como culturas (alternativas), torna-os particularmente interessantes para a antropologia. Sobretudo porque invertem o sentido do processo antropológico clássico: já não é o antropólogo que sistematiza os elementos que permitem afirmar que «uma cultura existe», mas são os próprios indivíduos que produzem uma síntese significativa das suas práticas e discursos em torno dessa noção, manipulando-a e redefinindo-a. Estas culturas contemporâneas (ou pós-modernas, para alguns) desterritorializadas, uni-geracionais, criativas, dinâmicas, transnacionais, diaspóricas, reflexivas e auto-analíticas são construídas a partir de práticas de consumo. Procurei mostrar que isso não implica uma formatação mas antes uma apropriação e reciclagem dos produtos consumidos para criar sentidos locais.
5Esses sentidos dizem respeito não apenas a estes movimentos culturais juvenis, neste caso os rappers e adeptos da cultura hip hop, mas são também manipulados e geridos pela sociedade em que se inserem. Foi sobre a forma particular como, num determinado momento (os meados dos anos 90), a sociedade portuguesa respondeu às movimentações de grupos de jovens que se expressavam através de um estilo musical, que procurei aqui abordar.
6As respostas vieram de diferentes direcções: das ciências sociais, das políticas de identidade, dos discursos mediáticos, da indústria musical. Todas elas lidaram, de alguma forma, com as potencialidades deste fenómeno para contribuir para a representação da diversidade cultural da sociedade portuguesa pós-colonial. Assim, quando afirmo que a música rap participa da cultura de main stream da sociedade portuguesa, não quero dizer que se trata de um produto associado a práticas de consumo de massas, mas antes que aquele estilo musical constitui uma referência pública: tanto que é alvo dos discursos institucionais da retórica da tolerância e do pânico urbano.
7Essa representação centrou-se em grande medida no facto de se tratar de um fenómeno fortemente marcado pela participação de jovens negros. Procurei, por um lado, chamar a atenção para o facto da música rap servir como um recurso eficaz de construção de uma identidade black, simultaneamente pessoal e pública. E esta dualidade que faz com que esse processo de construção identitária não seja linear nem intrínseco tornando-se sobretudo, num acto político. Por outro lado, procurei realçar os efeitos de uma excessiva racialização do fenómeno levada a cabo pelos discursos que o procuraram inserir na cultura main stream portuguesa contribuindo para a veiculação de noções essencializadas e simplificadoras de raça, cultura e identidade. Símbolos do cosmopolitismo, resistência e crítica, os rappers e a sua música participaram na discussão sobre os novos contornos da sociedade portuguesa.
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